Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
4395/19.4T8OER.L1-6
Relator: JOÃO MANUEL P. CORDEIRO BRASÃO
Descritores: ACÇÃO DE ANULAÇÃO
ASSEMBLEIA DE CONDÓMINOS
LEGITIMIDADE PASSIVA
ADMINISTRAÇÃO DO CONDOMÍNIO
ERRO NA IDENTIFICAÇÃO DO RÉU
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/06/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: – Não obstante as alterações produzidas pela Lei 8/2022, deverá entender-se que a referência do artigo 1433.º/6 do Código Civil aos condóminos terá de ser compreendida como reportando-se à pluralidade que a expressão condomínio identifica enquanto património autónomo dotado de personalidade judiciária, logo atribuindo ao administrador a função de defesa em juízo das deliberações da assembleia e a consequente legitimidade para as acções de impugnação de deliberações da assembleia de condóminos;

– Mesmo que o Condomínio, na petição inicial, não surja individualizado enquanto réu, mas, em ação de impugnação de deliberações de assembleia de condóminos, o autor indica como réus entidade(s), que refere exercer(em) as funções de administrador/administradores do condomínio, resultando claro que foram demandados em tal qualidade e por causa dela, deve o juiz fazer uma interpretação correctiva da petição inicial e determinar que a causa prossiga contra o Condomínio, representado pela entidade que, em cada momento, exerça aquelas funções.



Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:


I.– Relatório

Veio o Autor L propor a presente ação de anulação de deliberações de assembleia de condóminos contra:

A–EC,

B–AT,

na qualidade de Administradores do Condomínio prédio situado na Rua …, em Oeiras e em representação deste referido Condomínio e dos seguintes condóminos:

- da mesma AT, enquanto condómina;

- de AC;

- de RS;

- de VC e de ED, casados entre si no regime da separação de bens;

- de AV;

- de MM;

- de IE;

E também contra:

C – F… – GESTÃO E SERVIÇOS, UNIPESSOAL, LDA, prevenindo a possibilidade de esta poder ser considerada legítima, Administradora do referido Condomínio, sendo então quem representa o referido Condomínio e os aludidos Condóminos.

Peticiona o autor que:

Nestes termos de direito e nos mais que V. Exa doutamente suprirá, deverá a presente ação ser procedente por provada, e, em consequência, ser decretada a nulidade ou serem anuladas, bem como declaradas sem qualquer efeito, ineficazes ou sem vencimento, todas as deliberações tomadas nas assembleias a que se referem as actas n.º 26 (documento n.º 6) e n.º 27 (documento n.º 7) – ou que constam destas actas - da assembleia dos condóminos do Condomínio do prédio situado na Rua …., em Oeiras, assembleias essas que tiveram lugar em 21 de Julho de 2019, pelas 17:00 e em 20 de Setembro de 2019, pelas 20:00; e, consequentemente deve ser condenada a Ré F… a devolver ao referido Condomínio todas as quantias recebidas deste a título de prestação de serviços de administração na sequência de qualquer uma das referidas assembleia dos condóminos.

Os Réus AT e F… - GESTÃO E SERVIÇOS, UNIPESSOAL, LDA., citados pessoalmente, vieram invocar a exceção dilatória de ilegitimidade passiva.

Alegam, para o efeito, o seguinte:

