Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
782/19.6T9LSB.L1-5
Relator: SANDRA OLIVEIRA PINTO
Descritores: DIFAMAÇÃO
HONRA
LIBERDADE DE EXPRESSÃO
INTERESSE PÚBLICO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/21/2025
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: I- A propósito da tutela da honra, expõe FARIA COSTA: «O facto de a honra ser um bem jurídico pessoalíssimo e imaterial, a que não temos a menor dúvida em continuar a assacar a dignidade penal, mas um bem jurídico, apesar de tudo, de menor densidade axiológica do que o grosso daqueles outros que a tutela do ser impõe. Uma prova evidente de tal realidade pode encontrar-se nas molduras penais - de limites extraordinariamente baixos - que o legislador considerou adequadas para a punição das ofensas à honra.»
II- A proteção da liberdade de expressão não releva apenas perante a manifestação de juízos valorativos inócuos, favoráveis ou consensuais.
III- O TEDH vem consistentemente interpretando o artigo 10º da CEDH no sentido de que a liberdade de expressão constitui um dos fundamentos essenciais de uma sociedade democrática e uma das condições primordiais do seu progresso e realização de cada um. Sem prejuízo do n.º 2, ela é válida não apenas para as «informações» ou «ideias» acolhidas favoravelmente ou consideradas como inofensivas ou indiferentes, mas também para as que ferem, chocam ou causam inquietação. Assim o exigem o pluralismo, a tolerância e o espírito de abertura sem os quais não há «sociedade democrática».
IV- Em face do que se dispõe no artigo 18º, n.ºs 2 e 3, da Constituição da República, as restrições a direitos fundamentais, feitas por lei ou com base na lei, designadamente por decisão jurisdicional, devem limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos da mesma natureza ou interesses objetivos constitucionalmente garantidos. Quer isto dizer que tais restrições devem respeitar o princípio da proporcionalidade em sentido amplo, isto é, têm de ser adequadas (aptas), necessárias (exigíveis) e proporcionais (na justa medida) à proteção de outros direitos ou interesses constitucionais. Não podendo, em caso algum, diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais consagradores dos direitos atingidos.
V- Sabendo-se que existem, no nosso país, vários casos em que é questionada a morosidade da decisão nos processos relativos a menores e o excesso no afastamento do respetivo núcleo familiar – que já justificaram várias condenações do Estado português no TEDH – nem sequer se pode afirmar que a questão não mereça ser trazida ao debate público, ou que não seja necessária reflexão sobre as práticas dos serviços destinados à proteção das crianças e, em última análise, dos tribunais.
VI- A circunstância de ambos os assistentes exercerem atividade profissional na área da infância juventude – o que, claramente, ampliou o sentimento de impotência da arguida – contribui para que deva considerar-se mais lata a respetiva esfera de proteção. Dos assistentes, pela respetiva formação e pelas funções exercidas, espera-se o reconhecimento dos direitos familiares e a contribuição para o respetivo respeito. Por isso, a sua conduta não pode ser colocada a salvo da crítica.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam em conferência na 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
*
I. Relatório
1. Para ser julgada perante tribunal singular, foi acusada a arguida AA, filha de BB e de CC, natural da freguesia de ..., concelho de …, onde nasceu no dia ... de ... de 1969, divorciada, sem profissão conhecida, residente no ..., titular do cartão de cidadão n.º ... ZZ0, emitido pela República Portuguesa, mediante acusação particular (que o Ministério Público acompanhou parcialmente), sendo-lhe imputada a prática, em autoria material e sob a forma consumada, de 16 (dezasseis) crimes de difamação, sendo, 9 (nove) deles em relação ao assistente DD e 7 (sete) deles em relação à assistente EE, previstos e punidos pelas disposições conjugadas dos artigos 14.º, n.º 1, 26.º e 180.º, n.º 1, 183.º, n.ºs 1, alínea a), e 2 (no que respeita aos factos transmitidos no programa “Você na TV”), e 184.º, todos do Código Penal, dos quais viria a ser absolvida por sentença datada de 05.02.2024.
2. Inconformados com tal decisão final, dela interpuseram recurso os assistentes DD e EE, extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões:
“a) O presente recurso é interposto da Sentença com a Ref.ª CITIUS n.º 432624055, proferida no passado dia 5 de fevereiro de 2024, que decidiu absolver a arguida da prática de 16 crimes de difamação, previstos e punidos pelo art.º 180.º, n.º 1, 182.º, 183.º, n.º 1 e 184.º, todos do CP, pelos quais havia sido acusada pelos Recorrentes.
b) Em primeiro lugar, consideram os Recorrentes que a Sentença a quo padece do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, previsto no art.º 410.º, n.º 2, al. a) do CPP.
c) Isto porque o Tribunal recorrido não apurou, nem considerou provados factos que lhe permitissem concluir no sentido de a conduta da arguida, considerada provada no facto provado n.º 6 da Sentença, se encontrar justificada por via do disposto no art.º 180.º, n.º 2, al. b) do CP.
d) Concretizando, a factualidade provada constante da Sentença não compreende nenhum facto que permita concluir, em termos lógicos, pela circunstância de a arguida poder ter fundamento sério para, em boa-fé, considerar ser verdade que os Recorrentes eram uma família agressora que influenciara indevidamente o processo de regulação de responsabilidades parentais; tinham sequestrado a criança FF; tinham recebido a mesma criança na sua casa por dinheiro; tinham feito um sem número de falsificações para lhe tirarem os filhos; que tudo neles era criminoso; que tratavam os «pretos por escravos»; que estavam no centro de uma corrupção de interesses; que se tinham servido do seu cargo para ficar com os seus filhos – expressões estas que parafraseiam as publicações gizadas pela arguida e consideradas provadas no facto provado n.º 6 da Sentença.
e) A única conclusão que o Tribunal recorrido poderia logicamente extrair da factualidade que considerou provada é que a arguida e os Recorrentes não têm uma boa relação.
f) Pelos motivos acabados de sumariar, o Tribunal recorrido não podia também concluir, em face da factualidade que considerou provada, terem os arguidos dado causa ou a aparência da veracidade das publicações constantes do facto provado n.º 6, em termos que obstariam a que os Recorrentes se sentissem ofendidos na sua honra.
g) Por outro lado, o Tribunal recorrido não pode igualmente fazer constar da fundamentação da Sentença que a arguida teria visto os Recorrentes a falar com técnicas da segurança social, quando nem sequer considerou tal pretensa realidade como facto provado, sendo que, ainda que tal tivesse sucedido, não seria jamais bastante para se considerar existir a aparência de uma influência indevida por parte dos Recorrentes.
h) Por estas razões, deverá ser declarado o vício previsto na al. a) do n.º 2 do art.º 410.º do CPP, sendo que, inexistindo elementos que permitam sustentar, nem a atipicidade das condutas da arguida, nem a exclusão da sua ilicitude, a factualidade considerada não provada nos parágrafos d), f), g), h), i), j) e l) deverá passar a integrar a factualidade dada como provada, com as devidas consequências legais, que sempre incluirão a revogação da Sentença a quo e a sua substituição por outra que condene a arguida pelos crimes pelos quais esta se encontra acusada, o que se requer seja determinado por V. Exas.
i) Caso assim não se entenda, o que apenas se equaciona por dever de patrocínio, deverá ser determinado o reenvio do processo para novo julgamento, nos termos do disposto nos arts. 426.º e 426.º-A, do CPP, o que subsidiariamente se requer seja determinado por V. Exas.
j) Os Recorrentes consideram que a Sentença a quo padece também do vício de erro notório na apreciação da prova, previsto no art.º 410.º, n.º 2, al. c) do CPP.
k) Assim, o Tribunal recorrido não pode, simultaneamente, considerar provado o constante do facto provado n.º 6 e considerar como não provado o vertido nos factos n.ºs d), f), g), h), i), j) e l), uma vez que viola as mais elementares regras da experiência considerar que uma pessoa que fez as publicações vertidas no facto provado n.º 6 não visou ofender e denegrir a honra dos Recorrentes, pelo menos com dolo eventual.
l) Na mesma linha, não pode o Tribunal recorrido considerar, por um lado, que “(…) a intenção da arguida não era de vexar ou ofender os assistentes”, que “(…) ofender os assistentes não era de todo a sua prioridade.” e que “A colocação de textos e fotografias na página de Facebook da arguida é muito mais compatível com o “não calar” e com o colocar um “pensamento” e “denunciar” uma situação do que com difamar.”, para depois adiante sustentar que o preenchimento do tipo subjetivo do crime de difamação não é necessária a verificação de dolo específico, bastando o dolo genérico, em qualquer das suas modalidades (cfr. página 24 da Sentença).
m) Padece igualmente de sentido o entendimento de acordo com o qual os Recorrentes seriam os responsáveis pelo afastamento da arguida em relação aos seus filhos, quando resulta dos factos provados n.ºs 16, 21, 22, 23, 24 e 25 que as decisões que determinaram, direta ou indiretamente, esse afastamento, foram tomadas por Tribunais.
n) Por estas razões, deverá ser declarado o vício previsto na al. c) do n.º 2 do art.º 410.º do CPP, devendo a factualidade considerada não provada nos parágrafos d), f), g), h), i), j) e l) passar a integrar a factualidade dada como provada, com as devidas consequências legais, que sempre incluirão a revogação da Sentença a quo e a sua substituição por outra que condene a arguida pelos crimes pelos quais esta se encontra acusada, o que se requer seja determinado por V. Exas.
o) Caso assim não se entenda, o que apenas se equaciona por dever de patrocínio, impõe-se seja determinado o reenvio do processo para novo julgamento, nos termos do disposto nos arts. 426.º e 426.º-A, do CPP, o que subsidiariamente se requer seja determinado por V. Exas.
p) Acresce ao acabado de expor que não é possível concluir, como fez o Tribunal recorrido, no sentido de ter a arguida agido ao abrigo de alguma causa de exclusão da ilicitude.
q) Efetivamente, o Tribunal recorrido andou mal na aplicação que fez do disposto no art.º 180.º, n.º 2 do CP.
r) Em primeiro lugar, as ações da arguida consideradas provadas no facto n.º 6 não podem considerar-se como destinadas à realização de um interesse legítimo na aceção prevista no art.º 180.º, n.º 2, al. a) do CP, na medida em que não é através da publicação de factos falsos ofensivos da honra dos Recorrentes que a arguida logra algum efeito ou alteração nos termos de convívio com os gémeos.
s) Também não é possível considerar – ao contrário do sustentado pelo Tribunal recorrido – ter a arguida fundamento sério para, em boa-fé, considerar verdadeiras as publicações que realizou, nos termos do art.º 180.º, n.º 2, al. b) do CP, uma vez que, não só não resultou qualquer prova de poderem tais factos ser verdadeiros, como também não resultou demonstrado ter a arguida razões para os considerar como tal.
t) O Tribunal recorrido fez também uma aplicação errada da causa de justificação prevista no art.º 31.º, n.º 2, al. b) do CP e do art.º 10.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, pois, ao contrário do entendimento sufragado na Sentença, o direito à liberdade de expressão da arguida não prevalece, no caso concreto, sobre o direito à honra dos Recorrentes.
u) Assim, tal apenas sucederia se às publicações feitas pela arguida e constantes do facto provado n.º 6 da Sentença estivesse subjacente um interesse público, social e/ou político, o que não é o caso, não só porque nenhum dos Recorrentes é figura pública, mas também porque das mencionadas publicações avulta apenas a revelação de um interesse pessoal da arguida.
v) Como imediatamente se conclui da leitura das publicações em questão, destas não decorre uma preocupação ou um sentido de revolta para com as instâncias responsáveis pela tomada de decisões que afetaram negativamente direitos da arguida, mas sim o achincalhamento público e a imputação de factos falsos gravemente lesivos da honra dos Recorrentes, não tendo as ditas publicações sequer capacidade de fazer face às situações que mereceriam a reprovação da arguida.
w) A interpretação correta das normas previstas nos arts. 180.º, n.º 2 e 31.º, n.º 2, al. b), ambos do CP, deveriam, por conseguinte, ter conduzido à conclusão do não preenchimento, in casu, de nenhuma causa de exclusão da ilicitude da conduta da arguida,
x) O que terá de determinar a revogação da Sentença e a condenação da arguida na prática de 16 crimes de difamação: 9 crimes de difamação, em relação ao Recorrente DD, em concurso real e efetivo com outros 7 crimes de difamação, em relação à Recorrente EE, previstos e punidos pelos arts. 180.º, n.º 1, 182.º, 183.º, n.º 1 e 184.º, todos do CP, o que expressamente se requer a V. Exas., com as devidas consequências legais, que sempre incluirão a condenação da arguida no pedido de indemnização civil formulado pelos Recorrentes.
NESTES TERMOS E NOS MELHORES DE DIREITO QUE V. EXAS. DOUTAMENTE SUPRIRÃO, REQUER-SE:
a) Seja declarada a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, ao abrigo do disposto na al. a) do n.º 2 do art.º 410.º do CPP, nos termos e com as consequências supra expostas;
b) Seja declarado o vício de erro notório na apreciação da prova, previsto na al. c) do n.º 2 do art.º 410.º do CPP, nos termos e com as consequências supra expostas; e
c) Seja determinada a revogação da Sentença a quo e seja a mesma substituída por outra que condene a arguida pela prática de 16 crimes de difamação (9 crimes de difamação, em relação ao Recorrente DD e 7 crimes de difamação, em relação à Recorrente EE), previstos e punidos pelos arts. 180.º, n.º 1, 182.º, 183.º, n.º 1 e 184.º, todos do CP, com as devidas consequências legais, que sempre incluirão a condenação da arguida no pedido de indemnização civil formulado pelos Recorrentes.”
3. O recurso foi admitido, por ser tempestivo e legal.
4. O Ministério Público apresentou resposta, pugnando pela improcedência do recurso interposto pelos assistentes, e extraindo da motivação apresentada as seguintes conclusões:
“1 – Pela Sentença recorrida foi a arguida absolvida da prática, como autora material de 16 crimes de difamação p. e p. pelos arts. 180º nº 1, 183º nº 1 al. a) e 184º todos do Cód. Penal.
2 – Da prova produzida em Audiência de Julgamento resultaram provados e não provados os factos constantes da Douta Sentença recorrida.
3 – Da análise crítica da prova e da motivação da matéria de facto constante da Douta Sentença recorrida decorre que o Tribunal a quo alicerçou a sua convicção na prova produzida na Audiência de Julgamento.
4 – A Douta Sentença recorrida fundamenta, em nosso entender, muito claramente, o motivo pelo qual deu como não provados os factos, designadamente os constantes das alíneas a), b), f), g), h), i), j), k) e l).
5 – Face aos factos não provados e tendo em conta a fundamentação relativamente a estes – referentes em especial ao elemento subjectivo da conduta da arguida – logo se constata que a decisão não poderia deixar de ser a absolvição da mesma.
6 – Do exposto resulta, face aos factos provados, aos factos não provados e à fundamentação explanada na Douta Sentença recorrida, que a mesma não viola qualquer das disposições invocadas pelos recorrentes.
7 – Em consequência, deve manter-se na íntegra a Douta Sentença recorrida.
