Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | DIOGO RAVARA | ||
Descritores: | RESPONSABILIDADES PARENTAIS ACORDO LIBERALIDADE EXCEPÇÃO | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 12/20/2018 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | IMPROCEDENTES OS RECURSOS DA REQUERENTE E DO REQUERIDO | ||
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Sumário: | I- Se em acordo sobre o exercício das responsabilidades parentais um dos outorgantes se compromete a pagar “metade do valor da mensalidade devida ao infantário”, tal cláusula não pode ser interpretada no sentido de abranger o pagamento de metade da mensalidade com colégio privado que a criança passou a frequentar quando concluiu o ensino pré-escolar; nem é aplicável a outras despesas de educação. II- Se não obstante, o progenitor visado naquela cláusula continuar, de forma voluntária, a pagar mensalmente determinada quantia a título de comparticipação nas despesas com as mensalidades de colégio privado frequentado pela criança, deve entender-se que o faz a título de mera liberalidade, correspondendo tal comportamento ao cumprimento de uma obrigação natural. III- A invocação da imputação da quantia voluntariamente entregue para comparticipação naquela despesa na atualização anual da pensão alimentar de acordo com a inflação, (atualização essa prevista do acordo sobre exercício das responsabilidades parentais) configura uma verdadeira exceção de cumprimento. IV- Sendo tal exceção invocada, pela primeira vez em sede de recurso de apelação, não pode o Tribunal da Relação dela tomar conhecimento, por força do princípio da concentração da defesa, consagrado no art. 573.º, n.º 1 do CPC. | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa: I- RELATÓRIO No Juízo de Família e Menores do Barreiro correu termos uma ação de regulação do poder paternal com o nº …/…, relativa a IS…, nascida em …-04-2001, filha de SC… e de VM…. Decidida aquela causa por acordo entre os pais da criança que foi homologado em 30-09-2003, veio a sua mãe, por requerimento apresentado em juízo no dia 17-07-2018 intentar o presente incidente de incumprimento. Para tanto alega, em resumo, que no referido acordo ficou estipulado que o pai da I…, ora requerido pagaria mensalmente a quantia de € 200,00 a título de pensão de alimentos, acrescida de metade das despesas de educação e saúde, no valor aproximado de € 340,00, motivo pelo qual até maio de 2015 o requerido pagou mensalmente € 540,00. Contudo, a partir de julho de 2015 o requerido passou a pagar apenas a quantia mensal de € 200,00. Mais alega a requerente que no mesmo acordo ficou assente que a quantia devida a título de pensão de alimentos seria anualmente atualizada, de acordo com a taxa de inflação publicada pelo Instituto Nacional de Estatística, mas que tal pensão não é atualizada desde 2013. Assim, e porque sustenta ter suportado despesas de educação e saúde no valor global de € 12.795,25, conclui a requerente pedindo que o requerido seja: - Condenado ao pagamento de metade das despesas de educação e saúde em dívida que se cifram em 12.795,25€ (doze mil e setecentos e noventa e cinco euros e vinte e cinco cêntimos); - Condenado ao pagamento dos juros de mora vencidos que se cifram em 772,97€ (setecentos e setenta e dois euros e noventa e sete cêntimos); - Condenado ao pagamento das quantias devidas pela atualização da pensão de alimentos segundo as taxas de inflação, que perfazem um total de 514,85€ (quinhentos e catorze euros e oitenta e cinco cêntimos); - Condenado ao pagamento de juros de mora vincendos; - Condenado em multa até vinte unidades de conta segundo o disposto no artigo 41.º n.º 1 do Regime Geral do Processo Tutelar Cível. Em 17-07-2018 a requerente veio apresentar novo requerimento, alegando que nesse mês o requerido tinha voltado a pagar apenas a quantia de € 200,00 a título de pensão de alimentos, nada tendo pago a título de pagamento de metade das despesas de educação e saúde, que naquele mês ascendem a € 290,06, devendo por isso o requerido pagar a quantia de € 145,03. Em conformidade conclui que o valor total em dívida perfaz € 12.940,28 acrescido de juros de mora, no montante de € 772.97, e a quantia devida a título de atualização da pensão de alimentos, no valor de € 514,85, perfazendo uma quantia global de € 14.228,10. Tendo tomado conhecimento da apresentação do requerimento inicial, o requerido veio por sua própria iniciativa apresentar alegações, sustentando, em resumo que por se ter casado e ter mais dois filhos, com o inerente aumento de encargos financeiros “deixou (…) de poder contribuir com 340,00 para o colégio da menor como quis fazer”, mas que, de todo o modo não está obrigado a fazê-lo. Mais impugna as despesas invocadas pela requerente. Conclui pela improcedência do incidente. O M.P. pronunciou-se no sentido de ser agendada conferência de pais. Não obstante, o Mmº Juiz a quo proferiu de imediato sentença, com o seguinte dispositivo: “Em face de todo o exposto, e nos termos do artigo 41.º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível e das citadas disposições normativas, julgo o presente incidente de incumprimento da regulação das responsabilidades parentais parcialmente procedente, condenando o requerido VM… a entregar à requerente SC… a importância de € 6.020,85 (seis mil e vinte euros e oitenta e cinco cêntimos) relativos à actualização da pensão de alimentos correspondente ao período de Janeiro de 2004 a Setembro de 2018, a que acrescerão os valores correspondentes aos que se vencerem a partir desta data e até integral pagamento.” Inconformados com tal sentença, ambos os progenitores interpuseram recurso de apelação. A requerente culminou as suas alegações de recurso com as seguintes conclusões: A. A Recorrente não aceita que o pagamento de 50% das mensalidades do colégio que a menor frequenta pelo Requerido não se enquadra na previsão do acordo de regulação das responsabilidades parentais homologado em 17 de Setembro de 2003, já transitada em julgado, proferida nos Autos de Regulação das Responsabilidades Parentais n.