Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
813/11.8TBCSC-A.L1-2
Relator: ARLINDO CRUA
Descritores: EMBARGOS DE EXECUTADO
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
QUESTÃO NOVA
HIPOTECA
DIREITO DE RETENÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/07/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: – Não deve conhecer-se acerca da impugnação da matéria de facto apresentada quando tal se configure como a prática de uma acto inútil, legalmente sancionado pelo artº. 130º, do Cód. de Processo Civil ;
– o que acontece nas situações em que, ainda que lograsse obter procedência a apresentada impugnação da matéria factual, a decisão da causa não poderia deixar de ser a mesma, fruto do enquadramento jurídico operado, traduzindo-se então tal reapreciação na prática de uma acto absolutamente inútil, claramente contrário á observância dos princípios da economia e celeridade processuais ;
– o princípio legalmente consagrado no artº. 696º, do Cód. Civil é o da indivisibilidade, admitindo-se, todavia, acordo em contrário, o qual pode ter natureza expressa ou tácita, conforme o prescrito no nº. 1, do artº. 217º, do mesmo diploma, ou seja, pode deduzir-se de factos que, como toda a probabilidade, a revelam :
– no caso sub júdice tal acordo, ainda que tácito, até poderia ser eventualmente equacionado – cf., o cancelamento dos registos de hipoteca, relativamente a várias fracções, constantes da certidão do registo predial -, sendo todavia incontroverso que tal questão nunca foi minimamente aflorada pelo Embargante, ora Apelante, até à apresentação das alegações recursórias ;
– pelo que aquela, e o quadro factual que lhe subjaz, constitui uma questão nova que não foi objecto de apreciação por parte do Tribunal a quo, nem do devido contraditório ou actividade instrutória em sede de 1ª instância ;
– donde, sendo função da presente Relação apreciar questões já valoradas e ajuizadas em sede de 1ª instância, na denominada função de reponderação, aquela matéria, até porque não estamos perante uma questão de conhecimento oficioso, não pode ser apreciada ou valorada ;
– celebrado o contrato prometido de compra e venda de imóvel, através da competente escritura pública transmissiva, não pode afirmar-se que o adquirente, antecedente promitente comprador, seja titular de um qualquer crédito relativamente á sociedade promitente vendedora, pois já não é beneficiário da enunciada promessa de transmissão do direito real de propriedade sobre a fracção a que se reportava o contrato prometido, inexistindo qualquer crédito decorrente de um eventual não cumprimento imputável á mesma promitente vendedora ;
– efectivamente, com a outorga do contrato prometido – escritura pública de compra venda translativa da propriedade do imóvel em que se traduz a fracção -, o contrato-promessa anteriormente celebrado cumpriu-se, ou seja, viu atingido o seu desiderato ou finalidade, não sendo legítimo ao ora Embargante, então promitente adquirente, a invocação de quaisquer efeitos ao mesmo associados e que ora não se podem equacionar, até por que inexiste presentemente qualquer crédito, resultante de um alegado não cumprimento desse contrato, que possa considerar-se imputável à promitente alienante, e no qual se possa fundar o invocado direito real de garantia de retenção ;
– ademais, o próprio direito de retenção, desde logo pela sua própria natureza, enquanto direito real de garantia limitado, não é equacionável na titularidade do proprietário do bem sobre o qual recai, pois, não se olvide, retentor é aquele que está obrigado à entrega de certa coisa, não se constituindo, logicamente, tal obrigação relativamente ao titular do direito de propriedade sobre a mesma ;
– não tendo o Embargante exercido o direito de expurgação sobre as hipotecas registadas a favor da Embargada Exequente, na decorrência do que sempre ficaria sub-rogado nos direitos da mesma credora Exequente, por força da sub-rogação legal equacionada no nº. 1, do artº. 592º, do Cód. Civil, resultando inquestionável a sua qualidade de directamente interessado na satisfação do crédito, e tendo adquirido bem imóvel onerado com aquela garantia real, legitima-se o seu accionamento em execução, nos quadros do nº. 1, do artº. 686º, do Cód. Civil e 54º, nº. 2, do Cód. de Processo Civil.


Sumário elaborado pelo Relator – cf., nº. 7 do artº. 663º, do Cód. de Processo Civil
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: ACORDAM os JUÍZES DESEMBARGADORES da 2ª SECÇÃO da RELAÇÃO de LISBOA o seguinte---(1)


I–RELATÓRIO

1– AL……, Executado, deduziu oposição à execução, mediante embargos, aduzindo, em súmula, o seguinte:

– O Executado, por contrato-promessa de compra e venda, datado de 27 de Junho de 2003, prometeu comprar à sociedade E… P… — Sociedade de Construção Civil, Lda., as moradias geminadas n.° … e … situadas em dois lotes do terreno para construção no lugar de cobre, "travassado" e na A…, cobre "A Grande Vinha ou Vinha Grande", freguesia e concelho de C…, inscritas na matriz predial respectivas sob os artigos …4, Secção Nº… e …3, Secção Nº… e descritos na i0 Conservatória do Registo Predial de C… sob os n.° …9 e …6, ;
– pagou integralmente o preço acordado no identificado contrato (cláusula 4 do documento 1) no montante de 947.716,21 Euros (novecentos quarenta e sete mil setecentos e dezasseis euros e vinte e um cêntimos), nas datas previstas, ou seja, até ao dia 30 de Novembro de 2003. ;
– sendo que o pagamento previsto na cláusula 4.4 do documento 1 também foi pago, através da entrega da referida procuração até Novembro de 2003 ;
– face ao incumprimento sucessivo da vendedora, a Sociedade E... P... Construção Civil, Lda., relativamente ao prazo da outorga da escritura pública de compra e venda, o Executado e a referida sociedade outorgaram dois aditamentos ao contrato-promessa de compra e venda ;
– a Sociedade E... P... Construção Civil, Lda.”, em 13 de Dezembro de 2005, constituiu a Propriedade Horizontal de treze fracções autónomas, distintas e isoladas entre si, edificadas nos prédios supra identificados, no qual se incluía a moradia 13, correspondente à fracção "N" (entretanto fruto da unificação entre as moradias 13 e 14) ;
– a Sociedade E… P… Construção Civil, Lda., em Junho de 2006, entregou a identificada fracção ao Executado, conferindo-lhe a posse da mesma ;
– Executado e a Sociedade E… P… Construção Civil, Lda., em 2 de Janeiro de 2007, outorgaram a escritura pública de compra e venda, relativa à fracção identificada ;
– Tendo-se a sociedade E… P… Construção Civil, Lda., obrigado, na escritura pública de compra e venda, a liquidar, no prazo de noventa dias após a sua outorga, ou seja, até 2 de Abril de 2007, o valor do distrate relativo à hipoteca que está registada a favor da Exequente ;
– A Exequente veio reclamar o seu crédito sobre a sociedade E… P… Construção Civil, Lda., no âmbito do processo de insolvência desta sociedade, pelo que se estranha que venha reclamar o mesmo crédito agora sobre a fracção que se encontra na posse do Executado ;
– A hipoteca voluntária incidia sobre a totalidade do prédio e o montante reclamado só veio a incidir sobre a fracção "N" muito tempo depois do Executado estar na posse desta ;
– O Executado goza, no caso em apreço, do direito de retenção sobre a aludida fracção (artigo 7590 do Código Civil), pelo que, estando na sua posse, tem a faculdade de as executar nos mesmos termos de credor hipotecário (artigo 759° do Código Civil) ;
– Prevalecendo o direito de retenção sobre a hipoteca, mesmo que esta tenha sido registada anteriormente (artigo 759°, n.° 2 do Código Civil).

Conclui, no sentido de ser ordenada a “imediata suspensão da execução quanto ao identificado imóvel e ser a presente oposição julgada procedente por provada com todas as consequências legais”.
2– Recebidos liminarmente os embargos – cf., fls. 56 - e notificada a Exequente/Embargada CAIXA ECONÓMICA MONTEPIO GERAL, nos termos e para os efeitos do prescrito no nº. 2 do artº. 732º, do Cód. de Processo Civil, veio apresentar contestação – cf., fls. 59 a 66 -, aduzindo, em resumo, o seguinte:
– O Executado não põe em causa a existência da dívida exequenda peticionada, nem a sua liquidação, nem que a Exequente é credora da Sociedade “E… P… – Construção Civil, Lda.” pela quantia exequenda ;
– O Executado, por impossível, não põe em causa, que é o proprietário e titular inscrito da Fracção autónoma designada pela letra "N", correspondente à moradia Nº…, destinada a habitação, que faz parte do prédio urbano sito no Lugar do C…, na freguesia e concelho de C…, descrito na 1.ª Conservatória do Registo Predial de C... sob o n.º …8, e inscrito na respectiva matriz sob o art. …..1 ;
– a posição do executado não lhe advém da qualidade de devedor mas em consequência da posição de adquirente inscrito da fracção onerada, sendo que os actos de alienação ou oneração posteriores ao registo da hipoteca são inoponíveis ao credor ;
– pois, no caso de transmissão, ele pode fazer executar a coisa hipotecada no património doutrem, sendo esta uma manifestação da sequela do direito de hipoteca ;
– assim, o Executado AL……, é responsável perante a exequente em virtude da aquisição do imóvel acima identificado, e da posição de titular inscrito pela divida da Sociedade “E… P… – Construção Civil, Lda.”até ao limite das hipotecas averbadas no imóvel ;
– actualmente o executado é o proprietário do imóvel hipotecado e não promitente comprador ;
– por outro lado, a sociedade “E… P… – Construção Civil, Lda.”, foi declarada insolvente e, no entanto, a Exequente não está paga do seu crédito o qual não é sequer posto em causa pelo executado, pelo que, lhe assiste legitimidade para executar o património que garante a sua dívida propriedade do executado ;