Assim se decidindo, será feita JUSTIÇA”
5. A arguida AA apresentou resposta ao recurso interposto pelos assistentes, concluindo nos seguintes termos:
“I - Omissão da indicação dos concretos pontos de facto que impunham decisão diversa
A. Os recorrentes tecem inúmeras considerações sobre o entendimento jurisprudencial a respeito da teorização dos respectivos vícios, manifestam o seu descontentamento e desagrado com o facto provado n.º 6, procedendo à descrição do mesmo, procedendo ainda à parca transcrição de alguns excertos mais convenientes da fundamentação da sentença (omitindo o essencial) e entendendo dever ser dados como provados os factos não provados d) f) g) h) i) J) e l).
B. O objecto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações, nos termos e para os efeitos do disposto do art.º 412.º CPP, não consta das conclusões, e nem mesmo das alegações a referência a quaisquer meios probatórios constantes dos autos que impusessem decisão diversa.
C. Inclusive apelam os recorrentes na parte final das conclusões das alegações de cada tema sob crítica, à repetição do julgamento, sem nunca indicarem, nos termos do art.º 412.º CPP, quais as provas que em seu entender devem ser renovadas.
D. O n.º 3, alínea b) do art.º 412.º CPP assenta num critério qualitativo «concretas» provas que impõem decisão diversa, por referência aos «concretos» pontos de facto que considera incorrectamente julgados – que não existe no presente caso.
E. A revista ampliada, através da invocação dos vícios decisórios do art.º 410.º, com a possibilidade de sindicar as anomalias emergentes do texto de decisão, e uma outra mais ampla e abrangente, com base nos elementos de documentação da prova produzida em julgamento, permitindo um efectivo grau de recurso em matéria de facto, impõe a observância de certas formalidades decorrentes da impugnação especificada do art.º 412.º, n.º 3 CPP.
F. O não cumprimento do ónus de impugnação especificada constante das alíneas b) e c) do n.º 3 do art.º 412.º CPP, inviabiliza o conhecimento dos fundamentos do recurso apresentado, tal como ensina o Ac. STJ de 05/12/20071, Ac. STJ de 04-10-2006, Proc. n.º 812/06 - 3.ª, de 04-01-2007, Proc. n.º 4093/06 - 3.ª, e de 10-01-2007, Proc. n.º 3518/06 - 3.ª, e Ac. TC Ac. n.º 259/02, de 18-06-2002; 140/04, de 10-03-2004.
G. Termos em que, deve improceder o recurso nesta parte, por preterição das formalidades processuais decorrentes do art.º 412.º, n.º 3 do CPP.
II - Do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto
A. Referem os recorrentes nas suas alegações que, no seu entender, em consequência do facto provado n.º 6, devia ter sido a arguida, ora recorrida condenada, entendendo não haver fundamento ou prova para a exclusão da culpa da ora arguida.
B. Não obstante a ausência de impugnação especificada do art.º 412.º CPP, os Assistentes incumpriram sistematicamente durante vários anos os períodos de convivência definidos pelo tribunal da arguida mãe com os seus filhos; que os assistentes insistem em passar da mãe uma imagem de perigosidade nunca comprovada judicialmente; que o Assistente DD exerceu funções como … e a assistente EE como ... da ... assumindo, pelo menos uma postura de conflito de interesses; que os assistentes por vários anos impediram o contacto da arguida recorrida com os seus filhos à margem de qualquer decisão judicial que o legitimasse – factos provados n.º 14, 15, 16, 17, 18, 19, 21, 23, 24, 26, 28, e 30 da sentença.
C. É evidente que, tendo estado a recorrida mãe privada da relação com os filhos, há presente data perfazendo já 12 anos, por conduta unilateral e arbitrária dos assistentes, não poderia uma pessoa normal, colocada na posição da arguida, com a sua vivência, sentir outra coisa senão que lhe tinham «roubado os filhos».
D. É curioso quando referem nas suas alegações que «A demais factualidade considerada provada pelo Tribunal recorrido diz respeito, ou a outras pessoas que não os Recorrentes (…) ou a decisões proferidas por instâncias jurisdicionais (…) que tiveram por objeto, não os aqui Recorrentes, mas sim outras instâncias jurisdicionais – quando os recorrentes são partes nessas acções.
E. Não deixa de ser curioso que o facto de os assistentes, ora recorrentes, tentarem dar a falsa aparência de que foi o tribunal e as decisões proferidas pelos tribunais que apartaram a mãe dos filhos – quando, nunca os tribunais suspenderam os convívios das crianças com a mãe (com a excepção de despacho de 2017, de que recorreu e obteve provimento no TRL, revogando a decisão) - factos provados 7, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 21, 23, 24, 25, 26, 27, 28 e 30.
F. Conforme consta dos documentos careados para os autos e nos quais o douto tribunal fundou a sua motivação de facto e de direito, consta o seguinte:
• Sentença 26/06/2022, p. 106 «O relatório de 28.09.21 foi subscrito pela Dr.ª GG, que o confirmou, com base nos relatos que constavam no dossier do processo e que lhe terão sido, igualmente, passados numa reunião em que esteve com o Diretor do ..., Dr. HH e com a própria Dr.ª II, desconhecendo as razões pelas quais a mesma, no mês de setembro deixou de exercer funções no ... (cerca de uma a duas semanas após o convívio de ........2021).
• Referiu que propôs a suspensão dos convívios com base no incidente de ........2021, porque os meninos continuavam a recusar-se a neles participar, porque não se lhes deve impor os convívios e porque para a progenitora, a situação de não ver os filhos também era bastante violenta.
• Nunca assistiu, porém, a um convívio presencial entre a mãe e os menores, desconhecendo a dinâmica dos mesmos – as crianças dizem que a mãe é chata, não querem estar com a mãe, não têm saudades, que esta faz as brincadeiras que quer e não as que eles querem fazer, sentindo que a mãe quer invadir os seus espaços; referiu que a mãe, ante a recusa, ficava bastante prostrada e que, algumas vezes, inculcava a responsabilidade da recusa dos menores sobre os Técnicos, verbalizando o seu desagrado, dizendo “mais uma vez não posso ver os meus filhos”»
• Continuando em p. 107 «Não sabe que estratégia utilizou a Dr.ª II para os “convencer” a participar no convívio do dia ........2021; referiu que a sua missão no ... não tem por base convencer as crianças do que quer que seja e que lhes disse, várias vezes, que os mesmos só entrariam nas visitas se quisessem –foi-lhes dada essa capacidade decisória porque não impõe nem obriga ao convívio quando as crianças recusam aquela dinâmica.
• JJ, ... desde ... no ..., assumiu, nesse mês a cogestão do processo, com a Dr.ª KK e depois com a Dr.ª GG; não esteve presente no convívio de ........21, mas foi falado numa reunião consigo, com a Dr.ª II e o Dr. HH, que não tinha corrido bem; a Dr.ª II só esteve um mês no ..., desconhecendo o motivo da sua saída.»
• Continua em p. 108 «Referiu que a proposta de suspensão de convívios foi decisão da Equipa Técnica –que seria ela, a Dr.ª GG e o Dr. HH; porém, começou por dizer não se recordar de ter estado numa reunião onde o tivessem decidido, sendo certo que era cogestora do processo, para depois vir dizer que “é provável que tivesse havido uma reunião entre ambas, aduzindo que “são muitos processos”; após, acabou por afirmar que esteve presente em reunião onde foi proposta a suspensão dos convívios –estranha-se que tivesse tido, nesta parte, um depoimento contido, vago, não sendo crível que não se recordasse de um processo com estas características, pois que, por muitos que tenham, seguramente, não será a maioria que tem dois irmãos gémeos, que se recusam a cada convívio dos que lhe caberia supervisionar, ver e estar com a mãe.»
• Acrescenta «Referiu, ainda, JJ que não esteve presente na reunião entre o ..., os cuidadores e uma advogada, sabendo apenas que terá decorrido antes da proposta de suspensão de convívios por aquela entidade.»; «HH, … e … do ..., referiu que apenas supervisionou dois convívios com a mãe dos menores que correram adequadamente. Depôs de forma nervosa, pouco segura, evasiva quanto a várias questões colocadas.
• Quanto ao convívio de ........2021, desconhece a técnica usada no convívio pela Dr.ª II no sentido de “convencer” os menores a neles participarem.»
• Continua em p. 109 «Na sequência do que lhe foi relatado do que acontecera já no final do convívio, que até tinha decorrido com normalidade, a Dr.ª II, fez relatório e, posteriormente, DD, solicitou uma reunião consigo e com a Dr.ª II, para apurar a situação e o que tinha corrido menos bem, atentas as verbalizações feitas pelos menores em casa. Reuniu com os cuidadores do FF, que se fizeram acompanhar de advogada, e com a Dr.ª II»; «Na reunião esteve presente a Dr.ª GG, que, entretanto, foi quem assumiu a gestão do processo, em substituição da Dr.ª II, não tendo estado a Dr.ª JJ, não obstante esta ser, igualmente, cogestora do processo, não conseguindo esclarecer o motivo a tanto.».
G. Crê-se não restarem dúvidas acerca da conduta e influencia que os ora recorrentes, no exercício das suas funções, e àquela data sequer estando já o Assistente DD na Segurança Social, mas na DGRSP, assim como a sua qualidade de parte nas respectivas acções que os visam.
H. O Acórdão do TRL de 27/10/2022 em p. 69 «…afirmado em audiência de julgamento, depoimentos que, nesta parte não podem ter-se como credíveis e genuínos, evidenciando acima de tudo o interesse que os mesmos têm no desfecho da ação e encontrando-se em manifesta contradição com a realidade dos factos, sendo que mesmo afirmando que não se opõem a isso se o FF quiser, esquecem ou sabem que o FF nunca o poderá querer sabendo que os seus próprios cuidadores, que tem como pais e em quem confia, não o querem…»
I. Acórdão do TRL em pp. 139-140 que «…postura dos cuidadores que foi a de omissão na formação de uma imagem positiva da mãe biológica junto das crianças ou na promoção de laços afetivos…»; «…cuidadores terem passado aos menores a ideia de que eles é que decidem o que querem…»; conflito e acusações mútuas «…menores têm conhecimento, acabando por interiorizar a rejeição que estes têm à Requerente, por razões de lealdade…», e,
J. Em p. 140 «…a oposição que os menores manifestam em tribunal em conviverem com a sua mãe biológica, resulta também do comportamento dos adultos que com eles relacionam, representando um reflexo da sua vontade…»
K. Acórdão do TRL de 27/10/2022 «…os cuidadores procurem dar a entender que não constituem um entrave aos convívios e que a recusa em estar com a mãe biológica é a vontade dos menores, esta é na verdade também a sua vontade, com ela não deixando de induzir a própria postura das crianças…»
L. Não podia a arguida mãe sentir outra coisa senão que os filhos lhe estariam a ser «roubados», e legitimo o sentimento de desconfiança e que tudo seja passível de dúvida.
M. E, portanto, subsumível no n.º 2, alínea b) do art.º 180.º CP.
N. Defendem os ora recorrentes que não poderia ter sido considerado pelo douto tribunal haver no caso uma causa de exclusão da culpa, nos termos do n.º 2, alínea b) do art.º 180.º CP, considerando que a arguida teria fundamento para em boa-fé reputar como verdadeiras as publicações.
O. O n.º 2 do art.º 180.º CP, reportando-se à não punibilidade da conduta nos termos das alíneas a) e b) cumulativamente, se se verificar com tais publicações um fim de interesse publico e que, em boa-fé, possa a arguida reputar de verdadeiras.
P. A respeito do interesse publico, parece plausível, dado que a arguida debate-se não directamente contra os assistentes, mas contra o sistema de justiça que os assistentes, pelas funções que exercem representam de assessoria aos tribunais.
Q. Ao invés, assumiram uma conduta, supra documentada em sentenças transitadas em julgados.
R. Além de legitima tal referência na factualidade provada nos presentes autos, é igualmente legitima e de interesse pública a denúncia pública de condutas de influência no exercício de funções e cargos públicos – a quem sempre caberia um especial decoro e zelo abstendo-se de qualquer conflito de interesses.
S. Termos em que deve improceder o recurso nesta parte por não provado.
III - Do vício de erro notório da apreciação da prova
A. Alegam os recorrentes, em suma que se verifica um vício de erro notório na apreciação da prova por entender haver uma contradição entre o facto provado n.º 6 e a absolvição da arguida recorrida à luz das regras da experiência face á matéria dada como não provada.
B. Em momento algum os ora recorrentes indicam quais os elementos de prova constantes dos autos que impunham decisão diversa.
C. As referências aos ora assistentes têm por base não a sua pessoa, individualmente considerada, mas o que representam no sistema judicial, dadas as funções que exercem.
D. Somente em relação aos recorrentes (não pela conduta individualmente considerada enquanto cuidadores que se apagaram com exclusividade aos filhos da arguida), mas pelo conflito de interesses que os mesmos manifestam no exercício das suas funções enquanto titulares de cargos de assessoria aos tribunais de família e menores.
E. Atenta a factualidade provada e a prova documental carreada para os autos que serviu para motivar a decisão do douto tribunal a quo sobre a matéria de facto e de direito, o foco da arguida são as instituições judiciárias – Tribunal, ... e Segurança Social (núcleo de infância e juventude).
F. Nem nas alegações, nem nas conclusões das alegações os ora recorrentes lograram sustentar de forma minimamente coerente as razões de facto concretas e objectivas em que sustentam a apreciação de um erro notório na apreciação da prova.
G. Veja-se os factos provados 7, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 21, 23, 24, 25, 26, 27, 28 e 30, Sentença 26/06/2022 e Acórdão do TRL de 27/10/2022.
H. Há erro notório na apreciação da prova, nos termos do art.º 410.º, n.º 2, alínea c) CPP, quando «para a generalidade das pessoas, seja evidente uma conclusão contraditória à exposta pelo tribunal, nisto se concretizando a limitação ao principio da livre apreciação de prova nos termos do art.º 127.º CPP, quando afirma que a prova é apreciada segundo as regras da experiência»2.
I. O recurso às regras da experiência exigem um elevado grau de atenção e critica, que deve ser conformado pelo contexto vivencial do conflito subjacente e que se encontra. No caso presente, devidamente
documentado.
J. Termos em que, deve improceder o recurso nesta parte por não provado.
IV - Da Liberdade de Expressão e opinião
A. A propósito da relevância de interesse publico e notoriedade, em especial da ora arguida, e sobretudo do conflito sobre a convivência familiar com os seus filhos gémeos que é o pano de fundo dos presentes autos, há que referir que a ora arguida é uma pessoa conhecida, participa em vários programas televisivos e, o seu caso, dada a condenação do Estado Português pelo TEDH, tem sido alvo de apreciação e estudo pela comunidade jurídica, quer a nível nacional, quer internacional, sendo significativa a lista de publicações sobre o caso.
B. A ora arguida, enquanto particular tem actuação e relevância pública, pelo que representa o seu caso, tem notoriedade pública e o seu caso é objecto de interesse público, jurídico e académico.
C. O direito à liberdade de expressão é um direito de todos os cidadãos, e não um direito especial exclusivo dos mídia ou políticos - TEDH de VC v. PORTUGAL, queixa 48979/19, julgamento de 16/01/20243; UG e IKFT c. Hungria, n.º 64520/10, § 46, 3 de dezembro de 2013; GGF ET F E C c. PORTUGAL, queixa 1529/08, julgamento de 29/03/20114
D. O artigo 10.º CEDH protege não só a substância das ideias e informações expressas, mas também o seu modo de expressão.
