Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
| ||
Relator: | LUÍS CORREIA DE MENDONÇA | ||
Descritores: | NULIDADE PROCESSUAL NULIDADE DE SENTENÇA MANIFESTA SIMPLICIDADE DA CAUSA FORMA DA SENTENÇA ASSINATURA DO CONTRATO FORMALIDADES AD PROBATIONEM | ||
![]() | ![]() | ||
Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 04/27/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE COM * DEC VOT | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
![]() | ![]() | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | IMPROCEDENTE | ||
![]() | ![]() | ||
Sumário: | 1. O nosso regime das nulidades processuais consta dos artigos 186 a 202º CPC. Quando se fala em nulidade dos actos processuais, está-se a referir ao sistema através do qual releva, no processo, a forma dos actos e se regulamentam as discrepâncias entre a forma prevista na lei e a forma assumida por cada acto em concreto. 2. Não se pode confundir acto de formação sucessiva com acto de procedimento, confusão de resto não permitida pelo regime do artigo 195.º, 2, a inserção sistemática do regime geral das nulidades processuais nos artigos 186.º a 202.º e ainda o regime específico da nulidade das sentenças do artigo 615.º. 3. A nulidade processual não é consumida pela eventual nulidade da sentença. 4. Mesmo a existir uma nulidade processual, o Tribunal da Relação não é funcionalmente competente para conhecer da nulidade arguida. 4. A forma simplificada da sentença do artigo 567.º, 3 não está sujeita ao regime imposto pelo artigo 607.º, 2,3 e 4, não exigindo fundamentação de facto. 5. O pedido, como acto postulativo, tem de ser interpretado de acordo com as regras do artigo 236.º CC. 6. Não padece de nulidade, por excesso de pronúncia, a sentença que é proferida após correcção de erro de escrita do autor e que leva em conta a vontade real da autora perceptível pelo ré. 6. Havendo discrepância entre o valor indicado, no dispositivo da sentença, em números e o valor por extenso deve dar-se prevalência àquele quando essa divergência deriva de lapso evidente facilmente atendível perante o contexto. 7. A distinção entre matéria de facto e matéria de direito, tal como tradicionalmente entendida, está hoje ultrapassada, dado que, para o direito, apenas são relevantes os factos que o direito qualificar como factos jurídicos. 8. A assinatura do contrato é elemento essencial da declaração escrita de cada uma das partes. 9. Exigindo a lei documento escrito ad probationem para a formação do contrato, a falta de assinatura nesse escrito, não permite que se produzam os efeitos da revelia. | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
![]() | ![]() |
Decisão Texto Integral: | Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa M instaurou contra E, LDA., ação declarativa, com processo comum, pedindo a condenação desta: i) no pagamento à A. a quantia de €8.550,00 (oito mil, quinhentos e cinquenta euros) acrescido de 4 meses de aviso prévio no valor de €1.800,00 (mil e oitocentos euros), o que perfaz um total de €10.350,00 (dez mil, trezentos e cinquenta euros); ii) no pagamento à A. de valor indemnizatório no montante de €3800,00 para a A. suportar o prejuízo decorrente da demolição do escritório que se encontrava dentro do imóvel; iii) no pagamento de juros de mora vencidos e vincendos a pagar até integral e efetivo pagamento, a calcular a final. Alega que deu de arrendamento à R. um prédio, que identifica, pela renda mensal de 450,00€ (quatrocentos e cinquenta euros), nos dois primeiros anos de duração do arrendamento, passando para o valor de €500,00 (quinhentos euros) a partir do início do terceiro ano de vigência do contrato. O aludido contrato de arrendamento, para fins comerciais, foi celebrado com duração limitada, pelo prazo de 5 anos, com início em 1 de outubro de 2020 e término em 30 de setembro de 2025. No próprio contrato que foi assinado a 1 de outubro de 2020 a R. reconheceu, na cláusula 8ª do mesmo, tal adequação “exonerando expressamente o Primeiro Outorgante de qualquer responsabilidade, se entretanto, o imóvel se tornar física, legal ou por qualquer causa desadequado ao fim pretendido, bem como conhece e aceita o estado em que aquele se encontra”. No final do mês de outubro de 2020, a R. informou, a A. de que não mais pretendia continuar com o aludido arrendamento., referindo que o imóvel não era adequado aos fins que pretendia, e não mais pagou as rendas que se foram vencendo, tendo procedido à entrega das chaves em 15 de Dezembro de 2020, por correio, sem qualquer carta a acompanhar a mesma. Ao entrar no imóvel, a A. constatou que a R. destruiu um escritório que estava construído dentro do armazém, não lhe tendo sido dada qualquer autorização para tal. No caso dos autos, a denuncia do acordo só poderia ter lugar decorrido um terço do prazo de duração inicial do contrato, o que num contrato com o prazo de 5 anos, como o que ora nos ocupa, o mesmo só venha a cessar efetivamente passados dois anos (20 meses correspondentes a 1/3 do prazo, acrescido de 120 dias de pré-aviso). Assim, deveria a A. ter procedido à denúncia do contrato a partir do dia 1 de junho de 2022. Devendo assim liquidar a quantia total de 20 meses de renda, acrescido de 4 meses de pré-aviso (120 dias). Uma vez que a R. já tinha pago a renda referente ao mês de outubro de 2020, considera-se estarem em falta 19 rendas, o que perfaz um total de €8.550,00 (oito mil quinhentos e cinquenta euros). A este valor deverá acrescer o pagamento das rendas referentes a 120 dias (4 meses) de pré-aviso, o que perfaz a quantia de €1.800,00 (mil e oitocentos euros). Está assim em falta o total de a quantia total de €10.350,00 (dez mil, trezentos e cinquenta euros). Para além disso, a A. ainda teve que suportar o prejuízo decorrente da demolição do escritório que se encontrava dentro do imóvel, o que importa na quantia de €3800,00 Em 9/03/2022 foi proferido o seguinte despacho: «Apesar de devidamente citada a Ré não deduziu contestação. Assim sendo, nos termos do disposto no artigo 567.º, n.1 do C.P.C., julgo confessados os factos articulados pelo autor. Dê-se cumprimento ao n.º 2 do artigo 567.