º …/…. B. De facto, no referido acordo das responsabilidades parentais, os progenitores fixaram que para além do pagamento da quantia mensal de 200,00€ (duzentos euros), a título de alimentos da menor, a efetuar pelo progenitor, foi estabelecido que a “esta quantia acrescerá metade do valor da mensalidade devida ao infantário, bem como metade das despesas de saúde, devidamente documentadas”. C. Atendendo a que a menor na data dos factos tinha apenas dois anos, entende-se o porquê de terem utilizado tal nomenclatura em vez de “estabelecimento de ensino”. D. Aliás, ao terem fixado um valor a título de prestação de alimentos da menor, ao qual acresceram o pagamento em partes iguais de outras prestações, parece evidente a intenção dos progenitores de separar desse valor fixo pago a título de prestação de alimentos, as despesas advenientes da educação e da saúde da menor. E. Ora, deve-se efetuar uma interpretação atualista de qual era a intenção dos progenitores aquando da outorga do acordo das responsabilidades parentais. F. Dessa interpretação surge de forma nítida a intenção dos progenitores de que as despesas advenientes de mensalidades de qualquer estabelecimento escolar que viesse a ser frequentado pela menor fosse pago em partes iguais por estes, retirando-se essa despesa do valor compreendido no valor fixo pago pelo progenitor à menor a título de prestação de alimentos. G. Face ao exposto, deve ser esse o entendimento que deve prevalecer e ser o Requerido condenado ao pagamento de 50% das mensalidades do colégio da menor no período compreendido entre Julho de 2015 e Setembro de 2018, acrescido dos juros vencidos e que entretanto se vencerem, e ao qual deverão acrescer os valores correspondentes que entretanto se vencerem. Termina sustentando que “deverá o presente recurso ser admitido, e em consequência ser o Requerido condenado ao pagamento de 50% das mensalidades do colégio da menor no período compreendido entre Julho de 2015 e Setembro de 2018, acrescido dos juros vencidos e que entretanto se vencerem, e ao qual deverão acrescer os valores correspondentes que entretanto se vencerem”. Por seu turno, o requerido sintetizou os argumentos vertidos nas suas alegações de recurso nas seguintes conclusões: A- O Recorrente não aceita a condenação no pagamento da importância de € 6.020,85 (seis mil e vinte euros e oitenta e cinco cêntimos), relativos à atualização da pensão de alimentos correspondente ao período de Janeiro de 2004 a Setembro de 2018, a que acrescerão os valores correspondentes aos que se vencerem a partir desta data e até integral pagamento. B- Pois na verdade o requerido pagou por sua iniciativa, e atualizou anualmente o pagamento, da pensão de alimentos de acordo com a inflação, à qual ficou obrigado por força do acordo das responsabilidades parentais que aceitou, desde 2004. C- Tendo sido levado aos autos, o pagamento efectuado pelo requerido à requerente, durante o período em referência, entre 2004 e 2018, no valor total de €68.742,49, o qual é manifestamente suficiente ao devido com a atualização anual, de acordo com a inflação. D- Pois que, embora não esteja ali definido, resulta claramente implícito o pagamento da atualização da pensão de alimentos. E- O requerido pelo acordo das responsabilidades parentais ficou ciente da obrigação dessa atualização anual. F- À qual procedeu, por sua iniciativa, a partir de Janeiro de 2004, sendo que a partir de 2007 pagou um valor superior ao da pensão de alimentos (um valor estimado, pois que nunca a requerente apresentou as despesas concretas), durante todos aqueles anos. G- Sendo que a requerida sabia desse facto, razão pela qual nunca exigiu coercivamente o valor correspondente às atualizações da pensão de alimentos. H- Apenas deixando de o fazer, porque a sua vida alterou-se com a constituição de um novo agregado familiar, alterando-se portanto a sua disponibilidade financeira, devidamente comprovada nos autos. I- Face ao exposto, deve ser esse o entendimento que deve prevalecer e ser o Requerido absolvido do pagamento da importância de € 6.020,85 (seis mil e vinte euros e oitenta e cinco cêntimos), relativos à atualização da pensão de alimentos correspondente ao período de Janeiro de 2004 a Setembro de 2018, e aos valores que acrescerão correspondentes aos que se vencerem a partir da data da decisão até integral pagamento. A requerente apresentou contra-alegações pugnando pela improcedência do recurso apresentado pelo requerido. O requerido não apresentou contra-alegações. Os recursos foram liminarmente admitidos pelo Mmº Juiz a quo, tendo sido indeferido o pedido de prestação de caução apresentado pelo requerido com vista à obtenção de efeito suspensivo. Em consequência, a ambos os recursos foi atribuído o efeito meramente devolutivo. Recebido o recurso neste Tribunal da Relação, e corridos que se mostram os vistos, cumpre decidir. II- QUESTÕES A DECIDIR Conforme resulta das disposições conjugadas dos arts. 635º, n.º 4 e 639º, n.º 1 do CPC, é pelas conclusões que se delimita o objeto do recurso, seja quanto à pretensão dos recorrentes, seja quanto às questões de facto e de Direito que colocam[1]. Esta limitação dos poderes de cognição do Tribunal da Relação não se verifica em sede de qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cfr. art. 5º n.