E. E necessário distinguir cuidadosamente entre factos e juízos de valor. Se a materialidade dos primeiros puder ser provada, os segundos não se prestam a uma demonstração da sua exatidão.
F. A especial e acertada consideração e juízo de ponderação que o douto tribunal a quo faz ao referir, invocando a jurisprudência do TEDH, que uma coisa são factos imputados e outra são opiniões expressas – e que, o que consta nas pretensas publicações carreadas para os autos são opiniões, desabafos, clamores de angústia. Acórdão TRL de 25/03/20235,
G. Estando em causa juízos de valor, em relação aos quais, ao contrário da imputação de factos, não pode ser exigida a prova da verdade, o TEDH tem adoptado uma posição de intervenção máxima e de sobreposição dos seus critérios aos das decisões nacionais.
H. A opinião veicula, em regra, uma convicção, uma apreciação ou um ponto de vista, e pode ser integrada por juízos directos e juízos de valor, estando a liberdade de opinião intrinsecamente ligada à liberdade de informação, não pressupondo um dever de verdade perante os factos Ac. TRG de 13/07/20206, PPL v. PORTUGAL, queixa 70465/12, julgamento de 12/02/20197; PPM c. Portugal, nº 26671/09, § 43, 22 de janeiro de 2015»
I. O Direito à liberdade de expressão encontra-se igualmente contemplado no art.º 11.º da CDFUE, compreende a liberdade de opinião e a liberdade de receber e de transmitir informações ou ideias, sem que possa haver ingerência de quaisquer poderes públicos e sem consideração de fronteiras. Recomendação do Conselho da Europa CM/Rec(2015)68
J. Especificamente a propósito do direito de opinião veja-se o Comentário Geral das Nações Unidas n.º 34 (2011)9 ao artigo 19 da DUDH
K. Atentos os arestos da sentença de 26/06/2022 e do Acórdão do TRL de 27/10/2022 juntos aos presentes autos, atento o contexto conflitivo que circunda o objecto dos presentes autos, e nos quais o douto tribunal a quo se estribou para fazer um exercício de ponderação e tomada de decisão,
L. E atenta a prova documental careada para os autos pelos ora recorrentes na queixa, é evidente, conforme correcta apreciação do douto tribunal a quo que as afirmações e expressões utilizadas não dizem respeito a factos propriamente ditos, mas a opiniões, gritos de alma, clamores, angustias.
M. As opiniões expressas não são passiveis de juízos de veracidade.
N. Não obstante, e atentos os arestos das sentenças supra citadas, sempre a arguida teria, de um lado, fundamento legítimo para reputar como verdeiros, bem como, dirigindo-se ao sistema de justiça no qual os recorrentes exercem funções, sempre seria legítimo e de interesse público denunciar e não calar, subsumindo-se no art.º 180.º, n.º 2 CP.
O. Termos em que deve ser negado provimento ao recurso neste ponto por não provado.”
6. Neste Tribunal, a Exma Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer, louvando-se na fundamentação constante da resposta apresentada na 1ª instância e concluindo pela improcedência do recurso dos assistentes.
Foi cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2 do Código de Processo Penal.
7. Em exame preliminar pela Relatora, nos termos previstos no artigo 417º do Código de Processo Civil, foi corrigido o efeito atribuído ao recurso.
Colhidos os vistos e realizada a Conferência, cumpre decidir.
*
II. questões a decidir
Como é pacificamente entendido, o âmbito dos recursos é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, que delimitam as questões que o tribunal ad quem tem de apreciar, sem prejuízo das que forem de conhecimento oficioso10.
Atentas as conclusões apresentadas pelos recorrentes, que traduzem as razões de divergência do recurso com a decisão impugnada – a sentença absolutória proferida nos autos – são as seguintes as questões trazidas à apreciação deste Tribunal:
- da existência de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (por não se terem apurado factos suscetíveis de integrar a causa de justificação prevista no artigo 180º, nº 2 do Código Penal) e erro notório na apreciação da prova (na medida em que dando-se como provado o nº 6 dos factos provados, impunha-se que se dessem também como provados os factos relativos ao elemento subjetivo do crime, contemplados nas alíneas d), f), g), h), i), j) e l) dos factos não provados;
- da existência de erro de direito, estribado pelos recorrentes na errada aplicação dos artigos 180º, nº 2, e 31º´, nº 2, alínea b), ambos do Código Penal, por inexistir qualquer causa de justificação.
*
III. Transcrição dos segmentos da decisão recorrida relevantes para apreciação do recurso interposto
Da decisão recorrida, com interesse para as questões em apreciação em sede de recurso, consta o seguinte:
“III - Fundamentação de Facto
A) Factos Provados
Da instrução e discussão da causa e com interesse para a boa decisão da mesma resultaram provados os seguintes factos:
1. A Arguida, em ... de ... de 2011, foi, juntamente com LL, mãe de dois gémeos, ambos rapazes, um de nome FF e outro de nome MM.
2. O Assistente DD e a Assistente EE - que são casados entre si - são, respetivamente, cunhado e irmã de LL (pai dos gémeos FF e MM).
3. Os Assistentes tios das duas crianças gémeas disponibilizaram para as acolher, tendo o gémeo FF, quando tinha apenas 4 (quatro) meses de idade, passado a residir com os dois Assistentes, sem prejuízo de haver sido assegurado um regime de convívio com os progenitores (a Arguida e LL).
4. Posteriormente, em 17 de Maio de 2016, foi decretada a regulação provisória das responsabilidades parentais do menor FF, no âmbito do Processo n.º 2348/12.2TMLSB-A, que correu os seus termos perante o Juiz 3 do Juízo de Família e Menores de Lisboa do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, decidindo-se que o gémeo FF ficariam a residir com os tios paternos, ora Assistentes.
5. A Arguida persiste em responsabilizar os Assistentes por lhe haverem sido retirados os dois gémeos e, em especial, o FF, que ficou a residir com os Assistentes.
6. A Arguida, na sua página de perfil pessoal de Facebook e acesso público, acessível através do link ..., fez as seguintes publicações e comentários:
1) No dia … de 2018, a Arguida fez a seguinte publicação na sua página de perfil do Facebook: “A situação mantém se, o recurso continua há 9 meses para sair do Tribunal da Relação de Lisboa, onde claramente se evidencia a influência dos tios paternos da família agressora, práticas de fraudes e corrupção num processo que é tudo menos o superior interesse dos meus filhos gémeos, E que juíza de ... NN, técnicas sociais OO, PP, QQ compactuam nesta fraude de mentiras. Gente sem escrúpulos, coisas inúteis”.
2) No dia ... de ... de 2018, a Arguida fez a seguinte publicação na sua página de perfil do Facebook: “FF e gémeo MM Continuam sequestrados A quem souber do seu paradeiro avise sua Mãe"
3) Também no mesmo dia ... de ... de 2018, em comentário à publicação acabada de citar, a Arguida escreveu o seguinte: "RR inventar Facebook sem dar a cara não lhe dá credibilidade nenhuma. Convido a conhecer um processo irregular do roubo à descarada dos meus filhos gêmeos. Eles não são felizes e quando conhecerem a maldade que lhes fizeram a eles e à mãe serão os primeiros a detestarem essas pessoas que por dinheiro ficaram com eles.” e “OBRIGADA POR ACOMPANHAREM A INJUSTIÇA DO ROUBO DOS MEUS FILHOS GÉMEOS” e ainda “Marta Moreira falta de respeito pelos meninos é o que os tios fizeram .fizeram todo o jogo para os tirar de mim, sabe sendo … e a tia … na ... sabem fazer todas as falsificações para tirar os sobrinhos e condena los á infelicidade.. e mais por dinheiro! É um crime sem palavras......mas tudo naquela família é criminoso...... sabe Eu aprendi o caminho do bem.... e é na justiça que vou conseguir o regresso dos Meus Gémeos. Ah outra coisa aquela asneira atrás.... aprendi com essa família.... pois se quer saber até trata os Pretos por escravos...... o resto fica para a próxima”
4) No dia ... de ... de 2018, em comentário a uma sua própria publicação, a Arguida escreveu o seguinte: “O … Apoderou se do meu filho gémeo”.
5) No dia ... de ... de 2018, a Arguida, partilhando uma publicação da página de Facebook da associação «...», datada de ... de ... de 2018, escreveu o seguinte: “Esta reportagem deu como consequência a destituição de alguns membros relacionados e responsáveis, Presidente Nacional da CPCJ, SS, Director do núcleo de crianças e jovens da segurança social DD e outras técnicas foram destituídos das suas funções. Para quando a destituição e punição de toda esta corrupção de interesses?”
6) No dia ... de ... de 2018, a Arguida fez a seguinte publicação, partilhando uma notícia do programa «…», do canal de televisão ...: “Familiares que se usaram do carpo que ocupavam para ficar com eles. Processo estagnado há 7 anos! Tribunal de ... que faz apenas a vontade dos tios paternos pela posição que ocupam nas áreas de família e menores. Uma vergonha nacional!"[
7) No dia ... de ... de 2018, a Arguida fez a seguinte publicação: “2018 foi mais um ano de luta pelo direito á família, pela união dos meus filhos Gêmeos e pelo regresso à nossa casa. FF e MM Meus filhos Eu amo vos muito e Nunca desistirei. Pessoas envolvidas deste sequestro, DD e EE, detentores de um gémeo que se acham "donos" dos meus filhos, (...)’’
8) No dia ... de ... de 2019, a Arguida fez o seguinte comentário a uma partilha que havia feito no mural do seu perfil de Facebook: "No meu caso quem me retirou os meus filhos Gémeos foi o director do núcleo de crianças e jovens da segurança social e a coordenadora das adopções da ..., são também tios paternos dos meus filhos gémeos tudo para acolher um gémeo e tudo por vingança familiar e dinheiro ....... Quanto estarão a receber por este acolhimento? Estes tios que no início me exigia que pagasse 400 € mais despesas de saúde por cada gémeo. ...dizendo que no total 1600 € de despesas!”
9) No dia ... de ... de 2019, a Arguida fez a seguinte publicação na sua página de Facebook: “Procuro os meus filhos Gémeos roubados, consegui esta foto retirada do Facebook, mas entretanto já bloqueada, este é o meu filho gémeo MM o outro está retido nas mãos do á data, …DD a esposa EE … da .... No meu Processo de Família e Menores envolve cargos públicos tão altos influentes e nesta corrupção portuguesa que as várias pessoas, advogados, jornalistas, ultimamente UU, e Eu, têm sido ameaçadas de morte. Curioso que venha agora o Ministério público investigar este jornalista no caso de levar à rubrica um extremista.
Da Contestação:
7. A partir de ... de ... de 2012, a arguida encontrou-se separada dos seus filhos menores e impedida de criar vínculos, sujeita, posteriormente, à proibição de contactos com as crianças durante cerca de 5 anos por alegada incapacidade da mesma para exercer adequadamente a parentalidade.
8. A arguida viveu em união de facto com o irmão da assistente, LL, de ... até ........2012, numa relação que se foi progressivamente degradando e que, a partir da data em que se iniciou a gravidez da arguida, foi marcada por clima de grande instabilidade e agressões.
9. O progenitor das crianças sofria de alcoolismo, tendo a arguida sido alvo de diversos episódios de violência doméstica.
10. Os filhos da arguida, FF e MM, desde a data em que nasceram até à data em que foram internados no Hospital … apresentavam-se bem cuidados e a casa onde moravam com a arguida se encontrava limpa e arrumada, com condições de conforto.
11. À data em que as crianças foram internadas no Hospital…, levadas pela própria arguida, na sequência de uma bronqueolite, a arguida se encontrava a atravessar uma fase de exaustão, não só em virtude dos maus tratos de que era vítima por parte do companheiro como devido ao duplo parto recente, à privação do sono e à falta de apoio do progenitor e de qualquer outro familiar.
12. Durante o internamento, a arguida voltou a ser vítima de agressões verbais e físicas, por parte do progenitor das crianças, o que chamou a atenção do pessoal hospitalar.
13. Em ........2012 a Comissão de Protecção de Crianças e Jovens de ..., atendendo à evolução favorável da situação, deliberou propor a prorrogação da medida aplicada com alargamento dos contactos com pernoitas com a progenitora, aqui arguida, com os menores.
14. Esta proposta de alargamento dos contactos não foi aceite pelos assistentes que se recusaram a assinar esta alteração aos acordos, alegando que a arguida era “desadequada”, pelo que a Comissão de Protecção de Crianças e Jovens remeteu, em ..., os processos para Tribunal.
15. Desde 2012, que a arguida foi sujeita a repetidas avaliações psicológicas e psiquiátricas, sem que jamais tenham concluído pela falta de competências parentais.
16. É, assim, neste ambiente de conflitualidade extrema, em que a arguida é chamada a bater-se, com desespero, pela manutenção dos vínculos familiares com os seus filhos enquanto se defrontava com a proibição judicial de quaisquer visitas ou contactos sem fundamento que o justifique, que surgem os factos relatados pelos assistentes.
17. Sentindo a arguida que os seus filhos lhe foram verdadeiramente roubados, através de um processo tortuoso, em que foi privilegiada a posição dos assistentes, à custa do sacrifício do direito da arguida e dos filhos à sua família.
18. As ligações do assistente à Segurança Social, comprometeram as garantias de isenção, imparcialidade e objectividade que se impunham.
Mais se provou que:
19. O Assistente, DD exercia à data em que assumiu aos cuidados do menor FF, as funções de ... e que a assistente EE era e é ... em exercício de funções na ..., sendo desde ... da ....
20. A arguida apresentou queixa junto do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, invocando violação do seu direito ao respeito da sua vida privada e familiar por ter ficado privada do convívio com os seus dois filhos gémeos durante largos anos.
21. Na sequência dessa queixa, o TEDH condenou o Estado Português por violação do artigo 8º da Convenção para a Protecção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais, por Acordão de ….2021, por aplicação de medidas que considerou serem ingerências ilegítimas e desproporcionadas na vida familiar da Requerente, com a prorrogação das medidas aplicadas no âmbito dos processos de promoção e proteção que correram termos a favor dos seus filhos, com a continuação do seu acolhimento junto de outros familiares sem que fosse feita uma adequada avaliação da sua renovação, pela falta de garantia efectiva de um direito de visitas das crianças à mãe, bem como pela duração excessiva dos processos.
22. Deste Acordão consta: “não obstante a margem de apreciação que as autoridades internas tinham no caso em apreço, o Tribunal considera que, ao contrário da aplicação da primeira medida de protecção (…), a prorrogação da medida de protecção decidida pela CPCJ em … de 2012 (…) e ordenada novamente pelo Tribunal de ... em 4 de Julho de 2013 (…), não tinha por base motivos relevantes e suficientes para os fins do número 2 do artigo 8º da Convenção. Sobre este ponto, o Tribunal reitera que as autoridades internas têm a obrigação positiva de reunir a família biológica assim que possível (…). Além disso, se ele reconhece, por um lado, que era difícil para uma única família cuidar de ambos os bebés ao mesmo tempo e, por outro lado, que os membros da família, sem dúvida, se esforçaram muito para atender de forma iminente às necessidades do FF e do MM e evitar que fossem para uma instituição, o Tribunal considera que a separação prolongada das crianças causaram a divisão da família e dos irmãos indo contra o superior interesse da criança.”