32º.–O A. intentou a presente acção contra EC e AT, ambos na qualidade de administradores do condomínio e em representação deste referido condomínio e dos seguintes condóminos: da mesma AT enquanto condómina, de AC, RS, VC, ED, AV, MM, IE e F… – Gestão e Serviços, Unipessoal, LDA.,
33º.–Na verdade, salvo melhor opinião, a legitimidade passiva pertence, tão só, a cada um dos condóminos que estiveram presentes ou representados numa assembleia, e votaram favoravelmente cada uma das deliberações postas em crise.
34º.Para tanto, é nosso entendimento que o A. deveria ter requerido a citação de todos esses RR., na pessoa dos seus administradores, ao abrigo do art. 1433º, nº 6 do CC.,
35º.O que não fez, pois a ação foi interposta contra os administradores deste condomínio.
36º.Veja-se o que a jurisprudência diz a este respeito: o AC. do STJ de 6 de novembro de 2008, cujo relator Santos Bernardino: “(…)1. Fora do âmbito demarcado nos arts. 6º/e) do CPC e 1437º do CC, e designadamente no campo da impugnação das deliberações tomadas em assembleia de condóminos, a questão da legitimidade não respeita directamente ao condomínio a se, antes envolve os próprios condóminos, enquanto membros do órgão deliberativo que é a assembleia de condóminos.2. A questão da impugnação das deliberações é uma questão entre condóminos: é neles que radica a legitimidade para impugnar e para defender a deliberação.3. Quanto à legitimidade activa para a acção impugnatória das deliberações: são os condóminos que não tenham votado a favor da sua aprovação que podem intentar, dentro dos prazos definidos na lei, a respectiva acção de anulação; e não se exige actuação coligada, qualquer deles o podendo fazer.4. Quanto à legitimidade passiva: só devem ser demandados, na acção de anulação da deliberação, os condóminos que, tendo estado presentes ou representados na assembleia em que foi tomada a deliberação, votaram a favor da sua aprovação, e não também os presentes ou representados que se abstiveram nem os que não estiveram presentes nem representados, mesmo os que, posteriormente, nos termos do n.os 7 e 8 do art. 1432º do CC, hajam comunicado por escrito o seu assentimento ou se hajam remetido ao silêncio.(…)”.
37º.Ou, o Ac. Tribunal da Relação de Guimarães, de 24 de novembro de 2016, cuja Relatora Alexandra Rolim Gomes:“(…) 1- O condómino que pretenda impugnar em juízo deliberações tomadas numa dada assembleia, terá de intentar a correspondente ação contra todos os condóminos individualmente considerados, com exceção daqueles que tenham manifestado a sua discordância relativamente à deliberação. 2- No entanto, a fim de evitar a intervenção efetiva de todos os condóminos o A., ao abrigo do disposto no art. 1433º, nº 6 do C. Civil, poderá requerer a citação de todos os réus apenas na pessoa do administrador ou o representante especial.(…).
38º. Ou, o AC. do Tribunal da Relação de Lisboa, de 28 de abril de 2009, cuja Relator Rui Vouga- Descritores Assembleia de Condóminos, Deliberação, impugnação, Legitimidade, Caducidade, Indeferimento Liminar: (…)1. A acção de impugnação de deliberações da assembleia de condóminos, quer se trate de acção de anulação, quer se trate de acção de declaração de nulidade, deve ser proposta não contra o administrador do condomínio como tal, mas, sim, contra todos os condóminos que aprovaram as deliberações, que devem ser individualmente citados, sob pena de preterição de litisconsórcio necessário.2. Quanto à legitimidade activa para a acção impugnatória das deliberações, são os condóminos que não tenham votado a favor da sua aprovação que podem intentar, dentro dos prazos definidos na lei, a respectiva acção de anulação; e não se exige actuação coligada, qualquer deles o podendo fazer.3. A legitimidade não deixa de ser aferida, nas acções de impugnação das deliberações tomadas em assembleia de condóminos, pela relação jurídica material controvertida, tal como ela é configurada pelo autor nos respectivos articulados, à luz do critério geral adoptado no art. 26º, nº 3, do Cód. Proc. Civil (na redacção introduzida pelo DL. nº 180/96, de 25 de Setembro).(…)”

Em 29/08/2023, foi proferido saneador sentença na qual se decidiu:

Nestes termos, deve a exceção dilatória de ilegitimidade passiva arguida ser julgada procedente, por provada, e, consequentemente, devem a 2ª e 3º RR ser absolvidos da instância, nos termos do disposto no arts. 577º, al. e), 578º, 278º, nº 1 aln. d) e 576º, nº 2, todos do CPC.

