Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
64/15.2GTALQ.L3-9
Relator: ANA MARISA ARNÊDO
Descritores: RECLAMAÇÃO PARA A CONFERÊNCIA
REJEIÇÃO DO RECURSO
ARGUIDO ADVOGADO EM CAUSA PRÓPRIA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/16/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: I. Como tem sido pacificamente entendido na doutrina e jurisprudência, estando em crise situação em que o arguido é, também, advogado, ao mesmo está legalmente vedada a possibilidade de arcar, motu proprio e de forma exclusiva, com a sua defesa, maxime naqueles actos em que está legalmente prevenida a reserva de defensor.
II. «A "fusão" dos sujeitos processuais defensor e arguido (mesmo que este seja advogado) não significa uma melhor defesa. Pelo contrário, poderá ser um fator prejudicial a uma defesa mais efetiva. A imposição de um defensor, mesmo quando o arguido é advogado perspetivada na nossa ordem jurídica como uma condição essencial para assegurar as garantias de defesa do arguido (art.º 32.°/1 e 3 CRP), a due process of law, a fair process, a fair trial, igualdade de armas e uma boa administração da justiça, interpretação esta que tem sido considerada conforme à CRP (acs. TC 578/2001, 461/2004, 196/2007) e à CEDH (v. o recente ac. TEDH Correia de Matos v. Portugal, 4 de Abril de 2018)»
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 9ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. RELATÓRIO
1. Nos autos em referência, pela Sra. Juíza do Tribunal a quo foi proferido, em 22 de Julho de 2024, o seguinte despacho:
«Requerimento de 30/06/2024 – do cumprimento da pena acessória
Vem o arguido invocar que cumpriu a pena acessória de inibição de conduzir em que foi condenado nos presentes autos porquanto esteve sem conduzir o período de tempo determinado na sentença.
O arguido foi condenado nos presentes autos por sentença proferida em 06/06/2018 pela prática, em 09/06/2015, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelo artigo 292.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 100 (cem) dias de multa, à taxa diária de € 6 (seis euros), perfazendo o montante global de € 600 (seiscentos euros) e na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 7 (sete) meses, nos termos do artigo 69.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal.
A sentença proferida transitou em julgado em 09/11/2022.
O arguido já cumpriu a pena de multa.
Porém, não entregou até ao presente a sua carta de condução.
Aduz o arguido que já cumpriu a pena acessória, remetendo para os argumentos por si expendidos em sede de recurso apresentado no apenso D, que não foram apreciados pelo Tribunal da Relação por não ter a questão sido primeiramente suscitada junto do tribunal de 1.ª instância.
É a seguinte a argumentação do arguido:
“Todavia, a realidade é que o arguido cumpriu a pena acessória – sem conceder no que se encontra pendente.
Porque o tribunal comunicou a sentença em 6/12/2022 quer à ANSR quer ao IMT através das referências 154974687 e 154974775.
O que motivou que o arguido disso reclamasse em razão de não estarem os autos transitados na parte subsequente do interposto recurso que convocou o justo impedimento, uma vez que ainda pendiam, e pendem, pelo Tribunal Constitucional, cuja conferência tem de analisar e decidir arguição que lhe foi aposta depois de reclamar de decisão sumária.
Ou seja, a questão já foi traduzida nos autos e encontra-se igualmente pendente no TRL, tendo sido aposta arguição e reclamação a acórdão da conferência do TC terá de ser o órgão colegial a decidir a mesma.
Mas, entretanto, tendo tomado conhecimento de tais comunicações, até porque se representava a si próprio (auto representação) e tinha acesso ao Citius, ao verificar aquelas comunicações, outra alternativa não teve senão ficar impedido de conduzir veículos, como fora determinado, o que fez.
De facto, tendo sido feitas as comunicações não iria correr o risco de ser fiscalizado e se verificar que face às comunicações referidas não estava habilitado a conduzir por via da inibição decidida em 2018.
Mais tarde, é expedido ofício à PSP para efeitos de apreensão da carta, tendo o arguido sido ouvido em auto de declarações, onde pormenorizou que a carta se encontrava extraviada e não sabia da mesma.
Mas igualmente invocou ter cumprido a sanção acessória, a contragosto, é verdade, mas fê-lo nos sobreditos termos.