º do C.P.C. Notifique». A ré não foi notificada deste despacho. Em 10/03/2022, a Recorrida apresentou as suas Alegações escritas, que não foram notificadas à recorrente. Em 10/05/2022, o Tribunal a quo proferiu o seguinte despacho: «Quando me preparava para proferir decisão, constato que no artigo 33.º da petição inicial se diz que a A. despendeu com obras a quantia de €2.500,00. Todavia, o documento que serve de suporte à alegação trata-se de um orçamento no valor de €3.800,00. Perante a aparente contradição entre a alegação e a prova apresentada, convido a A. a juntar ao processo prova do valor efetivamente pago (fatura-recibo) e/ou justificar o pedido formulado». A autora respondeu, requerendo a correcção do notório erro de escrita, devendo ler-se €3.500,00, em vez de €2.500,00. Em 14.06.2022, foi proferido o seguinte despacho: «Requerimento que antecede: Pretendendo a A. a correcção de um lapso de escrita referente ao valor da demolição, terá de ser concedida à contraparte o direito ao contraditório. Relativamente ao segmento do requerimento onde se diz que «a A. ainda não reuniu condições económicas por realizar as obras descritas no orçamento, uma vez que se encontra a aguardar pela assunção de responsabilidades por parte da R.», cumprirá referir que no articulado inicial se diz, aparentemente de forma equívoca, que «a A. ainda teve que suportar o prejuízo decorrente da demolição do escritório que se encontrava dentro do imóvel» (artigo 33.º). Também aqui haverá um erro de escrita que induziu o Tribunal a ordenar a junção aos autos do comprovativo de pagamento). Por conseguinte, em face dos diversos erros detetados, determino que a Ré seja notificada para se pronunciar, querendo, sobre a retificação dos erros de escrita». Este despacho foi notificado à Ré por meio de expediente enviado para a sede da Ré em 15.06.2022. Foi ulteriormente proferida decisão final que julgou a ação parcialmente procedente e, em consequência, condenou a Ré no pagamento das seguintes quantias: i) €1.800,00 (mil e oitocentos euros), a título de indemnização pela violação do prazo de pré-aviso de denuncia, acrescidas de juros de mora à taxa legal civil desde a citação, até efetivo e integral pagamento; ii) €3.800,00 (mil e oitocentos euros), a título de indemnização por estragos existentes no imóvel. *** Valor da ação: considerando que está em causa apenas uma ação obrigacional, o valor da causa corresponderá ao benefício económico pretendido, isto é, €14.150,00 (catorze mil cento e cinquenta euros) Considera-se neste valor a correção do erro de escrita referente quantificação dos prejuízos decorrentes de estragos existentes no imóvel. *** Inconformada, interpôs a ré competente recurso, cuja minuta concluiu da seguinte forma: «A) I. Em 09/03/2022 o Tribunal a quo proferiu despacho nos seguintes termos: «Apesar de devidamente citada a Ré não deduziu contestação. Assim sendo, nos termos do disposto no artigo 567º, n.º 1 do C.P.C., julgo confessados os factos articulados pelo autor. Dê-se cumprimento ao n.º 2 do artigo 567º do C.P.C». O Referido despacho não foi notificado à Recorrente, mas apenas à Recorrida. II. Em 10/03/2022, a Recorrida apresentou as suas Alegações escritas. A Recorrida não foi notificada das Alegações apresentadas pela Recorrida. III. Em 10/05/2022, o Tribunal a quo proferiu despacho nos seguintes termos: «Quando me preparava para proferir decisão, constato que no artigo 33º da petição inicial se diz que a A. despendeu com obras a quantia de €2.500,00. Todavia, o documento que serve de suporte à alegação trata-se de um orçamento no valor de €3800,00. Perante a aparente contradição entre a alegação e a prova apresentada, convido a A. a juntar ao processo prova do valor efetivamente pago (fatura-recibo) e/ou justificar o pedido formulado. Prazo: 10 dias». O Tribunal a quo não notificou a Recorrente deste despacho, tendo sido apenas a Recorrida notificada. IV. Entende a Recorrente que a falta de notificação dos despachos e alegações acima referidos consubstanciam uma nulidade que inquina a Sentença proferida. V. A omissão de notificação dos despachos e alegações acima referidos, sobre os quais a Recorrente não teve a possibilidade de se defender, consubstanciam uma irregularidade que, claramente influi no exame da causa, nos termos do artigo 195º, n.º 1 do C.P.C. VI. Aliás, basta atender que se a Recorrente tivesse sido notificada das Alegações apresentadas pela Recorrida poderia, nessa fase, constituir mandatário e apresentar, também ela, nos termos do artigo 567º, n.º 2 do C.P.C., as suas alegações. Mas mais, VII. Na sua sentença, em violação ao artigo 607º, n.ºs 2, 3 e 4, o Tribunal a quo não discriminou os factos que considera provados e não provados, pelo que a Sentença encontra-se ferida de nulidade nos termos do artigo 615º, alínea b) do C.P.C. VIII. É igualmente nula a Sentença, nos termos do artigo 615º, n.º 1, alínea e), do C.P.C. quando o juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido. IX. No caso sub judice a Recorrida requereu a condenação da Recorrente: c) Seja, ainda, a R. condenada no pagamento à A. de valor indemnizatório no montante de €2.500,00 para a A. suportar o prejuízo decorrente da demolição do escritório que se encontrava dentro do imóvel. X. Na sua sentença o Tribunal a quo condenou a Recorrente no montante de: €3800,00 (mil e oitocentos euros), a título de indemnização por estragos existentes no imóvel.” XI. Resulta, desde logo, que o pedido que a Recorrente apresentou não teve por base alegados “estragos existentes no imóvel.”, mas apenas e só o alegado “prejuízo decorrente da demolição do escritório que se encontrava dentro do imóvel.” XII. Por outro lado, a Recorrida pediu uma indemnização a esse título no montante de 2.500€ (Dois mil e quinhentos Euros) e o Tribunal a quo, em numerário afirma “€3800,00” e, por extenso, refere-se a “mil e oitocentos euros”. XIII. Assim, em face do que acima se encontra exposto deve a sentença proferida pelo Tribunal a quo ser declarada nula, nos termos dos artigos 607º e 615º do C.P.C., nulidade que, desde já se argui. B XIV. Refere a Sentença em crise: «Em face da revelia da Ré, foram considerados provados os factos articulados na petição inicial – cf. despacho com a ref.