– aliás, o próprio Executado, conforme consta da escritura pública junta, declarou:
“ Que aceita a presente venda, nos termos exarados, cujo objecto se destina a habitação própria e permanente e que tem conhecimento e está perfeitamente ciente das consequências que lhe poderão advir em virtude do arresto e das hipotecas acima mencionadas” ;

– Tendo declarado que estava ciente das consequências que lhe poderiam advir do registo das hipotecas seguramente não desconhecia que poderia vir a ser executado nos termos constantes da presente execução ;
– Pois, como é evidente, o executado não pode invocar direito de retenção sobre um bem que é seu ;
– Pelo que, ao invocar o instituto do direito de retenção, não compreendeu o mesmo, o qual seguramente não é aplicável ao caso concreto, porquanto, o executado é proprietário e não promitente-comprador do imóvel acima identificado.

Conclui, requerendo que a oposição seja julgada improcedente, com as legais consequências.
3– Conforme despacho de fls. 121, foi dispensada a realização da audiência preliminar, proferido despacho saneador e fixado o valor da causa.
4– De acordo com o despacho de fls. 122, foi designada data para a realização da audiência de discussão e julgamento, a qual veio a realizar-se conforme acta de fls. 127 e 128.
5– Designada data para a prolação da decisão sobre a matéria de facto, veio esta a constar conforme acta de fls. 129 a 130, tendo sido apresentada reclamação, a qual foi desatendida conforme despacho de fls. 131.
6– Conforme fls. 132 e 133, veio o Executado/Embargante apresentar alegações finais, nos quadros do artº. 657º, do Cód. de Processo Civil (antecedente redacção).
7– Em 04/12/2018, foi proferida sentença, que concluiu com o seguinte DISPOSITIVO/DECISÃO:
“Face ao exposto, julgando os embargos totalmente improcedentes, absolve-se a embargada CAIXA ECONÓMICA MONTEPIO GERAL do pedido formulado pelo embargante AL…….
Custas pelo embargante.
Notifique”.
8– Inconformado com o decidido, o Executado/Embargante interpôs recurso de apelação, em 28/01/2019, por referência à decisão prolatada.

Apresentou, em conformidade, o Recorrente as seguintes CONCLUSÕES (que ora se reproduzem, na íntegra):
I.– O presente recurso versa sobre a matéria de facto e de direito;
II.– Salvo o devido respeito, o douto Tribunal a quo ao dar como não provados os factos constantes de parte do artigo 2.° e do artigo 3.° do requerimento inicial dos embargos, julgou incorretamente por ter apreciado mal a prova;
III.– O Apelante quando, em 2 de Janeiro 2007, outorgou a escritura pública de compra e venda com a Sociedade E... P... Construção Civil, Lda.” (documento 6 do requerimento inicial de embargos) já tinha pago integralmente o preço acordado;
IV.– Com efeito, o Apelante pagou a quantia de 600.000,00€ (seiscentos mil euros) constantes da escritura pública;
V.– O Apelante entregou também a Sociedade E... P... Construção Civil, Lda.” a procuração irrevogável prevista na cláusula 4.4 do contrato-promessa de compra e venda (documento 1 do requerimento de embargos);
VI.– Relativamente ao pagamento integral do preço da compra, vejamos o depoimento da testemunha AM… Responsável de Vendas e Comercial da Sociedade E… P… Construção Civil, Lda.”, reproduzido a fls. 6 e 7 destas alegações;
VII.– Na escritura pública de compra e venda foi declarado o valor de 600.000,00€ (seiscentos mil euros) e com o pagamento deste valor foi integralmente pago o valor da aquisição;
VIII.– Acresce que o Apelante entregou também, antes da escritura de compra e venda a procuração irrevogável e identificada na cláusula 4.4 do contrato-promessa de compra e venda (documento 1 do requerimento inicial de embargos);

IX.– Salvo melhor opinião, o Venerando Tribunal da Relação deve alterar a matéria de facto, dando por provados os seguintes factos:
- AL…… pagou integralmente o preço acordado pela fracção "N", identificada nos autos;
- AL…… entregou a procuração irrevogável identificada na cláusula 4.4 do contrato-promessa de compra e venda à Sociedade E… P… Construção Civil, Lda.;

X.– No que concerne à matéria de direito importa ter em conta três questões fundamentais: - Dívida contraída pela Sociedade E… P… Construção Civil, Lda e à Caixa Económica Montepio Geral com a hipoteca do prédio onde foi inserida a urbanização (C1 e C2);
- A embargada penhorou a fracção para pedir um crédito que já havia pedido quando reclamou créditos no Processo de Insolvência da Sociedade E… P... Construção Civil, Lda;
- O direito de retenção invocado pelo Apelante;

XI.– O Apelante outorgou o contrato-promessa de compra e venda, em 27 de Junho de 2003, quando ainda não tinha sido constituído em propriedade horizontal o prédio em que se insere a fração "N";
XII.– A propriedade horizontal só foi constituída em 13 de Dezembro de 2005 (conforme consta da factualidade dada por provada), ou seja, dois anos depois;
XIII.– O prédio ao ser constituído em propriedade horizontal passou a ter treze fracções;
XIV.– Logo, o valor correspondente à fracção "N", de acordo com a permilagem e o valor do mútuo contraído pela Sociedade E…P… Construção Civil, Lda, era inferior a 200.000,00€ (duzentos mil euros), ou seja, o valor em dívida quando da outorga da escritura pública, em 2 de Janeiro 2007;
XV.– Sempre foi esse o valor referenciado pela Embargada e a este respeito vejamos o depoimento da testemunha AM…, reproduzido a fls. 9 a 11 destas alegações;
XVI.– A Embargada foi autorizando o distrate das outras fracções e não exigiu o valor inerente ao cancelamento do ónus que incide sobre a fracção "N", pelo que vem agora reclamar, sem qualquer razão plausível, um valor exageradíssimo;
XVII.– Com efeito, o valor inerente a esta fracção para ser cancelado o ónus que incidia com a hipoteca, era inferior a 200.000,00€ (duzentos mil euros) e a Embargada recusou-se sempre a receber esse valor;
XVIII.– A Apelada deu entrada em juízo com a presente acção executiva, no ano de 2011 para penhorar a fracção identificada nos autos, com vista ao ressarcimento de 1.000.000,00€ (um milhão de euros);
XIX.– Sucede que a Apelada antes de dar entrada em juízo com a execução, veio reclamar o mesmo crédito e de igual valor, no processo de insolvência da Sociedade E… P… Construção Civil, Lda (processo n.° 294/07.0TYLSB, 1.° Juízo do Tribunal de Comércio de Lisboa);
XX.– A Apelada está a pedir duplamente o crédito que reclama, ou seja, no âmbito da presente acção e no âmbito do processo de Insolvência da Sociedade E… P… Construção Civil, Lda, sendo certo que reclamou o crédito primeiro no processo de insolvência, pelo que não lhe é lícito vir agora reclamar o crédito, sob pena de receber duplamente valor reclamado;
XXI.– O Executado está na posse da fracção identificada nos autos desde Junho de 2006;
XXII.– A hipoteca voluntária incidia sobre a totalidade do prédio e o montante reclamado só veio a incidir sobre a fracção "N" muito tempo depois do Executado estar na posse desta;
XXIII.– O Executado goza, no caso em apreço, do direito de retenção sobre a aludida fracção (artigo 759° do Código Civil);
XXIV.– O Executado está na posse da fracção, pelo que tem a faculdade de as executar nos mesmos termos de credor hipotecário (artigo 759° do Código Civil);
XXV.– No caso em apreço, o direito de retenção prevalece sobre a hipoteca, mesmo que esta tenha sido registada anteriormente (artigo 759°, n.° 2 do Código Civil;
XXVI.– A Exequente, apesar de ter conhecimento dos factos atrás alegados, nomeadamente que o Executado se encontra na posse da fracção atrás identificada, desde Junho de 2006 e que a pagou na íntegra (conforme factualidade provada na douta sentença recorrida), à Sociedade E… P… Construção Civil, Lda., omitiu tal facto ao douto Tribunal, quando veio intentar a presente acção executiva, bem como omitiu que veio reclamar igual crédito no processo de insolvência da Sociedade E… P… Construção Civil, Lda;
XXVII.– O Executado tem uma posse real e efectiva sobre a fracção "N" desde Junho de 2006;
XXVIII.– Neste sentido o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16.02.2016, Relatora a Senhora Conselheira Maria Clara Sottomayor;
XXIX.– O Apelante desde 2006 que reúne os requisitos para alegar o direito de retenção, pois pagou integralmente o preço e recebeu as chaves do imóvel, logo não pode vir perder esse direito por ter realizado a escritura com a promessa de que ia ser dado o destrate e por um valor que veio a ser alterado;
XXX.– O montante do distrate veio a ser aumentado cinco vezes o seu valor, o que revela a má-fé em todo este processo;
XXXI.– No caso em apreço há a traditio da coisa objecto do contrato definitivo;