Assim, a mesma encontra-se cumprida, conforme se informou aos autos, sendo que o facto de não entregar a carta se deveu ao extravio da mesma.
Pelo que existe o cumprimento realizado por um lado e inexiste incumprimento por outro”.
Neste conspecto importa atentar nos seguintes preceitos:
Artigo 69.º do Código Penal
1- É condenado na proibição de conduzir veículos com motor ou na proibição de pilotar aeronaves com ou sem motor, consoante os casos, por um período fixado entre 3 meses e 3 anos quem for punido: (…) por crime previsto no artigo 292.º do Código Penal.
2- A proibição produz efeito a partir do trânsito em julgado da decisão e pode abranger a condução de veículos com motor de qualquer categoria ou a pilotagem de quaisquer aeronaves, consoante os casos.
3- No prazo de 10 dias a contar do trânsito em julgado da sentença, o condenado entrega na secretaria do tribunal, ou em qualquer posto policial, que remete àquela, o título de condução ou a licença ou título de piloto de aeronaves, se o mesmo não se encontrar já apreendido no processo.
Artigo 500.º do Código de Processo Penal
1- A decisão que decretar a proibição de conduzir veículos motorizados é comunicada à Direcção-Geral de Viação.
2- No prazo de 10 dias a contar do trânsito em julgado da sentença, o condenado entrega na secretaria do tribunal, ou em qualquer posto policial, que a remete àquela, a licença de condução, se a mesma não se encontrar já apreendida no processo.
3- Se o condenado na proibição de conduzir veículos motorizados não proceder de acordo com o disposto no número anterior, o tribunal ordena a apreensão da licença de condução.
4- A licença de condução fica retida na secretaria do tribunal pelo período de tempo que durar a proibição. Decorrido esse período a licença é devolvida ao titular.
Pese embora a redação do n.º 2 do artigo 69.º do Código Penal (que numa leitura isolada e literal poderia levar a considerar-se que a contagem do período de cumprimento da pena acessória se inicia com o trânsito em julgado da decisão), a verdade é que conjugando o n.º 2 com o n.º 3 do artigo 69.º do Código Penal e ainda com o teor do artigo 500.º, n.ºs 2, 3 e 4 do Código de Processo Penal, concluímos que o cumprimento da pena acessória, salvo nos casos em que já se encontra apreendido à ordem dos autos, apenas se inicia com (1) a entrega do título de condução ou (2) a apreensão do título de condução.
Se assim não fosse, estava encontrada a fórmula para se obstaculizar o cumprimento das penas acessórias de inibição de conduzir, colocando-se em crise as necessidades de política criminal da eficácia da pena acessória de proibição de conduzir veículos a motor, premiando-se o infrator e desprestigiando-se as decisões judiciais.
Quando o artigo 69.º, n.º 2 do Código Penal prescreve que “a proibição produz efeito a partir do trânsito em julgado” está-se a referir à exequibilidade da pena, nada dispondo sobre a efetiva execução dela.
Neste sentido, veja-se, entre muitos outros, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 21/01/2015, proferido no processo n.º 42/13.6GCFND.C1, disponível em www.dgsi.pt: “Conforme se refere no acórdão do Tribunal da Relação do Porto, proferido no processo 89/13.2GTBGC, pesquisado em www.dgsi, «no que respeita ao momento, a partir do qual, se inicia o cumprimento da pena acessória de proibição de conduzir, verifica-se que se inicialmente se encontravam decisões no sentido de que, independentemente da entrega ou da apreensão da carta de condução “o cumprimento daquela pena acessória inicia-se a partir do trânsito em julgado da decisão que a decretou”- vide neste sentido o Ac. da Relação do Porto de 08.10.2003, proc. 340506 e no mesmo sentido P. Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica Editora, 1ª Edição, pág. 1278, nota 5., actualmente vêm os tribunais superiores entendendo maioritariamente que “a execução da pena acessória de proibição de conduzir veículo motorizado não se inicia com o trânsito em julgado da decisão condenatória, mas apenas no dia em que se verifique a entrega ou a apreensão do título de condução”. Tudo sem prejuízo de se ter em atenção se o título de condução se encontra apreendido no processo, caso, em que o cumprimento da pena acessória de proibição de conduzir inicia-se com o trânsito em julgado da decisão que a aplicou - vide Ac. do TRL de 21.10.2003, proc. n.