ª 151614391; e artigo 567.º n.º 1 e 3 C.P.C. . Foi ainda tido em consideração o teor do contrato de arrendamento». XV. O Tribunal a quo nunca poderia ter dado como provados os factos da petição inicial. Desde logo porque, a prova da maioria dos factos articulados, estava dependente de prova documental. XVI. A Recorrida começa, desde logo, por invocar que: A A. é dona e legítima proprietária da fracção autónoma designada pela letra C, sita na Rua …, nº 2, na freguesia de Sacavém, concelho de Loures, inscrito na matriz predial sob o artigo … da União de Freguesias de Sacavém e Prior Velho (Doc. 1). Para prova deste facto indica o documento 1, o qual corresponde a uma caderneta predial urbana. XVII. Acontece, porém, que este documento não é idóneo a provar a propriedade de um imóvel. Com efeito, nos termos do artigo 9º e 110º do Código do Registo predial, para o Tribunal a quo ter dado como provado o referido facto teria sido essencial que a Recorrida junta-se aos autos uma certidão predial do referido imóvel, o que manifestamente não aconteceu. Assim, não poderia o artigo 1º da P.I. ter sido dado como provado. Mas mais, XVIII. Se analisarmos o documento junto pela Recorrida como documento 2, constatamos, desde logo o seguinte, o mesmo denomina-se “CONTRATO DE ARRENDAMENTO PARA HABITAÇÃO DE DURAÇÃO LIMITADA” XIX. O referido documento não se encontra assinado ou rubricado nem pela Recorrente nem pela Recorrida. Assim, nunca o Tribunal a quo poderia concluir que entre a Recorrente e a Recorrida foi celebrado um contrato de arrendamento. XX. A falta de assinatura de tal documento equivale à sua inexistência jurídica. XXI. No caso sub judice o documento que a Recorrida apresentou e que intitulou contrato de arrendamento não se encontra assinado, pelo que, estando em causa factos que apenas podem ser provados por documentos, nunca o Tribunal a quo poderia ter dado como provados os artigos 2º a 32º da P.I.. Por outro lado, XXII. A Recorrida referiu nos artigos 13º e 33º da sua P.I.: 13º. Ao entrar no imóvel a A. constatou que a R. destruiu um escritório que estava construído dentro do armazém. 33º Para além disso, a A. ainda teve que suportar o prejuízo decorrente da demolição do escritório que se encontrava dentro do imóvel, o que importa na quantia de €2.500,00 (Doc. 3). XXIII. Afirmar-se que: «Ao entrar no imóvel a A. constatou que a R. destruiu um escritório que estava construído dentro do armazém». Não consubstancia qualquer matéria de facto. XXIV. Para se concluir que houve a “destruição de um escritório” era necessário que fosse alegado em concreto qual a concreta conduta que a Recorrente alegadamente levou a cabo. XXV. Os artigos 13º e 33º não configuram como doutamente ensinava o Professor Alberto dos Reis: «…quaisquer eventos materiais e concretos, quaisquer mudanças operadas no mundo exterior…». XXVI. Em face do que acima se encontra exposto o Tribunal a quo deveria ter dado como NÃO PROVADOS os seguintes artigos da Petição Inicial: 1º, 2º, 3º, 4º, 5º, 6º, 7º, 8º, 9º, 10º, 11º, 12º, 13º, 15º, 19º, 25º, 26º, 27º, 28º, 29º, 30º, 31º, 32º, 33º. XXVII. Ao decidir como decidiu violou os artigos 220º, 236º, 373º e 1069º do Código Civil e bem assim os artigos 9º e 110º do Código de Registo predial. XXVIII. Em face de tudo o que acima se encontra exposto deveria a ação intentada pela Recorrida ter sido julgada totalmente improcedente. Nestes termos e nos melhores de direito, que V. Exas. mui doutamente suprirão, deve o presente Recurso obter provimento e, em consequência deve a Sentença proferida pelo Tribunal a quo ser substituída por douto Acórdão que declare a referida Sentença, nula, com as legais consequências e ou que declare a ação intentada pela Recorrida totalmente improcedente, absolvendo-se a Recorrente do pedido. Assim decidindo farão v. Exas. a tão costumada e esperada JUSTIÇA!». A recorrida ofereceu contra-alegações em que pugna pela confirmação do julgado. *** São as conclusões que delimitam a matéria a conhecer por este Tribunal, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso que cumpra apreciar. Destas conclusões, resultam as seguintes 4 questões decidendas: 1. Da irregularidade processual; 2. Da nulidade da sentença ex artigo 615.º, 1, b); 3. Da nulidade da sentença ex artigo 615.º, 1, e); 4. Da alteração da matéria de facto. *** Da matéria de facto provada Em face da revelia da Ré, o primeiro grau considerou provados os factos articulados na petição inicial – cf. despacho com a ref.ª 151614391; e artigo 567.º n.º 1 e 3 C.P.C. . Foi ainda tido em consideração o teor do contrato de arrendamento. Atenta a simplicidade da causa, entendeu-se desnecessário proceder ao elenco dos factos provados, sendo suficiente que a sentença se limite à parte decisória acompanhada da fundamentação sumária do julgado – artigo 567.º n.º 3 C.P.C.. *** 1. Da invalidade (irregularidade) processual Entende a recorrente que não lhe tendo sido notificados as alegações da autora, nem o despacho de 10/05/2022, estamos diante de irregularidades com influência no exame da causa sancionada pelo artigo 195.º,1do Código de Processo Civil (são deste código os artigos ulteriormente citados sem diferente menção; quanto ao despacho de 14.06.2022, considera-se a ré notificada). Não tem razão. Recorrendo a uma metáfora, diz-se que «o procedimento é composto por vários anéis concatenados entre si, salvo o primeiro, que, como tal, não tem nenhum anel pressuposto, e o último que não é o pressuposto de outro anel» (Nicola Picardi). O Código de Processo Civil não tem uma definição do que deva entender-se por acto de processo, ou, melhor, o legislador limita-se a falar de atos processuais, expressão com que encima o Título I do Livro II. Como refere Paula Costa e Silva, da disciplina positiva «apenas podemos dizer com alguma segurança que, para o legislador, no acto processual está sempre implícita uma ligação entre o acto e o processo». Resulta que a construção do conceito de acto processual tem de ser feita praeter legem. Tarefa não simples, já que se assiste neste domínio, como salienta aquela autora, a uma proliferação sem fim de definições de acto processual. Não importa aqui desenvolver este ponto. Podemos