º 3 do Código de Processo Civil). Não obstante, está vedado a este Tribunal o conhecimento de questões que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas[2]. No caso em análise, para além das questões suscitadas pelos recorrentes, entende este Tribunal que também deve alterar oficiosamente a decisão sobre matéria de facto, nos termos previstos no art. 662º, nº 1 do CPC, como oportunamente melhor explicitará. Assim sendo, as questões essenciais a decidir são as seguintes: a) A alteração da decisão sobre matéria de facto; b) A interpretação da cláusula 3.2 do acordo sobre responsabilidades parentais relativa à IS…, cláusula essa que se reporta à repartição do valor de despesas da criança; c) Saber se as quantias pagas pelo requerido, na parte que excede a quantia de € 200 ajustada a título de “pensão de alimentos” devem ser imputadas nas atualizações decorrentes da inflação. * III- OS FACTOS A sentença sob recurso considerou provada a seguinte factualidade: 1) - A menor IS… nasceu em … de Abril de 2001, na freguesia do Pragal, concelho de Almada, e é filha de VM… e de SC... 2) - No âmbito do processo de regulação do poder paternal que correu termos no extinto Tribunal de Família e Menores e de Comarca do Barreiro sob o n.º …/…, foi proferida em 30/09/2003 decisão homologatória de acordo de regulação do exercício do poder paternal relativa à menor, ficando esta à guarda e cuidados da mãe, sendo as responsabilidades parentais exercidas em exclusivo por esta. 3) - No referido acordo, ficou ainda estabelecido que o pai ficaria obrigado ao pagamento da quantia mensal de duzentos euros, a título de alimentos devidos à filha, a qual seria atualizada em Janeiro de cada ano, nos termos da taxa média de inflação publicada anualmente pelo Governo, devendo a primeira atualização ocorrer em Janeiro de 2004. 4) - Mercê das atualizações ocorridas, o valor atual da pensão de alimentos é de € 252,49, calculado da forma seguinte:
5) - No referido acordo, ficou ainda estabelecido que “a esta quantia acrescerá metade do valor da mensalidade devida ao infantário, bem como metade das despesas de saúde, devidamente documentadas” (cláusula 3.2.). 6) - O requerido nunca efectuou a atualização da pensão de alimentos. 7) - O requerido não efetuou o pagamento das mensalidades relativas ao colégio privado frequentado pela IS…, incluindo ainda o pagamento das despesas de alimentação, visitas de estudo, vestuário, livros e outros bens relativos à frequência do colégio. 8) - Os montantes em dívida relativos à atualização da pensão de alimentos são os seguintes (doze vezes nos anos de 2004 a 2017 e nove vezes no ano de 2018):
Não constam da sentença recorrida quaisquer factos não provados. IV- OS FACTOS E O DIREITO Estabelecidas as questões suscitadas na apelação cuja apreciação importará fazer, cumprirá então que sobre elas nos debrucemos, respeitando no seu conhecimento a ordem de precedência lógica. A - Da alteração da decisão sobre matéria de facto. Dispõe o art. 662.º n.º 1 do CPC que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos por assentes, a prova produzida ou um documentos superveniente, impuserem decisão diversa. Em comentário a esta disposição legal ensinam ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA E LUÍS FILIPE PIRES DE SOUSA[3]: “1. A decisão sobre matéria de facto pode ser impugnada pelo recorrente quando os elementos fornecidos pelo processo possam determinar uma decisão diversa insuscetível de ser destruída por quaisquer outras provas, como sucede quando não tenha sido respeitado documento confissão ou acordo das partes com força probatória plena (…). Outrossim quando tenha sido considerado provado certo facto com base em meio de prova legalmente insuficiente (…), situação em que a modificação da decisão da matéria de facto passa pela aplicação ao caso da regra de direito probatório material (..). 2. Em qualquer destas situações a Relação, no âmbito da reapreciação da decisão recorrida e naturalmente dentro dos limites objetivo e subjetivo do recurso, deve agir oficiosamente, mediante aplicação das regras vinculativas extraídas do direito probatório material, modificando a decisão da matéria de facto advinda da 1ª instância (arts. 607º, º 4, e 663º, nº 2). A oficiosidade desta atuação é decorrência da regra geral sobre a aplicação do direito (in casu, das normas de direito probatório material), na medida em que possam interferir no resultado do recurso que foi interposto e, é claro, respeitando o seu objeto global, que, no essencial, é delimitado pelo recorrente, nos termos do art. 635º, e respeitando também o eventual caso julgado parcelar que porventura se tenha formado sobre alguma questão ou segmento decisório.” Como bem explicam os citados autores, nos casos mencionados a alteração da decisão sobre matéria de facto pode ter lugar por iniciativa do Tribunal da Relação e ainda que nenhuma das partes o requeira, isto é, pode ter lugar oficiosamente. E o uso da forma verbal deve não deixa margem para dúvidas: não se trata de uma mera faculdade, mas de um dever imposto à Relação. Nas palavras de ABRANTES GERALDES[4], uma tal intervenção da Relação justifica-se nomeadamente “quando tenha sido desatendida determinada declaração confessória constante de documento ou resultante do processo (art. 358.º do CC e arts. 484.º, n.º 1, e 463.º do CPC) ou quando tenha sido desconsiderado algum acordo estabelecido entre as partes nos articulados quanto a determinado facto (art. 574º.º, n.