XXXII.– Deve, assim, ser dado provimento ao presente recurso de apelação e, em consequência, revogar-se a sentença ora recorrida e julgar-se procedente oposição à execução deduzida por embargos pelo Apelante, com todas as consequências legais”.
9– A Exequente/Embargada não apresentou contra-alegações.
10– O recurso foi admitido por despacho datado de 08/03/2019, como apelação, a subir de imediato, nos próprios autos e com efeito devolutivo.
11– Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar, valorar, ajuizar e decidir.
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II–ÂMBITO DO RECURSO DE APELAÇÃO
Prescrevem os nºs. 1 e 2, do artº. 639º do Cód. de Processo Civil, estatuindo acerca do ónus de alegar e formular conclusões, que:
“1– o recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão.
2– Versando o recurso sobre matéria de direito, as conclusões devem indicar:
a)- As normas jurídicas violadas ;
b)- O sentido com que, no entender do recorrente, as normas que constituem fundamento jurídico da decisão deviam ter sido interpretadas e aplicadas ;
c)- Invocando-se erro na determinação da norma aplicável, a norma jurídica que, no entendimento do recorrente, devia ter sido aplicada”.

Por sua vez, na esteira do prescrito no nº. 4 do artº. 635º do mesmo diploma, o qual dispõe que “nas conclusões da alegação, pode o recorrente restringir, expressa ou tacitamente, o objecto inicial do recurso”, é pelas conclusões da alegação do Recorrente Apelante que se define o objecto e se delimita o âmbito do recurso, sem prejuízo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, apenas estando este Tribunal adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objecto do recurso.

Pelo que, na ponderação do objecto do recurso interposto pelo Recorrente Embargante, delimitado pelo teor das conclusões expostas, a apreciação a efectuar na presente sede determina o conhecimento das seguintes questões:
1.–DA EVENTUAL PERTINÊNCIA DA MODIFICABILIDADE DA DECISÃO PROFERIDA SOBRE A MATÉRIA DE FACTO, nos quadros do artº. 662º, do Cód. de Processo Civil, por referência aos indicados artigos 2º (em parte) e 3º do requerimento inicial de embargos, feita constar na matéria factual dada como não provada, o que implica a REAPRECIAÇÃO DA PROVA (inclusive, da GRAVADA) ;
2.–Seguidamente, aferir acerca da SUBSUNÇÃO JURÍDICA EXPOSTA NA DECISÃO RECORRIDA, TENDO EM CONSIDERAÇÃO OS FACTOS APURADOS, o que implica apreciação do ENQUADRAMENTO JURÍDICO DA CAUSA.

O que implica, in casu, e relativamente a esta apreciação jurídica, a análise (eventual) das seguintes questões:
1)-Do valor correspondente da fracção, de acordo com a permilagem, relativamente ao valor total do mútuo, tendo por objectivo a expurgação da hipoteca ;
2)-Do pedido em duplicado do crédito reclamado ;
3)-Do direito de retenção do Executado/Embargante sobre a fracção.
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IIIFUNDAMENTAÇÃO

A–FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Na sentença recorrida, foi considerado como PROVADO o seguinte (procedendo-se á numeração dos factos):

1.–Por escritura pública de 27/10/2000, lavrada de fls. 6 a fls. 10 do livro 3…-B do ….º Cartório Notarial de Lisboa, a Sociedade E… P… - Construção Civil, Lda. confessou-se devedora à ora embargada de € 1.995.191,59, acrescida de juros à taxa de 5,0970% ao ano e nas demais condições constantes da escritura cuja cópia foi junta aos autos de execução.
2.–Para garantia do cumprimento das obrigações emergentes daquele contrato, a referida sociedade constituiu hipotecas voluntárias a favor da ora exequente sobre os prédios denominados “Travessado” e “A Grande ou Vinha Grande”, anteriormente descritos na 1.ª Conservatória do Registo Predial sob os n.ºs …9 e …6, os quais actualmente correspondem ao prédio descrito na 1.ª Conservatória de C… sob o n.º 9…, e inscritos sob o artigo matricial 13…., freguesia de C…, estando tais hipotecas registadas pelas inscrições C- 1 Ap. 106/17-05-2001 e C-2 Ap. 107/17-05-2001.
3.–Por escritura pública realizada em 13-12-2005, o mencionado prédio descrito sob o n.º 9… foi constituído em propriedade horizontal, passando a ser constituído por treze frações autónomas, designadamente, pela fração autónoma designada pela letra N, correspondente à moradia treze, destinada a habitação.
4.–Aquela fração autónoma designada pela letra N foi adquirida pelo executado AL......, conforme registo de aquisição inscrito pela Ap. 21/05-07-2006, mantendo-se então em vigor as hipotecas anteriormente registadas a favor da exequente.
5.–Tal aquisição decorreu de contrato de compra e venda celebrado entre o executado e a Sociedade E… P… - Construção Civil, Lda., conforme escritura pública realizada em 02-01-2007; nesta escritura, o legal representante daquela sociedade declarou já ter recebido o preço acordado de € 600.000,00 e o executado declarou ainda que “Que aceita a presente venda, nos termos exarados, cujo objecto se destina a habitação própria e permanente e que tem conhecimento e está perfeitamente ciente das consequências que lhe poderão advir em virtude do arresto e das hipotecas acima mencionadas.”; o legal representante daquela sociedade declarou ainda “Que em nome da sociedade sua representada se compromete a liquidar o valor do distrate no prazo de noventa dias a contar da data desta escritura.”
6.–Em 27-06-2003, o embargante celebrou com a sociedade E… P… - Construção Civil, Lda. o acordo, denominado de “contrato-promessa de compra e venda”, cuja cópia consta do doc. n.º 1 junto com o requerimento inicial dos embargos, considerando-se aqui reproduzido o respectivo teor.
7.–Em 06-07-2004 e 27-03-2006, o embargante celebrou com a Sociedade E… P… - Construção Civil, Lda. os acordos, denominados de “aditamento ao contrato-promessa de compra e venda” e “2.º aditamento ao contrato-promessa de compra e venda”, cujas cópias constam dos docs. n.ºs 2 e 3 juntos com o requerimento inicial dos embargos, considerando-se aqui reproduzido o respectivo teor.
8.–Tais aditamentos foram celebrados face ao incumprimento da Sociedade E… P… - Construção Civil do prazo previsto na cláusula 9.2 do referido contrato promessa de compra e venda (realização da escritura pública de compra e venda até 31-12-2003).
9.–Em Maio ou Junho de 2006, a Sociedade E… P… - Construção Civil, Lda. entregou ao embargante as chaves de acesso à identificada fração autónoma designada pela letra N.
10.–Por decisão proferida em 29-07-2008, já transitada em julgado, foi declarada a insolvência da Sociedade E… P…- Construção Civil, Lda., tendo a ora embargada reclamado no processo de insolvência os seus créditos sobre a mesma insolvente; em 10-10-2016, PR……, administradora da insolvência da Sociedade E… P… - Construção Civil, Lda., informou que “Nos autos de insolvência que correm termos em Lisboa - Inst. Central - 1ª Secção de Comércio, J1, com o n.º 294/07.0TYLSB, ainda não foi proferida sentença de graduação de créditos, sendo que não existiu quaisquer pagamentos a nenhum dos credores reclamantes.”
11.–Na data em que se realizou a aludida escritura pública de compra e venda da identificada fracção autónoma designada pela letra N, o embargante, a título de pagamento do respectivo preço, já tinha entregue à sociedade vendedora, pelo menos, o montante de € 600.000,00.