adoptar a definição de Enrico Redenti que entende esses anéis, ou actos processuais civis, como sendo os actos que dão vida ao processo civil, com os quais este se desenvolve e encerra ou conclui. Quando se fala em invalidade dos actos processuais, está-se a referir um regime através do qual releva, no processo, a forma e formalidades dos actos e se regulamentam as discrepâncias entre a forma prevista na lei e a forma assumida por cada acto em concreto. Na definição de Manuel de Andrade, «as nulidades de processo podem definir-se nestes termos: são quaisquer desvios do formalismo processual seguido, em relação ao formalismo processual prescrito na lei, e a que esta faça corresponder – embora não de modo expresso – uma invalidação mais ou menos extensa de actos processuais»( Manuel A. Domingues de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, Coimbra, 1979:176). O regime das invalidades é uma disciplina em que o legislador assume a possibilidade de determinadas prescrições, relativamente ao iter procedimental, poderem ser violadas e descreve os mecanismos através dos quais se pode sanar tal violação ou substituir um acto inquinado por outro limpo de vícios. O tema da invalidade dos actos processuais utiliza conceitos e categorias próprias da teoria geral e portanto comuns ao direito substantivo, mas com particularidades que derivam das peculiaridades dos actos processuais. Consoante a gravidade do vício e as consequências que pode ter sobre os efeitos do acto é costume elencar as seguintes espécies de valores negativos dos actos: irregularidade, anulabilidade, nulidade e inexistência. O código de processo civil utiliza em 19 artigos o termo irregularidade: a) quer para descrever ou indicar o comportamento irregular (artigos 27.º, 3, 191.º, 3); b) quer para se referir só ao valor negativo em si mesmo considerado, sem descrever qualquer conduta (artigos 28.º, 2, 577.º, h), 1048.º, 1050.º, 1051.º,2, 1056.º, 2); c) quer para aludir às formas de sanação da irregularidade (27.º, 1, 48.º, 1, 191.º, 3, 195.º, 1, 199.º, 2, 205.º, 278.º, 3, 291.º, 3, 566.º, 590.º,3, 726.º, 4 e 822.º); d) quer ainda para enunciar os efeitos da falta de suprimento da irregularidade (artigo 27.º, 2). Como refere Giampiero Balena, a irregularidade compreende vícios substancialmente inócuos, os quais têm habitualmente como consequência a obrigação para as partes ou para o juiz de prover à regularização do acto. Compulsando a disciplina dos artigos 186.º a 202.º e, mais ainda, olhando para todos os artigos do código onde se utilizam as expressões, verifica-se que o legislador escolheu não utilizar as contraposições conceituais próprias do direito substantivo, entre nulidade e anulabilidade, preferindo, ao invés, reconduzir o fenómeno da invalidade dos actos processuais à categoria de nulidade, ainda que combinada, em fortes traços e características, com a categoria da anulabilidade. A diferença de concepções e de regimes entre as nulidades e anulabilidades de direito privado e de direito processual são manifestas no nosso ordenamento. Desde logo, na terminologia adoptada, que é, no dizer de Lebre de Freitas, promíscua. O código de processo utiliza em 39 artigos o termo nulidade e em 26 o termo anulação, só no artigo 291.º usando o termo anulabilidade. Na secção VII, acima aludida, significativamente intitulada nulidade dos actos, o legislador refere-se em 12 artigos à nulidade e só em 5 à anulação dos actos. De qualquer modo, a nulidade não tem como consequência a declaração de nulidade, mas a anulação dos actos ou do processado, como é próprio da anulabilidade (artigos 190.º, a), 193.º, 1, 194.º, 2, 195.º, 2). De seguida, a nulidade de um acto processual é objecto de pronúncia do juiz, na falta da qual o acto é, apesar de nulo, eficaz. Em terceiro lugar, algumas das designadas nulidades principais são de conhecimento oficioso, devendo as restantes nulidades ser suscitadas pela parte interessada (artigo 196.º). Por último, todos os vícios dos actos são supríveis, quer pelo decurso do prazo da arguição da nulidade, quer pela obtenção do efeito côngruo do acto. O que a recorrente vem arguir no recurso não é uma irregularidade próprio sensu, mas uma nulidade processual. Um processo sem formas não existe: «não se podem abolir as formas sem abolir o próprio processo, e ainda que um hipotético legislador as eliminasse com um golpe de caneta, elas reapareceriam imediatamente na concreta experiência por intrínseca necessidade». Não se podendo prescindir das formalidades no processo, os sistemas legislativos das nulidades processuais têm historicamente oscilado entre a rigidez absoluta das formas e a maior elasticidade possível, dependendo neste caso, na maior parte dos sistemas, da vontade e arbítrio dos julgadores. O primeiro sistema, rigidamente formalista, é o que se encontra no primitivo direito romano das legis actiones. Neste sistema o menor erro formal podia fazer perigar o êxito da acção. Para se ter uma ideia do que era um formalismo levado ao extremo, Gaio recordava o caso de alguém que perdeu uma acção porque instaurou a causa pedindo indemnização pelos danos causados pelo corte de videiras, e, em vez de falar genericamente de corte de arboles, como prescrevia a lei das XII Tábuas, invocou o facto concreto do corte de videiras (Gai.4.11). No polo oposto, encontramos um regime no qual a sorte do acto processual era o resultado da livre apreciação do juiz. Foi este o regime que a Ordonnance francesa de 1667 procurou superar. O nosso sistema das nulidades processuais revela um certo anacronismo, como o demonstra o facto de só com a Novíssima Reforma Judiciária (1847) se fazer a distinção entre formalidades supríveis e insupríveis depois consagrada no Código de Processo de 1876. Formalidades insupríveis eram, de acordo com este diploma, as que tornavam nulo tudo o que se tivesse processado desde que elas se verificaram (artigo 129.º, § 1.º). As supríveis só anulavam o acto a que se referiam e os termos subsequentes que dele dependessem absolutamente (artigo 129.º, § 2.