º 3465/03, 5ª secção; e da Relação de Évora, de 29.03.2005, proc. 2757/04.1; ou se o título de condução não se encontra apreendido no processo, caso em que o cumprimento da pena acessória se inicia apenas no momento em que o documento, por entrega voluntária ou por apreensão, deixa de estar na posse do condenado e fica à ordem do tribunal – vide entre outros, Acs. desta Relação do Porto, de 10/2/2010, proc. n.º 98/009.6GAVLC.P1, Relator Ricardo Costa e Silva; de 10/1/2007, proc. n.º 0645759, Relator Maria Elisa Marques; de 13/12/2006, proc. 0615365, Relator Guerra Banha; de 19/7/2006, proc. 0612034, Relator Augusto Carvalho; de 14/6/2006, proc. 0543630, Relator Custódio Silva; da Relação de Lisboa, de 24/1/2007, Processo n.º 7836/2006-3, Relatora Conceição Gonçalves; da Relação de Évora, de 11/3/2010, processo n.º 97/08.5PTEVR.E1, Relator João Luís Antunes, todos disponíveis em dgsi.pt. No mesmo sentido se pronuncia, actualmente, Paulo Pinto de Albuquerque, no Comentário do Código de Processo Penal, 3ª Ed., pág. 1246, nota 3.»
E bem se compreende que apenas com a efectiva apreensão do título se inicie o cumprimento da pena acessória, pois que só assim se torna eficaz a fiscalização da inibição pelas autoridades policiais.
De outro modo, o arguido que mantivesse um comportamento contumaz, não entregando a sua carta de condução onde determinado, ou furtando-se sucessivamente à sua apreensão, poderia ‘cumprir’ a inibição conduzindo o veículo e, sendo interceptado pelas autoridades policiais, exibindo o título que, em rigor, não deveria estar na sua posse. Também assim se compreende que, num primeiro momento, ao não entregar o título, o arguido cometa o crime de desobediência e só depois, após a sua entrega voluntária ou apreensão, cometa o crime de violação de proibição se porventura conduzir veículos.
(…) Da conjugação destas normas resulta que o período de inibição se não pode iniciar sem que o título que habilita a condução esteja na posse do tribunal, estando o arguido dele desapossado, por estar já apreendido no processo, por o ter o arguido entregue voluntariamente ou por, face ao seu comportamento negativo, ter sido ele apreendido por ordem do tribunal. Bem se compreende que assim seja, já que, sendo muito difícil a fiscalização do concreto cumprimento da inibição pelo condenado, sempre poderá essa fiscalização ser operada pelas autoridades policiais que fiscalizam o trânsito, caso, entretanto abordem o condenado.
Não há confusão possível entre a eficácia das penas e a sua execução. Com o trânsito em julgado todas as penas se tornam eficazes, assim abrindo caminho à sua execução. Contudo, tal não significa que a execução se inicie sempre e necessariamente no dia seguinte ao trânsito em julgado (há similitude com a situação da condenação em pena de prisão que, embora eficaz, carece da entrada do condenado na prisão a fim de iniciar a sua execução). No caso concreto, não estando o título apreendido nos autos, e não tendo o arguido procedido à sua entrega voluntária, na secretaria do tribunal ou em qualquer posto policial, não se pode considerar que a pena acessória aplicada no processo se tenha extinguido pelo cumprimento, pois que à data da autuação do arguido pelos factos constantes dos presentes autos, decorria o prazo do respectivo cumprimento”.
No mesmo sentido vejam-se, entre outros, os Acórdãos do TRC, de 29/06/2022, proferido no processo n.º 183/21.6GDCBR-A.C1 (“É com a entrega voluntária da licença de condução ou, caso não se verifique tal entrega, com a sua apreensão, que se efectiva a inibição de conduzir. Isto é, a partir do momento em que o arguido fica desapossado da sua licença de condução não pode conduzir. Logo, o início da proibição de conduzir, o início da execução da pena acessória, tem que corresponder a essa entrega ou apreensão.”), de 19/12/2007, proferido no processo n.º 62/06.7GCCNT-A.C1, TRP, de 10/01/2007, proferido no processo n.º 0645759, todos disponíveis em www.dgsi.pt. Veja-se ainda TRC, 02/11/2011, 21/01/2015, 11/10/2017, 09/06/2021, 16/06/2021, TRE, 10/11/2005, 04/02/2010, 03/06/2014, TRG, 30/06/2014. Parece ainda ser este o entendimento vertido no AUJ 3/2023, que fixou jurisprudência no sentido de “À contagem da pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor prevista no artigo 69.º do Código Penal aplicam-se, por analogia, nos termos do artigo 4.º do Código de Processo Penal, as regras de contagem da pena de prisão constantes do artigo 479.º do Código de Processo Penal.”