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Nos quadros do nº. 4, do artº. 607º, ex vi do nº. 2, do artº. 663, ambos do Cód. de Processo Civil, decide-se aditar à factualidade provada, um novo facto, que figurará sob o nº. 12., com a seguinte redacção:
12.– “O processo principal de execução, do qual os presentes autos são apenso, foi intentado em 25/01/2011, figurando como Executado AL……. (ora Embargante), tem como título executivo a escritura pública de mútuo identificada em 1. e como valor exequendo, à data da instauração, 1.191.294,29 € (906.190,22 € a título de capital ; 145.132,11 de juros ; e 129.006,33 € a título de clausula penal)”.
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B–FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

I)–Da REAPRECIAÇÃO da PROVA GRAVADA decorrente da impugnação da matéria de facto

Prevendo acerca da modificabilidade da decisão de facto, consagra o artigo 662º do Cód. de Processo Civil os poderes vinculados da Relação, estatuindo que:
“ 1– A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
2– A Relação deve ainda, mesmo oficiosamente:
a)-Ordenar a renovação da produção da prova quando houver dúvidas sérias sobre a credibilidade do depoente ou sobre o sentido do seu depoimento;
b)-Ordenar em caso de dúvida fundada sobre a prova realizada, a produção de novos meios de prova;
c)-Anular a decisão proferida na 1.ª instância, quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta;
d)-Determinar que, não estando devidamente fundamentada a decisão proferida sobre algum facto essencial para o julgamento da causa, o tribunal de 1.ª instância a fundamente, tendo em conta os depoimentos gravados ou registados”.

Para que tal conhecimento se consuma, deve previamente o recorrente/apelante, que impugne a decisão relativa à matéria de facto, cumprir o ónus a seu cargo, plasmado no artigo 640º do mesmo diploma, o qual dispõe que:

“ 1–Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a)-Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b)-Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

c)-A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

2.–No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:

a)-Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;

b)-Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.

3– O disposto nos n.ºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º”.

No caso sub judice, a prova produzida em audiência foi gravada, tendo o Recorrente/Apelante dado cumprimento ao preceituado no supra referido artigo 640º do Cód. de Processo Civil, pelo que o presente Tribunal, cumpridas As normas legais, pode proceder à sua reapreciação, uma vez que dispõe dos elementos de prova que serviram de base à decisão sobre o(s) facto(s) em causa.

A discórdia do Recorrente relativamente á matéria de facto fixada reporta-se à alegada em parte do artigo 2º e no artigo 3º, ambos do requerimento inicial de embargos.

Em consonância, pretende que sejam considerados igualmente provados os seguintes factos:
- “AL…… pagou integralmente o preço acordado pela fracção «N», identificada nos autos” ;
- “AL…… entregou a procuração irrevogável identificada na cláusula 4.4 do contrato-promessa de compra e venda à Sociedade E… P… Construção Civil, Lda.” Lda”.

Factos estes que, aduzidos naqueles artigos do articulado inicial, foram considerados não provados, conforme resposta à matéria de facto constante de fls. 129 e 130.

Vejamos.

Conforme expressamente referenciado em aresto desta Relação de 24/04/2019---(2) “na decisão da matéria de facto, o Tribunal apenas pode considerar os factos essenciais que integram a causa de pedir (ou as exceções), bem como os factos instrumentais, complementares ou concretizadores que resultem da instrução da causa, e os factos notórios e de que tem conhecimento por via do exercício das suas funções (art. 5.º do CPC), estando-lhe vedado, por força do princípio da limitação dos atos consagrado no art. 130.º do CPC, conhecer de matéria que, ponderadas as várias soluções plausíveis da questão de direito, se mostra irrelevante para a decisão de mérito. São manifestações do princípio dispositivo e do princípio da economia processual que se impõem ao juiz da 1.ª instância aquando da seleção da matéria de facto provada/não provada na sentença, mas também na 2.ª instância, no que concerne à apreciação da impugnação da decisão sobre a matéria de facto”.

Acrescenta-se, então, citando Acórdão desta Relação de 27/11/2018---(3) , que a jurisprudência dos Tribunais Superiores vem reconhecendo que “a reapreciação da matéria de facto não constitui um fim em si mesma, mas um meio para atingir um determinado objetivo, que é a alteração da decisão da causa, pelo que sempre que se conclua que a reapreciação pretendida é inútil – seja porque a decisão sobre matéria de facto proferida pela primeira instância já permite sustentar a interpretação do direito aplicável ao caso nos termos sustentados pelo recorrente, seja porque ainda que proceda a impugnação da matéria de facto, nos termos requeridos, a decisão da causa não deixará de ser a mesma – a reapreciação sobre matéria de facto não deve ter lugar, por constituir um ato absolutamente inútil, contrariando os princípios da celeridade e da economia processuais (arts. 2.º, n.º 1, 137.º, e 138.º do CPC)” (sublinhado nosso)---(4).

Em consonância, refere-se expressamente no douto Acórdão do STJ de 17/05/2017---(5) que “o princípio da limitação de actos, consagrado no artigo 130º do Código de Processo Civil para os actos processuais em geral, proíbe a sua prática no processo – pelo juiz, pela secretaria e pelas partes – desde que não se revelem úteis para este alcançar o seu termo”, tratando-se de uma das “manifestações do princípio da economia processual, também aflorado, entre outros, no artigo 611º, que consagra a atendibilidade dos factos jurídicos supervenientes, e no artigo 608º n.º 2, quando prescreve que, embora deva resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, o juiz não apreciará aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras”.

Acrescenta, nada impedir “que também no âmbito do conhecimento da impugnação da decisão fáctica seja observado tal princípio, se a análise da situação concreta em apreciação evidenciar, ponderadas as várias soluções plausíveis da questão de direito, que desse conhecimento não advirá qualquer elemento factual, cuja relevância se projecte na decisão de mérito a proferir.
Com efeito, aos tribunais cabe dar resposta às questão que tenham, directa ou indirectamente, repercussão na decisão que aprecia a providência judiciária requerida pela(s) parte(s) e não a outras que, no contexto, se apresentem como irrelevantes e, nessa medida, inúteis”.
Pelo que, conclui, “para se aferir da utilidade da apreciação da impugnação da decisão fáctica importa considerar se os pontos de facto questionados se não apresentam de todo irrelevantes, se a eventual demonstração dos mesmos é susceptível de gerar um juízo diferente sobre a questão de direito, se é passível de influenciar e, porventura, alterar a decisão de mérito no quadro das soluções plausíveis da questão de direito”.

Ora, tendo por pressuposto tal entendimento, afigura-se-nos resultar indubitavelmente o seguinte:
- através da enunciada impugnação da matéria de facto, tem o Apelante como desiderato provar que, para além do valor declarado na escritura de compra e venda outorgada em 02/01/2007, pagou à vendedora Sociedade E.. P…, Construção Civil, Lda.” Lda. a totalidade da quantia feita constar no contrato-promessa de compra e venda outorgado em 27/06/2006 :
- ou seja, pretende que se considere como matéria factual provada que, para além dos declarados 600.000,00 €, foi cumprido o pagamento inscrito no ponto 4.4 da cláusula 4ª daquele contrato-promessa, mediante a entrega da indicada procuração irrevogável, tradutora do pagamento da quantia remanescente de 349.158,53 € ;
- todavia, in casu, nos presentes embargos, não está em equação o pagamento da totalidade do preço acordado no referenciado contrato-promessa, nem qualquer incumprimento daí adveniente ;
- com efeito, o contrato prometido de compra e venda foi efectivamente outorgado, mediante escritura pública datada de 02/01/2007, através do qual se operou a transmissão da propriedade da indicada fracção autónoma designada pela letra “N” ;
- pelo que não releva nos presentes autos, nomeadamente para o conhecimento da controvérsia em equação, se aquele preço inicialmente acordado foi ou não integralmente pago e de que forma tal pagamento se processou ;
- e, nem sequer se questiona acerca dos alegados efeitos daquele contrato-promessa, ou dos direitos/deveres que a posição de promitente adquirente inculca ou traduz, pois ocorreu outorga do contrato prometido, sendo a posição do Embargante de proprietário da fracção e não já de promitente adquirente da mesma ;
- efectivamente, o que se questiona é se, tendo em atenção a forma como o Embargante articula a causa de pedir invocada, efectuada tal transmissão da propriedade da fracção para a titularidade do Embargante, pode a ora Embargada/Exequente executá-la, no seu património, pela alegada dívida dada à execução ;
- e, por outro lado, em idêntica apreciação daquela configuração, aferir se o Embargante é titular do alegado direito de retenção sobre a aludida fracção, nos quadros do invocado artº. 759º, do Cód. Civil ;
- ora, na apreciação destas questões é totalmente irrelevante ou inócuo aferir ou determinar acerca do alegado pagamento integral do preço feito constar no contrato-promessa que antecedeu a outorga da escritura publica transmissiva da propriedade da fracção ;
- e muito menos relevância tem aferir se uma das parcelas do preço foi efectivamente liquidada nos termos convencionados naquele contrato-promessa, ou seja, através da entrega da aludida procuração irrevogável, referente a um imóvel ali identificado ;
- pelo que, conhecer acerca da impugnação da matéria de facto apresentada na presente sede recursória, configurar-se-ia como a prática de uma acto inútil, legalmente sancionado pelo artº. 130º, do Cód. de Processo Civil ;
- ou seja, ainda que lograsse obter procedência tal impugnação da matéria factual, nos termos requeridos, e tal matéria passasse a figurar como provada, esta revelar-se-ia totalmente irrelevante e inócua para a sorte da pretensão recursória apresentada, pelo que aquela reapreciação da matéria de facto traduzir-se-ia na prática de uma acto absolutamente inútil, claramente contrário á observância dos princípios da economia e celeridade processuais ;
- pelo que, na decorrência de tal juízo, decide-se não conhecer da impugnação da matéria de facto apresentada no presente recurso.

