Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
| Processo: |
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| Nº Convencional: | JTRP000 | ||
| Relator: | FILIPE CÉSAR OSÓRIO | ||
| Descritores: | VENDA EM LEILÃO ELETRÓNICO ANÚNCIO DA VENDA CONTRATO DE COMODATO | ||
| Nº do Documento: | RP202509297704/24.0T8PRT-A.P1 | ||
| Data do Acordão: | 09/29/2025 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
| Decisão: | REVOGAÇÃO | ||
| Indicações Eventuais: | 5. ª SECÇÃO | ||
| Área Temática: | . | ||
| Sumário: | I - No âmbito da determinação de venda executiva através da modalidade de leilão electrónico, ao abrigo do disposto no art. 811.º, n.º 1, al. g), do CPC, para além das regras gerais previstas no art. 817.º, 2 a 4, por força do art. 837.º, n.º 2, ambos do CPC, a publicidade da venda mostra-se prevista e regulada no art. 19.º, da Portaria n.º 282/2013, de 29 de Agosto [mencionada no art. 837.º, n.º 1, do CPC] e ainda no art. 6.º, do Despacho n.º 12624/2015, de 09 de Novembro, onde se pode destacar que o anúncio deve conter, para além do mais, quaisquer outras informações relevantes, designadamente ónus ou encargos que incidam sobre o bem e que não caduquem com a venda. II - O invocado contrato de comodato “vitalício” para “habitação própria e permanente” dos comodatários, considera-se celebrado sem prazo certo, pode ser denunciado a todo o tempo e atribui aos comodatários apenas um direito pessoal de gozo, por isso, atenta a eficácia relativa do contrato, esse direito é inoponível ao que adquire o bem da esfera do comodante, ou dito de outro modo, a relação jurídica obrigacional decorrente de contrato de comodato caduca com a transmissão da propriedade do imóvel (tal como sucede com a venda em sede de execução), por isso, não é oponível ao novo proprietário. III - Deste modo, o contrato de comodato invocado pelo Executado não deve constar do anúncio da venda executiva porque o mesmo sempre caducará com a venda executiva, nunca constituiria fundamento para anulação da venda, consequentemente, não configura informação relevante para o eventual comprador. | ||
| Reclamações: | |||
| Decisão Texto Integral: | Apelação n.º 7704/24.0T8PRT-A.P1
(5.ª Secção Judicial, 3.ª Secção Cível) Comarca do Porto Juízo de Execução do Porto – ...
Relator: Filipe César Osório 1.º Adjunto: José Eusébio Almeida 2.º Adjunto: Teresa Pinto da Silva
Sumário: …………………………………………………………. …………………………………………………………. ………………………………………………………….
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ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO *
I. RELATÓRIO
- Acção Executiva – incidente na fase da venda 1. As partes: Recorrente – Exequente – A... – STC, S.A. Recorrido – Executados 1.º – AA 2.º – BB 3.º – CC *
2. Objecto do litígio: Com a presente execução para pagamento de quantia certa que a Exequente move contra os Executados aquela pretende obter destes o pagamento da quantia de €287.344,13. * 3. Desenvolvimento da instância: O Agente de Execução determinou a venda, através da modalidade de leilão electrónico, do seguinte imóvel: Fração autónoma designada pela letra A, que corresponde à habitação no rés-do-chão e, nas traseiras, garagem e arrumos com 16,25m2, destinado a habitação, do prédio urbano sito na Rua ..., no lugar de ..., inscrito na matriz predial sob o artigo ...57 da freguesia ... e ..., concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de Matosinhos sob o número ...81, com o VPT de 58.817,22€ [determinado no ano de 2024]. Veio o 1.º Executado por Requerimento avulso informar essencialmente que é proprietário deste imóvel por lhe ter sido doado por seus pais, que à data da escritura de doação foi igualmente celebrado entre o ora executado (donatário) e os pais (doadores) um contrato de comodato para habitação própria permanente vitalício, que junta, requerendo “que o ónus resultante do contrato de comodato para habitação própria permanente vitalício, conste da descrição do imóvel para efeitos de venda, seja qual for a modalidade adotada”. O Exequente, no exercício do contraditório, veio pedir se julgue “totalmente improcedente o requerido pelo executado, devendo ser desconsiderada por falta de razão justificativa, qualquer referência a qualquer ónus sobre o imóvel penhorado e em venda nos presentes autos”, alegando essencialmente o abuso do direito, a nulidade do contrato de comodato por simulação e a sua inoponibilidade a terceiros e ao eventual adquirente do imóvel em causa. * 4. Decisão em Primeira Instância:
* 5. Recurso de apelação da Exequente/Recorrente: A Recorrente interpôs recurso de apelação daquela decisão, onde requer “que se dignem julgar totalmente PROCEDENTE o presente recurso, por provado, e em consequência seja revogado o douto despacho de que se recorre (despacho de fls. de 27/05/2025 com a referência n.º 472121434), ordenando a substituição por outro que declare a não publicitação de qualquer ónus sobre o imóvel e fixe, no quadro jurídico, a nulidade do contrato de comodato invocado e a correspondente procedência”, com as seguintes conclusões [transcrição]: «A) Não se conforma a ora Recorrente com o douto despacho de fls. de 27/05/2025 com a referência n.º 472121434, porquanto o mesmo julga incorretamente a questão sub judice carecendo de fundamento legal e errando na decisão de direito proferida; B) O douto despacho supra aludido e que ora se recorre está ainda viciado por omissão de pronúncia sobre a excepção do abuso de direito deduzida no requerimento de impugnação que foi deduzido pelo ora recorrente, bem omite pronúncia à invocada nulidade do contrato de comodato por simulação relativa e desvirtuação do negócio real celebrado pelas partes (artigos 240º e 241º do CC). C) O abuso de direito, que é de conhecimento oficioso, obsta a que determinada posição jurídica que, aparentemente demonstra um pretenso direito subjectivo, na prática torne inalegável esse direito por o mesmo constituir um claro abuso e atente directamente contra a boa fé e a tutela da confiança como valores fundamentais que o ordenamento jurídico acolhe e tutela. D) Em face daquelas omissões de pronúncia, o douto despacho ficou, ao abrigo do artigo 615.º, n.º 1, alínea d) do C.P.C., ferido de nulidade. E) Em termos substantivos, o direito do comodatário é um direito pessoal de gozo e não um direito com eficácia real, o que significa que não goza de sequela nem oponibilidade erga omnes, tendo apenas eficácia entre as partes nos termos do disposto no art. 409º do Cód. Civil; F) O comodato nunca será oponível a um eventual e futuro adquirente do bem. G) Nos termos do art. 824.º do Cód. Civil os bens em venda judicial são transmitidos livres dos direitos de garantia que os oneram; sendo além disso o comodato posterior à garantia prioritária do ora recorrente e exequente, sempre caducaria com a venda nos termos do aludido art. 824.º n.º 2, do Cód. Civil. H) Razão pela qual a publicitação do contrato de comodato serviria apenas para influir negativamente no juízo dos interessados na aquisição do bem, realidade que serviria apenas para dificultar manifestamente a venda judicial e influenciar de maneira negativa o valor de venda do bem, sem razão de ser; I) Razão pela qual não deve ser publicitado nem tomado em consideração tal ónus, devendo antes ser o douto despacho que ora se recorre ser revogado; J) A admissão da existência do comodato invocado, é abrir a porta à possibilidade de se converter aquele contrato, feito por mero documento particular e sem registo predial, numa verdadeira doação (encapotada e indirecta) da coisa, descaracterizando-se suposto ónus num direito de uso e habitação, mas sem os requisitos necessários para tal, de tal modo que permitiria ao pseudo-comodatário manter gratuitamente e sem limites o gozo da coisa. K) Sendo manifestamente evidente que no caso concreto e pelos argumentos invocados