Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
35/16.1T8AMT-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FILIPE CAROÇO
Descritores: REAPRECIAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO INÚTIL
INSOLVÊNCIA QUALIFICADA DE FORTUITA
PRESUNÇÃO DE CULPA
FACTOS CONCRETOS
JUÍZOS CONCLUSIVOS
Nº do Documento: RP2017060135/16.1T8AMT-A.P1
Data do Acordão: 06/01/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTO N.º 98, FLS.23-34)
Área Temática: .
Sumário: I - A Relação não deve conhecer da impugnação da decisão em matéria de facto se a sua reapreciação se afigurar, de todo, inútil.
II - As várias alíneas do nº 2 do art.º 186º do CIRE configuram presunção de culpa iuris et de iure ou factos-índice que abrangem o próprio nexo causal entre a criação ou o agravamento do estado de insolvência em consequência da atuação do devedor ou dos seus administradores.
III - Para que funcionem, é necessária a sua invocação e prova --- a efetuar por aqueles a quem interessam --- dos factos concretos que as constituem.
IV - A matéria dada como provada e a matéria dada como não provada deve constar expurgada de factos ou juízos conclusivos que, a constarem, se consideram não escritos.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 35/16.1T8AMT-A.P1 (apelação)
Comarca do Porto Este - Juízo de Comércio de Amarante

Relator: Filipe Caroço
Adj. Desemb. Judite Pires
Adj. Desemb. Aristides de Almeida
Acordam no Tribunal da Relação do Porto
I.[1]
Na sequência da sentença que declarou insolvente a sociedade comercial B… LDA., o Administrador da Insolvência emitiu parecer para efeitos de qualificação da insolvência onde concluiu:
Assim nos termos do artigo 186º do CIRE o signatário dá parecer no sentido da insolvência ser qualificada como culposa, e afetando o gerente de direito Sr. C… e a gerente de facto D… por:
● Ter feito desaparecer parte substancial e considerável do património da insolvente - al, a) nº 2 artigo 186º do CIRE;
● Ter criado ou agravado artificialmente passivos ou prejuízos, ou reduzido lucros, causando, nomeadamente, a celebração pelo devedor de negócios ruinosos em seu proveito ou com pessoas com ele especialmente relacionadas - al. b) do nº 2 do artigo 186º do CIRE;
● Ter disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros - al. d) do nº 2 do artigo 186º do CIRE;
Ter praticado irregularidades na contabilidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor - al. h) do nº 2 do artigo 186º do CIRE”.
Também o Ministério Público se pronunciou no sentido de que a insolvência é culposa e indicou como afetados os gerentes de direito e de facto, C… e D…, respetivamente, considerando que se verificam as situações descritas no art.º 186º, nº 2, al.s a), b), d) e h). do CIRE[2].
A insolvente apresentou oposição, onde alegou que se apresentou à insolvência logo que constatou ser economicamente inviável por ter deixado de receber encomendas e, em consequência, ter havido vários períodos em que as funcionárias ficaram em casa sem trabalho, sendo isso do conhecimento do Administrador da Insolvência, tal como é do seu conhecimento que a insolvente não vendeu qualquer património e que as vendas por ele referidas respeitam a sucata cuja regularização contabilística impunha a sua retirada do mapa de imobilizado, sucata que ainda está nas instalações da insolvente, como estava quando o Administrador da Insolvência foi à sede da insolvente.
Mais referiu que entregou ao Administrador da Insolvência toda a documentação pedida e com ele colaborou em tudo o que foi solicitado.
Defendeu assim a qualificação da insolvência como fortuita, por falta de fundamentos que justifiquem a sua classificação como culposa.
O Sr. Administrador da Insolvência respondeu à oposição, alegando ser falsa a versão trazida ao processo pela insolvente, como provam as faturas da aquisição de equipamento até à data em que se apresentou à insolvência, o qual não foi encontrado nas instalações.
Foi proferido despacho de simplificação processual, com dispensa de audiência prévia.
Foi proferido despacho saneador tabelar, seguido de fixação do objeto do litígio e dos temas de prova.
Realizada a audiência final, em duas sessões, foi proferida sentença que culminou com o seguinte dispositivo, ipsis verbis:
«Em face do atrás exposto, decide-se julgar procedente, por provado, o incidente da qualificação e em consequência:
A. Qualifica-se como culposa a insolvência de B… LIMITADA
B. Consideram-se afectados pela qualificação culposa C… e D…
C. Fixa-se aos afetados C… e D… a sanção de inibição para o exercício do comércio e para ocupar qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa, prevista na alínea c) do n.º 2 do art.º 189º do CIRE, a qual, atendendo ao circunstancialismo apurado se fixa em quatro anos.
D. Determina-se a perda de quaisquer eventuais créditos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente detidos pelos C… e pela D… pela qualificação e a sua condenação na restituição dos bens ou direitos já recebidos em pagamento desses créditos.
E. Mais se condena os afectados C… e D… a indemnizarem os credores da devedora declarada insolvente no montante dos créditos não satisfeitos, até às forças dos respectivos patrimónios, sendo solidária tal responsabilidade entre os afectados.
F. Determina-se o registo nos termos e para os efeitos consignados no art. 189º, nº 3 do CIRE.
*
Custas pelos requeridos
Fixa-se o valor do incidente em €30.000,00».
*
Inconformados, recorreram a insolvente e os afetados D… e C…, produzindo alegações com as seguintes CONCLUSÕES:
«·As contradições na prova supra descritas encerram uma nulidade, a qual, desde já e expressamente, se argui, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 615º, nº 1 c) do C.P.C.
A Douta Sentença violou o art. 615º do C.P.C, violando, de igual modo, as alíneas a) e d) do nº 2 do art. 186º e o art. 189, ambos do CIRE.
No que concerne à matéria de facto, a decisão recorrida está manifestamente errada, tendo sido efectuada uma avaliação incorrecta dos meios de prova.
Foi produzida prova testemunhal e documental suficiente para que, em função da mesma, os factos dados como não provados devessem ser dados como provados, com claros reflexos na decisão final.
Verifica-se contradição entre factos dados como provados e a decisão proferida.
Pelo que a decisão relativa à matéria de facto carece de ser alterada, julgando-se, por um lado, provados os factos constantes dos pontos 8 e 9 dos factos não provados e, por outro, julgando não provados os factos constantes dos pontos G, H e I dos factos provados.