II)–DA VERIFICAÇÃO DE ERRO DE JULGAMENTO NA SUBSUNÇÃO JURÍDICA EXPOSTA NA DECISÃO RECORRIDA, TENDO EM CONSIDERAÇÃO OS FACTOS APURADOS

- Do valor da fracção de acordo com a permilagem, relativamente ao valor total do mútuo, tendo por objectivo a expurgação da hipoteca – Conclusões XI a XVII

No âmbito da oposição à execução, e prevendo acerca da oposição mediante embargos---(6), prescrevem os nº.s 1 e 2, do artº. 728º, do Cód. de Processo Civil---(7), que:
“1– o executado pode opor-se à execução por embargos no prazo de 20 dias a contra da citação.
2– Quando a matéria da oposição seja superveniente, o prazo conta-se a partir do dia em que ocorra o respectivo facto ou dele tenha conhecimento o executado”.

A oposição do executado “visa a extinção da execução, mediante o reconhecimento da actual inexistência do direito exequendo ou da falta dum pressuposto, específico ou geral, da acção executiva”, assumindo “o carácter duma contra-acção tendente a obstar à produção dos efeitos do título executivo e(ou) da acção que nele se baseia. Quando veicula uma oposição de mérito à execução, visa um acertamento negativo da situação substantiva (obrigação exequenda), de sentido contrário ao acertamento positivo consubstanciado no título executivo (judicial ou não), cujo escopo é obstar ao prosseguimento da acção executiva mediante a eliminação, por via indirecta, da eficácia do título executivo enquanto tal”---(8)

Prescrevem os nºs. 4 e 5 do artº. 732º, ajuizando acerca da formação de caso julgado no âmbito da oposição à execução, que:
“4– a procedência dos embargos extingue a execução, no todo ou em parte.
5– Para além dos efeitos sobre a instância executiva, a decisão de mérito proferida nos embargos à execução constitui, nos termos gerais, caso julgado quanto à existência, validade e exigibilidade da obrigação exequenda”.

Refere José Lebre de Freitas---(9) que a presente norma, introduzida pela nova redacção conferida ao Cód. do Processo Civil pela citada Lei nº. 41/2013, resolveu uma questão doutrinariamente controvertida, entre “aqueles que circunscrevem ao processo executivo, baseado num título executivo determinado, o caso julgado formado nos embargos de executado e os que atribuam à decisão de mérito neles proferida eficácia de caso julgado material”.
Assim, esta segunda posição “surge como consequência natural da autonomia do meio de oposição para quem leve essa autonomia ao ponto de nele admitir a reconvenção. Mas, embora estruturalmente autónomo, o processo de embargos de executado está ligado funcionalmente ao processo executivo e o acertamento que nele se faz, seja um acertamento de mérito, seja um acertamento sobre pressupostos processuais da ação executiva, serve as finalidades desta. Está na lógica desta construção circunscrever o seu efeito à ação executiva e defender que a eficácia extraprocessual só seria de admitir se, no próprio processo executivo, tivesse lugar uma decisão dotada da força de caso julgado, mas então por força desta outra decisão e não como directa consequência da decisão dos embargos à execução. Mesmo quando o objecto desta ação é uma pretensão de acertamento da inexistência do direito exequendo, este acertamento subordinar-se-ia aos fins da execução, com a consequência, quando a oposição é procedente, de destruir a eficácia do título que contém o acertamento positivo do direito”.
Acrescenta então o mesmo autor que “se o devedor pretendesse obter a segurança de uma decisão material definitiva, deveria lançar mão de uma ação declarativa autónoma, estrutural e funcionalmente, em que pediria que fosse declarada a inexistência da obrigação”.

Assim, após elencar as posições que foi assumindo consoante as formas processuais que foram sendo previstas para a tramitação dos embargos e as garantias probatórias daí decorrentes, conclui que com o CPC de 2013, nomeadamente com “a redução das formas de processo comum a uma só, o regime da prova testemunhal passou a ser o mesmo na acção declarativa comum e na ação de embargos de executado. Tornou-se assim indiscutível que faz caso julgado material a decisão dos embargos sobre a existência da obrigação exequenda” (sublinhado nosso).

Referencia o Apelante ter sido outorgado o contrato-promessa de compra e venda (27/06/2003) em data antecedente á da constituição da propriedade horizontal (13/12/2005), após o que aquele passou a ter 13 fracções.

Pelo que, acrescenta, o valor correspondente à fracção “N”, de acordo com a permilagem e o valor do mútuo contraído pela Sociedade E… P… Construção Civil, Lda., era inferior a 200.000,00 €, sendo este o valor em dívida aquando da outorga da escritura pública de compra e venda em 02/01/2007.

Sustentando tal factualidade no depoimento alegadamente prestado pela testemunha AM……, aduz que a Embargada foi autorizando o distrate de outras fracções, não tendo exigido o valor inerente ao cancelamento do ónus que incide sobre a fracção “N”, vindo agora reclamar, sem razão, um valor exageradíssimo.
Donde, conclui, o valor inerente a esta fracção para ser cancelado o ónus decorrente da hipoteca era inferior a 200.000,00 €, tendo-se a Embargada recusado sempre a receber este valor.

Vejamos.

Dispõe o artº. 696º, do Cód. Civil, prevendo acerca da indivisibilidade da hipoteca, que “salvo convenção em contrário, a hipoteca é indivisível, subsistindo por inteiro sobre cada uma das coisas oneradas e sobre cada uma das partes que as constituam, ainda que a coisa ou o crédito seja dividido ou este se encontre parcialmente satisfeito”.

Resulta deste normativo que o princípio legalmente consagrado é o da indivisibilidade, mas que tal admite acordo em contrário, o qual pode ter natureza expressa ou tácita.

Nas palavras de recente douto Acórdão desta Relação de 27/06/2019---(10), “a hipoteca incidente sobre a fracção dos embargantes seria indivisível, garantindo a totalidade do crédito da embargada, até ao limite do respectivo valor.
Contudo, como decorre do mesmo artigo 696º, a indivisibilidade da hipoteca pode ser afastada por convenção das partes e, nos termos do artigo 217º nº1 do CC, tal declaração pode ser expressa ou tácita, ou seja, pode deduzir-se de factos que, como toda a probabilidade a revelam.
Ora, no presente caso provou-se também que no universo dos restantes promitentes compradores das várias fracções do edifício, houve cancelamentos parciais de hipotecas que foram distratadas, mediante a outorga de escrituras públicas outorgadas com o pagamento dos remanescentes dos preços, nos termos ajustados nos respectivos contratos promessa (ponto 26 dos factos, com a redacção resultante da alteração introduzida pela decisão sobre a impugnação da matéria de facto).
Deste modo, terá de se concluir que, ao permitir a divisibilidade da hipoteca para outros promitentes compradores, a credora ora embargada renunciou tacitamente à indivisibilidade da hipoteca, não podendo reclamar a totalidade da dívida apenas a alguns do titulares do direito sobre parte do edifício onerado e posteriormente dividido e, relativamente a outros, reclamar valores parcelares, sendo certo que se assim não se entendesse, poderiam os titulares das fracções com hipotecas distratadas ser confrontadas com o pedido de direito de regresso por parte daqueles a quem fosse exigida a totalidade da dívida”.
Acerca da presente matéria, referencia o douto aresto do STJ de 12/02/2004---(11) que “a hipoteca, a garantia de que beneficia o banco exequente de ser pago com preferência sobre os demais credores, transfere-se para a nova realidade predial, e transfere-se por uma forma em que cada uma das fracções garante a totalidade do crédito - é o que resulta do disposto nos ars.691º, al. c ) e 696º do CCivil (veja-se, neste sentido, o Parecer dos Profs. Oliveira Ascensão e Menezes Cordeiro, «Expurgação de Hipoteca», na CJ, 1986, T5, págs.35 e segs.).
Tudo isto tem a adequada tradução registral na certidão junta com a petição inicial da acção executiva.
A hipoteca garante o crédito, cada uma das partes (fracções) garante a totalidade do crédito. Mas, naturalmente, do crédito em dívida - aquela parte do crédito que já está satisfeita é uma parte que, pode dizer-se, já não existe, extinguiu-se pelo pagamento (se foi esse é óbvio, o facto extintivo).
O art.696º do CCivil, que estabelece a regra da indivisibilidade da hipoteca começa exactamente pela expressão salvo convenção em contrário.

