Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
401/19.0PLLRS.L1-9
Relator: FILIPA COSTA LOURENÇO
Descritores: FUNDAMENTAÇÃO DO DESPACHO
IRREGULARIDADE
PRAZO E LOCAL DE ARGUIÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/01/2021
Votação: DECISÃO INDIVIDUAL
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: Ao contrário do regime recursivo em sede de sentença final, em que é permitido invocar a nulidade decorrente da falta de fundamentação  nos termos do disposto no artigo 379.º n.º 2 do Código Processo Penal, a eventual falta ou insuficiência de fundamentação de um despacho judicial, constituindo uma irregularidade, não é idóneo para ser invocado como fundamento de um recurso, antes devendo ser suscitada perante o tribunal que a praticou, sob pena de se considerar sanada nos termos do artigo 123.º do Código de Processo Penal
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Decisão sumária, ao abrigo do artigo 417.º n.º 6 alínea b) do Código de Processo Penal

I.
Nos presentes autos provenientes do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte, juízo de Instrução criminal de Loures-Juiz 1, o ofendido AA devidamente identificado nos autos a folhas 2, veio através de requerimento requerer a sua constituição como assistente, que foi deferida, ao mesmo tempo que requereu a abertura da instrução imputando  alegadamente ao arguido BB a pratica de  : (...)
– -Um crime de Ofensa à integridade física grave na forma tentada, p.p. pelo artº 144 e 23 nº 1 do C.P., um crime consumado de ameaça, p.p. pelo artº 153 do CP, e um crime consumado de fotografias ilícitas, p.p. pelo artigo 199 nº 2 do C.P.
 Previamente o MºPº através de despacho de folhas  82 e seguintes determinou o arquivamento do inquérito contra o arguido. O ora recorrente veio deduzir RAI e através do despacho recorrido proferido a folhas 118 e seguintes, decidiu-se não admitir o RAI apresentado pelo assistente e ora recorrente, essencialmente por falta de elementos subjectivos.
Inconformado, porém, com esta decisão proferida nestes autos, o assistente supra identificado veio interpor recurso, daquele despacho a folhas 125 e seguintes, com os fundamentos constantes da respectiva motivação que aqui se dão por inteiramente reproduzidas, apresentando também as correlativas conclusões.
O recurso foi admitido através de despacho de folhas 160.
O MºPº apresentou resposta a folhas 163.
A digna Procuradora Geral Adjunta apresentou o seu parecer a folhas 172, no qual concorda com a resposta apresentada pelo MºPº na 1ª instância e concluindo pela procedência do recurso apresentado pelo assistente.
O presente recurso tem como objeto o seguinte e contido nas conclusões do seu recurso:
- Pugna que o despacho recorrido padece de falta de fundamentação nos termos do artº 97 nº 5 do C.P.P.  e que tal falha constituiu uma irregularidade nos termos do artº 123 do C.P.P., invalidade que expressamente vem arguir;
Foi cumprido o disposto no artº 417º nº 2 do CPP.
O processo seguiu os seus termos legais.
II.
Efectuado o exame preliminar foi considerado haver razões para a rejeição do recurso (art.ºs 412.º, 414.º e e 420.º, n.º 1 do Código de Processo Penal) passando-se a proferir decisão sumária, ao abrigo do artigo 417.º n.º 6 alínea b) do Código de Processo Penal.
A lei adjectiva instituiu a possibilidade de rejeição dos recursos em duas vertentes diversas, admitida que está, no nosso processo penal a cindibilidade do recurso, princípio acolhido nos arts. 403.º nº 1, 410.º n.º 1 e 412.º n.º 2:
1) Rejeição formal que se prende com a insatisfação dos requisitos prescritos no art. 412.º n.º 2;
2) Rejeição substantiva que ocorre quando é manifesta a improcedência do recurso.
A manifesta improcedência verifica-se quando, atendendo à factualidade apurada, à letra da lei e à jurisprudência dos tribunais superiores, que é patente a sem razão do recorrente.