No que à matéria de direito diz respeito, verifica-se manifesto erro de interpretação e aplicação das alíneas a) e d) do nº 2 do art. 186º do CIRE, as quais deverão ter-se como não preenchidas.
Enfermando, por fim, de erro de interpretação e aplicação do art. 189º do CIRE.
Entendem os aqui Apelantes, que no que se refere ao pontos G, H e I dos factos dados como provados, suportados na prova testemunhal e documental, o Tribunal a quo julgou mal na interpretação e na valoração que fez dos mesmos nesta parte.
Entendem, de igual modo, os aqui Apelantes, que no que se refere ao pontos 8 e 9 dos factos dados como não provados, suportados na prova testemunhal e documental, o Tribunal a quo julgou mal na interpretação e na valoração que fez dos mesmos nesta parte.
Da errónea apreciação da prova produzida e gravada, resultaram erróneas decisões acerca da matéria de facto, com relevância para a decisão da causa, que deverá ser diversa da proferida pelo Tribunal a quo.
Na decisão, inequivocamente a Meritíssima Juiz a quo refere que as trabalhadoras confirmaram que nenhum bem desapareceu; que havia máquinas em estado de sucata numa parte das instalações; que os veículos da empresa sempre se mantiveram ao serviço da mesma sem qualquer alteração e que no dia do encerramento já não havia encomendas.
Resulta, de igual modo e claramente, das reclamações de créditos juntas aos autos que as trabalhadoras da Insolvente somente não receberam o salário relativo ao mês de Dezembro de 2015 (a pagar somente no dia 8 de Janeiro de 2016), encontrando-se, assim, pagos todos os salários e demais créditos laborais reportados ao tempo anterior.
Em consequência, jamais poderia ser dado como provado a parte do ponto I dos factos provados cuja redacção é “Aquando da celebração destes negócios, a gerência tinha conhecimento da situação de precaridade financeira, de incumprimento generalizado do pagamento de salários perante os seus trabalhadores”.
Pelo que se deve julgar como não provado a parte do ponto I supra citada e, consequentemente, eliminada dos factos provados.
Contradiz-se a Meritíssima Juiz a quo quando julga provado o facto constante do ponto G e o facto constante do ponto O dos factos provados.
Na verdade, resultou provado em audiência de julgamento que as vendas referidas em C e H consistiram apenas em regularizações contabilísticas, com vista a reportar com rigor a realidade patrimonial da sociedade.
Se tal resulta provado, numa clara e verdadeira alusão a que não existiram efectivas vendas de património (imobilizado) mas tão-somente a correcta descrição contabilística da sua efectiva inexistência no património real da Insolvente, jamais poderia dar-se como provado o facto constante do ponto G dos factos provados.
De facto, tratando-se de meras regularizações contabilísticas, tais vendas não prejudicaram quaisquer credores da sociedade (no caso somente as trabalhadoras) na medida em que o valor atribuído a cada item do imobilizado foi insignificante.
Aliás, atento os factos contantes dos pontos M e N dos factos provados, dúvidas não subsistem que as vendas em apreço foram inexistentes na realidade, uma vez que nada foi retirado e as instalações fabris encontravam-se totalmente apetrechadas para a actividade, tal como no último dia de trabalho ali ocorrido.
Pelo exposto, deve julgar-se como não provado o ponto G supra citado e, consequentemente, eliminado dos factos provados.
Também os pontos 8 e 9 dos factos não provados carecem de alteração, devendo os mesmos ser julgados como provados.
Como resultou do depoimento prestado pela testemunha E…, registado no Habilus Média Studio, sessão de 12.01.2017, ao minuto 10.06 e do depoimento prestado pela testemunha F… (encarregado de venda e autor do auto de arrolamento), registado no Habilus Média Studio, sessão de 12.01.2017, ao minuto 02.38, o veículo Renault encontrava-se imobilizado e inoperacional, constituindo sucata, apesar de ainda se encontrar na posse da Insolvente, sendo que os restantes também se encontravam nas instalações da empresa e o património arrolado estava em conformidade com o mapa de amortizações junto aos autos.
Jamais os factos contantes dos pontos 8 e 9 dos factos não provados assim o deveriam ser julgados.
Deveria ter sido julgado como provado que os bens vendidos se encontravam nas instalações da Insolvente, tendo disso sido informado o encarregado de venda.
Assim como deveria ter sido julgado como provado que as vendas referidas em C e H dizem respeito a material em estadio de sucata, cuja regularização contabilística impunha a sua retirada do respectivo mapa de imobilizado.
Pelo exposto, deve julgar-se como provado os pontos 8 e 9 supra citado e, consequentemente, eliminado dos factos não provados.
As contradições supra descritas encerram uma nulidade, a qual, desde já e expressamente, se argui, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 615º, nº 1 c) do C.P.C..
Verifica-se manifesto erro de interpretação e aplicação das alíneas a) e d) do nº 2 do art. 186º do CIRE, as quais deverão ter-se como não preenchidas.
A interpretação das alíneas a) e d) não suscita grandes dúvidas. No entanto, deve referir-se em relação à primeira que, tal como assinalado no Acórdão da Relação de Coimbra de 28.05.2013, proc. 102/12.0TBFAG-B.C1, in www.dgsi.pt, «a ocultação … deve abranger casos … em que o bem é vendido a um terceiro, podendo, inclusive, este revendê-lo, e assim sucessivamente. Tal alienação, retirando os bens da esfera jurídica do devedor, implica um descaminho que pode impedir, ou, pelo menos - o que é o bastante para satisfazer a ratio legis -, dificultar, o seu acesso e o seu accionamento por parte do credor. A lei não exige a ocultação total no sentido de se tornar impossível o seu acesso ou conhecimento, mas apenas parcial no sentido de vontade, concretizada, de subtrair o bem ao direito/conhecimento do credor e respectiva acção legal, pelo que, e precisamente por isso, não exige ocultação no sentido físico, mas apenas no aspecto da situação jurídica do bem. Aliás concomitantemente à ocultação a lei prevê o desaparecimento, o qual se revela um mais, no sentido da gravidade do descaminho….».