É essa a convenção que se verifica quando o credor aceita o distrate da hipoteca sobre uma determinada fracção, normalmente contra o pagamento da parte proporcional do crédito (ainda) em dívida”.
Pelo que, conclui, “por acordo com o seu devedor e/ou os titulares de algumas das fracções do prédio construído no terreno hipotecado, e constituído em propriedade horizontal, o banco credor autorizou o distrate da hipoteca sobre essas mesmas fracções; essa convenção ou acordo, afecta apenas e só o banco e, no que aqui importa, os titulares das fracções distratadas; extingue a hipoteca na medida exacta da permilagem destas, qualquer que tenha sido o montante pago pelos respectivos titulares ou pelo devedor para obter o distrate por parte do
banco; a hipoteca permanece para garantia do montante correspondente à permilagem das fracções não distratadas, e apenas deste, não podendo o banco pedir de todos ou de cada um dos restantes titulares mais do que esse quantitativo restante”
---(12)

Ora, a questão ora colocada pelo Apelante, ainda que de forma não muito clara ou assertiva, relativa á sua eventual responsabilidade de acordo com a permilagem da sua fracção em confronto com a totalidade do mútuo garantido, nunca havia sido colocada nos autos. Efectivamente, analisando o teor da petição inicial de embargos, desta não consta, ainda que de forma incipiente, qualquer referência a uma eventual divisibilidade da hipoteca, nomeadamente por acordo das partes, expresso ou tácito, no sentido de poder deduzir-se de uma prática que com toda a probabilidade revelasse tal convenção.

Sendo certo que tal acordo, ainda que tácito, até poderia ser eventualmente equacionado – cf., o cancelamento dos registos de hipoteca, relativamente a várias fracções, constantes da certidão do registo predial de fls. 37 a 39, que o indicia -, é igualmente incontroverso que tal questão nunca foi minimamente aflorada pelo Embargante, ora Apelante, até à apresentação das alegações recursórias. Ou seja, nunca o mesmo aludiu relativamente á existência de convenção derrogadora da indivisibilidade da hipoteca, do valor referente á permilagem do seu prédio em correspondência com o valor do mútuo contraído e objecto de execução, que a Exequente/Embargada foi autorizando o distrate de outras fracções, que o valor inerente á sua fracção, para a obtenção do cancelamento da hipoteca, fosse inferior a 200.000,00 € e que a mesma Exequente/Embargada sempre se tivesse recusado em receber tal valor.

Todavia, como se sabe, ao presente Tribunal, e com excepção de matéria de oficioso conhecimento, não é legalmente cometida a função de conhecer acerca de questões novas, não sindicadas ou discutidas em 1ª instância, mas antes conhecer ou sindicar acerca de questões apreciadas ou decididas.

Efectivamente, no âmbito da delimitação subjectiva e objectiva do recurso, prescreve o artº. 635º, do Cód. de Processo Civil, que:

“1– Sendo vários os vencedores, todos eles devem ser notificados do despacho que admite o recurso; mas é lícito ao recorrente, salvo no caso de litisconsórcio necessário, excluir do recurso, no requerimento de interposição, algum ou alguns dos vencedores.
2– Se a parte dispositiva da sentença contiver decisões distintas, é igualmente lícito ao recorrente restringir o recurso a qualquer delas, uma vez que especifique no requerimento a decisão de que recorre.
3– Na falta de especificação, o recurso abrange tudo o que na parte dispositiva da sentença for desfavorável ao recorrente.
4– Nas conclusões da alegação, pode o recorrente restringir, expressa ou tacitamente, o objeto inicial do recurso.
5– Os efeitos do julgado, na parte não recorrida, não podem ser prejudicados pela decisão do recurso nem pela anulação do processo”.

Refere Abrantes Geraldes---(13) que a natureza do recurso, “como meio de impugnação de uma anterior decisão judicial, determina outra importante limitação ao seu objecto decorrente do facto de, em termos gerais, apenas poder incidir sobre questões que tenham sido anteriormente apreciadas, não podendo confrontar-se o tribunal ad quem com questões novas”.
Com efeito, acrescenta, “os recursos constituem mecanismos destinados a reapreciar decisões proferidas, e não a analisar questões novas, salvo quando, nos termos já referidos, estas sejam do conhecimento oficioso e, além disso, o processo contenha os elementos imprescindíveis. Seguindo a terminologia proposta por Teixeira de Sousa, podemos concluir que tradicionalmente seguimos um modelo de reponderação, que visa o controlo da decisão recorrida e não um modelo de reexame que permita a repetição da instância no tribunal de recurso”.
Pelo que, arquitectado assim o sistema, devem os Tribunais Superiores ser apenas confrontados “com questões que as partes discutiram nos momentos próprios”, sendo que, “quando respeitem às matéria de facto mais se impõe o escrupuloso respeito de tal regra, a fim de obviar a que, numa etapa desajustada, se coloquem questões que nem sequer puderam ser convenientemente discutidas ou apreciadas”.
E, recorrendo a vários exemplos jurisprudenciais, aduz que “as questões novas não podem ser apreciadas no recurso, quer em homenagem ao princípio da preclusão, quer por desvirtuarem a finalidade dos recursos, pois estes destinam-se a reapreciar questões, e não a decidir questões novas, por tal apreciação equivaler a suprimir um ou mais órgãos de jurisdição”---(14)
Bem como que “os recursos destinam-se á apreciação de questões já antes levantadas e decididas no processo, e não a provocar decisões sobre questões que não foram antes submetidas ao contraditório e decididas pelo tribunal recorrido, a menos que se trate de questões de conhecimento oficioso”---(15) .
Idêntico entendimento é perfilhado por Rui Pinto---(16) ao referenciar que “o tribunal ad quem apenas conhece dentro do objecto que foi presente ao tribunal recorrido: tantum devolutum quantum iudicatum”, o que é apelidado de “princípio devolutivo, próprio dos recursos de reponderação”.
Pelo que, caso a parte pretenda “colocar pretensões novas deve deduzir acção declarativa própria, desde que não estejam abrangidas pela exceção de caso julgado, limitação que, em princípio, não ocorrerá. De outro modo, a admissão ex novo de questões tolheria a parte contrária do direito a um segundo grau de jurisdição relativamente a elas e os novos atos de instrução atrasariam a decisão de recurso”.
E, citando o Acórdão da RC de 08/11/2011---(17) , acrescenta que os recursos “são meios de impugnação de decisões judiciais – e não meios de julgamento de questões novas vigorando um modelo de recurso de reponderação, i.e., de base romana, em que o âmbito do recurso encontra-se objectivamente limitado pelas questões colocadas no tribunal recorrido”.
Miguel Teixeira de Sousa---(18) refere que “no direito português, os recursos ordinários visam a reapreciação da decisão proferida dentro dos mesmos condicionalismos em que se encontrava o tribunal recorrido no momento do seu proferimento. Isto significa que, em regra, o tribunal de recurso não pode ser chamado a pronunciar-se sobre matéria que não foi alegada pelas partes na instância recorrida ou sobre pedidos que nela não foram formulados”.
Mais recentemente, e por todos, referenciou-se no aresto do STJ de 09-03-2017---(19) , que “os recursos destinam-se ao reexame das questões submetidas ao julgamento do tribunal recorrido. O tribunal de recurso aprecia e conhece de questões já conhecidas pelo tribunal recorrido e não de questões que antes não tenham sido submetidas à apreciação deste tribunal – o tribunal de recurso reaprecia o concretamente já decidido, não profere decisões novas.
Assim sendo, não é lícito invocar no recurso questões que não tenham sido suscitadas nem resolvidas na decisão de que se recorre.

Destinam-se os recursos a reapreciar as decisões tomadas pelos tribunais de inferior hierarquia e não a decidir questões novas que perante eles não foram equacionadas.
A preclusão do conhecimento pelo Supremo Tribunal de Justiça de questões não suscitadas perante a Relação, apenas sofre as restrições advindas da natureza da questão levantada quando a sua apreciação deva ou possa fazer-se
ex officio (v.g., nulidade de actos jurídicos; questões de inconstitucionalidade normativa; caducidade em matéria de
direitos indisponíveis).
Os recursos ordinários não servem para conhecer de novo da causa, mas antes para controlo da decisão recorrida”---(20).

Ora, revertendo o entendimento exposto ao caso concreto, constata-se, nos termos já supra aduzidos, que a matéria de facto que o Apelante ora aduz constitui uma questão nova que não foi objecto de apreciação por parte do Tribunal a quo.
Efectivamente, o núcleo factual ora aditado em sede de alegações recursórias, não foi objecto do contraditório, não foi apreciado e não foi objecto de qualquer instrução ou discussão em 1ª instância.
Pelo que, logicamente, sendo função da presente Relação apreciar questões já valoradas e ajuizadas em sede de 1ª instância, na denominada função de reponderação, aquela matéria, até porque não estamos perante uma questão de conhecimento oficioso, não pode ser apreciada ou valorada. Ou seja, tais factos, com as implicações jurídicas já supra expostas, deverá passar pelo crivo do contraditório em sede do Tribunal a quo, nomeadamente através da instauração de diferenciada acção, caso o princípio da preclusão o admita.
Donde, sem outras delongas, decai, nesta vertente, a pretensão recursória apresentada.