º 2, do CPC) (…)”. No caso vertente, verificamos que nos arts. 3º a 5º do requerimento inicial, a requerente, reportando-se ao acordo sobre exercício das responsabilidades parentais outorgado com o requerido no âmbito do proc. nº …/… alegou que ali se estipulou “que o Requerido contribuiria mensalmente com a quantia de 200,00 € (duzentos euros), a título de pensão de alimentos, mais metade das despesas de educação e saúde, que se cifram aproximadamente em 340,00 € (trezentos e quarenta euros)”, acrescentando no art. 4º do mesmo articulado que por esse motivo “o Requerido contribuía mensalmente, até maio de 2015, com a quantia global de 540,00 € (quinhentos e quarenta euros)”, e rematando no art. 5º do mesmo articulado que ”(…) por decisão unilateral, desde julho de 2015, o Requerido apenas tem efetuado pagamentos da quantia de 200,00€ (duzentos euros), a título de pensão de alimentos, obliterando propositadamente o pagamento de metade das despesas escolares e de saúde da menor”. No exercício do seu direito ao contraditório, mais precisamente nas alegações que apresentou espontaneamente (as quais, não tendo tido lugar a conferência de pais, entendemos deverem enquadrar-se no disposto no art. 41º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível[5]), o requerido sustentou que depois de ter sido outorgado o acordo sobre o exercício das responsabilidades parentais relativa à I… “refez a sua vida e casou novamente, tendo mais dois filhos” (art. 14º), e que tal lhe trouxe “aumento necessário de responsabilidade financeira com o crescimento familiar” (art. 19º), afirmando igualmente que por tal razão, “Deixou (…) de poder contribuir com 340,00€ para o colégio da menor como quis fazer, para além dos 200,00€ a que está obrigado a título de alimentos” (art. 20º), embora com a importante ressalva decorrente da seguinte afirmação: “Não existindo, portanto, qualquer obrigação ou vínculo que o obrigue ao pagamento do colégio, sendo certo que a escolha daquele foi feita unilateralmente pela Requerida” (art. 21º). Considerando o objeto da presente causa, ou seja, o seu pedido e causa de pedir, afigura-se manifesto que a prova do teor do acordo sobre as responsabilidades parentais é vinculada, e faz-se a partir do documento junto aos autos principais, que aliás tem o estatuto de documento autêntico, e considerando o seu teor literal. Donde, quanto a este aspeto bem andou o Tribunal a quo ao reproduzir o teor literal da cláusula 3.2. do referido acordo, distanciando-se por isso da formulação verbal apresentada pela autora no art. 3º do requerimento inicial que em vez de “metade do valor da mensalidade devida ao infantário” se reporta a “metade do valor das despesas de educação”, substituindo o teor literal do trecho da cláusula do referido acordo com maior relevância na presente causa pelo sentido que lhe atribui, numa dada linha interpretativa que considera adequada. Não obstante, o certo é que nos citados arts. 3º e 4º do requerimento inicial a requerente alega que para além da quantia de € 200,00 a título de pensão de alimentos, o requerido lhe pagava também a quantia mensal de € 340,00 que correspondia aproximadamente a metade das despesas de educação e saúde da I…. E, como igualmente resulta das transcrições que antecedem, nas suas alegações o requerido confessa que lhe entregava mensalmente essa quantia de € 340,00 e que tal quantia correspondia a comparticipação no pagamento do colégio da I…, embora ressalvando que o fazia porque queria e não por estar obrigado a fazê-lo. As declarações vertidas nos transcritos artigos 20º e 21º das alegações do requerido constituem verdadeira confissão judicial espontânea, na medida em que configuram admissão expressa de factos alegados no requerimento inicial que lhe são pessoais e desfavoráveis, sendo favoráveis à requerente (arts. 352.º e 356º, nº 1do CC). Ora, como é sabido, a confissão judicial escrita tem força probatória plena contra o confitente (art. 358º, nº 1 do CC). Nesta conformidade, o facto vertido no ponto 7) dos factos provados carece de rigor, na medida em que ali se lê que “O requerido não efetuou o pagamento das mensalidades relativas ao colégio privado frequentado pela IS…, incluindo ainda o pagamento das despesas de alimentação visitas de estudo, vestuário, livros e outros bens relativos à frequência do colégio”, quando como vimos se acha provado por confissão que até maio de 2015 o requerido entregou mensalmente à requerente a quantia de € 240,00 a título de “contribuição para o colégio da menor” . Nesta conformidade, importa alterar a redação do referido ponto 7) em conformidade com a declaração confessória do requerido, decompondo-o em dois pontos com o seguinte teor: - até maio de 2015, e para além da quantia de 200,00€ a título de “pensão de alimentos”, o requerido também entregou mensalmente à requerente a quantia de 340,00€ a título de comparticipação no pagamento do colégio particular frequentado pela I… - a partir de setembro de 2015 o requerido deixou de entregar mensalmente à requerida a mencionada quantia de 340,00€, e desde então apenas lhe tem entregue a quantia mensal de 200,00€ a título de “pensão de alimentos” Em consequência de tais alterações, a matéria de facto passará a ter o seguinte teor: 1. A menor IS… nasceu em … de Abril de 2001, na freguesia do Pragal, concelho de Almada, e é filha de VM… e de SC... 2. No âmbito do processo de regulação do poder paternal que correu termos no extinto Tribunal de Família e Menores e de Comarca do Barreiro sob o n.º …/…, foi proferida em 30/09/2003 decisão homologatória de acordo de regulação do exercício do poder paternal relativa à menor, ficando esta à guarda e cuidados da mãe, sendo as responsabilidades parentais exercidas em exclusivo por esta. 3. No referido acordo, ficou ainda estabelecido que o pai ficaria obrigado ao pagamento da quantia mensal de duzentos euros, a título de alimentos devidos à filha, a qual seria atualizada em Janeiro de cada ano, nos termos da taxa média de inflacção publicada anualmente pelo Governo, devendo a primeira actualização ocorrer em Janeiro de 2004. 4. Mercê das actualizações ocorridas, o valor actual da pensão de alimentos é de € 252,49, calculado da forma seguinte:
5. No referido acordo, ficou ainda estabelecido que “a esta quantia acrescerá metade do valor da mensalidade devida ao infantário, bem como metade das despesas de saúde, devidamente documentadas” (cláusula 3.2.). 6. O requerido nunca efectuou a atualização da pensão de alimentos. 7. Até maio de 2015, e para além da quantia de 200,00€ a título de “pensão de alimentos”, o requerido também entregou mensalmente à requerente a quantia de 340,00€ a título de comparticipação no pagamento do colégio particular frequentado pela I…. 8. A partir de setembro de 2015 o requerido deixou de entregar mensalmente à requerida a mencionada quantia de 340,00€, e desde então apenas lhe tem entregue a quantia mensal de 200,00€ a título de “pensão de alimentos”. 9. Os montantes em dívida relativos à atualização da pensão de alimentos são os seguintes (doze vezes nos anos de 2004 a 2017 e nove vezes no ano de 2018):
B – Do recurso da requerente: O âmbito da obrigação de comparticipação nas despesas relativas à educação da I… A principal questão suscitada nos presentes autos e mais concretamente no recurso de apelação interposto pela requerente gira em torno da interpretação da cláusula 3.2. do acordo sobre regulação do exercício das responsabilidades parentais que outorgou com o requerido. Como resulta de fls. 28 a 28 do apenso A e se mostra vertido no ponto 5. dos factos provados, a referida cláusula, reportando-se ao valor de € 200,00 ajustado a título de pensão de alimentos, estabelece que “a esta quantia acrescerá metade do valor da mensalidade devida ao infantário”. Na sentença recorrida considerou o Tribunal a quo que as quantias peticionadas pela requerente a título de comparticipação em despesas de educação não são devidas, por não se encontrarem abrangidas pela referida cláusula, tendo para o efeito, tecido as seguintes considerações: “Em termos simples, a requerente vem exigir o pagamento das quantias documentadas que apresentou e que traduzem o pagamento das mensalidades do colégio privado frequentado pela IS… (St. PS…), acrescido de despesas de alimentação, viagens de estudo, material escolar, livros, camisolas e outro equipamento), alegando que deve ser realizada uma interpretação actualista da cláusula relativa ao infantário uma vez que na altura em que foi realizado o acordo, a IS… frequentava ainda aquele equipamento escolar mas que agora frequenta uma escola privada, situação sempre aceite pelo pai que efectuou o pagamento da parte que lhe cabia durante vários anos. O requerido alega que efectuou o pagamento de metade dessas quantias durante algum tempo mas que, neste momento, não dispõe de condições para o fazer, sendo certo que esses valores também não se encontram suportados pelo conteúdo do acordo de regulação do exercício das responsabilidades parentais o qual apenas prevê uma pensão de alimentos de base fixa e o pagamento de metade das despesas relativas ao infantário e metade das despesas de saúde (pensão de base variável). Resulta dos factos provados (e do acordo) que o pai se obrigou ao pagamento de metade da mensalidade devida ao infantário e metade das despesas de saúde o que torna claramente inexigíveis as quantias relativas a alimentação no colégio, vestuário, livros, material escolar e visitas de estudo já que não se integram em nenhum dos conceitos expressamente previstos no acordo de regulação das responsabilidades parentais que constitui o título executivo que fundamenta o presente incumprimento. Contudo, considerando que o acordo foi realizado quando a IS… tinha dois anos de idade e, nesta circunstância, frequentava na altura infantário, será possível defender uma interpretação actualista desta cláusula de forma a considerar que a mesma integraria agora no seu conceito o pagamento da mensalidade de um colégio privado ? A interpretação actualista, através da qual se procede à interpretação tendo em conta as realidades actuais, vigentes ao tempo da sua aplicação, mostra-se particularmente importante, enquanto forma de renovação interna dos sistemas. É uma técnica de interpretação adoptada em relação à interpretação das normas jurídicas uma vez que estas se arrastavam de geração em geração (coisa que já não ocorre) sendo por isso forçoso que os tribunais, umas vezes de forma deliberada, outras de maneira quase inconsciente, procediam a uma interpretação que tomasse em conta as novas exigências sociais e valorativas. A legitimidade do recurso a este método interpretativo radicada no artigo 9.º, n.º 1 do Código Civil que manda atender, na interpretação da lei, entre outros critérios, às condições específicas do tempo em que é aplicada. Todavia, o problema da interpretação actualista surge quando tem lugar uma mudança do uso da linguagem, susceptível de atribuir novos sentidos à expressão verbal empregue pela norma, ou quando se verifique uma mudança das circunstâncias de facto para as quais a norma foi criada, ou ainda quando se opera uma alteração dos critérios valorativos, resultante da orientação global do desenvolvimento axiológico-jurídico. Assim, coloca-se a questão se saber se, verificada alguma destas circunstâncias, será de manter o sentido inicial da norma, ajustado aos factores e às condições existentes nessa época ou, antes, será de lhe atribuir um novo sentido, compatível com as alterações registadas e mais adequado à realidade presente do tempo em que é aplicada. Contudo, mesmo esta interpretação deve ser aplicada com prudência já que está condicionada pelos factores hermenêuticos, designadamente pela ratio da norma e pelos elementos gramatical e sistemático, sendo a letra o ponto de partida da interpretação, cabendo-lhe uma função negativa de eliminar aqueles sentidos que não tenham qualquer apoio, correspondência ou ressonância nas palavras escolhidas e, por outro lado, na função e na finalidade ou