No que concerne à previsão da alínea d), o proveito pessoal ou de terceiros compreende todas as situações em que os bens da sociedade insolvente são colocados à disposição do administrador ou de terceiros, ou seja, a previsão legal é preenchida não apenas quando por negócio jurídico a titularidade do direito sobre os bens da insolvente é transferida para o administrador ou para terceiros, mas também quando independentemente disso é consentido a estes que usem os bens, que deles retirem proveito e utilidade em benefício próprio e sem qualquer retorno para a insolvente e esta fica, na prática, numa situação equivalente à de não ser proprietária desses bens ou de não ter qualquer direito de gozo dos mesmos.
Na decisão recorrida entendeu-se que a alínea a) está preenchida pela actuação relativa ao desconhecimento do paradeiro do equipamento adquirido em 2015, reforçado pela insistente menção da Meritíssima Juiz a quo quanto à existência e real paradeiro de quatro cadeiras.
Como referido supra na impugnação da matéria de facto, da documentação junta aos autos e da prova testemunhal, resultou provado que os bens adquiridos em 2015 se encontravam facturados e faziam parte do mapa de imobilizado/amortizações.
Todos os bens adquiridos em 2015 se encontravam nas instalações da Insolvente, tendo confirmado a sua existência por comparação com o mapa de amortizações junto aos autos.
Basta consultar o auto de arrolamento para se verificar que as mesmas foram arroladas e posteriormente vendidas em liquidação.
Compulsada a verba 23 do auto de arrolamento, logo se verifica a menção a tais cadeiras.
Assim, contrariamente ao referido na Decisão de que se recorre, não existiu um esvaziamento de património de bens da Insolvente que é relevante face aos bens apreendidos.
Como provado, a empresa estava em totais condições para trabalhar, não faltando qualquer máquina.
O veículo Fiat … é do ano 2005, tendo um valor de mercado actual de cerca de 1.500€.
Da matéria de facto provada resulta que as vendas consistiram apenas em regularizações contabilísticas, mantendo a empresa a sua total operacionalidade.
Deste modo, não é possível considerar preenchida a alínea a) do n.º 2 do artigo 186.º, a qual exige que os bens objecto de destruição, danificação, inutilização, ocultação ou extravio por parte dos administradores seja todo ou parte considerável do património do devedor.
Considerando que a previsão da alínea a) exige que o património dissipado tenha relevo económico no conjunto do património da devedora, subsistindo essas dúvidas é impossível qualificar a insolvência como culposa com fundamento na citada norma legal.
Cremos que no caso concreto o mesmo deve ser afirmado em relação à previsão da alínea d).
É certo que na descrição da situação nela prevista - terem disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros – não se faz qualquer referência à importância económica dos bens objecto dessa actuação e à necessidade de o seu relevo patrimonial ser significativo – ao contrário da alínea a) –. Isso é assim porque, cremos, a preocupação subjacente à previsão legal já não é directamente a preservação do património da devedora (indirectamente sim), mas antes evitar que esse património que deverá ser afecto à satisfação dos credores redunde afinal em benefício ilegítimo dos próprios administradores ou de terceiros.
Todavia, julgamos que em qualquer circunstância esses bens têm de ter algum relevo económico, não nos parecendo conforme à ordem jurídica qualificar uma insolvência como culposa e imputar aos gerentes as consequências dessa qualificação apenas porque um dos administradores ou um terceiro se apropriou de um bem da insolvente de escasso valor económico, cujo interesse para o funcionamento da devedora nas condições existentes à data não fosse significativo.
Com efeito, é necessário não esquecer que a qualificação da insolvência como culposa não implica renúncia nem prejudica o accionamento pelo administrador de insolvência dos mecanismos jurídicos de tutela dos interesses dos credores, designadamente a resolução em benefício da massa insolvente.
Por isso, ignorando-se os valores dos bens entregues aos gerentes, sabendo-se que nessa altura a Insolvente já tinha a sua actividade intermitente e, portanto, não seriam esses bens a impedir a situação de insolvência, sendo possível a resolução em benefício da massa insolvente da disposição desses bens e sendo o terceiro beneficiado - como é referido na motivação da Meritíssima Juiz a quo - uma pessoa que contribuiu durante algum tempo para a Insolvente conseguir cumprir negócios que de outra forma iria incumprir, a situação provada nos autos não permite qualificar a insolvência como culposa ao abrigo do disposto na alínea d) do n.º 2 do artigo 186.º do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas.
Por todo o exposto, no que à matéria de direito diz respeito, verifica-se manifesto erro de interpretação e aplicação das alíneas a) e d) do nº 2 do art. 186º do CIRE, as quais deverão ter-se como não preenchidas.
Enfermando, por fim, de erro de interpretação e aplicação do art. 189º do CIRE.
Deve, por isso, a decisão de que ora se recorre ser revogada.» (sic)
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O Ministério Público respondeu em contra-alegações que sintetizou assim:
«1. Os factos dados como provados e não provados na sentença recorrida resultam claramente da prova produzida nos autos; e
2. A Mma juíza valorou de forma adequada a prova produzida e aplicou correctamente o direito aos factos provados, pelo que a decisão recorrida não violou quaisquer normas legais, não merecendo qualquer reparo.
Face ao exposto, deve improceder o presente recurso e ser mantida a sentença recorrida.» (sic)
Por despacho de 27.4.2017, o tribunal conheceu da nulidade invocada pelos recorrentes, concluindo pela sua não verificação, e admitiu o recurso.
*
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
*
II.
O objeto do recurso está delimitado pelas conclusões da apelação, acima transcritas, exceção feita para o que for do conhecimento oficioso (cf. art.ºs 608º, nº 2, 635º e 639º do Código de Processo Civil, aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26 de junho).
Com efeito, estão para apreciar e decidir as seguintes questões:
1 - Erro de julgamento em matéria de facto e nulidade da decisão por contradição nos factos provados.
2 - Erro de interpretação e aplicação das al.s a) e d) do nº 2 do art.º 186º e do art.º 189º do CIRE.
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III.
São os seguintes os factos considerados provados na 1ª instância[3]:
A. Nas suas funções de Administrador Insolvência, o signatário solicitou à T,O.C. – Técnica Oficial de Contas, atualmente Contabilista Certificado, da B… Lda., Dra. G… com domicílio profissional sito Rua …, no …, …. - … … a contabilidade completa da sociedade comercial e outros documentos conexos com a sua actividade.