23. “Neste caso, o único elemento que resulta claramente dos vários relatórios que tinham sido até então elaborados é a animosidade que existia entre a requerente e os cuidadores, contactos afectivos considerados sufocantes com as crianças e um comportamento defensivo em relação aos profissionais (…). Aos olhos do Tribunal, tais elementos não poderiam ser suficientes para restringir o direito ao convívio. O Tribunal considera ainda que não resulta de forma clara e óbvia do processo que confiar o FF aos seus tios paternos e o MM à sua irmã mais velha e seu cônjuge acautelava mais os seus interesses do que o regresso à casa da mãe. Além disso, a falta de visão retrospectiva das associações que acompanharam a situação das crianças, com excepção da última (…), é surpreendente.
24. O Tribunal constata que as visitas da requerente ao seu filho FF foram suspensas desde … de 2014, por iniciativa dos cuidadores deste último (…). Ele menciona que foram retomadas em … de 2015, e suspensas novamente em … 2015 (…). A requerente alega que apenas voltou a ver o seu filho em … de 2020.
25. Mais se refere neste Acórdão que aos olhos do Tribunal, se a medida de protecção inicial poderia basear-se em razões imperiosas, os motivos tendo justificado a sua primeira prorrogação não o parecem tanto, pois a requerente cumpriu todas as obrigações que assumiu ao abrigo do primeiro acordo de protecção (…). Com efeito, por um lado, ela tinha encontrado um emprego e um alojamento julgado adequado pela CPCJ (… cláusula 6ª do acordo de protecção, …). Por outro lado, dois relatórios de avaliação ... do hospital … haviam afastado qualquer perturbação ou patologia psicológica na requerente, embora observando nela um nível de ansiedade compatível com a situação que ela vivia e, em particular o afastamento dos seus filhos (….). Além disso, o Tribunal refere que, por decisão … de 2012, a CPCJ prorrogou a medida de protecção por um período de seis meses (…) e que considerando que os cuidadores tinham recusado assinar um novo acordo de protecção que propunha alargar o direito de convívio da requerente, o processo foi enviado para o Ministério Público e depois para o Tribunal de ... (..) que também decidiu prorrogar a medida de protecção em 4 de Julho de 2013.
26. Do Acordão proferido em … de 2022, pelo Tribunal da Relação de Lisboa no âmbito de um recurso interposto pela arguida consta: “A exigência da EE e DD em que os contactos do FF com a mãe fossem sempre supervisionados, além de que muito limitados, invocando um risco para a criança em estar com a mãe que não era evidenciado pelos relatórios psicológicos que lhe foram realizados, colmatando numa suspensão dos convívios do FF com a mãe, sem que tivesse existido qualquer decisão do tribunal nesse sentido, a quem se substituíram, no que resultou num período de mais de 4 anos em que o FF não esteve com a Requerente, é reveladora da resistência dos mesmos à realização desses convívios que nunca facilitaram, pelo contrário, porventura não só em face da relação difícil que veio a desenvolver-se entre eles e a Requerente, mas também em razão da afeição genuína que entretanto foram desenvolvendo para com a criança e que desde cedo, logo em ..., manifestaram querer manter ao seu cuidado a título definitivo.
27. .”Constata-se que o tribunal a quo não terá valorizado as declarações prestadas pelos cuidadores do FF na sua devida dimensão, conferindo-lhes total credibilidade, por um lado, desligando as mesmas da conjugação com outros elementos objetivos que constam dos autos e por outro lado, esquecendo todo o interesse que os mesmo têm no desfecho da presente ação e o contexto relacional de conflito que se impôs com a Requerente
28. Mais se refere neste Acordão que: “Também é verdade que os cuidadores não tiveram um comportamento adequado com as crianças, quando nunca lhes falaram da mãe biológica, não promoveram junto das crianças uma imagem positiva da mesma, nem tão pouco aceitaram uma presença efetiva da Requerente junto dos filhos que possibilitasse o estabelecimento de uma vinculação afetiva entre eles, não obstante os relatórios médicos revelarem que não existia qualquer patologia ou incapacidade da mesma para o exercício da maternidade, e que ela não constituía também um fator de perigo para os filhos”.
29. E que “relativamente ao pai biológico das crianças, a postura dos cuidadores foi completamente diferente, permitindo-lhe o seu convívio com os filhos, vendo-o como um elemento da família. É que este pai nunca foi um obstáculo à permanência das crianças no agregado familiar dos cuidadores, já que é um pai que nunca quis exercer as suas responsabilidades como tal, porventura reconhecendo a sua incompetência para o efeito em razão da sua doença de alcoolismo, mas a quem os cuidadores não impuseram qualquer limitação de convívio, sendo aliás referido pelo FF em audiência que convivem com ele quando ele vai a sua casa, mas não só, também vão com ele. Os cuidadores não vêm o pai biológico como uma ameaça à manutenção do “status quo”, contrariamente ao que acontece com a mãe biológica que sempre tem lutado pelos seus filhos.
30. Neste Acordão a propósito da necessidade de se criar um regime de visitas em consonância com o Acordão do TEDH, refere que a evolução para um convívio mais alargado não seja deixado apenas nas mãos de uma avaliação dos terapeutas – veja-se a crítica que é feita no Acórdão do TEDH relativo a este caso, na apreciação da situação ocorrida no âmbito dos processos de promoção dos menores que correram termos, contestando a falta de uma avaliação crítica e objetiva feita pelo tribunal, a reboque de relatórios sociais realizados com base em meras percepções da mãe em contexto de visitas controladas e no que era relatado pelos cuidadores, com quem existia um conflito muito relevante.
31. Segundo informação prestada pelo ... à CPCJ de ..., a progenitora “ia sempre sozinha, às consultas, com os 2 gémeos, interagindo muito com os filhos, vestindo-os e despindo-os adequadamente, não manifestando nenhum comportamento estranho e que possa colocar os filhos em perigo. No entanto, a Sr.ª Enfermeira volta a salientar que só a vê no contexto da consulta. Acrescentou ainda que acha que o problema da progenitora é que tem um comportamento muito “fuga para a frente”, ou seja, não ouve os conselhos que os técnicos lhe dão e pensa que sabe sempre tudo”.
32. E que “Não obstante a vontade da mãe, esta encontrava dificuldades significativas, como por exemplo, dar o biberão de forma correta, acalmar os filhos, embalá-los de forma mais tranquilizadora, competências que deveriam ser melhoradas.”
33. A arguida encontra-se desempregada.
34. Tem rendimentos prediais no valor de 1.100,00 mensais.
35. Vive em casa própria, que está a pagar ao Banco em prestações mensais de € 560,00.
36. Encontra-se a pagar às Finanças o valor mensal de € 250,00 para amortização de uma dívida.
37. De habilitações literárias tem o 12º ano de escolaridade e cursos técnicos de informática, secretariado e serviço social.
38. A arguida tem os seguintes antecedentes criminais registados:
– por sentença transitada em julgado em ........2022, foi condenada pela prática em ........2018 de um crime de difamação agravada, na pena de 100 dias de multa.
B) Factos Não Provados
Não resultaram provados, com relevância para a boa decisão da causa os seguintes factos:
a) A arguida, com o intuito de denegrir a imagem e ofender a honra dos assistentes, serviu-se do facto de o assistente DD ter exercido funções no ..., e de a assistente EE haver desempenhado funções na ..., acusando-os, quer oral quer por escrito, falsamente, de terem abusado as suas funções e de terem praticado crimes com vista a impedi-la de conviver com os filhos.
b) Também com a intenção de vexar os assistentes, a arguida teceu igualmente considerações e formulou juízos, quer de forma oral, quer sob a forma escrita, ofensivos do bom-nome dos assistentes.
c) Aquando da instauração do acima referido Processo n.º 2348/12.2TMLSB-A, o assistente DD já não exercia funções no ..., pois passara a integrar a ....
d) Nas circunstâncias aludidas em 6., a arguida visava os assistentes, e ofendendo através deles a sua honra e consideração.
e) Em ... de ... de 2018, na entrevista que deu ao programa “…” do canal de televisão ..., a arguida afirmou o seguinte:
"Tiraram-me os meus filhos e agora... Esqueceram-se completamente que eu existia. Nunca foram ver se eu tinha quarto para eles, se eu tinha casa, como é que eram as minhas condições, o meu trabalho, nunca mais me ligaram absolutamente nenhuma. Depois, tempos mais tarde, houve visitas em diversos sítios, nesses sítios, uns pertenciam... estavam sob a alçada dos tios paternos, porque eu via realmente, eu via ele a falar com essas senhoras, muito tempo, porque eu chegava sempre antes da hora, e eu via muito essas conversas, e via que havia ali coisa. E eu via que ele era realmente diretor da Segurança Social, que trabalhava no meio, e que podia ter ali alguma influência. O que é facto é que os relatórios que elas fizeram, via-se claramente que tinha influência dele. Os Relatórios diziam que eu não brincava com os meus filhos. . . como é que eu não brincava com os meus filhos? Eu passava o tempo todo a brincar com eles. Eram falsas, são relatórios super falsos. Depois ainda houve visitas no ... que pertence à ..., ou seja, está sob a alçada da tia paterna – da EE - e esses relatórios eram feitos pelas amigas, não é, digamos assim. É obvio. (...) "Não sei se foi vingança familiar, pelo cargo que ocupam, conseguem vingar-se de mim por eu ter denunciado a violência doméstica... aliás a tia chegou a lá ir dizer que se eu continuasse a denunciar que ele era alcoólico, que ele era agressor, que m e tirava as crianças. E foi isso que aconteceu.
f) As publicações realizadas no Facebook imputam factos falsos aos dois assistentes, gravemente ofensivos da sua honra e consideração, escritos em linguagem imprópria e vexatória, com o intuito de denegrir a imagem dos Assistentes e a sua posição profissional.
g) A arguida acusa os assistentes, designadamente, da prática de crimes de tráfico de influências, p. e p. pelo art.º 335.° do Código Penal (doravante, o “CP”), e de corrupção ativa, p. e p. pelo art.º 374.° do CP, afirmando que estes se serviram dos cargos públicos e posições que ocupavam para lhe retirarem o menor FF.
h) Imputando-lhes ainda a prática de crimes de falsificação, p. e p. pelo art.º 256.º do CP, ao referir que estes participaram na produção de relatórios falsos.
i) A Arguida vai, contudo, mais longe e acusa os assistentes de «roubarem» «reterem» e «sequestrarem» o menor FF, acusando-os igualmente de serem uma família agressora e racista.
j) A arguida agiu, desse modo, de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as afirmações por si veiculadas e supra identificadas são ofensivas da honra e consideração dos assistentes, ofensas que quis e logrou obter.
k) Ao agir do modo descrito, a arguida AA sabia que os comentários escritos no seu perfil pessoal de Facebook, e proferidos no programa “…”, do canal televisivo ..., eram aptos a atingir a honra e consideração pessoal e profissional dos assistentes, e agiu deliberadamente com esse propósito, sabendo que dirigia as referidas expressões aos mesmos.
l) Ao agir do modo descrito, a arguida AA agiu, em todos os momentos, de modo livre, deliberado e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida por lei e criminalmente punida.
Do Pedido de Indemnização Cível
m) Os demandantes não escondem que as ofensas tecidas pela demandada e os factos falsos que esta lhes imputou, sempre publicamente, tiveram consequências sérias na sua vida profissional e pessoal
n) as pessoas que conheciam menos bem os dois demandantes - quer no meio profissional, quer no pessoal - passaram a olhar de lado para os demandantes, interrogando-se acerca da veracidade das afirmações formuladas pela demandada.
o) Na verdade, os demandantes veem-se ainda hoje a braços com uma eterna suspeita que paira sobre si, e que nunca conseguiram afastar na totalidade, pese embora a sua conduta irrepreensível no que ao relacionamento com a demandada diz respeito.
C) Motivação da Decisão de Facto
O Tribunal formou a sua convicção com base na valoração conjunta e crítica da prova produzida em sede de audiência de julgamento e de acordo com as regras da experiência comum.
Quanto aos factos dados como provados e constantes do ponto 1, a convicção do Tribunal assentou no teor dos Assentos de Nascimento de fls. 46 e 47.
Os factos constantes do ponto 2, resulta das declarações dos Assistentes que quanto a este facto foram credíveis e de todo o acervo probatório documental junto aos autos.
Os factos a que alude o ponto 3 resulta do acordo de promoção e protecção de fls. 48 a 50.
Os factos insertos no ponto 4, resultam do teor da acta de conferência de pais de fls. 55 a 58 realizada no âmbito do processo ali mencionado.
A prova dos factos a que aludem os pontos 5 e 6 resultou dos fotogramas de fls. 81 a 86, 90, 91, 95 e 103, corroborados pelas declarações dos assistentes e também admitidos pela arguida na contestação escrita onde expressamente se refere à prática dos factos, justificando contudo os factos com as condutas dos assistentes em privá-la durante anos de estar com os filhos.
A prova dos factos a que aludem os pontos 7 a 32 resulta do teor do Acordão do TEDH, do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, da última sentença proferida nos autos de regulação das responsabilidades parentais intentados pela arguida e que foi alterada por aquele Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa. O facto a que alude o ponto 19, resulta provado do teor das publicações do Diário da República de fls. 572 a 594, do contrato de fls. 144, corroborados pelas declarações do Assistente DD que em audiência disse ter tido aquelas funções até .... No que concerne concretamente à falta de fundamento para a proibição de visitas mencionado no ponto 16, tal resulta do texto do Acordão do TEDH.
No que se refere aos antecedentes criminais atendeu-se ao certificado do registo criminal junto aos autos.
Quanto à situação pessoal, familiar e económica da arguida, o Tribunal atendeu às suas declarações nas quais fez fé.
No que concerne aos factos dados como não provados, assim resultaram por não ter sido produzida prova suficiente e consistente quanto aos mesmos.
Assim e quanto aos factos constantes das alíneas a), b), f), g), h), i), j), k) e l), os mesmos resultaram não provados porque do teor das sentenças e dos acórdãos supra mencionados resulta à saciedade que a intenção da arguida não era de vexar ou ofender os assistentes.
O Tribunal ficou com muitas dúvidas sobre estes factos, designadamente sobre a intenção da arguida em colocar estes textos na sua página de Facebook.
Dir-se-á que as circunstâncias vividas pela arguida durante os últimos 10 anos, ofender os assistentes não era de todo a sua prioridade. Resulta muito claro dos autos, que a arguida cumpriu tudo o que lhe foi imposto no acordo de promoção e protecção celebrado em ... e que no final do prazo de 6 meses deste acordo criou expectativas legitimas de voltar a ter os seus filhos consigo e isso não aconteceu por oposição dos assistentes.
Iniciou-se com a prorrogação da medida de promoção e protecção junto de outros familiares, a que se sucederam outras prorrogações (para as quais contribuiu a postura de animosidade da arguida perante as técnicas da segurança social e perante os cuidadores, causada pelo estado de angústia e revolta em que estes colocaram a arguida com o afastamento dos seus filhos) uma luta, que dura há vários anos, sem termo à vista, para voltar a ter os seus filhos consigo, sendo que, logo em ... requereu a regulação das responsabilidades parentais dos seus filhos, requerimento que só obteve decisão muito tempo depois e agora a carecer de preparação dos seus filhos que a vêem como uma estranha.