– Do pedido em duplicado do crédito reclamado Conclusões XVIII a XX

No excurso recursório apresentado, alega o Recorrente que a Apelada Embargada instaurou acção executiva, da qual os presentes embargos são apenso, com vista ao ressarcimento de 1.000.000,00 €, mas que anteriormente, reclamou o mesmo crédito no processo de insolvência da Sociedade E... P.... Construção Civil, Lda.”.
Alega, assim, estar a Apelada a reclamar duplamente o mesmo crédito, pelo que, tendo reclamado o crédito, em primeiro lugar, no processo de insolvência, não lhe é lícito vir agora reclamá-lo, sob pena de receber aquele valor em duplicado.

A apelante embargada, exequente no processo principal, deu à execução contrato de mútuo em que é mutuária uma sociedade entretanto declarada insolvente e, sendo o ora embargante o proprietário de uma fracção autónoma sobre a qual incidem hipotecas constituídas para garantir o crédito assim titulado, intentou a execução contra este, ao abrigo do artigo 54º nº2 do Cód. de Processo Civil, que permite que a execução siga directamente contra o terceiro proprietário de bem objecto de garantia real.
A hipoteca, por legal definição, “confere ao credor o direito de ser pago pelo valor de certas coisas imóveis, ou equiparadas, pertencentes ao devedor ou a terceiro com preferência sobre os demais credores que não gozem de privilégio especial ou de prioridade de registo” – cf., artº. 686º, nº. 1, do Cód. Civil.

Por sua vez, o citado nº. 2, do artº. 54º, do Cód. de Processo Civil, prevendo acerca da legitimidade nas execuções, aduz que “a execução por dívida provida de garantia real sobre bens de terceiro segue directamente contra este se o exequente pretender fazer valer a garantia, sem prejuízo de poder desde logo ser também demandado o devedor”.

Ora, a devedora do mútuo em equação é a Sociedade E… P… – Construção Civil, Lda., entretanto declarada insolvente – factos 1. e 10. -, tendo a credora, ora Embargada, reclamado devidamente os créditos sobre a insolvente no competente processo.
Por sua vez, o ora Embargante/Executado, não é devedor da Embargada/Exequente, resultando o seu accionamento do facto de ter adquirido imóvel sobre o qual impende hipoteca, e devido ao direito de sequela a esta inerente, como direito real de garantia que é.
Pelo que, sendo distintas as fontes de tutela, é perfeitamente legítimo à Exequente a reclamação/exigibilidade do seu alegado crédito pelas duas diferenciadas vias – como débito que onera a sociedade insolvente e como débito provido de garantia real sobre imóvel pertencente a terceiro, ou seja, ao ora Executado/Embargante.
O que não pode, logicamente, é ver ressarcido, em duplicado, o mesmo crédito pelas duas diferenciadas vias, a acautelar aquando da realização dos eventuais pagamentos.

Por todo o exposto, e sem ulteriores delongas, improcede igualmente a presente vertente recursória.

– Do direito de retenção do Executado/Embargante sobre a fracçãoConclusões XXI a XXXI

Como último fundamento recursório, invoca o Apelante que está na posse, real e efectiva, da fracção desde Junho de 2006, pelo que goza do direito de retenção sobre a mesma, podendo-a executar nos mesmos termos do credor hipotecário, e prevalecendo sobre a hipoteca, ainda que esta tenha sido registada anteriormente – cf.,artº. 759º, do Cód. Civil. Pelo que, tendo existido a traditio da coisa objecto do contrato definitivo, reúne os requisitos para alegar o direito de retenção, não podendo perder esse direito por ter realizado a escritura “com a promessa que ia ser dado o distrate e por um valor que veio a ser alterado”.

Analisemos.

Na sentença apelada referiu-se, acerca do ora aduzido, o seguinte:

“A fração autónoma designada pela letra N, prometida vender, foi adquirida pelo executado AL……, conforme registo de aquisição inscrito pela Ap. 21/05-07-2006, mantendo-se então em vigor as hipotecas anteriormente registadas a favor da exequente; tal aquisição decorreu de contrato de compra e venda celebrado entre o executado e a Sociedade E… P… - Construção Civil, Lda., conforme escritura pública realizada em 02-01-2007.
Na data em que se realizou a aludida escritura pública de compra e venda da identificada fracção autónoma designada pela letra N, o embargante, a título de pagamento do respectivo preço, já tinha entregue à sociedade vendedora, pelo menos, o montante de € 600.000,00.
Da factualidade atrás exposta resulta que, aquando da apresentação do requerimento inicial dos presentes embargos e ainda aquando da propositura da execução, o embargante não era titular de um direito de crédito, fundado no disposto no citado art. 442.º do CCivil, contra a Sociedade E... P... -Construção Civil, Lda., pressuposto de concessão do aludido direito de retenção, tendo, aliás, o celebrado contrato promessa sido cumprido com a realização da mencionada escritura pública de 02-01-2007.
É certo que na celebrada escritura de compra e venda o legal representante daquela sociedade declarou ainda “Que em nome da sociedade sua representada se compromete a liquidar o valor do distrate no prazo de noventa dias a contar da data desta escritura.”, obrigação que nunca foi cumprida.
Segundo o disposto no art. 721.º, alíneas a) e b), do CCivil, aquele que adquiriu bens hipotecados, registou o título de aquisição e não é pessoalmente responsável pelo cumprimento das obrigações garantidas tem o direito de expurgar a hipoteca por qualquer dos modos seguintes: a) pagando integralmente aos credores hipotecários as dívidas a que os bens estão hipotecados; b) declarando que está pronto a entregar aos credores, para pagamento dos seus créditos, até à quantia pela qual obteve os bens, ou aquela em que os estima, quando a aquisição tenha sido feita por título gratuito ou não tenha havido fixação de preço.
Fica sub-rogado nos direitos do credor, nos termos da sub-rogação legal que resulta do disposto no art. 592.º, n.º 1, do CCivil, o adquirente da coisa hipotecada que cumpre pelo devedor, na mera intenção de prevenir a execução do crédito hipotecário.
Ora, o embargante não exerceu os direitos previstos no citado art. 721.º” (sublinhado nosso).

Apesar do aduzido, que se afigura certeiro, insiste o Apelante na tese de que é titular do direito de retenção, com fundamento nos artigos 754º e 755º, alín. f), ambos do Cód. Civil, tendo por base o contrato-promessa outorgado com a sociedade promitente vendedora em 27/06/2003.
Ora, resulta de tais normativos que o devedor que disponha de um crédito contra o seu credor goza do direito de retenção se, estando obrigado a entregar certa coisa, o seu crédito resultar de despesas feitas por causa dela ou de danos por ela causados; goza ainda do direito de retenção, designadamente, o beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de direito real que obteve a tradição da coisa a que se refere o contrato prometido, sobre essa coisa, pelo crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte, nos temos do artigo 442.º.
Todavia, o Embargante não dispõe, no presente e tendo por base aquele contrato-promessa, de qualquer crédito relativamente á sociedade promitente vendedora, sendo que já não é beneficiário da enunciada promessa de transmissão do direito real de propriedade sobre a fracção a que se reportava o contrato prometido, inexistindo qualquer crédito decorrente de um eventual não cumprimento imputável á mesma promitente vendedora.
Efectivamente, com a outorga do contrato prometido – escritura pública de compra venda translativa da propriedade do imóvel em que se traduz a fracção -, o contrato-promessa anteriormente celebrado cumpriu-se, ou seja, viu atingido o seu desiderato ou finalidade, não sendo legítimo ao ora Embargante, então promitente adquirente, a invocação de quaisquer efeitos ao mesmo associados e que ora não se podem equacionar, até por que inexiste presentemente qualquer crédito, resultante de um alegado não cumprimento desse contrato, que possa considerar-se imputável à promitente alienante. Com efeito, a existir alguma posição creditícia, no presente, do ora Embargante perante a sociedade transmitente do imóvel, decorre antes do próprio contrato definitivo, no qual esta se obrigou a “liquidar o valor do distrate no prazo de noventa dias a contra da data desta escritura” – cf., facto 5. -, o que não cumpriu.
Por outro lado, o próprio direito de retenção, desde logo pela sua própria natureza, enquanto direito real de garantia limitado, não é equacionável na titularidade do proprietário do bem sobre o qual recai, pois, não se olvide, retentor é aquele que está obrigado à entrega de certa coisa, não se constituindo, logicamente, tal obrigação relativamente ao titular do direito de propriedade sobre a mesma.

Por fim, tal como consta da sentença apelada, o ora Embargante não exerceu, como podia, o direito à expurgação da hipoteca, ou hipotecas, incidentes sobre a fracção de que titular e exclusivo proprietário.
Efectivamente, dispõe o artº. 721º, do Cód. Civil, que “aquele que adquiriu bens hipotecados, registou o título de aquisição e não é pessoalmente responsável pelo cumprimento das obrigações garantidas tem o direito de expurgar a hipoteca por qualquer dos modos seguintes:
a)- Pagando integralmente aos credores hipotecários as dívidas a que os bens estão hipotecados;
b)- Declarando que está pronto a entregar aos credores, para pagamento dos seus créditos, até à quantia pela qual obteve os bens, ou aquela em que os estima, quando a aquisição tenha sido feita por título gratuito ou não tenha havido fixação de preço”.