No caso dos autos o arguido nunca entregou a sua carta de condução na secretaria do tribunal ou em qualquer posto policial para cumprimento da pena acessória, nem a mesma lhe foi apreendida, pelo que se nos afigura manifesto que o arguido ainda não iniciou o cumprimento da pena acessória a que foi condenado nestes autos, cumprimento esse que tenta evitar a todo o custo com os consecutivos requerimentos e recursos que apresenta.
Refira-se ainda que a comunicação efetuada à ANSR e ao IMT não teve a virtualidade de iniciar qualquer período de cumprimento da pena acessória e basta atentar no teor de tal ofício (junto ao processo eletrónico em 06/12/2022, ref.ª 154974775) para se perceber que assim é, sendo manifesto que se tratou tão só de dar conhecimento ao IMT da sentença nos autos proferida, comunicação essa efetuada com a expressa menção de que “Relativamente ao cumprimento da inibição de condução, informa-se o seguinte: A carta de condução do Arguido ainda NÃO foi entregue neste Tribunal”.
Com efeito, a comunicação da sentença à ANSR visa habilitar esta entidade a proceder ao registo da infração e correspondente reação criminal, para efeitos de subtração de pontos ao condutor (artigo 148.º, n.º 2 do Código da Estrada). Já a comunicação ao IMT (artigo 149.º-A, n.º 1 do Código da Estrada) visa por exemplo evitar que o IMT disponibilize novas cartas de condução enquanto não se encontrar iniciada e cumprida a pena acessória (artigo 121.º, n.º 9 e 12 do Código da Estrada).
Termos em que não assiste razão ao arguido, não tendo este ainda cumprido ou sequer iniciado o cumprimento a pena acessória a que foi condenado»
2. O arguido AA interpôs recurso do referido despacho, subscrito por ele próprio. Extraiu da respectiva motivação as seguintes conclusões:
«1º - No dia 6/12/2022 o Tribunal recorrido comunicou a sentença proferida, por entender ter a mesma transitado em julgado, ao IMT e à ANSR, atendendo ao procedimento encetado pelo Tribunal Constitucional, que após decisão da Conferência, ainda em prazo de reclamação para a Conferência entendeu ordenar a baixa dos autos;
2º - Disso tomando o recorrente conhecimento através do Citius, apresentou reclamação e posterior processado, tendo, em face das comunicações feitas, iniciado o cumprimento da sanção acessória de inibição de conduzir, que cumpriu na integralidade, matéria sobre a qual se aguarda decisão da 1ª Instância;
3º - Todavia, desta feita, foi proferido despacho judicial a ordenar as mesmas comunicações e fundado no art.º 500º-3 do CPP, o que já ocorreu em 13/6/2023 por via do despacho judicial de 7/6/2023, despacho este recorrido que deve ser totalmente revogado, porque repetido no que tange ao envio da sentença transitada em 6/12/2022 e no que a mesma despoletou de consequências processuais e pessoais e por inexistência de motivo para o efeito, nos sobreditos termos, uma vez que nunca houve recusa de entregar a licença de condução que se encontra extraviada e por via de repetir o que já foi decidido em comunicado anteriormente nos termos do art.º 500º-3 do CPP, em 13/6/2023 face ao precedente despacho de 7/6/2023;
4º - Face a tal revogação, devem igualmente ser anuladas as comunicações feitas quer aos organismos indicados (IMT e ANSR) e cumulativamente as comunicações feitas ao OPC.