º). Além disso, as supríveis - assim designadas por poderem ser supridas pela simples vontade das partes - só podiam ser atendidas sob reclamação das partes; as insupríveis eram de conhecimento oficioso… Como explica Alberto dos Reis o sistema do Código de 76 era muito mais rígido do que os principais Códigos estrangeiros: «Basta notar que qualquer infracção da lei de forma produzia a anulação do acto respectivo e dos que dele dependessem absolutamente, por mais insignificante que fosse a violação cometida; desde que a parte interessada arguisse a nulidade dentro do prazo legal, o juiz tinha de decretar a anulação, embora reconhecesse que o desvio praticado em nada perturbara a ordem do processo ou os direitos e garantias do reclamante» (José Alberto dos Reis, Comentário…, Vol I, 354-355). Uma maior agilização do regime dos vícios formais só foi devidamente consolidada com o Código de processo civil de 39. Barbosa de Magalhães, a quem coube a tarefa de elaborar o relatório sobre o capítulo 4.º do título 1.º do livro 3.º do Projecto do Código de Processo Civil de 1939, explica que «é este um dos capítulos em que mais acentuadamente se revela a orientação do Projecto, que era já das últimas reformas de processo civil e comercial – de evitar o mais possível a anulação de processos e de actos judiciais. É preciso suprir quanto possa ser suprido, aproveitar quanto possa ser aproveitado; não deixar perder senão o que de todo não preste; não obrigar a desnecessários dispêndios de tempo, de actividade e de dinheiro». Rejeitava-se assim claramente a regra «pas de nullité sans texte». No código vigente, e desde 1939, não existe a distinção entre nulidades supríveis e insupríveis; todas as nulidades são supríveis. Constituem linhas gerais enformadoras do nosso sistema de nulidades, no que para o nosso tema interessa, as seguintes: i) a distinção entre nulidades principais ou de primeiro grau e nulidades secundárias ou de segundo grau – distinção tradicional com assento legal na epígrafe do artigo 198.º - ou, segundo outras classificações, entre nulidades típicas e atípicas, ou nominadas e inominadas; ii) a consideração como nulidades principais: -da ineptidão da petição inicial (artigo 186.º); -da falta de citação do réu ou do Ministério Público (artigo 187.º); -do erro na forma do processo ((artigo 193.º); -da falta de vista ou exame ao Ministério Público como parte acessória (artigo 194.º); iii) a consideração como nulidades secundárias de todos as demais, a que se aplica o regime dos artigos 195.º e 199.º; iv) a essencialidade da nulidade, o que significa que não se verifica o valor negativo se a prática ou omissão do acto ou formalidade não puder influir no exame ou decisão da causa (artigo 195.º, n.º 1). A pedra angular do nosso sistema de nulidades encontra-se no artigo 195.º. Este regime é aplicável aos actos do juiz, comissivos ou omissivos, pese embora não estar incluído na secção reservada aos actos dos magistrados (artigos 150.º a 156.º), onde nada é dito sobre a nulidade do «acto jurisdicional por excelência» que é a sentença, matéria abordada no artigo 615.º. Preceitua o artigo 195.º,1 que a infracção da forma legal, quer se traduza na prática de um acto que a lei admita, quer na omissão dum acto que a lei exija, quer ainda na preterição de uma formalidade que a lei prescreva só produz nulidade «quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa». Como esclarece José Lebre de Freitas «não se trata de vícios que respeitem ao conteúdo do acto, mas tão-só atinentes à sua existência ou formalidades» (Introdução ao Processo Civil, 3.ª ed., Coimbra, 2013:22). Constitui nulidade hoc sensu a omissão da prática de um acto – no caso sujeito duas notificações – exigido pela forma do processo. Não vamos desenvolver este ponto, sem prejuízo do disposto no artigo 249.º, 3 e5 e da regularidade da citação que aqui não é posta sequer em causa. Acrescentaremos tão-só que de acordo com uma máxima jurídica corrente, «só contra as nulidades se reclama; contra os despachos há os recursos». Esta máxima significa que «a arguição da nulidade só é admissível quando a infracção processual não está ao abrigo de qualquer despacho judicial; se há um despacho a ordenar ou autorizar a prática ou a omissão do acto ou formalidade, o meio próprio para reagir, contra a ilegalidade que se tenha cometido, não é a arguição ou reclamação por nulidade, é a impugnação do respectivo despacho pela interposição do recurso competente». O nosso regime das nulidades processuais consta dos artigos 186 a 202º. Quando se fala em nulidade dos actos processuais, está-se a referir ao sistema através do qual releva, no processo, a forma dos actos e se regulamentam as discrepâncias entre a forma prevista na lei e a forma assumida por cada acto em concreto. Ou dito de outro modo, o regime das nulidades é uma disciplina em que o legislador assume a possibilidade de determinadas prescrições, relativamente ao iter procedimental, poderem ser violadas e descreve os mecanismos através dos quais se pode sanar tal violação ou substituir um acto inquinado por outro limpo de vícios. O processo, como vimos, é uma sequência de actos, que desemboca num acto final, em função do qual se desenvolveu o procedimento no seu todo e que, de certa forma, inclui e resume todos os actos precedentes da série. Este acto final é, em última análise, no processo comum, a sentença. Poderia, assim, conceber-se que todos os vícios de todos os actos do processo pudessem repercutir-se e contaminar o acto final da sequência, a própria sentença, podendo entender-se as causas de nulidade da sentença, a que alude o artigo 615º, não apenas como os vícios próprios da mesma, mas ainda como abrangendo todos os vícios dos actos do processo que se pudessem comunicar à decisão final. Não concordamos com esta opinião: Não se pode confundir acto de formação sucessiva com acto de procedimento, confusão de resto não permitida pelo regime do artigo 195.º, 2, a inserção sistemática do regime geral das nulidades processuais nos artigos 186.º a 202.º e ainda o regime específico da nulidade das sentenças do artigo 615.º. A nulidade processual não é, pois, consumida pela eventual nulidade da sentença. Mais decisivamente ainda: este segundo grau, mesmo a existir uma nulidade processual não é funcionalmente competente para conhecer da nulidade arguida que também por isso vai indeferida. *** 2. Da nulidade da sentença ex artigo 615.