Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
4215/13.3TBBRG .G1
Relator: AMÍLCAR ANDRADE
Descritores: REVELIA
RÉU
FALTA DE CONTESTAÇÃO
FUNDAMENTAÇÃO DA DECISÃO
CONFISSÃO FICTA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 07/03/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ANULADA A SENTENÇA RECORRIDA
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: I. A causa, não obstante se considerarem confessados os factos articulados pelo autor por falta de contestação, tem de ser julgada conforme for de direito.
II. Mas uma sentença deve obedecer, na sua elaboração, ao estatuído no nº 3 do art.º 607º do CPC, que manda discriminar os factos que o julgador considera provados, o que implica naturalmente uma prévia selecção dos factos articulados pelo autor.
III. Só depois devendo a causa ser julgada conforme for de direito.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães


Nuno … intentou a presente acção, com processo comum sob a forma ordinária, contra a “Companhia de Seguros …. S.A.”, pedindo que esta seja condenada a pagar-lhe a quantia de €6.995,03 ou a quantia de €8.635,32, a primeira por corresponder ao custo da reparação do veículo automóvel com a matrícula xxx, danificado em consequência de um acidente de viação provocado pelo condutor de um outro veículo cujo proprietário transferira a responsabilidade civil emergente da sua circulação para ela, Ré, e a segunda por corresponder ao valor comercial daquele veículo, coberto por um seguro de danos próprios por si igualmente celebrado com a Ré, uma e outra acrescidas de uma indemnização pela privação do uso de tal veículo entre a data do sinistro e a data em que o mesmo lhe for entregue devidamente reparado, que liquida em €30,00 diários, e da quantia de €2.000,00 a título de indemnização por danos morais.
Peticiona ainda juros de mora sobre todas as indicadas quantias, contados à taxa legal, desde a citação até efectivo e integral pagamento.
Devidamente citada, a Ré não contestou.
Foi dado cumprimento ao disposto no n.º 2 do artigo 567º do Novo Código de Processo Civil.
Foi então proferida sentença, que decidiu, nos seguintes termos:
“Uma vez que a Ré não contestou e que não se verifica nenhuma das excepções ao funcionamento da revelia, considero confessados os factos articulados pelo A., pelo que, tendo presente o disposto no n.º 3 do preceito acima citado e o estatuído nos artigos 483º, 487º, 562º, 564º e 566º, todos do Código Civil, e no artigo 3º do Código da Estrada, condeno a Ré, como seguradora para a qual se encontrava transferida a responsabilidade civil emergente da circulação do veículo automóvel com a matrícula yyy a pagar ao A. a quantia de €6.995,03 (seis mil, novecentos e noventa e cinco euros e três cêntimos), correspondente ao valor em que foi orçada a reparação do veículo com a matrícula xxx (inferior ao valor comercial deste à data do sinistro e que, como tal, não pode ser considerado excessivamente oneroso para efeitos de derrogação do princípio da reconstituição natural), bem como uma indemnização pela privação do uso do veículo em causa entre a data do sinistro e a data em que o mesmo for entregue ao A. devidamente reparado, cuja liquidação se relega para momento ulterior, como permite o n.º 2 do artigo 609º do NCPC (anotando-se, a este propósito, que o A., caracterizando suficientemente o dano que a falta de disponibilidade do veículo lhe causa, não concretiza o prejuízo diário sofrido a esse título, limitando-se a alegar que “o aluguer de uma viatura de características iguais (…) ronda os valores diários de €30,00”), ambas acrescidas de juros de mora, contados à taxa legal, desde a citação até efectivo e integral pagamento (artigos 559º, n.º 1, 804º, 805º, n.º 3 e 806º, n.º 1, todos do Código Civil).
Inversamente, julgo improcedente o pedido de condenação da Ré a pagar ao A. a quantia de €2.000,00 a título de compensação por danos morais, visto que os incómodos sofridos não revestem gravidade bastante para merecer a tutela do direito, de harmonia com o critério previsto no artigo 496º, n.º 1 do Código Civil – nesse sentido, veja-se, entre muitos outros, o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 23.10.2007, disponível na internet no endereço WWW.dgsi.pt.
Custas por A. e Ré na proporção de 1/3 e 2/3, respectivamente, a corrigir em função da liquidação que vier ser efectuada”.