não estamos perante um verdadeiro contrato de comodato, nos termos puramente legais, mas sim perante um mero empréstimo de uma casa para habitação.». * 6. Resposta Não foram apresentadas contra-alegações. * - Saber se o anúncio da venda do imóvel em leilão electrónico deve ser mencionado o “contrato de comodato vitalício” invocado pelo Executado. * II. FUNDAMENTAÇÃO 8. Factos provados Os factos a ter em conta são aqueles que constam do relatório. * 9. Reapreciação jurídica: 9.1. Movemo-nos no âmbito da venda executiva através da modalidade de leilão electrónico, ao abrigo do disposto no art. 811.º, n.º 1, al. g), do CPC, já determinada pelo Agente de Execução (cfr. art. 812.º, n.º 1, do CPC). Para além das regras gerais previstas no art. 817.º, 2 a 4, por força do art. 837.º, n.º 2, ambos do CPC, a publicidade da venda mostra-se ainda prevista e regulada no art. 19.º, da Portaria n.º 282/2013, de 29 de Agosto (regulamenta vários aspetos das ações executivas cíveis) [mencionada no art. 837.º, n.º 1, do CPC] e ainda no art. 6.º, do Despacho n.º 12624/2015, de 09 de Novembro (Define como entidade gestora da plataforma de leilão eletrónico a Câmara dos Solicitadores e homologa as regras do sistema aprovadas por essa entidade), do seguinte modo: Art. 19.º, da referida Portaria n.º 282/2013, de 29 de Agosto, sob a epígrafe “anúncio electrónico”: 1 - A venda dos bens penhorados é publicitada, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 817.º do Código de Processo Civil, através de anúncio na página informática de acesso público, na Área de Serviços Digitais dos Tribunais, acessível no endereço eletrónico https://tribunais.org.pt. 2 - O anúncio contém: a) A identificação do processo de execução; b) O nome do executado; c) A identificação do agente de execução; d) As características do bem; e) A modalidade da venda; f) O valor para a venda; g) O dia, hora e local de abertura das propostas; h) O local e horário fixado para facultar a inspeção do bem; i) Menção, sendo caso disso, ao facto de a sentença que serve de título executivo estar pendente de recurso ou de oposição à execução ou à penhora. 3 - O anúncio deve ainda conter quaisquer outras informações relevantes, designadamente ónus ou encargos que incidam sobre o bem, e que não caduquem com a venda, bem como, sempre que possível, fotografia que permita identificar as características exatas do bem e o seu estado de conservação. 4 - A publicação dos anúncios é efetuada de forma a que não seja possível a sua indexação a motores de busca. [sublinhado nosso]. Art. 6.º, do aludido Despacho n.º 12624/2015, de 09 de Novembro sob a epígrafe “Publicidade do leilão”: 1 - Os leilões são publicados na plataforma www.e-leiloes.pt, podendo ainda proceder-se, por decisão da Câmara dos Solicitadores, à difusão de informação, parcial ou integral, noutros sítios da Internet, na imprensa escrita e através de correio eletrónico, sem prejuízo de o agente de execução titular do processo poder também divulgar a venda através de outros meios que entenda relevantes. 2 - A publicitação no portal www.e-leiloes.pt deve indicar, pelo menos: a) Número de processo judicial, tribunal e unidade orgânica; b) Data do início do leilão; c) Data e hora limite do leilão; d) O valor base do bem (ou conjunto de bens) a vender; e) O valor da última licitação; f) Tratando-se de bem móvel, fotografia do bem ou conjunto de bens que integram o lote a licitar; g) A identificação sumária do bem; h) Natureza do bem; i) Tratando-se de imóvel, a sua localização e composição, artigo matricial e descrição predial, distrito, concelho, freguesia e coordenadas geográficas da localização aproximada, fotografia do exterior do imóvel e, sempre que possível, tratando-se de prédio urbano ou fração autónoma, do seu interior; j) Identificação do fiel depositário ou do local de depósito; k) Local e hora em que os bens podem ser vistos e contactos do fiel