º, 1, b) Entende a recorrente que a decisão é nula por falta de especificação dos fundamentos de facto. O tribunal, como se viu, não fixou os factos que considerava assentes. Com efeito, limitou-se a consignar: «Em face da revelia da Ré, foram considerados provados os factos articulados na petição inicial – cf. despacho com a ref.ª 151614391; e artigo 567.º n.º 1 e 3 C.P.C. Foi ainda tido em consideração o teor do contrato de arrendamento. Atenta a simplicidade da causa, entende-se desnecessário proceder ao elenco dos factos provados, sendo suficiente que a sentença se limite à parte decisória acompanhada da fundamentação sumária do julgado – artigo 567.º n.º 3 C.P.C». Dispõe esta proposição normativa que, como efeito da revelia absoluta, se a resolução da causa revestir manifesta simplicidade, a sentença pode limitar-se à parte decisória, precedida da necessária identificação das partes e da fundamentação sumária do julgado. Este regime, com intuito manifestamente simplificador do processo (da sentença), não é novo: provém da reforma intercalar, operada pelo Decreto n.º 242/85, de 9 de julho. Diante do aparente desinteresse manifestado pelo réu, julgou-se então adequado dispensar a feitura da sentença de determinadas formalidades. A sentença impugnada não tinha, por conseguinte, de ficar sujeita ao regime imposto pelo artigo 607, 2,3 e 4. Até porque, conforme jurisprudência dominante, uma coisa é a falta absoluta de especificação dos factos outra a sus deficiência, só a primeira constituindo nulidade. Por outro lado, a própria recorrente percebeu quais os factos que estavam em jogo, tanto assim que impugna a matéria de facto. Não se desconhece que tem havido arestos em sentido diferente. Na verdade, alguns acórdãos têm defendido que a forma simplificada da sentença não dispensa um mínimo de fundamentação de facto e de direito, e que, no tocante aos factos, não fica o juiz dispensado de indicar com clareza e de forma discriminada quais os factos que considera provados e não provados, e a respetiva motivação, como resulta do disposto no art.º 607º, nº 4 (cfr., entre outros, ARC de 20-05-2004, Proc. 697/04 e ARG de 03-07-2014, Proc. 4215/13.3TBRRG.G1). Não parece ser de seguir esta opinião que acaba por conduzir à derrogação de uma norma de simplificação, que, se devidamente aplicada, tem a virtualidade de alcançar o legítimo propósito de uma justiça mais célere. *** 3. Da nulidade da sentença ex artigo 615.º, e) Entende a recorrente que a sentença é nula por ter condenado em quantidade superior e em objeto diverso do pedido. Relativamente à quantidade, a autora pediu, na verdade, a condenação da Recorrente, no pagamento à A. de valor indemnizatório no montante de €2.500,00. O tribunal condenou a Recorrente no montante de €3800,00. Acontece que a autora incorreu no acto postulativo inicial num notório erro de escrita, de que o tribunal se apercebeu e convidou a recorrida a corrigir, o que foi feito. Por outro lado, também não se pode concluir que a decisão foi além do pedido em termos quantitativos. A autora usou no seu petitório o termo «demolição…do escritório». O pedido como acto postulativo que é tem de ser interpretado de acordo com as regras substantivas do artigo 236.º CC. Ora não restam dúvidas, que a ré, colocada que fosse nas vestes de um declaratário normal, não podia deixar de ter compreendido que a autora estava a peticionar o valor das obras a que se refere no artigo 33.º da petição inicial por remissão para o documento n.º 3. Entender deste modo, não colide com as legítimas expectativas do ré, a qual, com a diligência normal, examinando este documento, podia facilmente descobrir a vontade real da autora (cfr. última parte do citado artigo 236.º, 1). Embora não lhe dê destaque, a ré refere também que existe discrepância entre o valor em numerário e por extenso. Sobre uma situação paralela já se pronunciou esta Relação em Acórdão de ARL de13.12,2007, Proc. 9908/2007-7. Estava aí em causa a aplicação do artigo 6.º da LULL que preceitua: Se na letra a indicação da quantia a satisfazer se achar feita por extenso e em algarismos, e houver divergência entre uma e outra, prevalece a que estiver feita por extenso. Se na letra a indicação da quantia a satisfazer se achar feita por mais de uma vez, quer por extenso, quer em algarismos, e houver divergências entre as diversas indicações, prevalecerá a que se achar feita em quantia inferior. Apesar de se tratar aí de uma livrança, o colectivo de juízes argumentou que «temos de concluir que a indicação, por extenso, da quantia indicada em algarismos, no título em questão, não pode consubstanciar qualquer divergência ou desinteligência, capaz de fazer actuar o art.º 6º da LULL. Com efeito, estamos apenas perante a omissão da expressão “mil”, após a indicação de “cinquenta e um” que encima a indicação da importância constante do título em apreciação. Esta omissão, porém, é perfeitamente compreensível no contexto, tratando-se, no fundo, de uma mera desconformidade decorrente da omissão de uma palavra que, qualquer declaratário normal, ao efectuar a leitura numérica respectiva, era capaz de compreender e perceber correctamente. Aliás, não faz qualquer sentido a leitura meramente literal efectuada pelos Apelantes, tanto mais que, sendo os mesmos avalistas do título em questão, sabiam perfeitamente do que se tratava e a que correspondia aquela mesma importância. Se atentarmos no título em apreciação, não podemos dizer que as duas expressões em referência sejam incompatíveis ou gerem confusão entre si, antes são perfeitamente perceptíveis no respectivo contexto. Concluindo, entende-se que no presente caso não há lugar à aplicação do disposto no art.º 6º da LULL, vocacionado para situações de ininteligibilidade e não para as situações de interpretação decorrentes de lapsos evidentes face ao contexto da declaração, que devem ser supridas por recurso ao disposto no art.