fundamento jurídico, sendo certo que o elemento gramatical constitui um sério obstáculo à interpretação actualista. Transportando estes conceitos para a interpretação actualista da cláusula que se refere ao pagamento das despesas de infantário não nos parece que a mesma permite enquadrar no seu âmbito o pagamento das despesas com um colégio privado, não obstante esse pagamento tenha ocorrido ao longo de vários anos. Importa recordar que estamos perante um procedimento executivo pelo que as diversas cláusulas dos acordo homologado judicialmente se integram num título executivo o qual constitui o documento que serve de base à execução de uma prestação, oferecendo a demonstração bastante do direito correspondente, sendo essencial que o mesmo permita certificar, sem quaisquer dúvidas, a existência da obrigação que se constituiu entre as partes pois só desta forma representa um facto jurídico constitutivo do crédito. Uma interpretação actualista esbarra, desde logo, com a circunstância de não ter qualquer arrimo no elemento literal já que é expressamente referido o pagamento de metade da mensalidade do infantário e não metade do pagamento de quaisquer outras despesas. Por outro lado, uma interpretação actualista também esbarra, igualmente, com a circunstância de, na altura em que o acordo foi celebrado (2003), a rede pública de ensino pré-escolar era quase inexistente, sendo razoável supor que os pais estariam preocupados com o pagamento de um infantário que implicaria despesas significativas para ambos mas isso não implica que se possa fazer qualquer transposição actual para o pagamento de um colégio privado, ainda que essa tenha sido a prática entre ambos ao longo de vários anos. Nem se alegue que, tendo a IS… dois anos de idade, a preocupação principal dos progenitores (subscritores do acordo) foi de acudir às necessidades daquele momento pois, mesmo naquela altura (2003) e perante crianças muito novas, constituía já prática judiciária comum acautelar a divisão destas despesas recorrendo a formulações mais gerais ou que, essas sim, permitissem uma interpretação actualista em função da evolução previsível da vida do filho comum ao longo do tempo em que são devidos os alimentos (e.g. despesas de educação, despesas escolares, despesas com frequência de equipamento escolar, despesas com actividades escolares, etc). O pagamento ao longo de vários anos desta despesa, sem que a mesma fosse exigível mas também não susceptível de compensação ou de restituição, integra uma verdadeira obrigação natural por estar compreendida no âmbito dos deveres de ordem moral e social, cujo cumprimento não é judicialmente exigível, mas que corresponde a um dever de justiça, ou seja, o requerido pagou porque aquela despesa dizia respeito à sua filha e porque o podia fazer (artigo 402.º do Código Civil). Característica negativa da obrigação natural é a sua não coercibilidade ou seja, existe plena liberdade de incumprir na medida em que o direito do credor não é accionável e, deste modo, a circunstância do requerido ter procedido ao pagamento não pode constituir uma fixação do título executivo fora dos seus exactos limites. Assim sendo, é manifesto não poderem ser exigidos através do presente incumprimento as despesas relativas à mensalidade devida pela frequência do colégio privado reclamado pela requerente, improcedendo o pedido nesta parte.”. Concordamos com as conclusões alcançadas pelo Mmº Juiz a quo, embora nos pareça que as mesmas se justificam com base em fundamentos algo distintos. Com efeito, muito embora tenha sido outorgado no âmbito de um processo judicial e tenha sido homologado por sentença, a verdade é que a cláusula cujo alcance interpretativo se discute na presente causa se integra num acordo entre a requerente e o requerido, tendo por isso natureza negocial. Tal acordo pode mesmo ser qualificado como transação, figura definida no art. 1248.º do CC como “o contrato pelo qual as partes previnem ou terminam um litígio mediante recíprocas concessões”. Nesta medida, cremos que não obstante o inegável teor normativo de que o acordo sobre as responsabilidades parentais se reveste, a mesma se acha sujeita aos cânones interpretativos aplicáveis aos negócios jurídicos, consagrados nos arts. 236º e segs. do CC e não aos princípios vertidos no art. 9º do mesmo código, que regem sobre a interpretação da Lei. No sentido exposto, embora sem qualificar o acordo sobre o exercício de responsabilidades parentais como transação, vd. ac. RP de 08-03-2018 (Madeira Pinto), p. 419/17.8T8AVR.P1. Como alerta o requerido, o acordo sobre responsabilidades parentais é um negócio formal, visto que está sujeito à forma escrita (arts. 1905º e 1906º do CC, 34º e 37º do RGPTC), razão pela qual lhe é aplicável o art. 238º do CC que, no seu nº 1 dispõe que “nos negócios formais não pode a declaração valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respetivo documento, ainda que imperfeitamente expresso“, exceto nos casos previstos no nº 2, ou seja, se tal sentido “corresponder à vontade real das partes e as razões determinantes da forma se não opuserem a tal validade”. No caso vertente não constam do elenco dos factos provados nem foram alegados pelas partes nos articulados quaisquer factos que permitam dilucidar da vontade real das partes aquando da outorga do acordo sobre responsabilidades parentais relativo à I…, pelo que nos teremos que guiar pelos critérios interpretativos gerais consagrados no art. 236.