depositário; l) Identificação do agente de execução titular do processo, incluindo nome, cédula profissional, número de telefone e telemóvel, fax, e-mail e horário de atendimento; m) Quaisquer circunstâncias que, nos termos da lei, devam ser informadas aos eventuais interessados, nomeadamente a pendência de oposição à execução ou à penhora, a pendência de recurso, a existência de ónus que não devam caducar com a venda e de eventuais titulares de direitos de preferência manifestados no processo; n) Nome do executado ou executados a quem pertencem os bens a vender [sublinhado nosso]. Para apurar o alcance daquelas normas, importa salientar que resulta desde logo das expressões “deve conter quaisquer outras informações relevantes, designadamente…” e “pelo menos…” que as diversas informações ali exigidas sobre o bem a vender e ali elencadas não são exaustivas, isto é, devem ainda constar outras informações ali não expressamente elencadas, desde que relevantes. E quais são as informações relevantes? Ora, desde logo, com relevância para o caso que nos ocupa, nem todas as informações devem ali constar porque em ambos os preceitos citados (e que acima sublinhamos) se exige a indicação de ónus ou encargos mas apenas aqueles “que não devem caducar com a venda”. Além disso, um critério seguro para saber afinal quais são as informações relevantes que devem constar daquele anúncio devem ser aquelas que iriam permitir posteriormente a anulação da venda prevista no art. 838.º, n.º 1, do CPC, se não constassem daquela publicitação. Com efeito, nos termos do referido art. 838.º, n.º 1, “Se, depois da venda, se reconhecer a existência de algum ónus ou limitação que não fosse tomado em consideração e que exceda os limites normais inerentes aos direitos da mesma categoria, ou de erro sobre a coisa transmitida, por falta de conformidade com o que foi anunciado, o comprador pode pedir, na execução, a anulação da venda e a indemnização a que tenha direito, sem prejuízo do disposto no artigo 906.º do Código Civil.” [sublinhado nosso]. Então resta saber o que se entende por ónus ou limitação que não fosse tomado em consideração e que exceda os limites normais inerentes aos direitos da mesma categoria. A este propósito, em anotação ao art. 908.º, do CPC anterior, Lebre de Freitas (CPC Anotado, Vol. 3.º, Coimbra Editora, 2003, pág. 609) refere que ao consagrar a anulabilidade da venda executiva a lei está a tutelar o comprador e que os referidos ónus ou limitações são vícios nos pressupostos do acto, tratando-se de situações de erro acerca do objecto jurídico da venda. Aquele autor prossegue (pág. 610) referindo que “Constituem ónus ou limitação o direito real de gozo que não deva caducar com a venda (visto que os direitos reais de garantia caducam sempre), ónus como os de redução eventual de doação sujeita a colação ou de renda limitada ou económica, e o direito pessoal de gozo que seja eficaz em relação ao comprador (como é o caso do direito ao arrendamento); mas não o direito, sem eficácia real, do promitente comprador a que o executado haja prometido vender o prédio, ainda que esteja pendente, ou até já finda, acção de execução específica não registada antes da penhora (ac. do TRL de 26.1.89, CJ, 1989, I, pág. 114…), nem o direito real de aquisição, que, exercido, dá lugar à substituição do comprador (contra: Remédio Marques, Curso cit., pág. 419 (1193)). O ónus ou limitação deverá, em qualquer caso, exceder os limites normais inerentes aos direitos da mesma categoria; estão, por exemplo, dentro dos limites normais as limitações legais ao direito de propriedade (limitações gerais, restrições provenientes de providências administrativas gerais e abstractas, ónus resultantes de plano de urbanização, etc.) e as servidões legais ainda não constituídas (Antunes Varela, CC anotado cit., n.ºs 1, 3 e 4, da anotação ao art. 905.