A expurgação configura-se como “o benefício que a lei concede ao adquirente de bens hipotecados de obter a extinção dos encargos anteriormente registados, quer satisfazendo integralmente os créditos garantidos, quer pagando o preço ou o valor dos bens hipotecados”---(21), ou seja, é a “faculdade reconhecida ao adquirente do imóvel onerado de eliminar (expurgar) a hipoteca, para que o imóvel fique nas suas mãos livre de encargos.
Não se trata de limpar ou expurgar a hipoteca, mas de limpar os bens imóveis da sujidade (do fardo ou encargo) que é a execução hipotecária”---(22).
Através do presente preceito, concede a lei ao adquirente “de bens hipotecados (que não seja responsável pelo cumprimento das obrigações garantidas) o direito de se libertar da hipoteca, obviamente sem prejuízo para o credor. É essa figura que se chama expurgação da hipoteca – sendo de notar que o que é expurgado (no sentido de limpo) são os bens objecto da hipoteca – não o direito de hipoteca”---(23) .
O presente normativo, supõe, assim, “que as hipotecas foram constituídas antes da transmissão dos bens e tem-se em vista facultar ao novo proprietário a possibilidade de se libertar dos encargos”, exigindo-se que “o adquirente não seja pessoalmente responsável pelo pagamento das obrigações contraídas”, bem como que “esteja registado o título de transmissão, para evitar que, registando-se outras hipotecas contra o antigo proprietário, tenha de recomeçar o processo de expurgação”---(24).
Acerca do formalismo processual, o vigente Código de Processo Civil não contém “regras especiais sobre a expurgação de hipotecas (que constavam dos arts. 998 e ss. Da última versão do CPC anterior), o que significa que o exercício judicial do direito de expurgação segue os meios comuns – o que levanta várias dúvidas, pois o regime da expurgação constante do CC parece assentar na existência num mesmo processo de aspetos declarativos e executivos”, sublinhando-se, todavia, que o artº. 723º, do Cód. Civil regula aspectos do exercício judicial do direito de expurgação---(25).

Ora, no caso concreto, o Embargante não exerceu (ainda) o direito de expurgação sobre as hipotecas registadas a favor da Embargada Exequente – C1 e C2 -, na decorrência do que sempre ficaria sub-rogado nos direitos da mesma credora Exequente, por força da sub-rogação legal equacionada no nº. 1, do artº. 592º, do Cód. Civil, ao dispor que “fora dos casos previstos nos artigos anteriores ou noutras disposições da lei, o terceiro que cumpre a obrigação só fica sub-rogado nos direitos do credor quando tiver garantido o cumprimento, ou quando, por outra causa, estiver directamente interessado na satisfação do crédito”.
Com efeito, de forma a prevenir a execução do crédito hipotecário, sempre se teria que considerar o ora Embargante como directamente interessado na satisfação do crédito, verificando-se este interesse directo “quando aquele que paga pode ser atingido na sua posição jurídica pelo incumprimento” -(26).
Efectivamente, situação tradutora do interesse directo do terceiro, em que este “visa evitar a perda ou limitação dum direito que lhe pertence”, consubstancia-se no “adquirente da coisa empenhada ou hipotecada, que cumpre pelo devedor, na mera intenção de prevenir a venda e adjudicação do penhor ou a execução do crédito hipotecário” (sublinhado nosso)---(27).

Por todo o exposto, igualmente no que ao presente segmento recursório concerne, o juízo é de não acolhimento dos argumentos do Recorrente/Apelante, o que determina total improcedência da presente apelação, e consequente confirmação da sentença recorrida/apelada.
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Nos quadros do artº. 527º, nºs. 1 e 2, do Cód. de Processo Civil, decaindo o Apelante Embargante, é o mesmo responsável pelo pagamento das custas da presente apelação.
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IV.–DECISÃO

Destarte e por todo o exposto, acordam os Juízes desta 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa em:
a)-Julgar totalmente improcedente o recurso de apelação interposto pelo Apelante/Executado/Embargante AL……, em que surge como Apelada/Embargada/Exequente CAIXA ECONÓMICA MONTEPIO GERAL ;
b)-Em consequência, confirma-se a sentença apelada ;
c)-Custas da presente apelação a cargo do Embargante/Apelante – cf., artº. 527º, nºs. 1 e 2, do Cód. de Processo Civil.

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Lisboa, 07 de Novembro de 2019


Arlindo Crua - Relator
António Moreira - 1º Adjunto
Carlos Gabriel Castelo Branco - 2ºAdjunto


(1)–A presente decisão é elaborada conforme a grafia anterior ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, salvaguardando-se, nas transcrições efectuadas, a grafia do texto original.
(2)–Relatora: Laurinda Gemas, Processo nº. 5585/15.4T8FNC-A.L1, no qual o ora Relator figurou como Adjunto.
(3)–Processo nº. 1660/14.0T8OER-E.L1.
(4)–Em idêntico sentido, citam-se ainda os acórdãos da Relação de Guimarães de 10-09-2015, no processo 639/13.4TTBRG.G1, e 11-07-2017, no processo n.º 5527/16.0T8GMR.G1, da Relação do Porto de 01-06-2017, no processo n.º 35/16.1T8AMT-A.P1, e do STJ de 13-07-2017, no processo 442/15.7T8PVZ.P1.S1, todos in www.dgsi.pt .
(5)–Relatora: Fernanda Isabel Pereira, Processo nº. 4111/13.4TBBRG.G1.S1, in www.dgsi.pt .
(6)–Previamente à revisão do Código de Processo Civil operada pelo DL nº. 329-A/95, de 12/12, era legalmente admissível um outro meio de oposição, que se traduzia no agravo do despacho de citação – cf., artº. 812º, da redacção então vigente -, sendo que presentemente o único meio de oposição legalmente consentido são os embargos de executado.
(7)–As disposições legais infra citadas, salvo expressa menção em contrário, reportam-se ao presente diploma, na vigente redacção, decorrente das alterações introduzidas pela Lei nº. 41/2013, de 26/06. Esta redacção é a aplicável à tramitação dos presentes embargos, deduzidos em 16/01/2014, tal como decorre do nº. 4, do artº. 6º, da referenciada Lei.
(8)–José Lebre de Freitas, A Acção Executiva à luz do código revisto, 2ª Edição, Coimbra Editora, 1997, pág. 141 e 157.
(9)–A Ação Executiva à luz do Código de Processo de 2013, 6ª Edição, Coimbra Editora,pág. 218 a 223.
(10)–Relatora: Maria Teresa Pardal, Processo nº. 10801/13.4YYLSB-A.L1-6, in www.dgsi.pt .
(11)–Relator: Pires da Rosa, Processo nº. 03B2831, in www.dgsi.pt .
(12)–Cf., ainda, acerca desta matéria, os doutos Acórdãos do STJ de 22/04/1997 – Relator: Fernandes Magalhães, Processo nº. 97A119 -, da RC de 22/01/2013 – Relator: Carlos Moreira, Processo nº. 2210/09.6TBLRA-C.C1 – e da RP de 23/10/2018 – Relator: José Carvalho, Processo nº. 3746/16.8T8LOU-A.P1 , todos in www.dgsi.pt .
(13)–Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2017, 4ª Edição, Almedina, pág. 109 e 110.
(14)–Citando o Acórdão do STJ de 01/10/2002, in CJSTJ, Tomo 3, pág. 65.
(15)–Mencionando o Ac. do STJ de 29/04/1998, in BMJ, nº. 476, pág. 401 ; ainda, Lebre de Freitas e Ribeiro Mendes, CPC anot., Vol. III, Tomo I, 2ª Edição, pág. 8.
(16)–Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, Almedina, 2018, pág. 265.
(17)–Relator: Henriques Antunes, Processo nº. 39/10.8TBMDA.C1.
(18)–Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lisboa, Lex, 1997, pág. 395.
(19)–Processo nº. 582/05.0TASTR.E1.S1 – 3.ª Secção, in www.dgsi.pt .
(20)–Seguimos, de perto, aresto desta Relação de 07/03/2019, Processo nº. 787/18.4T8OER.L1, do mesmo Relator e 1º Adjunto.
(21)–Rodrigues Bastos, Notas ao Código Civil, Vol. III, Lisboa, 1993, pág. 172.
(22)–Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. II, Almedina, 4ª Edição, pág. 546.
(23)–Rui Pinto Duarte, Código Civil Anotado, Coordenação de Ana Prata, Almedina, Vol. I, 2017, pág. 900.
(24)–Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. I, 4ª Edição Revista e Actualizada, Coimbra Editora, 1987, pág. 741.
(25)–Rui Pinto Duarte, ob. cit., pág. 901.
(26)– Rodrigues Bastos, ob. cit., pág. 61.
(27)–Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., pág. 608 ; cf., no mesmo sentido, Antunes Varela, ob. cit., pág. 333.