B. A T.O.C. da B… Lda. forneceu os seguintes elementos financeiros
● Modelo 22 exercícios de 2012, 201.3 e 2014
● IES exercícios de 2012,2013 e 2104
● Balanço de Resultados e anexos
● Relatório de Gestão relativo aos exercícios de 2012, 2013 e 2014
● F enviadas à S Social relativas ao ano de 2015
● Lista imobilizado a 31 de Dezembro de 2015 e 31 de Dezde2014
● Balancete analítico a 3 I de Dezembro de 2015 e 2014 (após encerramento)
C. Da análise dos documentos supra referidos o AI tomou conhecimento que a ora insolvente vendeu em 1.12. 2015, ativo fixo tangível a D…, residente rua … …, …. - …, com o número de contribuinte … … ….
D. D… foi ex-sócia[4] e gerente de direito da sociedade até 2011 sendo à data da transmissão dos referidos ativos, mulher do actual gerente Sr. C… e gerente de facto da sociedade.
E. D… comportava-se como gerente de facto na medida em que dirigia operacionalmente a unidade fabril, contratava e despedia pessoas, angariava as encomendas, contratualizava com os clientes e efetuava os pagamentos.
F. C… e a sua mulher Sra. D… a assinaram as referidas vendas e participaram ativamente na estratégia de encerramento planeado da sociedade.
G. Esta venda prejudicou os credores da sociedade na medida em que o valor atribuído a cada item do imobilizado foi insignificante.
H. Foram ainda efetuadas vendas referentes a 3 viaturas cujo pagamento não foi possível identificar na contabilidade.
I. Aquando da celebração destes negócios, a gerência tinha conhecimento da situação de precariedade financeira, de incumprimento generalizado do pagamento de salários perante os seus trabalhadores e, por conseguinte, da sua situação de insolvência;
J. Toda a faturação do mês de Dezembro foi recebida a pronto.
K. O Sr. Administrador de Insolvência sabe que, por inúmeros períodos próximos ao pedido de declaração de insolvência, as funcionárias permaneceram sem trabalhar durante vários dias.
L. A insolvente não ocultou quaisquer factos ou documentos ao Sr. Administrador de Insolvência, demonstrando da realidade da empresa e explicitando cabalmente toda a situação concreta do seu património.
M. Franqueou as suas portas para efeitos da apreensão de bens, tendo o encarregado de venda constatado que nada havia sido retirado.
N. Encontrando-se as instalações fabris totalmente apetrechadas para a actividade, tal como no último dia de trabalho ali ocorrido.
O. Que as vendas referidas em C e H consistiram apenas em regularizações contabilísticas, com vista a reportar com rigor a realidade patrimonial da sociedade.
P. A insolvente não tem dívidas, nem à Segurança Social nem à Autoridade Tributária, visto que os montantes relativos ao IVA e Segurança Social retidos e reportados ao mês de Dezembro (último mês de laboração) foram pagos pela insolvente antes de se apresentar à insolvência.
Q. Tais pagamentos reportam-se a data anterior à declaração de insolvência.

O tribunal considerou não provada a seguinte matéria:[5]
1. Que D… era trabalhadora reclamante de créditos.
2. A conta clientes apresenta regularizações sem documento de suporte idóneo.
3. Que após a data da declaração de insolvência, utilizaram o valor existente em depósitos bancários para pagamento de dívidas ao Estado e à Segurança Social.
4. Que a facturação de Dezembro serviu para antecipar liquidação de todos os financiamentos bancários existentes à data da insolvência.
5. Que a insolvente se apresentou à insolvência logo que constatou que se demonstrava economicamente inviável a continuação da sua actividade, atento o facto de não lograr obter encomendas e, consequentemente, rendimentos suficientes para o pagamento dos seus compromissos.
6. Que a situação descrita em L. foi por ausência de encomendas.
7. Que resultou da reunião que o Sr. Administrador de Insolvência realizou com as trabalhadoras, o conhecimento deste que o volume de trabalho era insuficiente para gerar lucros.
8. Que os bens vendidos se encontram nas instalações da Insolvente, tendo disso sido informado o encarregado de venda.
9. Que as vendas referidas em C. e H. dizem respeito a material em estado de sucata, cuja regularização contabilística impunha a sua retirada do respectivo mapa de imobilizado.
10. Que D… por motivos de saúde se tenha retirado da actividade empresarial.
11. Que a insolvente efectuou o pagamento referido em Q. por ser uma obrigação tributária e por tratar-se de matéria de incidência criminal se houvesse incumprimento.
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Apreciação das questões do recurso
1 - Erro de julgamento em matéria de facto
Os recorrentes preconizam a modificação da decisão em matéria de facto no que concerne aos pontos G, H e I dos factos provados e aos pontos 8 e 9 da matéria dada como não provada.
Ponto G: Esta venda prejudicou os credores da sociedade na medida em que o valor atribuído a cada item do imobilizado foi insignificante.
Ponto H: Foram ainda efetuadas vendas referentes a 3 viaturas cujo pagamento não foi possível identificar na contabilidade.
Os recorrentes pretendem que estes pontos sejam dados como não provados.
Ponto I: Aquando da celebração destes negócios, a gerência tinha conhecimento da situação de precariedade financeira, de incumprimento generalizado do pagamento de salários perante os seus trabalhadores e, por conseguinte, da sua situação de insolvência.
Os recorrentes consideram que não se provou a primeira parte deste ponto, até “(…) perante os seus trabalhadores…”.
Ponto 8: Que os bens vendidos se encontram nas instalações da insolvente, tendo disso sido informado o encarregado de venda.
Ponto 9: Que as vendas referidas em C. e H. dizem respeito a material em estado de sucata, cuja regularização contabilística impunha a sua retirada do respetivo mapa de imobilizado.
Os apelantes argumentam que estes factos devem ser dados como provados.
Invocam, nesta sede, também a nulidade prevista na al. c) do nº 1 do art.º 615º do Código de Processo Civil, por considerarem que há contradição na sentença quando se julga provado o facto constante do ponto G e o facto constante do ponto O dos factos provados.
Os apelantes indicam os meios de prova em que fazem assentar a sua convicção e as passagens (que transcrevem) da gravação dos depoimentos que consideram relevantes, das testemunhas E… e F….
Foi, deste modo, dado cumprimento ao ónus de impugnação a que se refere o art.º 640º, nº 1, al.s a), b) e c) e nº 2, al. a), do Código de Processo Civil.