º)”. Acrescenta ainda Lebre de Freitas (pág. 610-611) que “Para que o fundamento [de anulação da venda] se verifique, o que é necessário é que, no acto da compra ou nos anúncios que a precedem, ao ónus ou limitação não tenha sido feita qualquer referência, não tendo sido dele dado conhecimento ao comprador. Para o afastar, não basta que o ónus estivesse registado, porquanto o comprador não é obrigado a consultar, antes da compra, no processo ou na conservatória, o teor do registo (em contrário; Alberto dos Reis, idem, II, pág. 421).” Lebre de Freitas (pág. 611) prossegue afirmando que “Constitui caso de desconformidade com o que foi anunciado o do bem anunciado como livre, mas na realidade objecto litigioso duma acção pendente (ac. do STA de 6.3.91, AJ, 17, p. 32). Semelhantemente, o ac. do TRC de 20.5.97, BMJ, 467, p. 641, entendeu ser de desconformidade o caso do bem cuja penhora é objecto de embargos de terceiro, já pendentes à data da venda, mas que só vêm a ser recebidos depois dela. Sê-lo-á também o caso em que, nos editais e anúncios dos arts. 890-5 e 907-A-2 [anterior CPC] ou acto de venda dos arts. 905-5 e 906-3 [anterior CPC], se omita a declaração da pendência do recurso ou da oposição. * 9.2. No caso concreto em apreciação, o Executado veio informar da existência de “contrato de comodato de imóvel para habitação própria permanente (vitalício)” que estabeleceu com seus pais octogenários e com graves problemas de saúde e pretende que tal deva ser mencionado no anúncio como ónus ou encargo do imóvel para venda, discordando disso a Exequente. Então, para que o contrato de comodato invocado deva constar do anúncio da venda executiva, tem de configurar uma informação relevante, um ónus ou encargo que não caduca com a venda. Vejamos se no caso concreto é ou não isso o que sucede. Comodato é o contrato gratuito pelo qual uma das partes entrega à outra certa coisa, móvel ou imóvel, para que se sirva dela, com a obrigação de a restituir – cfr. art. 1129.º, do Código Civil. É um contrato meramente consensual, em que há uma simples atribuição do uso da coisa, para todos os fins lícitos ou alguns deles, dentro da função normal das coisas da mesma natureza e não, em princípio, da atribuição do direito de fruição (cfr. art. 1133.º, n.º 1, in fine, do Código Civil)[1]. Se os contraentes não convencionaram prazo certo para a restituição da coisa, mas esta foi emprestada para uso determinado, o comodatário deve restituí-la ao comodante logo que o uso finde, independentemente de interpelação – cfr. art. 1137.º, n.º 1, do Código Civil. Se não foi convencionado prazo para a restituição nem determinado o uso da coisa, o comodatário é obrigado a restituí-la logo que lhe seja exigida – cfr. art. 1137.º, n.º 2, do Código Civil. No caso concreto em apreciação, apesar de ter sido estipulada como finalidade a habitação, tratando-se de um comodato “vitalício”, a jurisprudência tem entendido que não constitui comodato para uso determinado o mero empréstimo de uma casa para habitação e, por isso, não obsta à restituição da coisa comodada a circunstância de esse específico fim ainda ocorrer, ou seja, o comodante pode a todo o tempo exigir a restituição. Neste sentido, destaca-se o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15/12/2011[2], (Salazar Casanova, proc. n.º 3037/05.0TBVLG.P1.S1, www.dgsi.pt): «V - No aludido contrato de comodato não foi convencionado prazo certo para a restituição; quando as partes estipularam prazo incerto ou não estipularam prazo algum para a restituição, rege o disposto no art. 1137.º, n.º 2, do CC segundo o qual o comodatário é obrigado a restituir a coisa entregue logo que assim o seja exigido pelo comodante (denúncia ad nutum). VI - No contrato de comodato, a cláusula pela qual o comodante declarou proporcionar a utilização da coisa até à morte do comodatário será válida desde que interpretada no sentido de que não obsta, por imposição da própria lei, a que o comodante possa sempre denunciar o contrato ad nutum.» (sublinhado nosso). Ainda neste mesmo sentido decidiu-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21/03/2019[3] (Maria do Rosário Morgado, proc. n.