º do CC, mas com o apontado limite do mínimo de correspondência na letra da cláusula interpretanda, como já vimos. E, como referimos, o critério geral da interpretação do negócio jurídico é o fornecido pelo nº 1 do art. 236º do CC: “A declaração vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se não puder razoavelmente contar com ele“. Note-se que muito embora o nº 2 do mesmo preceito atribua relevância à vontade real do declarante, tal só tem lugar quando se demonstre que o declaratário a conhecia, sendo certo que no caso vertente se desconhece qual a vontade dos pais da I… quando outorgaram o acordo sobre o exercício das responsabilidades parentais relativas à mesma. Mais em concreto, diremos que a factualidade apurada não permite aferir se quando escreveram “metade da mensalidade devida ao infantário” a requerente e o requerido pretenderam escrever “metade da mensalidade devida ao estabelecimento de ensino privado frequentado pela I… e demais despesas de educação”, ou se pretendiam apenas vincular o requerido ao pagamento de metade das propinas escolares da I… enquanto a mesma frequentasse o infantário. Ora, como se expôs na decisão recorrida, quando o acordo dos autos foi celebrado, em 2003, a rede pública de estabelecimentos de ensino pré-escolar era bastante reduzida, pelo que a generalidade dos pais de crianças até aos cinco anos se via obrigada a inscrever os seus filhos em estabelecimentos de ensino pré-escolar do setor privado ou, em alternativa, adiar o ingresso dos seus filhos na escola, fazendo-o apenas no ano em que os mesmos completassem seis anos de idade e se pudessem inscrever no 1º ano do ensino básico. Neste contexto, como se refere na sentença recorrida, “naquela altura (2003) e perante crianças muito novas, constituía já prática judiciária comum acautelar a divisão destas despesas recorrendo a formulações mais gerais ou que (…) permitissem uma interpretação actualista em função da evolução previsível da vida do filho comum ao longo do tempo em que são devidos os alimentos (e.g. despesas de educação, despesas escolares, despesas com frequência de equipamento escolar, despesas com actividades escolares, etc.)“. Se no caso vertente a cláusula em análise tivesse uma formulação daquele género, à luz do critério enunciando no nº 1 do art. 236º do CC poderia – e deveria - a mesma ser interpretada no sentido de abranger não só a mensalidade de um infantário, como a de qualquer outro estabelecimento de ensino frequentado pela criança até completar o seu percurso escolar, e aplicar-se não apenas à propina mensal devida pela frequência desse estabelecimento, mas também a outras despesas com a educação da mesma. Não foi, porém essa a opção dos progenitores. As expressões “infantário”, e “mensalidade” têm um alcance e sentido muito mais preciso, e a interpretação que a requerente pretende extrair da cláusula 3.2 do acordo sobre o exercício das responsabilidades parentais relativas à I… não tem na letra da mesma cláusula um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso. Acresce que um declaratário normal, colocado na situação hipotética em que o requerido se encontrava em 2003, não atribuiria a tais expressões o sentido que a requerente lhes confere. É certo que se acha assente que até maio de 2015 o requerente pagou mensalmente à requerida a quantia de € 360,00 a título de comparticipação nas despesas do colégio da I…, tendo deixado de fazê-lo a partir de julho do mesmo ano. A sentença recorrida qualifica – e bem - tal comportamento como o cumprimento de uma obrigação natural, definida no art. 402º do CC como aquela que “se funda num mero dever de ordem moral ou social, cujo cumprimento não é judicialmente exigível, mas corresponde a um dever de justiça”. Com efeito, a doutrina vem salientando que a prestação de alimentos para além do que resulta da lei é de qualificar como obrigação natural. Nas palavras de ANTUNES VARELA[6] “Um outro caso expressamente referido na lei, é o da prestação de alimentos (art. 495.º, n.º 3), efectuada a favor de certas pessoas que não tenham o direito de exigi-los. São abrangidos pela previsão legal os parentes próximos (não compreendidos no art. 2009.º) que tenham vivido com o lesado ou que este tenha auxiliado, a mulher com quem ele tenha vivido maritalmente, o criado, que envelheceu ou se inutilizou ao serviço do patrão, etc. Haverá obrigação natural na prestação de alimentos quando os laços de sangue, as relações de convívio ou os serviços prestados ao lesado imponham como um dever de justiça o encargo da sustentação, habitação e vestuário da pessoa a quem são facultados.“ – Este entendimento foi acolhido na jurisprudência, v.g. nos acs. STJ de 11-02-2015 (Hélder Roque), p. 6301/13.0TBMTS.S1, e RG 11-02-2016 (António Santos), p. 1307/07.1TBFAF.G2. O exemplo apontado pelo Insigne Mestre distingue-se claramente da situação em análise, na medida em que no caso que nos ocupa, o requerido se encontra legalmente obrigado a prestar alimentos à I…, pelo que ao fazê-lo está a cumprir uma obrigação legal. Mas é inegável que se verifica um claro paralelismo entre a prestação espontânea de alimentos a pessoas a quem o “prestador” não está obrigado a prestá-los, e a prestação de alimentos no cumprimento de uma obrigação legal, mas em medida superior à legalmente fixada (seja em quantidade, seja em qualidade). Com efeito, em nosso entender, o pagamento da mencionada quantia mensal de € 360,00 tem natureza claramente alimentar, visto que visa a instrução e educação da I… (art. 2003º, nº 2 do CC)[7], donde corresponde ao cumprimento de uma obrigação legal. Seja como for, ainda que não se entendesse que a entrega pelo requerido à requerente da mencionada quantia mensal de € 360,00 configura uma obrigação natural, sempre se teria que atribuir a tal gesto a natureza de liberalidade. Na verdade, nada impede que o devedor de alimentos os preste em montante superior àquele a que está obrigado, sem que daí se possa retirar a conclusão de que esse cumprimento dá lugar a uma verdadeira novação da obrigação alimentar, ou seja a substituição da obrigação de pagar a