Com efeito, a arguida tudo tem feito para que o regresso do seus filhos gémeos possa ser uma realidade, tendo recorrido a todos os meios legais ao seu alcance, alegando nos processos, insurgindo-se e reclamando juntos das Assistentes Sociais que acompanham o caso, recorrendo para os Tribunais Superiores, tendo toda esta sua acção culminado na queixa que fez junto do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos. Recorreu por fim às redes sociais, ciente que, como todos sabemos, pudesse ter mais êxito, tendo apenas conseguido chamar a atenção da comunicação social onde provavelmente (não se apurou) contou a sua triste história de vida.
Quanto à imputação aos assistentes da prática do crime de roubo, de sequestro, de corrupção e de tráfico de influência, do compulso das decisões proferidas resulta com muita clareza que a arguida sentiu e continua a sentir que lhe “roubaram” os filhos. E que ficou sem os filhos face às funções que o assistente desempenhava da Segurança Social, a quem via a falar com as assistentes sociais que iriam elaborar os relatórios sociais que por sua vez iriam fundamentar as decisões judiciais no sentido da prorrogação da medida de apoio junto dos assistentes. Das decisões do Tribunal de 2ª Instância e do TEDH resulta que não havia fundamento suficiente para a prorrogação da medida após os primeiros seis meses de duração, ou na pior das hipóteses, não havia fundamento para que não houvesse convívios da arguida com os seus filhos, de forma alargada e livre, inclusivamente aos fins-de-semana, pois a arguida tinham cumprido tudo aquilo a que se propôs (tinha casa, emprego e já não havia ambiente de violência doméstica porque já se encontrava separada do progenitor agressor e com problemas de dependência ao álcool). Perante este estado de coisas, a arguida sentiu que os assistentes lhe “sequestraram” os seus filhos, pois não havia nenhuma razão para que não pudessem regressar a casa ainda com 10 meses de idade (muito a tempo de se criarem laços afectivos entre os bébés e a sua mãe) Isto não aconteceu porque os assistentes, não aceitaram visitas dos bebés sem ser com supervisão, durante muito pouco tempo e de forma muito restrita, em locais públicos, decidindo mesmo, por sua iniciativa suspenderem completamente as visitas, sem qualquer decisão judicial nesse sentido, tendo estado a arguida impedida de estar com o seu filho FF durante largos anos.
Não resultou minimamente demonstrado que a arguida soubesse que os factos que imputou aos assistentes não correspondessem à realidade e que ao fazer estas publicações agiu consciente que estava a alterar a verdade e que difamava e denegria a honra dos assistentes. Da leitura dos textos na sua globalidade resulta também com muita clareza que o significado que as palavras têm para a arguida não é o mesmo que é dado pelo código penal, que obviamente não domina. Veja-se, a título de exemplo, quanto ao significado atribuído à palavra “sequestro” que a arguida imputa aos assistentes, mas obviamente de forma indirecta e no sentido de que nada fizeram para que a arguida recuperasse o convivo e a guarda dos seus filhos gémeos, impedindo-a de com eles conviver, retendo-os consigo. O mesmo acontecendo com o significado da expressão “roubo”, que a arguida imputa aos assistentes e que não tem no contexto em que é escrita a carga que lhe é dada pelo código penal. O que a arguida quer dizer é que os assistentes que ela pensava que a iam ajudar lhe retiraram os filhos, apoderando-se deles como se fossem seus donos.
A colocação de textos e fotografias na página de Facebook da arguida é muito mais compatível com o “não calar” e com o colocar um “pensamento” e “denunciar” uma situação do que com difamar.
Quanto ao conhecimento e consciência da gravidade dos comportamentos, e de que a sua conduta era proibida e punida por lei, também não foi possível afirmar este facto, desde logo dos textos resulta que a sua convicção era a de que estaria a denunciar publicamente comportamentos de pessoas com cargos públicos, que considerava abusivos, acreditando no que escrevia.
Em suma não foi possível, para além de qualquer dúvida razoável e apesar de todo o esforço desenvolvido, dar como provados estes factos.
Assim, considerando o contexto em que os factos foram praticados e perante as condutas dos assistentes nos processos de promoção e protecção e de regulação das responsabilidades parentais, o Tribunal não pode dar como provado que os textos da arguida tenham afrontado a honra dos assistentes, na sua versão subjectiva. Ou seja, os assistentes alegadamente disponibilizaram-se em ... para ajudarem a arguida no que referiram ser uma situação provisória. Desconhece-se o que motivou os assistentes para se terem disponibilizado para assumirem a guarda do menor FF, sendo que em momento anterior ao processo de promoção e protecção a arguida não tinha ajuda de familiares. Se fosse como dizem para a ajudarem, podiam tê-lo feito de outro modo, inclusive sugerindo medida de apoio que envolvesse a arguida, pois em face das fragilidades/competências que se vieram a demonstrar da arguida a carecer apenas de serem melhoradas, não se entende a necessidade dos assistentes em bani-la completamente da medida e da vida do filho, pois resulta à saciedade daqueles autos que tudo fizeram para que o FF não convivesse mais com a mãe e a esquecesse. Logo em ... manifestaram querer manter o cuidado da criança a “titulo definitivo”, invocando riscos que não eram evidenciados pelos relatórios psicológicos, tendo chegado ao ponto de suspender mesmos os convívios do FF com a mãe sem existir qualquer decisão judicial nesse sentido, depois de um período em que exigiam convívios supervisionados, espaçados e muito limitados.
Qualquer pessoa colocada no lugar da arguida só podia pensar o que ela pensou e que foi terem os assistentes exercido influência junto das técnicas da segurança social, com quem o via a conversar e que depois iam elaborando os relatórios, pois, estranhamente, os mesmos eram completamente contrários aos relatórios médicos psicológicos e sobretudo omissos em fundamentação. Repare-se que esta influência não passou despercebida e aparece referida no Acordão do TEDH onde expressamente se menciona que “a avaliação das competências parentais da mãe fundamentada essencialmente, nos relatos das técnicas que apenas ponderavam o que era referido pelos cuidadores”. E qualquer pessoa pensaria como a arguida porque não havia factos, como se refere no Acordão do TEDH que justificassem a prorrogação da medida de apoio junto de outro familiar. Aliás neste Acordão consta mesmo que até para a primeira medida não resulta de forma clara e óbvia do processo que confiar o FF aos seus tios paternos e o MM à sua irmã mais velha e seu cônjuge acautelava mais os seus interesses do que o regresso à casa da mãe.
Quanto ao facto constante da alínea c) assim resultou porque se demonstrou que o assistente exercia tais funções.
O facto a que alude a alínea d), assim resultou porque não foi produzida qualquer prova, pois da audição do cd não resulta que a arguida tivesse dito o que consta desta alínea.
Quanto aos factos a que aludem as alíneas m) a o), assim resultaram por não ter sido produzida prova suficiente e/ou consistente quanto aos mesmos. É o próprio Assistente que diz que não foi afastado do cargo de Director por causa destes factos, mas sim por mudança de estratégia do serviço, não tendo impugnado tal destituição.
*
IV- Enquadramento Jurídico-Penal
(…)
Resultou provado que os assistentes já em ..., não tinham nenhuma intenção de devolver o filho da arguida pois queriam a sua guarda a título definitivo, tendo estado a arguida durante anos à espera de algo que eles sabiam que não iria acontecer face á experiência que têm nesta matéria.
Não podem por isso estar ou sentir-se ofendidos com o que a arguida tem vindo a dizer, não podendo os factos dados como provados, serem vistos como subjectivamente ofensivos da honra e consideração dos assistentes, considerando a postura que sempre adoptaram nestes processos de promoção e protecção e de regulação das responsabilidades parentais destas crianças, tendo, como se diz no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, adoptado um comportamento desadequado com as crianças, quando nunca lhes falaram da mãe biológica, não promoveram junto das crianças uma imagem positiva da mesma, nem tão pouco aceitaram uma presença efetiva da Requerente junto dos filhos que possibilitasse o estabelecimento de uma vinculação afetiva entre eles, tendo tais comportamentos causado de forma irreversível a quebra do vínculo familiar entre a requerente e os seus filhos.
Ou seja, não é razoável que os assistentes exijam de uma mãe um comportamento diferente daquele que esta mãe adoptou, depois de ter esgotado todos os meios legais ao seu alcance sem lograr obter qualquer resultado, pelo que se entende que não se mostra verificado este pressuposto quanto ao elemento objectivo do tipo de ilícito criminal que vem imputado à arguida, não podendo a mesma ser pelo mesmo responsabilizada.
Mas ainda que assim se não entendesse, vejamos quando ao tipo subjectivo.
Para que o tipo subjectivo seja preenchido não se exige um animus diffamandi vel injuriandi, basta que, uma vez verificado o carácter injurioso dos factos imputados, se actue com a consciência de que aquilo que se imputa é de molde a ofender a honra e a consideração da pessoa visada, não sendo, portanto, necessária a existência de dolo específico, que o agente tenha agido com a intenção - consciência e vontade - de ofender a honra ou consideração alheias, sendo para tanto suficiente que o agente actue com dolo genérico, em qualquer uma das suas formas, previstas no artigo 14.º do Código Penal.
É certo que na maior parte dos casos o dolo se infere da factualidade exteriorizada, mas aqui esse elemento isolado sem a análise do interagir entre arguida e assistentes, surge como insuficiente para a afirmação do dolo e da consciência da ilicitude por banda da arguida.
Revertendo aos factos, considerando o teor dos textos escritos pela arguida, publicados na sua página do Facebook, entendo que imputar a um funcionário público com um cargo de relevo na área da infância e juventude da Segurança Social, no âmbito de processos de promoção e protecção de crianças e jovens em risco, os crimes de corrupção, falsificação, sequestro e roubo é ofensivo, em abstracto, da honra e consideração do visado, atingindo a sua dignidade pessoal e o núcleo essencial das suas qualidades morais e éticas, insinuando que os mesmos são incapazes e inadequados para as funções que exercem na área da protecção das crianças e jovens em risco.
Contudo e conforme resulta dos factos não provados, a arguida não agiu com a consciência de que aquilo que imputa aos assistentes é de molde a ofender a honra e a consideração dos mesmos, pelo que não se mostram preenchidos os elementos subjectivos do tipo de ilícito imputado à arguida, não podendo também com este fundamento proceder a acusação particular.
Prevê o nº 2 do artigo 180º do Código Penal, alíneas a) e b) a impunidade da conduta descrita no nº 1 do mesmo preceito, por exclusão da ilicitude, quando a imputação for feita para realizar interesses legítimos e o agente provar a verdade da mesma imputação ou tiver tido fundamento sério para, em boa-fé, a reputar verdadeira.
No caso em apreço, a arguida adquiriu a convicção de que os assistentes lhe “roubaram” os seus filhos. Em face de todo o circunstancialismo que envolveu a prática dos factos, impõe-se concluir que a arguida tinha fundamento sério para reputar as imputações como verdadeiras, não sendo de excluir a boa-fé em face do disposto no nº 4 do artigo 180º do Código Penal, uma vez que esta convicção da arguida, veio a ter respaldo no Acórdão do TEDH que condenou o Estado Português por violação do seu direito ao respeito da sua vida privada e familiar por ter ficado privada do convívio com os seus dois filhos gémeos durante largos anos, sem fundamento factual.
Por outro lado, a reprovação do comportamento de alguém que fez com que perdesse os filhos de forma irreversível, não pode deixar de considerar-se como destinada a realizar interesse legítimo.
Sendo de excluir também, no caso em apreço, a excepção estabelecida no nº 3 do citado artigo 180º, pois não se tratam de factos atinentes à vida familiar dos assistentes, impondo-se concluir, sem prejuízo de todo o exposto, pela verificação da mencionada causa exclusória da responsabilidade criminal.
Por último, o carácter ilícito da conduta pode ser afastado nos termos do regime geral previsto no nº 2 do artigo 31.º do Código Penal, em conformidade com o próprio n.º 3 do artigo 180.º.
Ou seja, desde que a actuação tenha o beneplácito do a) exercício de um direito, b) do cumprimento de um dever imposto por lei ou por ordem legítima da autoridade ou, c) do consentimento do titular do interesse jurídico lesado.
As causas de justificação não estão subordinadas ao princípio da legalidade, nos mesmos termos que os tipos incriminadores. Elas não têm de ser certas e determinadas, podendo admitir-se causas supra legais de justificação.11
Na situação em apreço, ainda que se tivesse considerado que a conduta da arguida era antijurídica (o que, como já se explanou, não é o caso), a mesma nunca poderia ser punível, por estar justificada.
De facto, ponderado, mais uma vez, todo o contexto de actuação da arguida, julga-se que a mesma, estava, não obstante ser um caso pessoal, também a exercer um direito de liberdade de pensamento e expressão.
Aqui chegados, cumpre referir que a análise do artigo 180º do Código Penal português deve fazer-se à luz prevalecente do artigo 10.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
Esta Convenção, foi assinada por Portugal em 22 de Setembro de 1976, aprovada para ratificação pela Lei n.º 65/78, de 13 de Outubro e entrou em vigor na ordem jurídica portuguesa a 9 de Novembro de 1978.
De acordo com esta Convenção e até pela sistemática do artigo, a tutela da honra surge como um limite a um direito (de expressão) e não como um direito em si mesmo.
Com efeito, estipula o artigo 10° daquela Convenção, com a epígrafe “Liberdade de expressão” que:
1. Qualquer pessoa tem direito à liberdade de expressão. Este direito compreende a liberdade de opinião e a liberdade de receber ou de transmitir informações ou ideias sem que possa haver ingerência de quaisquer autoridades públicas e sem considerações de fronteiras. O presente artigo não impede que os Estados submetam as empresas de radiodifusão, de cinematografia ou de televisão a um regime de autorização prévia.
2. O exercício desta liberdades, porquanto implica deveres e responsabilidades, pode ser submetido a certas formalidades, condições, restrições ou sanções, previstas pela lei, que constituam providências necessárias, numa sociedade democrática, para a segurança nacional, a integridade territorial ou a segurança pública, a defesa da ordem e a prevenção do crime, a protecção da saúde ou da moral, a protecção da honra ou dos direitos de outrem, para impedir a divulgação de informações confidenciais, ou para garantir a autoridade e a imparcialidade do poder judicial.
Tal norma tem sido interpretada pelo TEDH, no sentido de que, quando estes dois direitos se encontrem em conflito (honra verso liberdade de expressão), deve dar-se prevalência à liberdade de expressão, na medida em que nela se reconhece um pilar de uma sociedade democrática.
Como sabemos, a Convenção Europeia dos Direitos do Homem vigora na ordem jurídica com valor infra-constitucional, com valor superior ao direito ordinário português. Ou seja, uma hierarquia encimada pela Constituição da República Portuguesa, Convenção Europeia dos Direitos do Homem e, por fim, legislação ordinária, ou seja, o Código Penal.
Assim e seguindo a orientação do TEDH, a interpretação de que direito deve prevalecer, quando em conflito, deve ser no sentido de restringir a defesa da honra e maximizar a liberdade de expressão.