Importaria verificar se o tribunal a quo deveria ter fixado de modo diferente a matéria de facto impugnada (art.º 662º, nº 1, do Código de Processo Civil), tal como agora indicam os recorrentes, em seu favor, fazendo funcionar a regra do duplo grau de jurisdição em matéria de facto, sendo que a Relação é um tribunal de (2ª) instância.
Porém, tem vindo a entender-se que não há lugar à reapreciação da matéria de facto quando o facto concreto objeto da impugnação não for suscetível de ter relevância jurídica face às circunstância próprias do caso em apreciação, sob pena de se levar a cabo uma atividade processual que se sabe, de antemão, ser inconsequente e contrária aos princípios da celeridade e da economia processual consagrados nos art.ºs 2º, nº 1, 130º e 131º do Código de Processo Civil. Se o facto impugnado não for, segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito[6], influente na decisão a proferir, a apreciação da impugnação é inócua e inútil.[7]
Já no anterior Código de Processo Civil, na análise do respetivo art.º 646º, nº 4, se defendia que a falta de referência da norma a “expressões conclusivas” não obstava a que o respetivo regime, para as questões de Direito, se aplicasse por analogia, uma vez que o tribunal só devia pronunciar-se sobre matéria de facto ao responder aos quesitos que então compunham a denominada base instrutória.[8] A consequência era considerar não escrita a resposta conclusiva.
Este entendimento articulava-se harmoniosamente com o que se dispunha no artº 511º, nºs 1 e 2, daquele código, de onde emerge que à base instrutória só são levados factos.[9]
Tem-se entendido que, na vigência do novo Código de Processo Civil, a inclusão na fundamentação de facto da sentença de matéria de direito ou matéria conclusiva determina uma deficiência na decisão da matéria de facto, por excesso, vício passível de ser oficiosamente conhecido em segunda instância, nos termos previstos na al. c) do n° 2 do art.º 662° do Código de Processo Civil.[10]
Como se extrai do acórdão de 22.9.2014[11], as partes continuam oneradas à alegação dos factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as exceções deduzidas (art.º 5°, n° 1, do Código de Processo Civil), estando o tribunal limitado na sua atividade por tal factualidade essencial e apenas podendo considerar, além dela, a factualidade instrumental, os factos complementares ou concretizadores que resultem da instrução da causa e desde que sobre os mesmos as partes tenham tido a oportunidade de tomar posição, os factos notórios e os factos de que o tribunal tem conhecimento por força do exercício das suas funções (nº 2 do mesmo art.º 5º). E acrescenta-se ali: «Ao contrário do que por vezes se vê apregoado, a tanto quanto possível separação rigorosa da matéria de facto e de direito não é tributária de uma postura formalista e arcaica, antes é uma decorrência indeclinável de “qualidade” e genuinidade na instrução da causa. De facto, se não houver rigor na delimitação destes campos, as testemunhas serão chamadas a emitir juízos de valor, inclusive de ordem legal, procedendo assim a uma verdadeira usurpação de funções consentida, porquanto, assim actuando, demitir-se-á o julgador da função que lhe é própria, transferindo-a, à margem da lei, para as diversas entidades operantes em sede de instrução».
O juízo de provado ou não provado apenas pode recair sobre factos.
Com efeito, a matéria conclusiva deve ser retirada dos “factos provados”.
Matéria conclusiva são as conclusões de facto, os juízos de valor, em si não jurídicos, emitidos a partir dos factos provados e exprimindo, designadamente, as relações de compatibilidade que entre eles se estabelecem, de acordo, com as regras da experiência”.[12]
São factos “as ocorrências concretas da vida real”[13], isto é, os “fenómenos da natureza, ou manifestações concretas dos seres vivos, nomeadamente os actos e factos dos homens”.[14]
Portanto, se um quesito (ou, quando não é elaborada base instrutória, um artigo dos articulados) é constituído por expressões conclusivas, o tribunal não lhe deve responder, à semelhança do que faz nos casos em que está perante questões de direito.
Se lhe for dada resposta, terá, então, que se considerar esta como não escrita. Por maioria de razão, o tribunal nunca pode introduzir expressões conclusivas nas respostas que der à matéria de facto.
Feita esta abordagem, vejamos porque é que a matéria de facto não deve, no caso, ser reapreciada. Para tal, é indispensável entrar na análise da matéria de Direito, ou seja, na segunda questão da apelação, como se segue.

2. Erro de interpretação e aplicação das al.s a) e d) do nº 2 do art.º 186º e do art.º 189º do CIRE.
Considerando o âmbito da delimitação da apelação, dispõe o art.º 186º do CIRE:
«1– A insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.
2 – Considera-se sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham:
a) Destruído, danificado, inutilizado, ocultado, ou feito desaparecer, no todo ou em parte considerável, o património do devedor;
(…)
d) Disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros;
(…)».
A questão é, na sua essência, qualificar a insolvência como fortuita ou culposa pelos referidos dois fundamentou ou algum deles.
A abordagem da questão sai facilitada com uma breve análise dos pressupostos da qualificação da insolvência.
Como ensinam Carvalho Fernandes e João Labareda[15], é por força da sentença de declaração de insolvência que se abre o incidente pleno (art.º 36º, al. i), do CIRE), sendo que o alcance deste primeiro momento do incidente é o de conceder a qualquer interessado a faculdade de, no incidente, alegar os factos que relevem para a qualificação da insolvência como culposa.
O incidente de qualificação da insolvência é novo relativamente ao anterior CPEREF que foi revogado pelo CIRE (art.º 10º do decreto-lei nº 53/04, de 18 de março) e de cujos termos preambulares resulta que este incidente é aberto oficiosamente em todos os processos de insolvência, qualquer que seja o sujeito passivo, e não deixa de realizar-se mesmo em caso de encerramento do processo por insuficiência da massa insolvente, para além de que tanto se pode reportar ao devedor, como aos administradores, quando existam, sejam eles de Direito ou de facto.
Na definição do nº 1 do art.º 186º do CIRE, a insolvência é culposa quando tiver sido criada ou agravada em consequência da atuação dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de Direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência. Assim, para a qualificação da insolvência como culposa, exige-se não apenas uma conduta dolosa ou com culpa grave do devedor e seus administradores, mas também um nexo de causalidade entre essa conduta e a situação de insolvência, consistente na contribuição desse comportamento para a criação ou agravamento da situação de insolvência. A contrario, a insolvência será considerada fortuita sempre que não se verifique essa situação.