Em 16/10/2023, foi proferido despacho nos seguintes termos:

Na satisfação do pedido de aclaração do despacho saneador e considerando os fundamentos da decisão referente ao conhecimento da exceção dilatória de ilegitimidade passiva esclarece-se que a absolvição do pedido reporta a todos os Réus, pelo que onde se escreve:
“Nestes termos, deve a exceção dilatória de ilegitimidade passiva arguida ser julgada procedente, por provada, e, consequentemente, devem a 2ª e 3º RR ser absolvidos da instância, nos termos do disposto no arts. 577º, al. e), 578º, 278º, nº 1 aln. d) e 576º, nº 2, todos do CPC.”
Passa a escrever-se:
“Nestes termos, deve a exceção dilatória de ilegitimidade passiva arguida ser julgada procedente, por provada, e, consequentemente, devem os Réus ser absolvidos da instância, nos termos do disposto no arts. 577º, al. e), 578º, 278º, nº 1 aln. d) e 576º, nº 2, todos do CPC.”

Em 21/11/2023, foi proferido despacho nos seguintes termos:

No caso dos autos é evidente o erro material da decisão por não ter sido efetivada a operação aritmética final que permite calcular os prejuízos que assumem para o Autor as deliberações cuja impugnação requer.
Nestes termos e ao abrigo do disposto no artigo 614.º, n.º 1 do CPC retifica-se a decisão proferida sob despacho melhor infra identificado:
No seguinte segmento na primeira página onde se escreve:
“(…) a quantia correspondente à permilagem do Autor que será de 25 131,20 (vinte e cinco mil cento e trinta e um euros e vinte cêntimos).
Nestes termos e com tais fundamentos fixa-se à ação o valor de 25 31,20(vinte e cinco mil cento e trinta e um euros e vinte cêntimos)”.
Passa a escrever-se, corrigindo-se, assim, o erro de escrita: “(…) a quantia correspondente à permilagem do Autor que será de 2663,91 (dois mil seiscentos e sessenta e três euros e noventa e um cêntimos)”.
Nestes termos e com tais fundamentos fixa-se à ação o valor de 2 663,91 (dois mil seiscentos e sessenta e três euros e noventa e um cêntimos).”

*

Inconformado, L interpôs recurso de apelação para esta Relação, formulando na sua alegação as seguintes conclusões:

A. Nos termos da PI, a presente ação foi interposta contra 1.º réu, EC, e contra a 2.ª ré e ora recorrida AT, mas também contra contra a 3.ª Ré, F… – Gestão e Serviços, Unipessoal, Lda.
B. Porém, a presente ação foi interposta contra os referidos Réus, mas enquanto representantes – intervindo em representação – quer do Condomínio do Prédio situado na Rua …, em Oeiras, quer dos restantes Condóminos que não o Autor, mas incluindo a Ré/Administradora AT .
C. O que é dizer que posição processual dos Réus decorre de serem os titulares do cargo de administrador(es) e que foram demandados apenas para efeitos de representação em juízo do Condomínio e dos condóminos que votaram favoravelmente as deliberações cuja anulação foi pedida.
D. Nos termos do disposto no n.º 6 do artigo 1.433.º do Código Civil, «a representação judiciária dos condóminos contra que são propostas as ações [de anulação de deliberações da assembleia] compete ao Administrador».
E. V Ao demandar os Administradores pretendeu o Autor, através destes, demandar os restantes condóminos que estes, nos termos da Lei, representam em juízo – aliás só assim se compreende a utilização da expressão «em representação», no intróito da PI, e o teor do artigo 7.º da PI.
F. E entendendo-se que deverá ser o Condomínio a entidade demandada para efeitos de impugnação das deliberações da assembleia dos condóminos, o que é certo é que o o Autor também demandou os Autores em representação – como representantes - do Condomínio.
G. Caso a presente ação tivesse sido intentada diretamente contra o Condomínio e contra os Condóminos, o efeito prático obtido teria sido exatamente o mesmo, ou seja, os Administradores do Condomínio – atualmente configurados como Réus – estariam a (e teriam que) representalos, como decorre do que estabelecem os referidos artigos 1433.º e 1437.º do Código Civil.
H. E se estes foram demandados em representação ou enquanto representantes do Condomínio, só de pode concluir que que a ação visa os representados e não os representantes, devendo considerar-se que foi intentada Condomínio e Condóminos, representados pelos Administradores em funções, fossem este quem fossem (1.º e 2.ª Réus ou 3.ª Ré).
J. Tendo presente o disposto nos artigos 1433º e 1437º do CC, Condomínio e Condóminos foram já citados nestes autos, na pessoa dos administradores, sejam eles o 1.º e a 2ª Réus, seja a 3.ª Ré.
K. Salvo melhor opinião, entende-se que, no âmbito do dever de gestão processual, nomeadamente nos termos do n.º 2 do artigo 6.º do CPC, o Tribunal a quo deveria, quanto muito, ter determinado a retificação oficiosa dos autos no que respeita à identificação das partes – dos Réus - ou mediante convite do Autor ao aperfeiçoamento da Pi e nunca julgar procedente a ilegitimidade passiva .
M. Refira-se ainda que uma alteração dos Réus – passando o Condomínio e os Condóminos a figurar nos autos como Réus - não implicaria repetição ou anulação de atos processuais, nomeadamente citação, já que intervêm nos autos aqueles a quem cabe a representação judiciária.
N. Só assim o Tribunal a quo, se tivesse desse modo, estaria assim a observar os deveres de cooperação e gestão processual e a assegurar ao Autor uma decisão relativamente à sua pretensão, tendo em conta que os autos dispõem de todos os elementos – subjetivos e objetivos – para que o Tribunal a quo possa determinar o prosseguimento da marcha do processo.
O. Isto porque, tendo sido efetuada a citação dos representantes do Condomínio e dos Condóminos, nas pessoas a quem cabia então (como cabe ainda) a sua representação, não se vê que exista fundamento para que, por uma questão meramente formal, o Tribunal se possa negar a a exercer a função jurisdicional. Assim, o recorrente entende que, salvo melhor opinião, deverá ser revogado o despacho saneador ora recorrido, pelo menos na parte que julga procedente a exceção de ilegitimidade passiva da 2.ª e 3.ª Rés, determinando-se o prosseguimento dos autos ainda que com as eventuais retificações formais que se mostrem necessárias, fazendo-se assim a costumada JUSTIÇA.

L, Autor e recorrente nos autos à margem referenciados, veio apresentar ALEGAÇÕES de ALARGAMENTO DE RECURSO, o que faz com os seguintes fundamentos:

A. O despacho proferido em primeira instância em 21/11/2023, no que respeita ao valor da causa, além de retificar um erro material do despacho saneador, supriu a nulidade decorrente de contradição entre os fundamentos e a decisão proferida (artigo 615.º, n.º 1, c) do CPC) quanto a esta matéria.
B. Assim, tal despacho passou a ser complemento e parte integrante do despacho saneador, passando o recurso interposto a ter, também, como objeto a nova decisão, conforme dispõe o n.º 2 do artigo 617.º do CPC.
C. Nos termos do n.º 3 do artigo 617.º do CPC, o recorrente, no prazo de 10 dias pode alargar o respetivo âmbito, em conformidade com a alteração sofrida pela decisão recorrida, o que é feito nos termos da presente peça processual.
D. Quando ocorreu a notificação do referido despacho, com efeitos na fixação do valor da ação, o prazo de recurso de 30 dias havia já sido ultrapassado.
E. Porém, o referido despacho teve efeitos no valor da ação e, logo, na admissibilidade do recurso quanto à restante matéria objeto de recurso.
F. O recorrente mantém as alegações e correspondentes conclusões, apresentados anteriormente, constituindo as presentes alegações alargamento do seu âmbito.
G. O pedido formulado pelo Autor/Recorrente tem por deliberações da assembleia dos Condóminos do prédio identificado nos autos e, caso venha proceder, declaradas nulas ou anuladas ou declaradas ineficazes em todo o seu âmbito e toda a sua extensão e não, apenas, na parte ou permilagem correspondentes a Autor/Recorrente e/ou à fração autónoma do referido prédio de que é titular.
H. Nos termos do n.º 1 do artigo 301.º do CPC, «quando a ação tiver por objeto a apreciação da existência, validade, cumprimento, modificação ou resolução de um ato jurídico, atende-se ao valor do ato determinado pelo preço ou estipulado pelas partes.» (negrito do recorrente)
I. Ora, a norma legal invocada no referido despacho – 1.ª parte do n.º 1 do artigo 297.º do CPC – estabelece um dos «critérios gerais para a fixação do valor», aplicável quando se pretende «obter qualquer quantia certa em dinheiro» ou «um benefício diverso».
J. Na decisão da matéria objeto do presente alargamento do âmbito do recurso deverão ser tidos em conta e prevalecer, quer os efeitos pretendidos (peticionados), quer o que dispõe o n.º 1 do artigo 301.º do CPC e o critério neste estabelecido, aplicável às ações, como é o caso da presente, em que esteja em causa «a existência» e «a validade» de um ato jurídico.
Em face do exposto, entende o recorrente que V. Exas. ao revogarem o referido despacho e, em consequência, retificarem ou revogarem o despacho saneador, fixando o valor da ação, no que respeita à deliberação da ata n.º 27, em €22.892,60, a que acresce o valor de €2.238,60, num valor total de €25.131,20, farão a costumada JUSTIÇA

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Num contexto de alargamento do objecto do recurso, o recorrente contesta o valor atribuído à acção.
Esta questão é prévia à admissibilidade do recurso pelo que urge resolvê-la e, em nosso ver, deverá ser solucionada em favor do recorrente: pretendendo-se anular deliberação de condomínio, o caso cai no âmbito de previsão o art. 301º do CPC, fixando-se à acção, tal como o autor fez na petição inicial, o valor de €25.131,20€.

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O recurso foi admitido como de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito devolutivo.
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II.Objecto e delimitação do recurso

Consabidamente, a delimitação objectiva do recurso emerge do teor das conclusões do recorrente, enquanto constituam corolário lógico-jurídico correspectivo da fundamentação expressa na alegação, sem embargo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer ex officio.
De outra via, como meio impugnatório de decisões judiciais, o recurso visa tão só suscitar a reapreciação do decidido, não comportando a criação de decisão sobre matéria nova não submetida à apreciação do tribunal a quo.
Por outro lado, ainda, o recurso não é uma reapreciação ex novo’ do litígio (uma “segunda opinião” sobre o litígio), mas uma ponderação sobre a correcção da decisão que dirimiu esse litígio (se padece de vícios procedimentais, se procedeu a incorrecta fixação dos factos, se fez incorrecta determinação ou aplicação do direito aplicável). Daí que não baste ao recorrente afirmar o seu descontentamento com a decisão recorrida e pedir a reapreciação do litígio (limitando-se a repetir o que já alegara na 1ª instância), mas se lhe imponha o ónus de alegar, de indicar as razões porque entende que a decisão recorrida deve ser revertida ou modificada, de especificar as falhas ou incorrecções de que em seu entender ela padece, sob pena de indeferimento do recurso.
Ademais, também o tribunal de recurso não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos em alegação, mas apenas – e com liberdade no respeitante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito – de todas as “questões” suscitadas, e que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respectivo objecto, exceptuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras.
Assim, em face do que se acaba de expor e das conclusões apresentadas, é a seguinte a questão a resolver por este Tribunal: apreciar e decidir da questão da legitimidade passiva dos réus.