Só numa sociedade com tradição e resquícios autoritários, de supremacia de elites que se pretendem incontestadas, com conceitos de honra inchados por conveniência de controle e dominância se pode tão facilmente – como é costume – atribuir aos dois direitos o mesmo valor ou, mesmo, fazer prevalecer a honra à liberdade de expressão.12
No seguimento deste entendimento, temos vindo a assistir a uma tendência para a extinção do tipo penal “difamação”, já assumida na vertente “media” ou jornalística, através da Resolução 1003 (1993) sobre ética em jornalismo.
Pretende-se evitar os efeitos nefastos da existência de um vasto tipo penal de “difamação” que provoque o conhecido efeito de arrefecimento de condutas (“chilling effect”), surgindo as ameaças de prossecução por difamação como uma “particularmente insidiosa forma de intimidação”[Resolução CE 1577 (2007)], que tem sido utilizada na sociedade portuguesa de forma abundante, seja por pessoas, seja por empresas e organismos públicos ou privados, como forma de calar a oposição, impedir o exercício de direitos e impor formas mais ou menos subtis de censura ou de dominância.13
Até porque o ordenamento jurídico português contém um remédio específico para a protecção da honra e da reputação nos artigos 70º e 484º do Código Civil.
Assim, quando, como no caso sub judice, o dissídio entre os assistentes e a arguida se situa em questões de interesse geral da vida da comunidade, “pouco espaço há para as restrições à liberdade de expressão”.14
No campo da defesa da honra é aceite que os limites da crítica são mais amplos se estiver em causa uma figura pública ou com funções públicas relevantes.
A grande maioria da doutrina e jurisprudência entende que quando estão em causa figuras públicas, os limites da crítica admissível são mais amplos, admitindo-se, no âmbito de controvérsias políticas e públicas, o uso de linguagem forte, exagerada, violenta e mordaz.
Esta diferente amplitude tem na base um interesse público de maior escrutínio exigido pela sociedade democrática sobre as figuras públicas, as quais devem suportar uma maior tolerância da crítica, levando, como refere o Prof. Faria Costa a uma “erosão externa da honra”
Não olvidemos que sentindo-se a arguida lesada nos seus direitos, que efectivamente o foi (o Estado Português foi condenado) utilizar as redes sociais para nelas expor os seus pensamentos, expressar as suas opiniões e denunciar comportamentos que considera incorrectos e/ou mesmo ilícitos de pessoas que desempenham cargos públicos ou funções de interesse público, é indubitável o interesse da comunidade saber destes comportamentos e que os mesmos, com base nestas noticias, sejam investigados, como aconteceu neste caso.
Por conseguinte, sempre seria de entender que a conduta da arguida estaria a coberto de uma causa de exclusão da ilicitude, mais concretamente a relativa ao exercício de um direito (liberdade de expressão e de pensamento) que deve prevalecer perante o direito à honra (artigo 31.º, nºs 1 e 2, alínea b), do Código Penal).
Assim e em suma, analisada a conduta da arguida e as circunstâncias que a envolvem neste caso, as consequências que tiveram no seu bem-estar físico e psíquico, e estando em crer que foi em estado depressivo e toldada pela revolta que escreveu os textos, julga-se que o comportamento da arguida não mereceria e não merece, de qualquer modo, a tutela penal, já que esta constitui a ultima ratio da política social e a sua intervenção é de natureza definitivamente subsidiária.”
*
IV. Fundamentação
iv.1. dos vícios da decisão (artigo 410º, nº 2 do Código de Processo Penal)
Alegam os recorrentes que a decisão recorrida enferma dos vícios de «insuficiência da matéria de facto para a decisão» e «erro notório na apreciação da prova», o que fundamentam referindo que, por um lado, o Tribunal recorrido não apurou factos que permitam concluir que a conduta dada como provada no ponto nº 6 da sentença se mostra justificada nos termos previstos no artigo 180º, nº 2, alínea b) do Código Penal, e, por outro lado, que, tendo o Tribunal dado como provado aquele ponto nº 6, viola as mais elementares regras da experiência comum considerar não provados os factos contemplados nas alíneas d), f), g), h), i), j) e l), afigurando-se-lhes evidente que uma pessoa que fez as publicações vertidas no referido facto provado, necessariamente visou ofender e denegrir a honra dos recorrentes, pelo menos com dolo eventual.
Comecemos pelos conceitos.
Nos termos previstos no artigo 428º, nº 1, do Código de Processo Penal, os Tribunais da Relação conhecem de facto e de direito, do que decorre que, em regra e quanto a estes Tribunais, a lei não restringe os respetivos poderes de cognição.
E, no que se refere ao julgamento da matéria de facto, este pode ser sindicado por duas vias: no âmbito dos vícios previstos no artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal, no que se denomina de «revista alargada», cuja indagação tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos para a fundamentar15, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento – neste sentido, vd., por todos, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 05.06.200816, e de 14.05.200917, ambos disponíveis em www.dgsi.pt - ou através da impugnação ampla da matéria de facto, a que se reporta o artigo 412º, nos 3, 4 e 6, do mesmo diploma legal, caso em que a apreciação se alarga à análise da prova produzida em audiência, dentro dos limites fornecidos pelo recorrente, só podendo alterar-se o decidido se as provas indicadas obrigarem a decisão diversa da proferida.
Os recorrentes optaram pela «revista alargada».
Neste âmbito, o artigo 410º, nº 2 do Código de Processo Penal prevê que, “mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum: a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; c) Erro notório na apreciação da prova”. (sublinhado nosso)
A indagação de tais vícios, por parte do tribunal ad quem, é uma tarefa puramente jurídica, de matéria de direito, já que mais nenhuma outra prova é necessária para que se possa concluir pela eventual existência ou não dos mesmos. Mais não constitui tal tarefa de indagação do que a aplicação da norma adjetiva em causa às circunstâncias concretas da decisão em recurso. Como anota Pereira Madeira18, “É a lei quem o inculca com clareza ao impor que o vício resulte do texto da decisão recorrida, apenas e só, eventualmente com recurso às regras de experiência comum. Por isso, fica excluída da previsão do preceito toda a tarefa de apreciação e ou valoração da prova produzida, em audiência ou fora dela, nomeadamente a valoração de depoimentos, mesmo que objecto de gravação, documentos ou outro tipo de provas, tarefa reservada para o conhecimento do recurso em matéria de facto.”
Assim, a apreciação de tais questões deve incidir, exclusivamente, sobre o texto da decisão recorrida (ou seja, sem recurso a qualquer outro elemento externo – declarações, depoimentos ou documentos do processo), por si só ou conjugada com as regras de experiência comum.
A «insuficiência para a decisão da matéria de facto provada» verifica-se quando os factos dados como assentes na decisão são insuficientes para se poder formular um juízo seguro de condenação ou absolvição; ou seja, quando os factos provados são insuficientes para poderem sustentar a decisão recorrida ou quando o tribunal recorrido, devendo e podendo fazê-lo, não investigou toda a matéria de facto com relevo para a decisão da causa, o que determina que a matéria dada como assente não permite, dada a sua insuficiência, a aplicação do direito ao caso.
Note-se, todavia, que só há insuficiência para a decisão da matéria de facto quando existe uma lacuna no apuramento da matéria de facto, necessária para a decisão de direito, ou quando há uma lacuna por não se apurar o que é evidente que se podia apurar, ou quando o tribunal não investiga a totalidade da matéria de facto, podendo fazê-lo.
Assim, tal insuficiência – definida por Simas Santos e Leal-Henriques19 precisamente, como uma “lacuna no apuramento da matéria de facto indispensável para a decisão de direito” – tem de existir internamente, no âmbito da decisão, devendo aferir-se em função do objeto do processo, fixado pela acusação e/ou pronúncia, quando exista, e complementado pela defesa.
Tal vício só se verificará se se concluir que o tribunal de julgamento deixou de dar resposta a um facto essencial postulado pelo referido objeto do processo, isto é, se deixou por esgotar o thema probandum.
Porém, como se assinalou no acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa de 29.03.201120, «não se deve confundir este vício decisório com a errada subsunção dos factos (devida e totalmente apurados) ao direito, o que consubstancia um caso de erro de julgamento.
Nem, por outro lado, tal vício se reconduz à discordância sobre a factualidade que o tribunal, apreciando a prova com base nas “regras da experiência” e a sua “livre convicção”, nos termos do artigo 127.º do C.P.P., entendeu dar como provada. A insuficiência da prova para a matéria de facto provada, questão que pertence ao âmbito do princípio de livre apreciação da prova, não é sindicável caso não seja suscitada a impugnação ampla da decisão sobre a matéria de facto.»
A insuficiência significa, por outro lado, que não seja também possível uma decisão diversa da que foi tomada; se não for o caso, os factos podem não ser bastantes para constituir a base da decisão que foi tomada, mas permitir suficientemente uma decisão alternativa, mesmo de non liquet em matéria de facto21.
Por fim, a insuficiência da matéria de facto tem de ser objetivamente avaliada perante as várias soluções possíveis e plausíveis dentro do objeto do processo, e não na perspetiva subjetiva decorrente da interpretação pessoal do interessado perante os factos provados e as provas produzidas que permitiram a decisão sobre a matéria de facto.
No que se refere ao «erro notório na apreciação da prova», este abrange as hipótese de erro evidente, escancarado, de que qualquer homem médio se dá conta; quando se retira de um facto provado uma conclusão logicamente inaceitável; quando se dá como assente algo patentemente errado; quando se retira de um facto provado uma conclusão arbitrária, contraditória ou notoriamente violadora das regras de experiência comum; ou ainda quando determinado facto provado é incompatível ou irremediavelmente contraditório com outro dado de facto (positivo ou negativo) contido no texto da decisão recorrida22; ou, finalmente, quando se violam as regras da prova vinculada, as regras da experiência; as leges artis ou quando o tribunal se afasta, sem fundamento, dos juízos dos peritos.
Trata-se de um vício do raciocínio na apreciação das provas, evidenciado pela simples leitura do texto da decisão; erro tão evidente que salta aos olhos do leitor médio, sem necessidade de particular exercício mental; as provas revelam claramente um sentido e a decisão recorrida extraiu ilação contrária, logicamente impossível, incluindo na matéria fáctica provada ou excluindo dela algum facto essencial23.
Basta, para assegurar a notoriedade do erro, que ela ressalte do texto da decisão recorrida, ainda que, para tanto tenha que ser devidamente escrutinada – e ainda que, para além das perceções do homem comum – e sopesada à luz de regras de experiência24. Ponto é que, no fim, não reste qualquer dúvida sobre a existência do vício e que a sua existência fique devidamente demonstrada pelo tribunal ad quem.
Citando ainda o Tribunal da Relação de Lisboa, no acórdão de 29.03.2011, «O requisito da notoriedade afere-se, como se referiu, pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum, ao homem médio - ou, talvez melhor dito (se partirmos de um critério menos restritivo, na senda do entendimento do Conselheiro José de Sousa Brito, na declaração de voto no Acórdão n.º 322/93, in www.tribunalconstitucional.pt, ou do entendimento do Acórdão do S.T.J. de 30 de Janeiro de 2002, Proc. n.º 3264/01 - 3.ª Secção, sumariado em SASTJ), ao juiz “normal”, dotado da cultura e experiência que são supostas existir em quem exerce a função de julgar, desde que seja segura a verificação da sua existência -, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente, consistindo, basicamente, em decidir-se contra o que se provou ou não provou ou dar-se como provado o que não pode ter acontecido (cfr. Simas Santos e Leal-Henriques, ob. cit., p. 74; Acórdão da R. do Porto de 12/11/2003, Processo 0342994, em http://www.dgsi.pt).»
O erro notório na apreciação da prova “constitui uma insuficiência que só pode ser verificada no texto e no contexto da decisão recorrida, quando existam e se revelem distorções de ordem lógica entre os factos provados e não provados, ou que traduza uma apreciação manifestamente ilógica, arbitrária, de todo insustentável, e por isso incorrecta, e que, em si mesma, não passe despercebida imediatamente à observação e verificação comum do homem médio. A incongruência há-de resultar de uma descoordenação factual patente que a decisão imediatamente revele, por incompatibilidade no espaço, de tempo ou de circunstâncias entre os factos, seja natural e no domínio das correlações imediatamente físicas, ou verificável no plano da realidade das coisas, apreciada não por simples projecções de probabilidade, mas segundo as regras da "experiência comum". Na dimensão valorativa das "regras da experiência comum" situam-se, por seu lado, as descontinuidades imediatamente apreensíveis nas correlações internas entre factos, que se manifestem no plano da lógica, ou da directa e patente insustentabilidade ou arbitrariedade; descontinuidades ou incongruências ostensivas ou evidentes que um homem médio, com a sua experiência da vida e das coisas, facilmente apreenderia e delas se daria conta.”25
Como se disse, os vícios do artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal não podem ser confundidos com a divergência entre a convicção pessoal do recorrente sobre a prova produzida em audiência e a convicção que o tribunal firme sobre os factos, no respeito pelo princípio da livre apreciação da prova inscrito no artigo 127º do Código de Processo Penal.
Neste aspeto, o que releva, necessariamente, é a convicção que o tribunal forme perante as provas produzidas em audiência, sendo irrelevante, no âmbito da ponderação exigida pela função do controlo ínsita na identificação dos vícios do artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal, a convicção pessoalmente formada pelo recorrente e que ele próprio alcançou sobre os factos.
Vistos, assim, os elementos essenciais que caracterizam as noções de «insuficiência da matéria de facto» e «erro notório na apreciação da prova», as arguições dos recorrentes revelam-se inconsequentes.
No essencial, a argumentação dos recorrentes reporta-se à opinião que formularam, face aos factos objetivamente apurados. Não esclareceram, porém, que factos – integrantes do objeto do processo – ficaram por apurar, não se demonstrando, em consequência, que ocorra insuficiência da matéria de facto apurada para a decisão.
O Tribunal a quo, tendo dado como provado que a arguida efetuou as publicações listadas no ponto 6 da decisão da matéria de facto, também deu como provada uma outra (extensa) lista de factos e circunstâncias (fundamentalmente resultantes da prova documental constante dos autos), nos quais fez assentar as conclusões extraídas quanto ao aspeto jurídico da causa – circunstâncias que, como se pode ler na decisão recorrida, levaram a que considerasse que a arguida, ao escrever as mencionadas publicações, estava convencida da respetiva veracidade (mais sustentando não serem os termos usados empregues em conformidade com o respetivo significado técnico-jurídico, antes apelando a um significado mais próximo da linguagem comum, do entendimento das pessoas sem formação jurídica), tendo exercido o seu direito a manifestar desconformidade e protesto.
Por outro lado, é verdade que foram dados como não provados os factos que, na acusação deduzida, procuravam corporizar o elemento subjetivo dos crimes imputados à arguida. Isso não quer dizer que tais factos não tenham sido «apurados» - com o sentido de investigados – apenas significa que o Tribunal não se convenceu positivamente da respetiva verificação (para o que ofereceu fundamentação específica). Ou seja, estes factos não ficaram por apurar: sobre os mesmos incidiu atividade probatória e o Tribunal formulou sobre eles um juízo crítico (e considerou-os não provados).
Não se vê, face ao modo como se mostra estruturada a decisão recorrida, que exista insuficiência da matéria de facto apurada para a decisão proferida (no caso, absolutória), não sendo de considerar verificado o apontado vício – se ocorre erro de julgamento, é o que veremos mais adiante.