O acórdão da Relação do Porto de 12.10.2012[16] é lapidar na análise da culpa, ao referir que “o que se qualifica é o comportamento do devedor na produção ou agravamento do estado de insolvência, de modo a que se averigue se existe, à luz da teoria da causalidade adequada, um nexo de causalidade entre os factos por si cometidos ou omitidos e a situação de insolvência ou o seu agravamento, e o nexo de imputação dessa situação à conduta do devedor, estabelecido a título de dolo ou culpa grave. Dolo que, enquanto conhecimento e vontade de realização do facto em causa, pode revestir-se das modalidades de directo, necessário e eventual. Culpa, (stricto sensu) quando o autor prevê como possível a produção do resultado, mas por leviandade, precipitação, desleixo ou incúria crê na sua não verificação e não toma as providências necessárias para o evitar. Este é o recorte da culpa consciente, já que na culpa inconsciente se enquadram as situações em que o agente, por imprevidência, descuido, imperícia ou inaptidão, não chega sequer a conceber a possibilidade do facto se verificar, podendo e devendo prevê-lo e evitar a sua verificação, se usasse da diligência devida. Estes os termos em que devem ser entendidas estas noções usadas pelo CIRE (artigo 186º, 1). Nada dispondo em particular sobre essa matéria, tais conceitos devem ser entendidos nos termos gerais do Direito. E, por isso, também repescada a tese da culpa em abstracto consagrada no Código Civil, apreciada pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso (artigo 487º, 2). A norma exige, no entanto, a culpa grave, traduzida em não fazer o que faz a generalidade das pessoas, em não observar os cuidados que todos, em princípio, observam, contraposta à culpa leve, vertida na omissão da diligência normal, e à culpa levíssima, correspondente à omissão de cuidados especiais que só as pessoas mais prudentes e escrupulosas observam.”
Quanto à determinação da pessoa afetada pela qualificação, cada agente tem uma atuação que merece ou não ser objeto de pronunciamento neste tipo de incidente, misto de civil e sancionatório, tendo-se em vista atuações pessoais, comportamentos pessoais, atos pessoais realizados à frente da empresa, venham eles de administradores ou gerentes de facto ou de administradores ou gerente de direito.
Segundo o nº 2 do citado art.º 186º, a insolvência do devedor que não seja pessoa singular considera-se sempre culposa verificadas que sejam determinadas condutas dos seus administradores de direito ou de facto, ali elencadas sob as al.s a) a i).
Tem sido entendido pela maioria da doutrina e da jurisprudência que aquele nº 2 estabelece presunções de culpa iuris et de iure (“considera-se sempre”), de efeito automático e inexorável, não admitindo prova em contrário. Como tal, conduzem, necessariamente, os comportamentos aí referidos à qualificação da insolvência como culposa[17]. Ainda que nesta matéria possam surgir dúvidas quanto a algumas das referidas alíneas do nº 2[18], a jurisprudência vem entendendo de modo uniforme que, pelo menos na maior parte das situações ali previstas, a presunção de culpa inclui o nexo causal entre a criação ou o agravamento do estado de insolvência em consequência de atuação dolosa ou com culpa grave do devedor ou dos seus administradores[19]. É, aliás, o que resulta da interpretação conjugada com o nº 1 do mesmo artigo.
A este propósito, elevando uma posição algo diversa, mas numa perspetiva sobretudo teórica (não tanto no efeito prático), refere-se no recente acórdão desta Relação de 7.12.2016[20], citando o acórdão desta mesma Relação de 15.7.2009[21]: “A generalidade da doutrina [o relator refere-se a Carvalho Fernandes e João Labareda, “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, Anotado”, Vol. II, pág. 14; Menezes Leitão, “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, Anotado”, pág. 175, 2ª edição; e Carneiro da Frada, “A Responsabilidade dos Administradores na Insolvência”, in Estudos Jurídicos e Económicos em Homenagem ao Prof. Doutor António Sousa Franco, Vol. II, pág. 963] considera que as várias alíneas do n.º 2 constituem presunções legais jure et jure, isto é, inilidíveis, conducentes à qualificação da insolvência como culposa. Apesar disso, e partindo do conceito de presunção legal desenhado no artigo 349º do Código Civil, inclinamo-nos mais para o entendimento de que essas alíneas integram factos-índice ou tipos secundários de insolvência culposa. No acórdão do Tribunal Constitucional de 26.11.2008 [in DR, 2ª Série, n.º 9, de 14.01.2009], escreveu-se a este propósito: «… é duvidoso que na previsão do artigo 186º do CIRE se instituam verdadeiras presunções. Na verdade, o que o legislador faz corresponder à prova da ocorrência de determinados factos não é a ilação de que um outro facto (fenómeno ou acontecimento da realidade empírico-sensível) ocorreu, mas a valoração normativa da conduta que esses factos integram. Neste sentido, mais do que perante presunções inilidíveis, estaríamos perante a enunciação legal … de situações típicas de insolvência culposa». De todo o modo, sejam presunções ou factos-índice, o legislador prescinde de uma autónoma apreciação judicial acerca da existência de culpa. Provada qualquer uma das situações enunciadas nas citadas alíneas, estabelece-se de forma automática o juízo normativo de culpa do administrador, sem necessidade de demonstração do nexo causal entre a omissão dos deveres constantes das diversas alíneas do n.º 2 e a situação de insolvência ou o seu agravamento.
(…)
Prossegue-se ali na análise da diferença das presunções, iuris tantum, a que se refere o subsequente nº 3 do mesmo preceito legal (que aqui não interessa apreciar) e conclui-se que “a opção por esta técnica jurídica justifica-se pela necessidade de garantir uma maior «eficiência da ordem jurídica na responsabilização dos administradores por condutas censuráveis que originaram ou agravaram insolvências», para além disso favorece a previsibilidade e a rapidez da apreciação judicial dos comportamentos.”