º 2/16.5T8MGL.C1.S1, www.dgsi.pt) o seguinte: «Sendo a coisa entregue para um uso determinado, tem-se em vista a utilização da coisa para uma certa finalidade, não a utilização da coisa em si. Por isso, não será ao abrigo do uso determinado da coisa que ficará impedido o comodante de exigir a restituição ad nutum, nos termos do art. 1137.º, n.º 2, do Código Civil. Daí que no comodato sejam necessários dois requisitos para caracterizar o uso determinado do empréstimo da coisa: 1.º que ele esteja expresso de modo claro; 2.º que esse uso seja de duração limitada». No mesmo sentido, vide o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 09/07/2024[4] (Leonel Serôdio, proc. n.º 3068/21.2T8STR.E1.S1, www.dgsi.pt): «IV- Não constitui comodato para uso determinado o mero empréstimo de prédio para habitação do comodatário. V- Não tendo o comodato em causa uso determinado, nem prazo certo é subsumível ao disposto no n.º 2 do artigo 1137.º do Código Civil.». Para Rodrigues Bastos[5] «tem de considerar-se a cedência sempre limitada a certo período de tempo, sob pena de se desrespeitar a função social preenchida por este contrato, cuja causa é sempre uma gentileza ou favor, não conciliável com o uso muito prolongado do imóvel (…). Um comodato muito prolongado de um imóvel converter-se-ia em doação (indirecta) do gozo da coisa, ou, se fosse para durar toda a vida da outra parte, o comodato caracterizar-se-ia em direito de uso e habitação.». De todo o modo, no caso concreto o comodato invocado nunca poderia transformar-se em direito de uso e habitação (art. 1484.º, do Código Civil), porque este configura um direito real cuja constituição válida depende de escritura pública ou documento particular autenticado (cfr. art. 875.º, do CC, se for oneroso ou art. 947.º, n.º 1, do CC se o negócio constitutivo for gratuito, todos por força do art. 939.º, do CC) e para gerar eficácia perante terceiros depende do registo predial (cfr. art. 2.º, n.º 1, al. a) e 5.º, do Código do Registo Predial), o que não ocorreu. Finalmente, é pacífico na jurisprudência que o contrato de comodato atribui ao comodatário um mero direito pessoal de gozo, mas, atenta a eficácia relativa do contrato, esse direito é inoponível ao que adquire o bem da esfera do comodante. Neste sentido pode ser consultado o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30/03/2017[6] (Abrantes Geraldes, Proc. 149/09.4TBGLG-E.E1-A.S1., www.dgsi.pt): «II. O contrato de comodato atribui ao comodatário um direito pessoal de gozo, mas, atenta a eficácia relativa do contrato, esse direito é inoponível ao que adquire o bem da esfera do comodante. III. No âmbito da acção executiva para pagamento de quantia certa são inadmissíveis os embargos de terceiro apresentados pelo comodatário para impedir a entrega do bem ao adquirente a quem foi transmitido.». E, com pertinência, no citado Acórdão considerou-se ainda o seguinte: «Pese embora alguns pontos em comum que se verificam entre os direitos reais e os direitos pessoais de gozo, nos primeiros dominam as características da sequela e da eficácia ou oponibilidade erga omnes, ao passo que dos direitos pessoais de gozo irradiam efeitos que, por regra, apenas vinculam os respectivos sujeitos, nos termos do art. 409º do CC (cfr. o Ac. do STJ, de 19-3-02, CJSTJ, tomo I, pág. 139). Sobre a matéria cfr. Menezes Leitão, Direito das Obrigações, vol. I, págs. 93 a 96, designadamente quando aponta como características dos direitos de crédito a sua relatividade e quendo conclui que a “sua oponibilidade a terceiros é limitada, só podendo ocorrer em certas circunstâncias” (pág. 94). Em consequência, eventuais situações de confronto entre o novo titular do direito de propriedade e outros possuidores ou detentores