prestação decorrente do acordo dos autos por uma outra diversa, em natureza e/ou montante. Por corresponder a uma liberalidade, podia tal pagamento cessar a qualquer tempo, como efetivamente sucedeu. É claro que assistia e assiste à requerente o direito de requerer a alteração da regulação do exercício das responsabilidades parentais, no sentido de as cláusulas relativas às prestações alimentares devidas à I… serem revistas, nomeadamente no sentido de o requerido passar a suportar uma parte das despesas com as propinas do colégio que esta frequenta e outras despesas escolares. Mas enquanto tal não suceder, só pode concluir-se que os montantes a que o requerido está vinculado a título de alimentos são a quantia acordada a título de “pensão de alimentos”, sujeita à atualização anual a que se reportam os pontos 3. e 4. dos factos provados, bem como a quantia correspondente a “metade das despesas de saúde devidamente documentadas”, referida na mencionada cláusula 3.2. do acordo sobre o exercício das responsabilidades parentais em discussão nos presentes autos. Assim sendo, improcede integralmente o recurso apresentado pela requerente. C – Do recurso do requerido: a exceção de cumprimento da obrigação de atualização da pensão alimentar O requerido insurge-se contra a sua condenação a pagar à requerente a quantia de € 6.020,85, relativos à atualização da pensão de alimentos a que estava obrigado no que respeita ao período de janeiro de 2004 a setembro de 2018, a que acrescerão os valores que se vencerem a partir da data da sentença porquanto sempre pagou à requerente um valor superior à quantia de € 200,00 a que estava obrigado, sendo que os montantes que pagou nos anos em questão foram sempre superiores aos que resultariam da atualização da pensão em função da inflação. Não podemos deixar de registar alguma surpresa face a tal argumentação, na medida em que a mesma contradiz o alegado pelo próprio requerido nas alegações que espontaneamente apresentou nos autos logo em julho de 2017. Na verdade, o que ali tinha sustentado é que o valor que pagou à requerente para além da quantia de € 200,00 se destinava a comparticipar o pagamento do colégio frequentado pela filha de ambos … Seja como for, o que o requerido vem sustentar no seu recurso é que cumpriu a obrigação de atualizar anualmente a pensão de alimentos. Como é sabido o cumprimento extingue a obrigação, pelo que deve ser qualificado como exceção perentória (art. 576º. nº 3 do CPC). Ora, estabelece o art. 573.º n.º 1 do CPC, que consagra o chamado princípio da concentração da defesa, que toda a defesa deve ser deduzida na contestação, excetuados os incidentes que a lei mande deduzir em separado, sendo certo que depois da contestação só podem ser deduzidas as exceções, incidentes e meios de defesa que sejam supervenientes, ou que a lei admita passado esse momento, ou de que se deva conhecer oficiosamente (sobre o princípio da concentração da defesa e o seu efeito preclusivo, vd. entre muitos outros, os acs. STJ de 29-01-2014 (Fernando Bento), p. 5509/10.5TBBRG-A.G1.S1 e de 07-09-2017 (Pinto Espanhol), p. 15786/16.2T8LSB.S1. No caso em análise, nas alegações que apresentou imediatamente antes de ser proferida a sentença recorrida, e que para todos os efeitos equivalem à contestação, o requerido nada disse acerca do incumprimento da obrigação de atualizar a pensão de alimentos a que estava obrigado, pelo que ficou precludida a apreciação da exceção e cumprimento desta obrigação de atualização. Por isso mesmo na sentença recorrida se deu como provado – e bem – que tal atualização nunca foi feita. Afigura-se cristalino que os recursos não servem para suscitar questões novas, e muito menos para invocar exceções que as partes não invocaram na pendência da causa em primeira instância (no sentido exposto, cfr. acs. RC 14-01-2014 (Maria Inês Moura), p. 154/12.3TBMGR.C1, RP 14-10-2017 (Miguel Baldaia de Morais), p. 379/16.2T8PVZ.P1, e STJ 07-07-2016 (Gonçalves Rocha), p. 156/12.0TTCSC.L1.S1). O Tribunal da Relação não pode, pois, em sede de recurso, apreciar questões que não tenham sido alegadas e discutidas na primeira instância, exceto se as mesmas forem de conhecimento oficioso. Não sendo esse o caso, não pode este Tribunal apreciar a exceção invocada pelo requerido na sua apelação. Termos em que improcede o recurso apresentado pelo requerido. Em consequência, conclui-se pela improcedência quer do recurso interposto pela requerente, quer do recurso interposto pelo requerido. *** V- DECISÃO Pelo exposto, acordam os juízes desta 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa em: A- Alterar a decisão sobre matéria de facto constante da sentença recorrida, nos termos expostos na fundamentação do presente acórdão; B- Julgar ambas as apelações improcedentes; C- Em consequência confirmar a sentença recorrida. Cada um dos progenitores suportará as custas relativas ao recurso que interpôs (art. 527º n.º 1 do CPC). Lisboa, 20 de Dezembro de 2018[8] Diogo Ravara Ana Rodrigues da Silva Micaela Sousa [1] Neste sentido cfr. Abrantes Geraldes, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 5ª Ed., Almedina, 2018, pp. 114-116. [2] Vd. Abrantes Geraldes, ob. cit., p. 116. [3] “Código de Processo Civil Anotado”, vol. I, 2018, p.796. [4] “Recursos no novo Código de Processo Civil”, 5ª Ed., Almedina, p. 286 [5] Aprovado pela Lei nº 141/2015, de 08/09, e alterado pela Lei nº 24/2017, de 24/05. [6] “Das obrigações em geral”, 9ª Ed., vol. I, Almedina, p. 751. [7] Sustentando que a obrigação de suportar despesas relacionadas com as finalidades inerentes à educação e saúde dos filhos tem natureza alimentar, vd., o já citado ac. RP de 08-03-2018. [8] Acórdão assinado digitalmente – cfr. certificados apostos no canto superior esquerdo da primeira página. |