º 249º do CC». Concorda-se com esta conclusão, demais a mais quando no caso nem sequer se trata de títulos de crédito, cujos interesses tutelados subjacentes, exigem uma maior rigidez interpretativa. *** 4. Da alteração da decisão de facto Nesta sede, entende a recorrente, em primeiro lugar, que não se pode dar como assente a matéria do artigo 1.º da petição inicial, que porquanto essa matéria só se poderia provar documentalmente. Não tem razão. Mesmo em relação às acções reais, em que se pede o reconhecimento da propriedade adquirida por usucapião (aquisição originária) a jurisprudência recente vem entendendo que se deve dar como provada a propriedade, se a alegação de domínio não for contestada (cfr. para uma evolução da jurisprudência neste domínio, ARL de 14.02.2019, Proc. 5786/13.0TBOER.L1). Mais se justifica esta orientação em casos como o dos autos onde não se controverte a propriedade. Diz também a recorrente que os artigos 13º e 33º da petição inicial, não configuram como doutamente ensinava o Professor Alberto dos Reis: «…quaisquer eventos materiais e concretos, quaisquer mudanças operadas no mundo exterior…». Não tem razão, ao alegar que estamos diante de factos conclusivos. O Professor José Alberto dos Reis morreu em 1955. A construção que sob o seu patrocínio académico foi elaborada a propósito da distinção entre matéria de facto e de provém da reforma do processo de 1932, que aboliu o júri e colocou no seu lugar um colectivo de juízes togados. Claro que para melhor percepção dos elementos laicos do júri não se lhe ia perguntar matéria conclusiva ou de direito. Porém, a rigorosa e escalpelizada distinção entre matéria de facto e matéria de direito talvez não se justificasse quando os quesitos eram dirigidos a um tribunal profissionalizado. A verdade é que a nossa cultura jurídica ficou literalmente amarrada durante anos à construção originária, mesmo depois de Castanheira Neves em tese de 1967 ter criticado vigorosamente a distinção. Como já dissemos noutro lugar, talvez por ser uma obra de filosofia de direito, de difícil leitura, esse trabalho não teve quase nenhuma influência na prática dos nossos tribunais. Só mais recentemente, após a reforma de 2013, a opinio juris tem feito frente às rotinas instaladas e revisto posições. Assim, por exemplo, Miguel Teixeira de Sousa, no seu Blog IPPC, Jurisprudência 784 em comentário ao Ac. STJ de 28.9.2017, Proc. 809/10/BLMG.C1.S1, escreveu: «A chamada "proibição dos factos conclusivos" não tem hoje nenhuma justificação no plano da legislação processual civil (não importando agora discutir se alguma vez teve). Se o tribunal considerar provados os factos que preenchem uma determinada previsão legal, é absolutamente irrelevante que os apresente com a qualificação que lhes é atribuída por essa previsão. Por exemplo: se o tribunal disser que a parte actuou com dolo, porque, de acordo com o depoimento de várias testemunhas, ficou provado que essa parte gizou um plano para enganar a parte contrária, não se percebe por que motivo isso há-de afectar a prova deste plano ardiloso (nem também por que razão a qualificação do plano como ardiloso há-de afectar a sua prova). O exemplo acabado de referir também permite contrariar uma ideia comum, mas incorrecta: a de que factos juridicamente qualificados não podem constituir objecto de prova. A ideia é, efectivamente, incorrecta, porque cabe perguntar como é que sem a prova do dolo (através dos respectivos factos probatórios) se pode aplicar, por exemplo, o disposto no art.º 483.º, n.º 1, CC quanto à responsabilidade por facto ilícito. É claro que o preceito só pode ser aplicado se, no caso de o dolo ser um facto controvertido, houver prova desse facto. Assim, também ao contrário do entendimento comum, há que concluir que o tema da prova não é mais do que o enunciado do objecto da prova. A referida "proibição dos factos conclusivos" também não corresponde às modernas correntes metodológicas na Ciência do Direito, que não se cansam de referir que a distinção entre a matéria de facto e a matéria de direito é totalmente artificial, dado que, para o direito, apenas são relevantes os factos que o direito qualificar como factos jurídicos. Para o direito, não há factos, mas apenas factos jurídicos, tal como, para a física ou a biologia, não há factos, mas somente factos físicos ou biológicos. Os factos são sempre um Konstrukt, pelo que os factos jurídicos são aqueles factos que são construídos pelo direito. Em conclusão: o objecto da prova não pode deixar de ser um facto jurídico, com todas as características descritivas, qualitativas, quantitativas ou valorativas desse facto». Esta posição foi seguida e aplicada no Ac. STJ de 14.7.2021, Proc. 19035/17, que merece natural anotação favorável do autor (Miguel Teixeira de Sousa, «Os chamados «Factos Conclusivos», As razões de Equívoco», Revista do CEJ, II, 2021:199 segs.). Não nos cabe desenvolver muito esta matéria. Diremos apenas que o que importa verificar é se um facto, mesmo com uma componente conclusiva, não tem ainda um substracto relevante para o acervo dos factos que importam para uma decisão justa. Os factos jurídicos, pois é disso que se trata aqui, são os factos que constam da previsão da s regras jurídicas. «Muitas vezes esses factos não são factos empíricos e contêm, por isso, elementos valorativos ou humanos». «Qualquer juízo de facto que assente na experiência comum tem necessariamente um carácter conclusivo, mas isso não justifica, de modo algum qualquer operação de «limpeza» desse carácter conclusivo». O que importa é que o facto jurídico considerado verificado não contenha em si mesmo a decisão da causa. No caso sujeito, nenhum dos factos mencionados importa essa consequência jurídica. Finalmente, alega a recorrente que «no caso sub judice o documento que a Recorrida apresentou e que intitulou contrato de arrendamento não se encontra assinado, pelo que, estando em causa factos que apenas podem ser provados por documentos, nunca o Tribunal a quo poderia ter dado como provados os artigos 2º a 32º da P.I». A assinatura do contrato é elemento essencial da declaração escrita de cada uma das partes. Como refere Inocêncio Galvão Telles «quando a lei exige que um contrato conste de documento, esse documento tem de ser da autoria de ambas as partes: ambas devem corporizar nele as suas vontades, assumindo ou certificando a respectiva autoria mediante a sua subscrição ou assinatura. Os instrumentos contratuais precisam de ser assinados pelos dois contraentes …» (Direito das Obrigações, 7 ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 1997, pág. 106; seguindo este autor, também num caso de falta de assinatura do contrato, Ac. RL de 14.02.2019, Proc. 5786/13.0TBOCR.L1). À data em que o contrato foi celebrado já vigorava o artigo 1069.