De igual modo, não se identifica na decisão o «erro notório» reclamado pelos recorrentes.
Como se disse, a alegação apresentada assenta no entendimento de que qualquer pessoa que tivesse escrito as afirmações atribuídas à arguida (provadas no ponto 6 da matéria de facto), não podia deixar de estar ciente do caracter ofensivo das mesmas, devendo em consequência concluir-se pela intenção de denegrir a imagem dos assistentes, de vexá-los e apoucá-los publicamente.
Mas não é assim.
Sem prejuízo das considerações que poderão tecer-se a propósito da atipicidade das expressões em causa, o que releva neste âmbito é que, como o Tribunal a quo explicou, face ao contexto em que os factos ocorreram, por um lado, é razoável considerar que a arguida estava convencida da veracidade do que escreveu e, por outro lado, o Tribunal não logrou convencer-se, para além da dúvida razoável, de que a arguida tenha atuado com a intenção de difamar os assistentes, ou, sequer, com o conhecimento de que tais expressões seriam suscetíveis de os ofender.
Este entendimento não pode qualificar-se como flagrantemente ilógico ou contrário às regras da experiência comum, não retratando o Tribunal a quo uma situação inverosímil ou de verificação impossível.
Assim, lida atentamente a decisão recorrida, não vemos que na mesma se tenha cometido algum dos vícios contemplados no nº 2 do artigo 410º do Código de Processo Penal – designadamente, que a matéria de facto provada seja insuficiente para a decisão, que seja evidente a existência de factos que ficaram por apurar ou que tenha sido extraída da matéria de facto qualquer conclusão patentemente errada, ilógica ou arbitrária.
Na verdade, o Tribunal recorrido tomou posição sobre a totalidade do objeto do processo, tal como o mesmo foi configurado pelos sujeitos processuais, e os factos que apurou são, claramente, bastantes para permitir a decisão alcançada. Pode discordar-se da decisão, mas essa discordância relevará já de eventual erro de julgamento (do que trataremos adiante).
Em suma, o recurso não pode deixar de improceder, nesta parte.
*
Os recorrentes não fizeram menção de impugnar amplamente a matéria de facto, não tendo dado cumprimento ao disposto no artigo 412º, nº 3 do Código de Processo Penal, propondo-se apenas discutir a formação da convicção do Tribunal, sobrepondo a sua avaliação dos factos à do Tribunal recorrido.
Neste âmbito, como já se referiu, tem aplicação o princípio da livre apreciação da prova (cf. artigo 127º do Código de Processo Penal), não existindo indícios de que o Tribunal a quo tenha feito mau uso desse princípio, designadamente, que os factos dados como provados careçam de apoio na prova produzida ou que se mostrem flagrantemente contrários às regras de experiência comum.
A matéria de facto dada como provada (e não provada) deve, por isso, considerar-se definitivamente fixada.
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iv.2. do enquadramento jurídico-penal
Alegam os recorrentes que, face ao que ficou provado no facto nº 6, ou seja, as publicações efetuadas pela arguida na rede social Facebook, não podia o Tribunal deixar de concluir pelo preenchimento dos crimes de difamação imputados, não estando demonstrada a existência da justificação prevista no artigo 180º, nº 2 do Código Penal, por não se poderem considerar tais publicações destinadas à realização de um interesse legítimo, nem tão-pouco que a arguida tivesse fundamento sério para, em boa fé, as considerar verdadeiras.
Manifestam, ainda, o entendimento de que, no caso, o direito à liberdade de expressão da arguida não prevalece sobre o direito à honra dos recorrentes, não podendo considerar-se preenchida a causa de justificação prevista no artigo 31º, nº 2, alínea b) do Código Penal, e artigo 10º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, na medida em que, na sua opinião, às publicações efetuadas não subjaz um interesse público, social e/ou político, posto que nenhum dos recorrentes é figura pública.
Cumpre apreciar.
Está em causa, como se disse, a imputação à arguida de crimes de difamação (16), consubstanciados pelas publicações pela mesma efetuadas na sua página da rede social Facebook, de acesso público.
A decisão recorrida enquadrou adequadamente os elementos objetivos e subjetivos do crime previsto no artigo 180º do Código Penal, em termos que nos dispensaremos de repetir, bastando-nos, para a discussão pertinente à decisão do presente recurso, ater-nos a que nos encontramos no domínio dos crimes contra a honra (entendida em sentido amplo, englobando a honra, consideração, bom nome…), sendo que a defesa opôs ao ultraje manifestado pelos assistentes o exercício da liberdade de expressão, na perspetiva da manifestação de inconformismo e reação a circunstâncias percecionadas como injustas por parte da arguida – perspetiva que a decisão recorrida relevou.
A propósito da tutela da honra, expõe Faria Costa26: «O facto de a honra ser um bem jurídico pessoalíssimo e imaterial, a que não temos a menor dúvida em continuar a assacar a dignidade penal, mas um bem jurídico, apesar de tudo, de menor densidade axiológica do que o grosso daqueles outros que a tutela do ser impõe. Uma prova evidente de tal realidade pode encontrar-se nas molduras penais - de limites extraordinariamente baixos - que o legislador considerou adequadas para a punição das ofensas à honra.
E a explicação para tal “estreitamento” da honra enquanto bem jurídico, para uma certa perda da sua importância relativa, pode justificar-se, segundo cremos, de diferentes modos e por diferentes vias. Por um lado, julgamos poder afirmar-se uma sua verdadeira erosão interna, associada à autonomização de outros bens jurídicos que até algumas décadas estavam misturados com essa pretensão a ser tratado com respeito em nome da dignidade humana que é o núcleo daquilo a que chamamos honra. Referimo-nos a valores como a privacidade, a intimidade ou a imagem, que hoje já têm expressão constitucional e específica protecção através do direito penal. Por outro lado, cremos ser também indesmentível a erosão externa, a que a honra tem sido sujeita, quer por força da banalização dos ataques que sobre ela impendem - tão potenciados pela explosão dos meios de comunicação social e pela generalização do uso da internet, quer por força da consequente consciencialização colectiva em torno do carácter inelutável de tais agressões e da eventual imprestabilidade da reacção criminal».
Como também se considerou no acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa de 11.04.202427, em posição que subscrevemos, “O direito à honra, tutelado pelo art.º 180º do Código Penal, é garantidamente, ninguém o questiona, um direito fundamental protegido desde logo pela nossa CRP, no seu art.º 26º/1, e é tutelado ainda e entre o mais pelo art.º 17º do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos (PIDCP) e pelo art.º 8º da CEDH, neste caso enquanto dimensão da reserva da vida privada [a este propósito, vide os Acs. do TEDH ASp AG v. Germany (GC), nº 39954/08, § 83, 07.02.2012; e Chauvy and Others v. France, nº 64915/01, § 70, 29.06.2004)].
É bem sabido, contudo, que o direito à honra não tem um perfil absoluto, na medida em que há outros direitos, potencialmente com a mesma dignidade, com que tem que conviver e em face dos quais, em função das especificidades de cada caso, poderá ter em alguma medida que ceder; pense-se naturalmente na clássica liberdade de expressão, protegida pelo art.º 37º da CRP, pelo art.º 19º do PIDCP e pelo art.º 10º da CEDH.»
Neste âmbito, importa ter presente que a proteção da liberdade de expressão não releva apenas perante a manifestação de juízos valorativos inócuos, favoráveis ou consensuais. Como aponta Francisco Teixeira da Mota28, “Quem precisa de ser protegido pela liberdade de expressão são as pessoas que exprimem opiniões incómodas, desagradáveis, irritantes, minoritárias e, eventualmente, injustas. Não podemos olhar para a liberdade de expressão como garantindo o direito das pessoas dizerem coisas sensatas, verdadeiras e corretas”.
É com este escopo, aliás, que o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH) vem, consistentemente interpretando o artigo 10º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem29 (CEDH), em termos inicialmente formulados no caso Handyside c. Reino Unido, de 07.12.1976 (Queixa nº 5493/72)30 (§ 49), no qual o Tribunal reconheceu que as suas funções de supervisão lhe impõem especial atenção aos princípios que caracterizam uma sociedade democrática, e que a liberdade de expressão constitui um pilar essencial de tal sociedade, uma das condições básicas para o seu progresso e para o desenvolvimento de todos. Com salvaguarda do disposto no §2 do artigo 10º, a proteção concedida à liberdade de expressão aplica-se não apenas a informação ou ideias acolhidas favoravelmente ou encaradas como inofensivas ou indiferentes, mas também às que ofendem, chocam ou incomodam o Estado ou qualquer setor da população. Tais são as exigências do pluralismo, tolerância e abertura de espírito, sem os quais não existe uma sociedade democrática. Isto significa, além do mais, que qualquer formalidade, condição, restrição ou penalidade imposta nesta matéria deve mostrar-se proporcional ao fim legítimo prosseguido31.
O TEDH não deixou de considerar, no entanto, que quem exerce a sua liberdade de expressão, assume deveres e responsabilidades, cujo âmbito depende da sua situação e dos meios usados, não se podendo deixar de averiguar se as restrições ou penalidades impostas se destinaram à proteção de valores, tornada necessária numa sociedade democrática32.
Isto mesmo foi novamente reafirmado, entre outros, no caso Lopes Gomes da Silva c. Portugal, de 28.09.2000 (Queixa nº 37698/97)33, em cujo §30 pode ler-se: “O Tribunal recorda os princípios fundamentais que decorrem da sua jurisprudência relativa ao artigo 10.º:
i. A liberdade de expressão constitui um dos fundamentos essenciais de uma sociedade democrática e uma das condições primordiais do seu progresso e realização de cada um. Sem prejuízo do n.º 2, ela é válida não apenas para as «informações» ou «ideias» acolhidas favoravelmente ou consideradas como inofensivas ou indiferentes, mas também para as que ferem, chocam ou causam inquietação. Assim o exigem o pluralismo, a tolerância e o espírito de abertura sem os quais não há «sociedade democrática». Como especifica o artigo 10.º, o exercício desta liberdade está sujeito a formalidades, condições, restrições e sanções que todavia devem ser estritamente interpretadas, devendo a sua necessidade ser estabelecida de maneira convincente (ver, entre outras, as seguintes sentenças: Jwski c. Polónia [GC], n.º 25716/94, § 30, CEDH 1999-I; Nsen et Josen c. Noruega [GC], n.º 23118/93, § 43, CEDH 1999- VIII).
ii. Estes princípios revestem uma particular importância para a imprensa. Se esta não deve ultrapassar os limites fixados em vista, nomeadamente, «da protecção da reputação de outrem», incumbe-lhe, no entanto, transmitir informações e ideias sobre questões políticas bem como sobre outros temas de interesse geral. Sobre os limites da crítica admissível eles são mais amplos em relação a um homem político, agindo na sua qualidade de personalidade pública, que um simples cidadão. O homem político expõe-se inevitável e conscientemente a um controlo atento dos seus factos e gestos, tanto pelos jornalistas como pela generalidade dos cidadãos, e deve revelar uma maior tolerância sobretudo quando ele próprio profere declarações públicas susceptíveis de crítica. Sem dúvida tem direito a protecção da sua reputação, mesmo fora do âmbito da sua vida privada, mas os imperativos de tal protecção devem ser comparados com os interesses da livre discussão das questões políticas, exigindo as excepções à liberdade de expressão uma interpretação restritiva (ver, nomeadamente, a sentença Obersck c. Áustria (n.º 2), de 1 de Julho de 1997, Recueil des arrêts et décisions 1997-IV, pp. 1274-1275, § 29).”
Aos profissionais da informação vêm sendo crescentemente equiparados os indivíduos com intervenção no espaço público, nomeadamente, bloggers e ativistas com intervenção nas redes sociais, reconhecendo-se a suscetibilidade de os mesmos contribuírem, de forma útil, para a discussão de temas relevantes para toda a sociedade, com restrição, porém, relativamente ao que possa ser qualificado como discurso de ódio ou incitamento à violência.
Por outro lado, com relevo para a questão que nos ocupa, importa ter presente que, de acordo com o que se dispõe no artigo 18º, nos 2 e 3, da Constituição da República, as restrições a direitos fundamentais, feitas por lei ou com base na lei, designadamente por decisão jurisdicional, devem limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos da mesma natureza ou interesses objetivos constitucionalmente garantidos. Quer isto dizer que tais restrições devem respeitar o princípio da proporcionalidade em sentido amplo, isto é, têm de ser adequadas (aptas), necessárias (exigíveis) e proporcionais (na justa medida) à proteção de outros direitos ou interesses constitucionais. Não podendo, em caso algum, diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais consagradores dos direitos atingidos.
Impõe-se, por isso, a respetiva concordância prática.
Assim, tendo presente que o direito ao bom nome e à reputação não gozam de garantia autónoma por parte da CEDH (antes se integrando na tutela da reserva da vida privada), o processo decisório, como escreve Sousa Ribeiro34, deverá centrar-se unidireccionalmente «em controlar se a ingerência, enquanto restrição à liberdade de expressão, encontra razão justificativa pelos critérios fixados no n.º 2 do artigo 10.º.” De acordo com esta perspectiva, tão-só são admitidas restrições ao exercício da liberdade de expressão “que constituam providências necessárias, numa sociedade democrática” à realização da “proteção da honra ou dos direitos de outrem”».
Importa, pois, tomar em consideração o concreto caso dos autos, sem esquecer que releva sobremaneira o contexto em que são proferidas as frases atribuídas à arguida.
Nas palavras do já citado acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa de 11.04.2024, “Correndo assumidamente o risco de alguma simplificação, diremos que num caso de alegada difamação, de duas uma: ou as palavras que visam terceiro são de todo gratuitas ou desgarradas de qualquer substrato fáctico ou de um debate de ideias e então sim são elas, as palavras, que estão em causa e nada ou pouco mais; ou as palavras têm um contexto, que até pode ser controverso, e neste caso a decisão judicial, para ser ponderada, judiciosa e pelo menos em tese persuasiva, não pode deixar de o convocar e a ele atender.
As palavras têm que [ser] lidas e analisadas em si mesmas, decerto, mas esse é apenas o ponto de partida; não podem ser olhadas de forma atomística, isolada e estática, tendo antes que o ser também - diremos mesmo inevitavelmente -, no seu contexto e na sua dinâmica, para que se lhe possa fixar o seu sentido exato, a sua envolvência, a lógica com que surgiram, o seu papel no mundo exterior, a própria intenção com que foram usadas e percebidas no ambiente cultural em que se enquadram.”
Ora, tendo em conta a matéria de facto fixada pelo Tribunal recorrido, temos que dizer que, por um lado, a potencialidade ofensiva das publicações da arguida é residual, já que, lidas as mesmas, o que imediatamente se identifica é o desconforto, a frustração e a impotência, perante os acontecimentos que afetaram (e afetam) a vida privada da arguida. Como, a nosso ver acertadamente, se reconheceu na decisão impugnada, dadas as circunstâncias vividas pela arguida durante os últimos 10 anos, ofender os assistentes não era de todo a sua prioridade.
Releva-se que dos mencionados escritos o que resulta, em primeira linha, é a crítica ao modo como os processos de promoção e proteção e de regulação das responsabilidades parentais visando os menores filhos da arguida foram conduzidos, a respetiva morosidade e o flagrante desrespeito pela vida familiar da arguida e pelo seu direito a construir e manter uma relação com os seus filhos menores – matérias nas quais, de resto, lhe foi reconhecida razão em decisões judiciais, maxime no acórdão proferido pelo TEDH, que condenou o Estado Português por violação do artigo 8º da CEDH.