E remata-se no acórdão de 7.12.2016, com toda a clareza: “Podemos pois assentar no seguinte: para que a insolvência possa ser qualificada como culposa é necessário que a actuação do devedor tenha sido causa da situação de insolvência ou do seu agravamento, uma vez que o devedor pode ter actuado dolosamente mas em nada ter contribuído para a criação ou agravamento da insolvência. Todavia, verificada uma das situações do n.º 2 do artigo 186.º presume-se iuris et de iure a verificação desses requisitos e a insolvência não pode deixar de ser qualificada como culposa. Já se apenas estiver verificada uma das situações previstas no nº 3, para a insolvência ser declarada culposa é necessário que se demonstre que a actuação com culpa grave criou ou agravou a situação de insolvência, presumindo-se a culpa grave mas facultando-se ao insolvente a faculdade de ilidir essa presunção iuris tantum.
(…)
A interpretação das alíneas a) e d) não suscita grandes dúvidas. No entanto, deve referir-se em relação à primeira que, tal como assinalado no Acórdão da Relação de Coimbra de 28.05.2013, proc. 102/12.0TBFAG-B.C1, in www.dgsi.pt, «a ocultação … deve abranger casos … em que o bem é vendido a um terceiro, podendo, inclusive, este revendê-lo, e assim sucessivamente. Tal alienação, retirando os bens da esfera jurídica do devedor, implica um descaminho que pode impedir, ou, pelo menos - o que é o bastante para satisfazer a ratio legis -, dificultar, o seu acesso e o seu accionamento por parte do credor. A lei não exige a ocultação total no sentido de se tornar impossível o seu acesso ou conhecimento, mas apenas parcial no sentido de vontade, concretizada, de subtrair o bem ao direito/conhecimento do credor e respectiva acção legal, pelo que, e precisamente por isso, não exige ocultação no sentido físico, mas apenas no aspecto da situação jurídica do bem. Aliás concomitantemente à ocultação a lei prevê o desaparecimento, o qual se revela um mais, no sentido da gravidade do descaminho….». No que concerne à previsão da alínea d), o proveito pessoal ou de terceiros compreende todas as situações em que os bens da sociedade insolvente são colocados à disposição do administrador ou de terceiros, ou seja, a previsão legal é preenchida não apenas quando por negócio jurídico a titularidade do direito sobre os bens da insolvente é transferida para o administrador ou para terceiros, mas também quando independentemente disso é consentido a estes que usem os bens, que deles retirem proveito e utilidade em benefício próprio e sem qualquer retorno para a insolvente e esta fica, na prática, numa situação equivalente à de não ser proprietária desses bens ou de não ter qualquer direito de gozo dos mesmos.
Feita esta análise jurídica, é tempo de retomarmos a observação da decisão em matéria de facto, justamente para completar o que dela decorre: que na parte impugnada por esta via de recurso, não se contém mais do que matéria conclusiva (ponto G.) e que, o que o não é, é insuficiente à declaração da qualificação a insolvência como culposa.
Da al G) consta que “a venda prejudicou os credores da sociedade na medida em que o valor atribuído a cada item do imobilizado foi insignificante”.
Para além de não ter sido dado como provado o valor atribuído a cada item do imobilizado, nem sequer o valor total, o termo insignificante encerra claramente um conceito indeterminado que, por si, não pode constituir matéria de facto nem ser objeto de prova. Impunha-se a devida decomposição factual. Aquela é uma conclusão que o tribunal deveria tirar, se fosse o caso, na aplicação do Direito, em função de realidades concretas que, para tal, tivessem sido consideradas assentes.
Mesmo que acolhêssemos agora o que resulta das faturas juntas com o parecer do Administrador Judicial, nem por isso se poderia afirmar que o valor atribuído a cada um dos bens ali descritos não representa o valor real e de mercado desse mesmo bem. Do facto de ter sido dado como não provado que as vendas referidas em C. e H. dizem respeito a material em estado de sucata, não se segue que não eram sucata, nem que aqueles não eram os valores reais dos bens, sendo que a prova dos fundamentos das presunções ou factos-índice (se assim se preferir), ou seja, dos comportamentos ali referidos, é de quem os invoca (art.º 342º, nº 1, do Código Civil). Tais fundamentos não se presumem; o que se presume é a culpa na insolvência e o nexo causal --- conforme acima exposto --- a partir da prévia demonstração dos factos-índice. Sem a prova destes, a presunção (iuris et de iure) não funciona.
Não bastaria a conclusão de que o preço da venda de bens a D… era insignificante. Seria necessário também que tal preço não se concretizou em pagamento, ficasse aquém do valor real e de mercado dos bens vendidos ou qualquer outro facto que determinasse que tal negócio prejudicou (e de modo considerável) o património da sociedade e, por efeito, o interesse dos seus credores.
Do facto de não ter sido identificado na contabilidade da devedora o pagamento de três viaturas vendidas não se segue necessariamente que não foram pagas e que o preço não entrou na empresa. O pagamento, ou a falta dele, e o destino do preço é um facto que carecia de prova. Pode até não ter sido efetuado, estar em dívida e ter sido praticado um valor vantajoso para a sociedade.
Ainda que a gerência tivesse conhecimento da situação de precariedade financeira da empresa, de incumprimento generalizado do pagamento de salários aos seus trabalhadores (ponto I. dos factos dados como provados) quando, em 1.12.2005, a insolvente vendeu ativo fixo tangível à sua gerente de facto, D…, nem por isso se pode ter como minimamente seguro que houve ocultação ou desaparecimento de “parte considerável do património do devedor”.
Também não há base factual provada que permita concluir pela existência de uma disposição de bens em proveito pessoal da D…. Para o efeito, não basta que tenha adquiridos bens da sociedade. Se assim fosse, a sociedade nada podia vender, o que é manifestamente contrário ao exercício do comércio, e pode fazê-lo mesmo em situação de precariedade fianceira. Vender alguns bens do ativo nesta situação pode ser prejudicial para a o património social, mas também pode significar uma forma de resolver problemas que o afetam, dependendo de variáveis que escaparam aos factos dados como provados. Na al. d) do nº 2 do art.º 186º do CIRE está implícito um qualquer prejuízo que o ato cause à devedora sociedade; um proveito pessoal sem vantagem para o património social que a matéria dada como assente também não traduz.
E a verdade é que foi dado como provado que toda a faturação do mês de dezembro de 2015 foi recebida a tempo (ponto J.), que a insolvente não ocultou quaisquer factos ou documentos ao Sr. Administrador de Insolvência, antes demonstrou a realidade da empresa e explicitou cabalmente toda a situação concreta do seu património (ponto L.), assim como se encontravam as instalações fabris totalmente apetrechadas para a atividade, tal como no último dia de trabalho ali ocorrido (ponto N.).