 A figura da rejeição destina-se a potenciar a economia processual, numa ótica de celeridade e de eficiência.
A possibilidade de rejeição liminar, em caso de improcedência manifesta, tem em vista moralizar o uso do recurso (…) (Ac. STJ de 16 de Novembro de 2000, proc. n.º 2353-3; SASTJ, n.º 45, 61 e também o Ac. Tribunal Constitucional nº17/2011 , DR, II Série de 16-02-2011, decidiu: Não julga inconstitucional a norma extraída do artigo 417.º, n.º 6, alínea b), do Código de Processo Penal, quando permite ao juiz relator proferir decisão sumária de indeferimento, em caso de manifesta improcedência do mesmo (…) e Ac. TRE de 3-03-2015 : I. A manifesta improcedência do recurso (conceito que a lei não define) nada tem a ver com a extensão da matéria submetida a apreciação, nem com a sua intrínseca complexidade, nem com a prolixidade da motivação do recurso (na procura de deixar bem claras as razões de discordância com a decisão recorrida).II. O que releva é o bem-fundado, a solidez ou o apoio legal, doutrinário ou jurisprudencial, da argumentação usada para atacar a decisão de que se recorre. III. Existirá manifesta improcedência sempre que seja inequívoco que essa argumentação de modo nenhum pode conduzir ao efeito jurídico pretendido pelo recorrente, in www.dgsi.pt ).
Aliás, anote-se que mesmo no Tribunal Constitucional, As “decisões sumárias”, proferidas nos termos do artigo 78º-A da Lei do Tribunal Constitucional, Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, (na redacção da Lei nº 13-A/98, de 26 de Fevereiro), vêm gradualmente assumindo maior relevância na jurisprudência do Tribunal Constitucional, no que respeita quer aos pressupostos do recurso de constitucionalidade, quer a julgamentos de mérito quando é manifesta a falta de fundamento do recurso (http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/decsumarias/).
Em caso de rejeição do recurso, a decisão limita-se a identificar o tribunal recorrido, o processo e os seus sujeitos e a especificar sumariamente os fundamentos da decisão - art. 420.º, n.º 2 do C.P.Penal.
Recurso do assistente/ ofendido
As questões suscitadas e a apreciar no presente recurso reconduzem-se às pretensões do recorrente e de acordo com as conclusões ínsitas no recurso que são as seguintes:
- Pugna que o despacho recorrido padece de falta de fundamentação nos termos do artº 97 nº 5 do C.P.P.  e que tal falha constituiu uma irregularidade nos termos do artº 123 do C.P.P., invalidade que expressamente vem arguir;
Decidindo diremos:
A este propósito, cita-se o acórdão da Relação do Porto, de 15/02/2019, proferido no processo 108/10.4PEPRT-H.P1, segundo o qual, “ao contrário do regime recursivo em sede de sentença final, em que é permitido invocar a nulidade decorrente da falta de fundamentação (artigo 379.º n.º 2 do Código Processo Penal), a eventual falta ou insuficiência de fundamentação da decisão em apreço não constitui fundamento de recurso, antes devendo ser suscitada perante o tribunal que a praticou, sob pena de se considerar sanada - cfr. artigo 123.º do Código” (disponível em www.dgsi.pt, como outros que venham a ser citados sem diversa indicação).
Vejamos.
 Estabelece o artigo 97.º, n.º 5, do C.P.P.:
«Os actos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão.»
Como aponta Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário ao Código de Processo Penal, Ed Univ. Católica, pag.268, a fundamentação “é um raciocínio argumentativo que possa ser entendido e reproduzido (nachvollziehbar) pelos destinatários da decisão”.