5º- Como devem ser anuladas todas as consequências processuais e administrativas advenientes do teor desse despacho recorrido;
5º - De resto, o art.º 500º-2-3-4 do CPP é uma norma inconstitucional, assim como o art.º 69º-2 e 3 do CP que violam os art.º s 29º-5, 32º-1, 20º-4 e 13º-1 da CRP e o art.º 6º da CEDH nos termos que resultam da motivação que antecede e ali pormenorizados e aqui reproduzidos»
3. O recurso foi admitido, por despacho de 19 de Setembro de 2024.
4. O Ex.mo Magistrado do Ministério Público na primeira instância respondeu ao recurso (sem formulação de conclusões), em síntese, nos seguintes termos:
«Por sentença transitada em julgado em 09.11.2022, o arguido foi condenado pela prática, em 09.06.2015, em autoria material, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelo artigo 292º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 100 (cem) dias de multa, à taxa diária de € 6 (seis euros), perfazendo o montante global de € 600 (seiscentos euros) e, bem assim, na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 7 (sete) meses, nos termos do artigo 69º, n.º 1, alínea a), do Código Penal.
Como questão prévia constata-se que o arguido é advogado e encontra-se nos presentes a advogar em causa própria, porquanto o recurso ora em análise vem por si subscrito.
Sobre está temática, a título de exemplo, recentemente se pronunciou o Tribunal da Relação de Guimarães, no Acórdão prolatado no Processo 3645/19.3T9VCT.G1 de 17.10.2023 [in: www.dgsi.pt], cujo sumário versa:
I. No processo penal, o arguido que é advogado não se pode auto-representar na prática de atos que a lei reserva ao defensor, como o é o caso do exercício do direito ao recurso.
II. O arguido tem direito de recorrer, nos termos da lei, das decisões que lhe forem desfavoráveis, mas tal direito de recurso, seja ele ordinário ou extraordinário, só poderá ser exercido com a assistência do defensor, cuja obrigatoriedade decorre de forma inequívoca e expressa do artigo 64.º, n.º 1, al. e), do Código de Processo Penal.
III. Qualquer arguido, ainda que tenha a qualidade de advogado, tem de ser assistido por defensor nos casos em que tal assistência é obrigatória, sofrendo, portanto, restrições na jurisdição penal o direito que, em geral, se reconhece ao advogado de litigar em causa própria, restrição essa que, necessariamente, o impede de renunciar ao direito de ser assistido por outro advogado, por a tal se opor o artigo 32.º, n.º 3 da nossa Constituição da República Portuguesa.
Ante o exposto, sendo o presente recurso assinado pelo arguido, não deve ser recebido pelo facto do seu subscritor não ter condições necessárias para o efeito, promovendo-se, portanto, a rejeição do recurso, ao abrigo do disposto nos artigos 414.º, n.º 2 e 420º, nº 1, alínea b), ambos do Código Processo Penal.
Sem prescindir,
A jurisprudência é unânime que a execução da pena acessória de proibição de conduzir veículos a motor impõe a efetiva entrega/apreensão do título de condução.
Vejamos a título meramente exemplificativo o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 10.09.2009, relatado pelo Exmo. Juiz Desembargador, Trigo Mesquita, [in www.dgsi.pt], no qual se entendeu o seguinte: “objecto do presente recurso, delimitado pelas respectivas conclusões, diz respeito à questão nuclear única de decidir sobre qual o momento em que se inicia o cumprimento da pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados, prevista no artigo 69º do Código Penal: se é imediatamente após o trânsito em julgado da sentença condenatória, independentemente da entrega do título de condução ou se é apenas na data em que for entregue o título de condução. A matéria em recurso foi já decidida em recentes acórdãos proferidos por este mesmo Tribunal e secção, consentâneos com a posição jurisprudencial unânime dos tribunais superiores. Efectivamente, se o título de condução já se encontrar no processo, o cumprimento da pena de proibição de conduzir iniciasse imediatamente após o trânsito em julgado da sentença condenatória, nos termos do disposto no art.