da mesma coisa não sujeitos a um regime especial, como o que decorre previsto para o arrendamento no art. 1057º do CC, deverão ser resolvidos a favor do proprietário, nos termos do art. 1311º do CC. Dito de outro modo, uma vez reconhecido o direito de propriedade, o detentor deve restituir a coisa ao proprietário, a não ser que demonstre a existência de um título que, sendo eficaz em relação a este, legitime a recusa de restituição. Tal não ocorre quando singelamente se invoque, como ocorre no caso, a outorga de um contrato de comodato com o anterior proprietário do bem que foi adjudicado ao exequente. Assim o defende J. Andrade Mesquita quando conclui taxativamente que os terceiros não estão vinculados a realizar o direito do comodatário e que o contrato cessa caso o direito com base no qual foi constituído seja transferido para terceiro (Direitos Pessoais de Gozo, págs. 163 e 165). Ou ainda Augusta Ferreira Palma, Embargos de Terceiro, para quem “inexistindo para o comodato normas paralelas às dos arts. 824º e 1057º do CC, o comodatário não se poderá opor à pretensão do exequente”, no que concerne à venda executiva e, dizemos nós, por via disso, não se poderá opor à entrega do bem ao mesmo exequente a quem seja adjudicada.» [sublinhado nosso]. No Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 04/02/2016 (Sílvio Sousa, proc. n.º 1448/12.3TBTMR.E1, www.dgsi.pt) decidiu-se de igual modo o seguinte: «A relação jurídica obrigacional, decorrente de contrato de comodato, caduca com a transmissão da propriedade do imóvel, não sendo, por isso, oponível ao novo proprietário; nada tem de anti-ético ou ofensiva da “justiça e do sentimento jurídico dominante”, com a inerente inaplicabilidade da figura do abuso de direito, uma ação de reivindicação, a fim de se extrair benefícios económicos do prédio reivindicado, ainda que este seja detido por um familiar próximo dos reivindicantes.». Na sequência do exposto, o contrato de comodato “vitalício” para “habitação própria e permanente” dos comodatários, invocado pelo Executado, considera-se celebrado sem prazo certo, pode ser denunciado a todo o tempo, bem como, atribui aos comodatários apenas um direito pessoal de gozo, por isso, atenta a eficácia relativa do contrato, esse direito é inoponível ao que adquire o bem da esfera do comodante, ou dito de outro modo, a relação jurídica obrigacional decorrente de contrato de comodato caduca com a transmissão da propriedade do imóvel (tal como sucede com a venda em sede de execução), por isso, não é oponível ao novo proprietário. Deste modo, o contrato de comodato invocado pelo Executado não deve constar do anúncio da venda executiva porque o mesmo sempre caducará com a venda executiva e nunca constituiria fundamento para anulação da venda, consequentemente, não configura informação relevante para o eventual comprador em sede de venda executiva. Consequentemente, importa revogar o despacho recorrido e determinar que não deve constar do anúncio da venda executiva a existência do contrato de comodato invocado, indeferindo-se assim a pretensão do Executado. *
As custas do recurso de Apelação são da responsabilidade do Recorrido. *
Nos termos e fundamentos expostos, 1. Acordam os Juízes da 3.ª Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto em julgar parcialmente procedente o recurso de apelação interposto pela Recorrente e, em consequência revogar o despacho proferido em despacho de fls. de 27/05/2025 (com a referência n.º 472121434) determinando-se que não deve constar do anúncio da venda executiva a existência do contrato de comodato invocado, indeferindo-se assim a pretensão do Executado. 2. As custas do recurso de Apelação são da responsabilidade do Recorrido. 3. Registe e notifique. *
Porto, 29/9/2025 (data e assinaturas certificadas) Relator: Filipe César Osório 1.º Adjunto: José Eusébio Almeida 2.º Adjunto: Teresa Pinto da Silva ______________________________ |