Mais, o ponto O) revela expressamente “que as vendas referidas em C. e H. (aqui em causa) consistiram apenas em regularizações contabilísticas, com vista a reportar com rigor a realidade patrimonial da sociedade”.
Nesta situação e conjunto de circunstâncias de facto conhecidas e desconhecidas, em que, além do mais já referido, se considera não escrito o ponto G. dos factos provados, não é possível termos como preenchidos os factos exigidos nas al.s a) ou d) do nº 2 do art.º 186º do CIRE e presumir que a insolvência foi, no caso, culposa por ação dos seus gerentes de facto ou de Direito, D… e marido, C… e que, por ela, estes sejam afetado nesta sede de incidente de qualificação.
Tida por não escrito o ponto G. fica também prejudicada a apreciação da invocada contradição entre o teor desse ponto e o subsequente ponto O.
Nesta decorrência, pela falta de factos provados relevantes, a apelação procede, com a necessária revogação da sentença.
*
SUMÁRIO (art.º 663º, nº 7, do Código de Processo Civil):
1. A Relação não deve conhecer da impugnação da decisão em matéria de facto se a sua reapreciação se afigurar, de todo, inútil.
2. As várias alíneas do nº 2 do art.º 186º do CIRE configuram presunção de culpa iuris et de iure ou factos-índice que abrangem o próprio nexo causal entre a criação ou o agravamento do estado de insolvência em consequência da atuação do devedor ou dos seus administradores.
3. Para que funcionem, é necessária a sua invocação e prova --- a efetuar por aqueles a quem interessam --- dos factos concretos que as constituem.
4. A matéria dada como provada e a matéria dada como não provada deve constar expurgada de factos ou juízos conclusivos que, a constarem, se consideram não escritos.
*
IV.
Pelo exposto, acorda-se nesta Relação do Porto em julgar a apelação procedente e, em consequência, revoga-se a sentença recorrida, qualificando-se a insolvência da sociedade B…, Lda. como fortuita.
Custas da apelação e na 1ª instância pela massa insolvente.
*
Porto, 1 de junho de 2017
Filipe Caroço
Judite Pires
Aristides Rodrigues de Almeida
________
[1] Seguimos de perto o relatório da sentença recorrida, posto que espelha, com rigor e síntese os dados processuais em referência.
[2] Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
[3] Por transcrição.
[4] Terá querido escrever-se “(…) foi sócia (…)”.
[5] Por transcrição.
[6] Art.º 413º do Código de Processo Civil.
[7] Cf., nomeadamente, o acórdão da Relação de Coimbra de 24.4.2012, proc. 219/10.6T2VGS.C1, in www.dgsi.pt e os acórdãos da Relação de Guimarães de 4.3.2013, 5389/11.3TBBRG.G1, de 26.11.2013, proc. 1430/08.4TBGMR.G1, e de 16.1.2014 (nestes últimos, onde o aqui relator foi adjunto).
[8] Assim, Jorge Augusto Pais de Amaral, Direito Processual Civil, 8ª edição, Almedina, 2009, página 376.
[9] No mesmo sentido, vide o Acórdão do STJ de 30.11.2010, proc. 2192/06.6TVPRT.P1.S1, in www.dgsi.pt: Como dizia Castro Mendes, Direito Processual Civil, Vol. III, 1980, pág. 173, referindo-se à especificação e ao questionário, "só de factos portanto se compõe o seu conteúdo." E, como ensina Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Vol. III, 1950, páginas 206 a 222, aqui só têm lugar os "factos materiais" que constem "dos articulados", estejam "controvertidos", sejam "pertinentes à causa" e "indispensáveis à solução do pleito".
[10] Acórdão da Relação do Porto de 22 de setembro de 2014, Colectânea de Jurisprudência, T. IV, pág. 172.
[11] Citado na ota que antecede.
[12] Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto, Código de Processo Civil Anot., 2ª edição, vol. II, pág. 637. No mesmo sentido, vide os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 23.09.2009, proc. 238/06.7TTBGR.S1, de 09.12.2010, proc. 838/06.5TTMTS.P1.S1, de 19.04.2012, proc. 30/80.4TTLSB.L1.S1 e de 22.05.2012, proc. 5504/09.7TVLSB.L1.S1, todos in www.dgsi.pt.
[13] Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª edição, pág. 406. No mesmo sentido, vide Remédio Marques, Acção Declarativa à Luz do Código Revisto, Coimbra Editora, 2009, 2ª edição, páginas 525 e 526.
[14] Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Vol. III, 1950, página 209.
[15] Colectânea de Estudos sobre a Insolvência, Quid Juris, 2009, pág. 255, ponto 12.
[16] Proc. 243/09.1TJPRT-G.P1, in www.dgsi.pt.
[17] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 6.10.2011, proc. 46/07.8TBSVC-0.L1.S1, in www.dgsi.pt.
[18] Como é o caso das al.s h) e i), já que a referência a "incumprimento substancial" ou "reiterado" pressupõe a sua concretização em termos de facto que conduzam a essa conclusão. Daí que a inclusão de tais alíneas no nº 2 do art.º 186º do CIRE, seja objeto de críticas, na medida em que, não permitindo presumir com segurança o nexo de causalidade entre o facto e a insolvência, melhor seria a sua integração no nº 3 do referido normativo (cf. acórdão da Relação do Porto de 10.2.2011, proc. 1283/07.0TJPRT-AG.P1, in www.dgsi.pt).
[19] Acórdãos da Relação do Porto de 18.6.2007, de 3.3.2009 e de 25.11.2010, proc.s 0731779, 0827686 e 814/08.3TBVFR-F.P1, respetivamente, in www.dgsi.pt, e acórdãoS da Relação de Lisboa de 9.11.2010, proc. 168/07.5TBLNH-D.L1-7 E DE 17.1.2012, proc. 1023/07.4TBBNV-C.L1-7, publicado na mesma base de dados.
[20] Proc. 262/15.9T8AMT-D.P1, relatado pelo aqui Adjunto Aristide de Almeida.
[21] Proc. 725/06.7TYVNG-C.P1, in www.dgsi.pt.