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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir:
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III.Os factos

A matéria de facto pertinente à decisão é a que consta do relatório constante de supra.
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IV.O mérito do recurso
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O Direito

A questão suscitada no recurso prende-se com a legitimidade passiva nas acções de anulação de deliberações de Assembleia de Condóminos.
No caso, a acção foi proposta contra EC, AT e F… – GESTÃO E SERVIÇOS, UNIPESSOAL, LDA - todos na qualidade de administradores do condomínio- e, ainda, contra os seguintes condóminos: AT enquanto condómina, de AC, RS, VC, ED, AV, MM, IE.
A querela jurídica em torno da questão é abundantemente debatida nos Tribunais superiores, tendo conhecido desenvolvimento legislativo recente com a Lei 8/2022 de 10 de Janeiro.

No essencial, existem duas correntes principais:

1ª-têm legitimidade os condóminos que votaram as deliberações;

2ª-ou, tem legitimidade o Condomínio e/ou o administrador.

A favor da primeira corrente -legitimidade dos condóminos- argumenta-se com a letra do artigo 1433.º/6 do Código Civil, que estabelece que a representação judiciária dos condóminos contra quem são propostas as acções compete ao administrador ou à pessoa que a assembleia designar para o efeito. Ou seja, refere-se a legitimidade de condóminos e não a legitimidade do condomínio.
Defende-se, ainda, que o artigo 12.º/e) do Código de Processo Civil atribui personalidade judiciária ao condomínio resultante da propriedade horizontal, relativamente às acções que se inserem no âmbito dos poderes do administrador (nosso sublinhado).

Recorrendo ao artigo 1436.º, do Código Civil, concluem que a defesa da validade das deliberações tomadas não se encontra incluída entre as funções do administrador, o que retira a possibilidade de entender que, quanto a tal, o Condomínio tem personalidade judiciária, agindo o administrador como seu representante nos termos do artigo 26.º do Código de Processo Civil. A não inclusão dessa função entre aquelas que cabem ao administrador nos termos do artigo 1436.º do Código Civil, determina aliás que o administrador não detenha legitimidade processual indirecta quanto a acções com esse objecto.
Contrariamente, quem defende a segunda corrente – que a legitimidade cabe ao Condomínio - sublinha que entre os poderes do administrador se inclui o de executar as deliberações da assembleia (artigo 1436.º/h)), o que engloba o poder de pugnar pela sua validade, daí advindo a legitimidade para as acções de impugnação dessas deliberações.
Resumidamente, era este o estado da questão quando foi publicada a lei 8/2022, de 10 de Janeiro, que alterou os artigos 1436.º e 1437.º do Código de Processo Civil e
fê-lo com a indicação expressa de que pretendia 
contribuir para a pacificação da jurisprudência que é abundante e controversa a propósito de algumas matérias, como, por exemplo, (…) a legitimidade processual ativa e passiva no âmbito de um processo judicial (…)( cfr. Exposição de motivos do Projecto de Lei).
Para o que aqui interessa, foi alterado o artigo 1436.º/h) já referido, passando a ter o seguinte teor: executar as deliberações da assembleia que não tenham sido objeto de impugnação, no prazo máximo de 15 dias úteis, ou no prazo que por aquela for fixado, salvo nos casos de impossibilidade devidamente fundamentada.

Foi, igualmente, alterado o artigo 1437.º que passou a ter as seguintes epígrafe e redacção:
Representação do condomínio em juízo
1-O condomínio é sempre representado em juízo pelo seu administrador, devendo demandar e ser demandado em nome daquele.
2-O administrador age em juízo no exercício das funções que lhe competem, como representante da universalidade dos condóminos ou quando expressamente mandatado pela assembleia de condóminos.
3-A apresentação pelo administrador de queixas-crime relacionadas com as partes comuns não carece de autorização da assembleia de condóminos.

Foi mantida intacta a redacção do artigo 1433.º/6.