Diz-se no acórdão da Relação do Porto, de 15/02/2019,  que a fundamentação de um acto decisório deve estar devidamente exteriorizada no respectivo texto, de modo que se perceba qual o seu sentido, ainda que não se deva exigir que “no acto decisório fiquem exauridos todos os possíveis posicionamentos que se colocam a quem decide, esgotando todas as questões que lhe foram suscitadas ou que o pudessem ser”, pois “não pode escamotear-se que, a ser assim, ou seja, a exigir-se uma tão exaustiva fundamentação a todos os despachos judiciais como a imposta para as sentenças finais, estar-se-ia a postergar a almejada celeridade processual que, como é consabido, é pedra de toque no nosso processo penal.”
E acrescenta-se:
“O que importa é que a motivação seja necessariamente objetiva e clara, e suficientemente abrangente em relação às questões aí suscitadas, de modo que se perceba o raciocínio seguido. Motivação da fundamentação e prolixidade não são sinónimos, sendo que esta apenas serve para confundir ou obnubilar a compreensibilidade que deve ser uma característica daquela.”
Constitui entendimento pacífico o de que a falta de fundamentação das decisões judiciais, situação que se traduz na falta de especificação dos motivos de facto e de direito da decisão (artigos 205.°, n.º 1, da C.R.P. e 97.º, n.º 5, do C.P.P.), constitui mera irregularidade (artigo 118.º, n.ºs 1 e 2), a menos que se verifique na sentença, acto processual que, conhecendo a final do objecto do processo (artigo 97.º, n.º 1, al. a), do C.P.P.), a lei impõe obedeça a fundamentação especial, sob pena de nulidade (artigos 379.º, n.º 1, al. a), e 374.º, n.º 2, do mesmo diploma legal), ou que se verifique no despacho que decreta uma medida de coacção ou de garantia patrimonial (artigo 194.º, n.º 6, do C.P.P.) ou no de pronúncia (artigos 308.º, n.º 2 e 283.º, n.º 3, do mesmo diploma), em que o legislador igualmente comina a falta de observância do específico dever de fundamentação desses actos com nulidade.
No caso em apreço não estamos perante uma sentença, mas sim um mero despacho sendo certo que este não sendo de mero expediente exige fundamentação, mas a falta de fundamentação, dos despachos judiciais não se mostra cominada com a sanção da nulidade, razão pela qual constitui, como já se disse, mera irregularidade.
De facto, o art. 118 nº 1 do CPP diz que a violação ou a inobservância das disposições da lei do processo penal só determina a nulidade do acto quando esta for expressamente cominada na lei.
Não havendo norma que, genericamente, determine a nulidade dos actos decisórios não fundamentados (cfr. arts. 119 e 120 do CPP), estes só serão nulos nos casos em que a lei o diga expressamente, como acontece em relação à sentença – arts. 374 e 379 nº 1 do CPP.
Nos demais casos, a falta de fundamentação constitui irregularidade, submetida ao regime do art. 123 do CPP – v. Maia Gonçalves, em anotação ao art. 97 do CPP.
Não tendo o recorrente arguido a invalidade do acto no prazo indicado no art. 123 nº 1 do CPP, requerendo que o despacho (e no seu entendimento) seja fundamentado, sempre teria ficado sanada a irregularidade, se houvesse, uma vez que esta não foi arguida nos termos legais, não podendo pretender saná-la por via do presente recurso, quando já exauriu o prazo legal para a arguir e ainda sendo certo que a mesma deveria ter sido suscitada perante o Tribunal “ a quo”.
Diz-se ainda que poderá parecer uma irregularidade/nulidade, o que se estatui e prevista na norma do nº 2 do art. 123 do CPP – “pode ordenar-se oficiosamente a reparação de qualquer irregularidade, no momento em que da mesma se tomar conhecimento, quando ela puder afectar o valor do acto praticado”, mas só de forma aparente.
Apesar da redacção aparentemente abrangente, esta norma não pode constituir-se em verdadeiro caldeirão de todos os casos de inobservância das regras processuais.