Contra esta sentença se insurgiu a Ré…, recorrendo de apelação.
Na sua alegação de recurso alinhou as seguintes conclusões:
1ª) A sentença proferida no tribunal a quo não elenca, não escolhe, não selecciona, não discrimina, enfim, não diz nem especifica quais os factos – i.e. as ocorrências concretas da vida real – que têm como provados na causa que tem para decidir, ou decidiu;
2ª) Não lhe basta remeter para um petitório articulado prenhe de meras asserções conclusivas, tampouco só dos necessários factos – e quais?, de entre umas e outros sem distinção ou excepção alguma! – para se ter como justa ou cabalmente preenchido o ónus fundador judiciário que está em causa;
3ª) Fazendo-o, como faz in casu, decaiu no vício de nulidade previsto e cometido ao caso pelo disposto no art. 615º/1.b)-4 CPC, devido à falta de fundamentação expressa ali implicada pelo disposto no art. 607º/3;
4ª) Tal como está, de facto, nem sequer é susceptível de boa apreciação em recurso da causa, tornando-se antes como que insindicável em si mesma, atento o próprio teor do petitório para onde remete, tão fluido que é esse articulado de factos autênticos e/ou, antes, já de meras asserções conclusivas, e até alegado/as em alternativa!, e para onde assim se remeteu tão singelamente, sem discriminação e/ou selecção factual (mais propriamente) alguma, tornando praticamente insindicável a decisão, por omissão factual fundadora e que não cabe à parte passiva como que adivinhar, ou seleccionar ela própria, de entre o tal arrazoado do petitório da causa para depois poder sindicar, em recurso, o dispositivo condenatório que é mais específico à prolação da causa (v. in casu a condenação em obrigação genérica a liquidar em execução de sentença);
5ª) Com a confissão ficta, por falta de contestação, não se sucede a inaplicação do demais previsto no CPC, quanto à prolação da causa, senão terem-se por confessados os factos alegados e que compete discriminar (v. expressão incisiva legal contida no cit. art. 607º/3 CPC) na sentença, depois de seleccionados e retirados do arrazoado do petitório em causa, o que é pacífico na doutrina aplicável e ao dispor público em geral;
6ª) E se o julgador até fica, assim, com a missão facilitada, quanto à análise crítica das provas que a acção lhe merece (!), não tem como receber mais facilidades em prejuízo das partes que querem ver essa acção julgada, e bem julgada: com a sua fundamentação factual em apoio ali expresso, maxime tendo em conta o campo passivo, em função de tal confissão ficta – v. Prof’s Alberto dos Reis e J. Lebre de Freitas amplamente já citados e/ou transcritos nos autos em folheio.
TERMOS EM QUE,
Deve o recurso ser julgado procedente e a sentença anulada, ou declarada nula, dada o vício de nulidade por absoluta falta de fundamentação factual expressa, que nela não se acha discriminada, como se requer (v. art. 607º/3 CPC vigente), com as legais consequências, assim se fazendo a habitual JUSTIÇA!

Contra-alegou o Autor/Recorrido concluindo a sua alegação do seguinte modo:
1. Os factos articulados pelo A./Recorrido são claros, e descrevem de forma precisa como ocorreu o acidente de viação em discussão nos presentes autos, assim como, os danos derivados do mesmo.
2. A matéria factual, dada sua simplicidade e clareza, não necessitava de ser discriminada na sentença.
3. O artigo 567.º n.º 3 do CPC, consagra que “ Se a resolução da causa revestir manifesta simplicidade, a sentença pode limitar-se à parte decisória, precedida da necessária identificação das partes e da fundamentação sumária do julgado”.
4. Todos os requisitos enunciados – identificação sumária e fundamentação sumária – foram observados pelo Tribunal “Ad quo”, não se verificando a invocada nulidade.
5. A Sentença ora posta em crise pela R/Recorrente não merece qualquer tipo de reparo ou censura, tendo o tribunal “A quo” apreciado os factos de forma clara e objetiva, estando a sentença isenta de quaisquer vicíos ou nulidades.
6. Motivo pelo qual não deverá obter qualquer provimento o Recurso interposto pela Recorrente!

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

Factos: os constantes deste Relatório.

O Direito
A questão que vem posta: saber se a sentença proferida enferma de nulidade prevista no artº 615º nº1 al. b) do CPC.
O artigo 567º, do Código de Processo Civil, sob a epígrafe Efeitos da revelia, estabelece o seguinte:

1. “Se o réu não contestar, tendo sido ou devendo considerar-se citado regularmente na sua própria pessoa ou tendo juntado procuração a mandatário judicial no prazo da contestação, consideram-se confessados os factos articulados pelo autor.