Foi também alterado o artigo 1437.º, interessando o que consta nos n.ºs 1 e 2.
No n.º 1 diz a norma que o administrador demanda e é demandado em nome do condomínio. No n.º 2 que o administrador age em juízo (i)- no exercício das funções que lhe competem, (ii)- como representante da universalidade dos condóminos e (iii)- quando mandatado pela assembleia de condóminos.

Não obstante as referidas alterações, deverá entender-se que a referência do artigo 1433.º/6 do Código Civil aos condóminos, terá de ser compreendida como reportando-se à pluralidade que a expressão condomínio identifica enquanto património autónomo dotado de personalidade judiciária, logo atribuindo ao administrador a função de defesa em juízo das deliberações da assembleia e a consequente legitimidade para as acções de impugnação de deliberações da assembleia de condóminos (com autonomia face ao artigo 1436.º) e que a lei 8/2022 em nada obstaculiza tal interpretação, contribuindo até para a reforçar.
Com maiores desenvolvimentos sobre a matéria e sustentando a posição referida, escreve-se no Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa de 28-04-2022 (desta secção) que:

Quanto ao artigo 1436.º, a alteração retira das funções do administrador a execução das deliberações da assembleia que ainda possam ser impugnadas. Não cremos que a alteração tenha relevância para o caso que nos ocupa, embora se afigure defensável posição diversa, como segue.
Na dilucidação da questão da legitimidade a alínea h), que antecedeu esta alínea i), foi esgrimida como significando que a defesa da validade das deliberações constituía função do administrador, aí encontrando argumento para entender que, integrando-se entre os seus poderes, determinava a sua legitimidade para a acção de impugnação das mesmas deliberações.
Nesse contexto, poderia dizer-se que milita contra a legitimidade do Condomínio a explicitação de que as funções do administrador se iniciam quando as deliberações deixam de poder ser ordinariamente impugnadas. Dito de outro modo, a explicitação pode ser entendida no sentido de que a matéria não integra as funções do administrador e por essa via estariam excluídas tanto a personalidade judiciária do Condomínio como a legitimidade do administrador.
Sem escamotear esta possibilidade, entendemos que integrar a defesa da validade das deliberações na função de as executar constitui um alargamento que a letra da lei já anteriormente não autorizava, sendo a alteração, por isso, despicienda para a dilucidação da questão.
Do que se conclui que a questão se mantém como estava antes desta alteração ao artigo 1436.º, ou seja, desta alteração nada resulta no sentido de favorecer a opção por uma ou por outra das alternativas.
(…)
As categorias constantes do novo artigo 1437.º/2 não são reciprocamente excludentes porque delimitadas em função de critérios diversos. Enquanto a primeira e a terceira se organizam por referência às matérias que legitimam processualmente o administrador - funções que lhe caibam ou mandato da assembleia – a segunda reporta-se à relação orgânica do administrador com o Condomínio, legitimando-o em função dela.
(…)
Assim, o novo artigo 1437.º esclarece que o administrador do condomínio tem legitimidade processual activa e passiva em toda a matéria de que é titular o Condomínio, esclarecendo que tal matéria engloba o que respeita às funções do administrador, quer legais em sentido estrito, quer decorrentes de mandato da assembleia (categorias 1 e 3).
Refere ainda a norma que o administrador tem também legitimidade processual quando a lei se limite a indicar a sua intervenção processual em “representação judiciária”, como o faz o artigo 1433.º/6, quanto a matérias que per se não poderiam considerar-se integradas nas funções do administrador. A integração será assim operada por essa atribuição da  representação  da  universalidade  dos  condóminos (…).
Em suma, a nova redacção do artigo 1437.º/2 recolhe e autoriza a interpretação do 1433.º/6 como atribuindo poderes ao administrador a acrescer aos do artigo 1436.º e a consequente legitimidade para a acção de impugnação de deliberações sociais (Ac. proferido no proc. 2460/20.4T8LSB.L1-6, versão integral em www.dgsi.pt).