Em primeiro lugar, há que distinguir entre a validade do acto e o seu valor.
“O acto será válido se a irregularidade não for declarada, mas pode não ter valor, designadamente por não poder produzir os efeitos a que se destina” – v. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, ed. 99, pag. 80.
Como também escreve aquele Prof. no mesmo local, a reparação oficiosa das irregularidades previstas naquele nº 2, há-de ser feita pela autoridade judiciária competente para o acto, enquanto mantiver o domínio dessa fase do processo.
Aliás, mal se perceberia que, sendo a irregularidade o menos relevante dos vícios processuais, tivesse um regime mais devastador do que as nulidades relativas (estas, se não forem arguidas no prazo de 10 dias, ficam sempre definitivamente sanadas – arts. 120 e 105 nº 1 do CPP).
Neste sentido também Gil Moreira dos Santos, citado por Simas Santos e Leal Henriques, em anotação ao art. 123 do CPP – Esta irregularidade pode ser conhecida oficiosamente “desde que conhecida enquanto esteja em curso a diligência processual em que o acto seja praticado”. Será o caso, por exemplo, de o juiz se esquecer de ajuramentar uma testemunha e de se aperceber da omissão ainda no decurso da audiência (na mesma ou noutra sessão). O depoimento prestado não tem «valor», mas o tribunal pode reparar oficiosamente a irregularidade, ainda que ninguém a tenha arguido. É de situações similares a esta, ocorridas no decurso de alguma diligência, que trata a norma do art. 123 nº 2 do CPP.
Temos ainda a própria sistematização do Código de Processo Penal, que nos arts. 118 e ss (Título V do Livro I), de forma decrescente, trata dos casos de violação ou inobservância das disposições da lei do processo penal.
 Começa pelos vícios mais graves (nulidades insanáveis – art. 119), passa às nulidades dependentes de arguição (art. 120), seguem-se as irregularidades com um regime mais apertado de arguição (art. 123 nº 1), para finalmente tratar das irregularidades do art. 123 nº 2.
Ora estas estas últimas irregularidades teriam, pelo menos, um efeito tão fulminante quanto as nulidades insanáveis, sendo que, quanto a estas, foi clara a intenção do legislador as reduzir ao mínimo, ao impor o princípio da legalidade: para que algum acto processualmente anómalo padeça do vício da nulidade é necessário que a lei o diga expressamente (art. 118 nº 1 do CPP).
As irregularidades estão sujeitas ao regime do artigo 123.º, n.º1, do C.P.P., sendo certo que o recorrente não cumpriu esse regime, já que não a invocou perante o tribunal “a quo” no prazo previsto nesse preceito legal, coisa que aliás nem é, sequer, minimamente questionado nos autos, sendo que a existir tal irregularidade/ invalidade invocada já se encontra sanada pelo decurso do tempo, por não ter sido atempadamente invocada em sede própria junto do Tribunal recorrido( vide supra Ac TRL de 24/11/2020, in www.dgsi.pt).
Ao invés, com este mesmo fundamento o recorrente decidiu interpor recurso para este Tribunal, sendo que, convenhamos tal “modus operandi” não é de todo consentâneo com as normas legais em vigor.
Nestes termos, o recurso interposto pelo recorrente terá que ser rejeitado por impossibilidade legal, nos termos do disposto no artº 417 nº6 al. b) do C.P.P.
III.
1.Pelo exposto rejeita-se nos termos do artº 417º nº b) do C.P.P. o recurso interposto, pelo assistente AA, devidamente identificado nos autos, confirmando-se na íntegra o despacho recorrido;
2. Custas, a cargo do recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 6 UC (3 UC + 3UC) artº 420 nº 3, e demais encargos legais.
3. Notifique e D.N.
Lisboa, 1 de Março de 2021 (integralmente revisto pela Juíza Desembargadora signatária nos termos do disposto no artº 94º nº 2 do C.P.P.)
              
Filipa Costa Lourenço