Neste sentido, pese embora se possa identificar algum destempero ou falta de polimento da linguagem empregue, é no mínimo duvidosa a potencialidade das expressões em causa, no que se reporta aos assistentes, para integrarem o tipo objetivo do crime aqui em causa – sabido que é que a falta de educação não integra, em si mesma, um ilícito penal.
Ademais, as expressões em causa configuram, fundamentalmente, um juízo sobre a atuação dos assistentes, e não propriamente sobre as suas pessoas, sendo que, tal como se considerou no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 19.04.201735, “os crimes de difamação e injúria supõem a imputação de factos ou a formulação de juízos sobre uma pessoa, não a formulação de juízos sobre factos, atuações, obras, prestações ou realizações. Estes juízos, que são cobertos pela liberdade de expressão e crítica, não configuram elemento constitutivo de algum desses dois tipos de crime.”
Por outro lado, como também se considerou na decisão recorrida, resulta evidente dos factos apurados, que expressões como «filhos sequestrados» ou «roubo à descarada dos meus filhos gémeos» não estão empregues em sentido técnico-jurídico, o que também pode dizer-se das «falsificações» (o que claramente se quis significar foi a falta de verdade das informações constantes dos relatórios elaborados pelas técnicas do serviço social) – é manifesto que a arguida não tem formação jurídica e do contexto das frases resulta que recorreu a palavras que possuem um referente reconhecido no léxico comum, sem rigor jurídico36.
E isto nos traz àquela que é a evidente pedra de toque neste caso: os factos reportados pela arguida, pese embora o colorido da linguagem, são verdadeiros.
Da matéria de facto apurada nos autos37 – ao contrário do que pretendem os recorrentes – resulta evidente que, por ação dos assistentes (não exclusiva, mas determinante), foi impedido o acesso da arguida aos seus filhos menores, em termos tais que, decorridos que estão mais de 10 anos desde a separação dos menores, é praticamente irreparável a destruição do vínculo familiar.
Não cabe, evidentemente, no âmbito desta decisão debruçar-se sobre as minúcias daqueles procedimentos, mas para o que aqui releva – e independentemente de terem existido decisões judiciais que, pelo menos parcialmente, sustentaram as pretensões dos assistentes – resulta evidente da matéria provada a responsabilidade daqueles na quebra do vínculo familiar entre a arguida e os seus filhos, v.g., o menor FF.
Face ao que evola dos autos, é compreensível o desespero e frustração da arguida, sendo que à data da prática dos factos (2018 e início de 2019), ou seja, antes de ter sido proferido o acórdão condenatório do TEDH e antes de o Tribunal da Relação de Lisboa ter determinado o restabelecimento das visitas, não vislumbrava a arguida que outras medidas poderiam ser eficazes, configurando-se a sua ação como uma tentativa para chamar a atenção para o seu caso, expondo-o de forma mais ou menos pública.
Sabendo-se que existem, no nosso país, vários casos em que é questionada a morosidade da decisão nos processos relativos a menores e o excesso no afastamento do respetivo núcleo familiar – que já justificaram várias condenações do Estado português no TEDH – nem sequer se pode afirmar que a questão não mereça ser trazida ao debate público, ou que não seja necessária reflexão sobre as práticas dos serviços destinados à proteção das crianças e, em última análise, dos tribunais38.
Adicionalmente, a circunstância de ambos os assistentes exercerem atividade profissional na área da infância e juventude – o que, claramente, ampliou o sentimento de impotência da arguida – contribui para que deva considerar-se mais lata a respetiva esfera de proteção. Dos assistentes, pela respetiva formação e pelas funções exercidas, espera-se o reconhecimento dos direitos familiares e a contribuição para o respetivo respeito. Por isso, a sua conduta não pode ser colocada a salvo da crítica39 – e, ao contrário do que sustentaram no recurso, não é de considerar que o direito à proteção da respetiva honra deva suplantar o direito à liberdade de expressão da arguida.
Em suma, face à matéria de facto apurada nos autos, é de considerar que, sendo residual a potencialidade ofensiva das publicações da arguida, são, ainda assim, de considerar verificadas as circunstâncias cumulativas previstas no nº 2 do artigo 180º do Código Penal, com a consequente exclusão da punibilidade (como se considerou na decisão recorrida), ou seja, está demonstrado que a arguida visou a realização de um interesse legítimo, e, por outro lado, que a mesma tinha, pelo menos, fundamento sério para, em boa fé, reputar verdadeiras as suas afirmações – ainda que se possa dizer que não foi elegante no modo como as produziu (o que, todavia, não configura ilícito criminal). Neste contexto, a arguida não podia deixar de ser, como foi, absolvida.
O recurso improcede, pois.
*
V. Decisão
Pelo exposto acordam os Juízes desta 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa em negar provimento ao recurso interposto pelos assistentes DD e EE, confirmando a sentença recorrida nos seus precisos termos.
Custas a cargo dos assistentes, que decaíram totalmente, fixando-se a taxa de justiça em 5 UC (cf. artigo 515º, nº 1, alínea b), do Código de Processo Penal).
D.N.
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Lisboa, 21 de janeiro de 2025
(texto processado e integralmente revisto pela relatora – artigo 94º, nº 2 do Código de Processo Penal)
Sandra Oliveira Pinto
Rui Coelho
Maria José Machado (Vencida, nos termos da declaração de voto junta)

Vencida quanto à decisão pelas seguintes razões:
Pese embora a inegável qualidade da decisão que fez vencimento, no que respeita aos considerandos de direito quanto à liberdade de expressão, não posso concordar com a mesma por entender que a decisão da 1ª instância padece de um erro notório na apreciação da prova no que respeita aos factos não provados atinentes ao elemento subjectivo ou dolo.
Resultando da matéria de facto provada que o filho da arguida, que ficou entregue aos assistentes, o foi ao abrigo de decisões judiciais proferidas por tribunais, as publicações que a arguida fez no facebook, entre 26/07/2018 e 9/01/2019, são objectivamente ofensivas da honra e consideração dos assistentes, designadamente as referentes aos factos constantes dos pontos 3, 4, 7, 8 e 9, dos factos provados. A arguida não podia deixar de saber, na data em que escreveu esses textos, que os mesmos eram susceptíveis de ofender a honra e consideração dos assistentes (e não só) e que o seu conteúdo era ilícito. Mesmo assim quis publicá-los, como publicou, e não vejo que os mesmos tenham natureza informativa - apenas exprimem insinuações e acusações pejorativas sobre os assistentes e sobre os técnicos e os próprios juízes que tiveram os processos.
O que aconteceu depois, designadamente o decidido pelo TEDH e em sede de recurso pelo TRL, não tem a virtualidade de legitimar a acção ilícita da arguida. Por isso entendo que o tribunal errou na apreciação que fez da prova quanto ao elemento subjectivo e uma vez que não houve impugnação da matéria de facto, eu decidiria no sentido de determinar o reenvio do processo para novo julgamento.
Maria José Machado
_______________________________________________________
1. https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/-/854DFD19BD3F78B3802573E000363505
2. AAVV, Código Penal Anotado, Coimbra Editora, 2009, p. 1039.
3. https://hudoc.echr.coe.int/eng?i=001-230257
4. https://hudoc.echr.coe.int/eng?i=001-104151
5. https://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/-/131D78948A37729D80257BB8005B6A77
6. http://www.gde.mj.pt/jtrg.nsf/86c25a698e4e7cb7802579ec004d3832/64bb9c78561b504e802585b2003cc8ee?OpenDocument
7. https://hudoc.echr.coe.int/eng?i=001-191157
8. https://search.coe.int/cm/Pages/result_details.aspx?ObjectID=09000016805c3f20
9. https://www2.ohchr.org/english/bodies/hrc/docs/gc34.pdf
10. Cf. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol. III, 2ª ed., pág. 335, Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos Penais, 9ª ed., 2020, págs. 89 e 113-114, e, entre muitos outros, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 05.12.2007, Procº 3178/07, 3ª Secção, disponível in Sumários do STJ, www.stj.pt, no qual se lê: «O objecto do recurso é definido e balizado pelas conclusões extraídas da respectiva motivação, ou seja, pelas questões que o recorrente entende sujeitar ao conhecimento do tribunal de recurso aquando da apresentação da impugnação - art.º 412.º, n.º 1, do CPP -, sendo que o tribunal superior, tal qual a 1.ª instância, só pode conhecer das questões que lhe são submetidas a apreciação pelos sujeitos processuais, ressalvada a possibilidade de apreciação das questões de conhecimento oficioso, razão pela qual nas alegações só devem ser abordadas e, por isso, só assumem relevância, no sentido de que só podem ser atendidas e objecto de apreciação e de decisão, as questões suscitadas nas conclusões da motivação de recurso, (...), a significar que todas as questões incluídas nas alegações que extravasem o objecto do recurso terão de ser consideradas irrelevantes.»
11. EDUARDO CORREIA (in «Actas das sessões da comissão revisora do Código Penal», Parte Geral, Tomo I, sem data, Lisboa, Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, 218 e 219
12. Ac. do TRE de 01.07.2014
13. Ac.do TRE de 28-05-2013
14. Acórdão do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem - Wingrove c. Reino Unido, §58.
15. Cf. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 16ª ed., p. 873; Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, 2ª ed., p. 339; Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª ed., 2007, pp. 77 e ss.; Maria João Antunes, RPCC, Janeiro-Março de 1994, p. 121).
16. No processo nº 06P3649, Relator: Conselheiro Souto de Moura.
17. No processo nº 1182/06.3PAALM.S1, Relator: Conselheiro Armindo Monteiro.
18. Código de Processo Penal Comentado, 3ª ed. revista, Almedina, 2021, pág. 1291.
19. Recursos Penais, cit., pág. 74.
20. No processo nº 288/09.1GBMTJ.L1-5, relatado pelo, então, Desembargador Jorge Gonçalves, acessível em www.dgsi.pt.
21. Cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13.07.2005, no processo nº 05P2122, relatado pelo Conselheiro Henriques Gaspar, acessível em www.dgsi.pt.
22. LEAL-HENRIQUES e SIMAS SANTOS, Código de Processo Penal anotado, II volume, 2ª edição, 2000, Rei dos Livros, pág. 740.
23. Vd., entre tantos outros, os acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 09.03.2018, no processo nº 628/16.7T8LMG.C1, Relatora: Desembargadora Paula Roberto, e de 14.01.2015, no processo nº 72/11.2GDSRT.C1, Relator: Desembargador Fernando Chaves, ambos disponíveis em www.dgsi.pt
24. Pereira Madeira, Ob. cit., pág. 1294.
25. Cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13.07.2005, já citado.
26. Comentário Conimbrincense do Código Penal, Tomo I, Coimbra Editora, 1999, pág. 607.
27. No processo nº 7971/20.9T9LSB.L1-9, Relator: Desembargador Jorge Rosas de Castro, acessível em www.dgsi.pt.
28. “Liberdade de expressão - a jurisprudência do TEDH e os Tribunais portugueses”, in Revista Julgar, nº 32 (maio-agosto 2017), pág. 182.
29. «1. Qualquer pessoa tem o direito à liberdade de expressão. Este direito compreende a liberdade de opinião e a liberdade de receber ou de transmitir informações ou ideais sem que possa haver ingerência de quaisquer autoridades públicas e sem considerações de fronteiras. O presente artigo não impede que os Estados submetam as empresas de radiodifusão, de cinematografia ou de televisão a um regime de autorização prévia.
2. O exercício destas liberdades, porquanto implica deveres e responsabilidades, pode ser submetido a certas formalidades, condições, restrições ou sanções, previstas pela lei, que constituam providências necessárias, numa sociedade democrática, para a segurança nacional, a integridade territorial ou a segurança pública, a defesa da ordem e a prevenção do crime, a proteção da saúde ou da moral, a proteção da honra ou dos direitos de outrem, para impedir a divulgação de informações confidenciais, ou para garantir a autoridade e a imparcialidade do poder judicial
30. Pesquisado em https://hudoc.echr.coe.int/
31. No texto original: «The Court's supervisory functions oblige it to pay the utmost attention to the principles characterising a “democratic society”. Freedom of expression constitutes one of the essential foundations of such a society, one of the basic conditions for its progress and for the development of every man. Subject to paragraph 2 of Article 10 (art.º 10-2), it is applicable not only to “information” or “ideas” that are favourably received or regarded as inoffensive or as a matter of indifference, but also to those that offend, shock or disturb the State or any sector of the population. Such are the demands of that pluralism, tolerance and broadmindedness without which there is no “democratic society”. This means, amongst other things, that every “formality”, “condition”, “restriction” or “penalty” imposed in this sphere must be proportionate to the legitimate aim pursued.»
32. No texto original da decisão: «From another standpoint, whoever exercises his freedom of expression undertakes “duties and responsibilities” the scope of which depends on his situation and the technical means he uses. The Court cannot overlook such a person's “duties” and “responsibilities” when it enquires, as in this case, whether “restrictions” or “penalties” were conducive to the “protection of morals” which made them “necessary” in a “democratic society”.»
33. Igualmente em https://hudoc.echr.coe.int/
34. Joaquim de Sousa Ribeiro, “Encontros e desencontros entre a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos e a jurisprudência nacional”, Gestlegal, Revista de Legislação e de Jurisprudência, n.º 4014, ano 148.º, janeiro-fevereiro de 2019, pág. 168.
35. No processo nº 16391/15.6T9PRT.P1, Relator: Desembargador Pedro Vaz Pato, acessível em https://jurisprudencia.csm.org.pt/ecli/ECLI:PT:TRP:2017:16391.15.6T9PRT.P1.CA/
36. O TEDH, designadamente no caso Ug e Ilom Kft. c. Hungria (queixa nº. 64520/10), de 03.12.2013, consultável em http://hudoc.echr.coe.int/eng?i=001-138568, recordou, no respetivo §56, que “o grau de precisão para estabelecer a fundamentação de uma acusação criminal por um tribunal competente dificilmente pode ser comparado ao que deveria ser observado por um jornalista ou um historiador ao expressar a sua opinião sobre uma questão de interesse público. Os padrões aplicados ao avaliar a conduta passada de alguém em termos de moralidade são bastante diferentes daqueles que são exigidos para estabelecer um delito ao abrigo do direito penal (ver, por exemplo, Unabhängige Initiative Informationsvielfalt v. Áustria, n.º 28525/95, § 46, CEDH 2002-I; Wirtschafts-Trend Zeitschriften-Verlags GmbH c. Áustria, n.º 58547/00, § 39, 27 de outubro de 2005;”
37. V.g., dos factos elencados sob os nos 13, 14, 18, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28, 29 e 30.
38. Vd, a propósito o artigo da Professora Ana Rita Gil, “O caso ... c. Portugal: (mais) um olhar do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos sobre a aplicação de medidas de promoção e proteção a crianças em perigo”, em https://www.fd.ulisboa.pt/wp-content/uploads/2022/04/Ana-Rita-Gil.pdf
39. Vd., com interesse o caso ... c. Portugal (queixa nº 48979/19), de 16.01.2024, consultável em https://hudoc.echr.coe.int/eng?i=001-230257