Desta forma, o artigo 1433.º/6 devia ser interpretado, antes da Lei 8/2022, como atribuindo legitimidade ao Condomínio e que a lei 8/2022 em nada obstaculiza tal interpretação, contribuindo até para a reforçar.
Aplicando ao caso que nos ocupa a doutrina e jurisprudência que, nesta matéria, consideramos mais acertada, oferece censura a sentença recorrida quanto a considerar partes ilegítimas os condóminos administradores.
É certo que o Condomínio na petição inicial não surge individualizado enquanto réu, mas se, em ação de impugnação de deliberações de assembleia de condóminos, como é o caso, o autor indica, como réus entidade(s), que refere exercer(em) as funções de administrador/administradores do condomínio, resultando claro que foram demandados em tal qualidade e por causa dela, deve o juiz fazer uma interpretação correctiva da petição inicial e, fazendo uso do poder-dever de adequação formal (art.º 547º do CPC), determinar que a causa prossiga contra o condomínio, representado pela entidade que, cada momento, exercer aquelas funções.

Neste sentido refere-se no Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa de 05-03-2024 que:

Como bem aponta o ac. RL 26-09-2023 (Luís Filipe Pires de Sousa), p. 6597/23.0T8LSB.L1.[39],“a circunstância de o procedimento ter sido intentado contra a Administração do Condomínio do Prédio sito (…) em vez de contra Condomínio do Prédio sito (…) constitui mera imprecisão terminológica inconsequente porquanto o demandado deduziu a oposição, que entendeu pertinente (…). Ou seja, a sua defesa não foi prejudicada por tal imprecisão.”

É que, como ensinam ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA, E LUÍS FILIPE PIRES DE SOUSA[40], o mero erro de identificação do sujeito processual deve ser objeto de retificação «nuns casos mediante formulação de um convite à parte, noutros casos por via direta, através de uma simples interpretação corretiva que estabeleça a precisa correspondência entre a identificação do sujeito e a verdade intenção da parte (cf. art.º 146º, nº2).»
No caso vertente, não temos dúvidas de que o autor pretendeu demandar o administrador do condomínio enquanto representante deste, ou seja, pretendeu intentar a ação contra o condomínio, representado pela sociedade que à data da propositura da ação, exercia as funções de administradora deste.
Cabia, pois, ao Tribunal a quo interpretar tal vontade, e exercendo o poder-dever de adequação formal (art.º 547º do CPC), promover a reconfiguração da causa em conformidade com a vontade do autor, ou seja, determinando que a ação prosseguisse nesses termos, com as necessárias consequências, nomeadamente que no registo informático dos autos e no rosto dos mesmos passasse a constar, como réu, o condomínio, considerando-se seu representante o respetivo administrador, e reconhecendo que face à substituição do administrador inicialmente identificado, a representação do réu cabe atualmente à administração atualmente eleita (…), (Ac. proferido no proc. 24204/22.6T8LSB.L1-7, versão integral em www.dgsi.pt).

Em face do exposto, a presente apelação deverá proceder prosseguindo a acção contra o 1.º réu, EC, contra a 2.ª ré e ora recorrida AT, mas também contra a 3.ª Ré, F… – Gestão e Serviços, Unipessoal, Lda.

V.– Decisão

Pelo exposto, acorda-se em julgar a apelação totalmente procedente e, em consequência, revogar a sentença recorrida, na parte em que julgou procedente a exceção de ilegitimidade passiva, determinando-se o prosseguimento da causa, devendo entender-se que a presente ação foi intentada contra o Condomínio do Prédio situado na Rua …, em Oeiras, e que o mesmo é representado em juízo pelos réus EC, AT e F… – Gestão e Serviços, Unipessoal, Lda.
Custas pelos apelados AT e F… – Gestão e Serviços, Unipessoal, Lda.
Registe e notifique.



Lisboa, 7 de junho de 2024



Relator: João Brasão.
1.º Adjunto: Eduardo Petersen Silva.
2.º Adjunto: Nuno Luís Lopes Ribeiro.