º do Código Civil, na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 13/2019, de 12/02, que aditou um número 2, ao artigo 1069.º, do Código Civil, permitindo que o arrendatário, na falta de redução a escrito do contrato de arrendamento que não lhe seja imputável, possa provar a existência de título por qualquer forma admitida em direito, demonstrando a utilização do locado pelo arrendatário, sem oposição do senhorio, e o pagamento mensal da respetiva renda por um período de seis meses. Exigindo a lei documento escrito para a formação do contrato, a falta desse escrito, por não ter sido assinado, implicaria à primeira análise a nulidade do acordo (artigo 220.º CC). No entanto, como se assinala no ASTJ de 12.01.2022, Proc. 9715/19.9.T8LRS.L1.S1, a introdução daquele novo número 2 «veio evidenciar que a exigência da forma escrita para os contratos de arrendamento é meramente ad probationem, pelo que, nos termos do artigo 364.º, n.º 2, do Código Civil, a celebração do contrato de arrendamento pode ser provada por confissão expressa, judicial ou extrajudicial, contanto que, neste último caso, a confissão conste de documento de igual ou superior valor probatório». Esta confissão tem que ser expressa, pelo que estão excluídas as confissões resultantes da não impugnação de factos nos articulados» e, acrescentaremos nós, as confissões fictas. O documento junto, justamente porque não está assinado, não pode satisfazer a exigência probatória legal. O artigo 568.º enuncia casos em que se não produz o efeito da revelia, de entre eles, o previsto na alínea d): quando se trate de factos para cuja prova se exija documento escrito. Como afirmam José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, «quando a lei (art.º 364 CC) ou as partes (art.º 223 CC) exijam documento escrito como forma ou para prova dum negócio jurídico (ou de outro facto jurídico), esse documento não é dispensável, pelo que o silêncio da parte, tal como a declaração expressa de confissão, não pode sobrepor-se-lhe» (Código de Processo Civil, Anotado, 3:º ed., Vol. 2, Almedina, Coimbra, 2017:543). O recurso está em condições de ser decidido nesta parte a favor da recorrente, absolvendo-a da condenação no pagamento de €1.800,00 (mil e oitocentos euros), a título de indemnização pela violação do prazo de pré-aviso de denuncia, acrescidas de juros de mora. *** Pelo exposto, acordamos em julgar parcialmente procedente o recurso, e, consequentemente, em revogar o primeiro capítulo da decisão impugnada que condenou a recorrente no pagamento de €1.800,00 (mil e oitocentos euros), a titulo de indemnização pela violação do prazo de pré-aviso de denuncia, acrescidas de juros de mora à taxa legal civil desde a citação, até efetivo e integral pagamento, que substituímos por outra que a absolve desse pedido, no mais se confirmando a sentença sob recurso. Custas por recorrente e recorrida, na proporção de 1/3 e 2/3, respectivamente. *** 27.04.2023 Luís Correia de Mendonça Maria Amélia Ameixoeira Maria do Céu Silva (X) (X) Declaração de voto “… o acto proibido é praticado ou o acto obrigatório é omitido e, depois dessa prática, é proferida uma decisão; nesta situação, há uma nulidade processual e uma decisão judicial”. “… o que importa considerar é a consequência da nulidade processual na decisão posterior. Quer dizer: já não se está a tratar apenas da nulidade processual, mas também das consequências da nulidade processual para a decisão que é posteriormente proferida.” “O objecto do recurso é sempre uma decisão impugnada. Portanto, ou há vícios da própria decisão recorrida - hipótese em que o recurso é procedente - ou não há vícios da decisão impugnada - situação em que o recurso é improcedente. O tribunal de recurso não pode conhecer isoladamente de nulidades processuais, mas apenas de decisões que dispensam actos obrigatórios ou que impõem a realização de actos proibidos e das consequências noutras decisões da eventual ilegalidade da dispensa ou da realização do acto. É, aliás, porque o objecto do recurso é sempre a decisão impugnada e porque o tribunal ad quem só pode conhecer desse objecto que se deve entender que uma decisão-surpresa é nula por excesso de pronúncia. A opção é a seguinte: ou se entende que a decisão-surpresa é nula - isto é, padece de um vício que se integra no objecto do recurso e de que o tribunal ad quem pode conhecer - ou se entende que não há uma nulidade da decisão, mas apenas uma nulidade processual - situação em que o tribunal ad quem de nada pode conhecer, porque, então, tudo o que conheça extravasa do objecto do recurso.” - Miguel Teixeira de Sousa, Blog do IPPC, 28/01/2019, Jurisprudência 2018 (163) acessível em https://blogippc.blogspot.com/2019/01/jurisprudencia-2018-163.html “… as omissões apontadas e as suas consequências (…) não se situam a montante da decisão, no iter processual anterior à decisão, como se compaginam todas as nulidades a que se reportam os art.º 186º e segs. do CPC, mas exactamente neste mesmo momento decisório, como que constituindo um vício substantivo ou material, intrínseco da decisão impugnada, em sentido próprio.” “… as nulidades invocadas não se inscrevem no segmento de desvio do formalismo processual prescrito na lei, não têm natureza procedimental ou processual, configurando-se sim como omissões ou vícios de natureza material ou substantiva, cometidos no próprio momento da decisão, corrompendo esta” (www.dgsi.pt Acórdão do STJ proferido a 13 de outubro de 2022, no processo 9337/19.4T8LSB-B.L1.S1). Assim, entendo que este tribunal deveria ter-se pronunciado sobre as invocadas omissões de notificações da R., considerando não ter a recorrente razão, atento o disposto no art.º 249º nºs 3 a 5 do C.P.C. No mais, concordo com o acórdão. Maria do Céu Silva |