2. O processo é facultado para exame pelo prazo de 10 dias, primeiro ao advogado do autor e depois ao advogado do réu, para alegarem por escrito, e em seguida é proferida sentença, julgando a causa conforme for de direito.

3. Se a resolução da causa revestir manifesta simplicidade, a sentença pode limitar-se à parte decisória, precedida da necessária identificação das partes e da fundamentação sumária do julgado”.

Nos termos do n.º 1 deste artigo, “consideram-se confessados” os factos alegados pelo Autor. Trata-se, portanto, de prova (os factos ficam provados em consequência do silêncio do Réu) e aparentemente, duma ficção (ficciona-se uma confissão inexistente, equiparando os efeitos do silêncio do Réu aos da confissão, de que tratam os arts. 352.º e seguintes, do Código Civil).

De facto, fala-se tradicionalmente, de confissão ficta (ficta confessio) para designar o efeito probatório extraído do silêncio da parte sobre a realidade dum facto alegado pela parte contrária, seja mediante a pura omissão de contestação, seja mediante a não impugnação desse facto, em contestação ou outro articulado apresentado, em inobservância do ónus de impugnação – (cf. Prof. Lebre de Freitas e Drs. A. Montalvão Machado e Rui Pinto, no Código de Processo Civil Anotado, volume 2.º, págs. 266-267). Observam ainda estes Autores, na anotação 4.ª ao artigo 484.º (artº 567º do NCPC): “Considerarem-se os factos alegados pelo autor como confessados não implica que o desfecho da lide seja, necessariamente, aquele que o demandante pretende, porque o juiz deve, seguidamente, julgar a causa aplicando o direito aos factos admitidos. Para designar esta circunscrição do efeito cominatório da revelia aos factos usa a doutrina a expressão efeito cominatório semi-pleno, em oposição ao efeito cominatório pleno.

(….) Nos processos cominatórios semi-plenos, apesar de os factos alegados pelo autor se considerarem admitidos, o juiz fica liberto para julgar a acção materialmente procedente (como se admite que seja a hipótese mais vulgar), mas também para se abster de conhecer do mérito da causa e absolver o réu da instância (quando verifique a falta insanável de pressupostos processuais), para julgar a acção apenas parcialmente procedente (quando, por exemplo, o autor tiver formulado dois pedidos, sendo um deles manifestamente infundado), para a julgar totalmente improcedente (se dos factos admitidos não puder resultar o efeito jurídico pretendido) e até para reduzir aos justos limites determinada indemnização peticionada (art. 566-2 CC)” – (cf. Ob. Cit., volume 2.º, págs. 268-269).

Resulta, assim, desta disposição legal que não tendo o réu contestado – e tendo sido ou devendo considerar-se regularmente citado – consideram-se confessados os factos articulados pelo autor e é em seguida proferida sentença, julgando a causa conforme for de direito. A causa, não obstante se considerarem confessados os factos articulados pelo autor, tem de ser julgada conforme for de direito.
Mas uma sentença deve obedecer, na sua elaboração, ao estatuído no nº 3 do artº 607º do CPC, que manda discriminar os factos que o julgador considera provados, o que implica naturalmente uma prévia selecção dos factos articulados pelo autor.
Só depois é que se pode julgar a causa conforme for de direito.
No caso dos autos, a petição inicial contém 108 artigos e nem todos contêm apenas factos.
Impunha-se então a discriminação dos factos que o Juiz considera provados, pois, só dessa forma é possível sindicar tal decisão, em sede de recurso, ainda que a matéria de facto não tenha sido impugnada (cfr. art. 712º do C.P.C.), bem como proceder à aplicação da regra da substituição do Tribunal recorrido, sendo caso disso, (cfr. art. 715º do mesmo C.P.C.), não devendo negligenciar-se - ‘last but not the least’ - que o réu revel, como bem lembra Abílio Neto, (C.P.T. Anotado, 3ª Edição, 2002, pg. 144), continua a ser afinal o destinatário da decisão e deve saber quais os factos tidos por relevantes e que estiveram na base da sua condenação (cfr. Ac. RC de 20-5-2004, Proc 697/04, www.dgsi.pt). Ocorre, deste modo, a causa de nulidade da sentença, prevista no nº 1 al. b) do artº 615, segundo o qual «é nula a sentença quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão».

Nestes termos, acorda-se em a anular a sentença recorrida, devendo ser proferida nova decisão em conformidade com o exposto.
Sem custas.
Guimarães, 03-07-2014

Relator: Amílcar Andrade
Adjuntos: José Manso Rainho
Carlos Carvalho Guerra