º 69º, nº 2, do Código Penal, em conjugação com o disposto nos arts. 467º, nº 1, e 500º, nº 2, segmento final, do Código de Processo Penal. Porém, se o título de condução não se encontrar no processo, o cumprimento da pena só se inicia a partir do momento em que for entregue voluntariamente pelo condenado ou for apreendido por ordem do tribunal, por aplicação das normas, interpretadas conjugadamente entre si, dos arts. 69º, nº 3, do Código Penal, 467º, nº 1, e 500º, nºs 2 e 4, do Código de Processo Penal. Neste sentido decidiram, entre outros, os acórdãos da Relação do Porto de 10-032004, em CJ-2004-II-205, e de 11-05-2005, 23-11-2005, 7-12-2005, 15-03-2006, 14-06-2006, 19-072006, 13.12.2006, todos publicados em www.dgsi.pt.jtrp.nsf/ procs. nº 0416689, 0513930, 0514140, 0441850, 0543630, 0612034 e 0615365, respectivamente; da Relação de Coimbra de 18-10-2006, em www.dgsi.pt/jtrc.nsf/ proc. nº 1224/04.7GBAGD-A; da Relação de Guimarães de 18-12-2002, CJ-2002V-293; da Relação de Évora de 29-03-2005 e de 10-11-2005, em www.dgsi.pt/jtre.nsf/, procs. nº 2757/04-1 e 1413/05-1, respectivamente. (…) Porque, nos termos do art.º 469º do Código de Processo Penal, “compete ao Ministério Público promover a execução das penas e das medidas de segurança”. O que quer dizer que a execução das penas não é nem automática, nem da iniciativa oficiosa do tribunal. Processa-se mediante iniciativa e promoção do Ministério Público. Porque a execução de qualquer pena há-de processar-se “nos próprios autos” e sob o controlo de um juiz (art.º 470º, nº 1 do Código de Processo Penal). E não à margem do processo e sem controlo jurisdicional. É para permitir o controlo do cumprimento da pena que a lei estabelece um prazo fixo para a entrega do título de condução: o prazo de 10 dias após o trânsito em julgado da sentença (nº 3 do art.º 69º do Código Penal e nº 2 do art.º 500º do Código de Processo Penal). Findo o qual, se não for entregue voluntariamente, será ordenada a sua apreensão (nº 4 do art.º 500º do CPP). Actividade que seria de todo inútil se o cumprimento da pena se processasse automaticamente após o trânsito da sentença, já que, na maioria dos casos, quando se desse a apreensão do título de condução estaria extinto o período de tempo da proibição de conduzir. Sem que existisse um mínimo de controlo e garantia de que a pena foi efectivamente cumprida. Gerando dúvidas sérias sobre a eficácia da pena. É a opinião expressa pelo Prof. GERMANO MARQUES DA SILVA, referindo que “a licença de condução fica retida na secretaria do tribunal pelo período que durar a proibição e decorrido esse período é devolvida ao titular” (em Curso de Processo Penal, vol. III, 2ª edição, Editorial Verbo, 2000, p. 426). O Prof. FIGUEIREDO DIAS escreve a este respeito que “no sistema das penas acessórias do direito vigente há um aspecto fulcral ao qual, de um ponto de vista puramente político-criminal, não deve ser regateado aplauso: o de haver terminado ― de forma peremptória, por força da CRP ― com a automaticidade, ou necessidade por mor da lei, da produção de efeitos da condenação” (em Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, p. 94 e 177). Em síntese conclusiva, da conjugação dos citados artigos 69º, nº 2, do Código Penal, 467º, nº 1, e 500º, nº 2, do Código de Processo Penal, resulta que o cumprimento da sanção acessória de proibição de conduzir veículos motorizados apenas se inicia com a entrega da licença de condução, e não com o referido trânsito em julgado.”
Assim, sem mais considerandos, por desnecessários, não tendo a carta de condução do arguido sido por este entregue voluntariamente ou apreendida pelo OPC na sequência do cumprimento ao disposto no artigo 500.º, n.º 3, do Código Processo Penal, temos que na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 7 (sete) meses sofrida pelo arguido nos presentes autos não se iniciou, motivo pelo qual bem andou o Tribunal a quo ao determinar a apreensão da carta de condução do arguido e, bem assim, a emissão de certidão para fins de procedimento criminal, pelo crime de desobediência alegadamente praticado pelo arguido.
Pelo exposto, a decisão da Meritíssima Juiz não merece qualquer censura e, portanto, deve o recurso improceder»
5. Neste tribunal, o Sr. Procurador-Geral Adjunto, louvado na resposta apresentada na primeira instância, é de parecer que o recurso deve ser rejeitado.
6. Cumprido o disposto no art.º 417º, n.º 2 do C.P.P., sobreveio, ainda, aos autos requerimento do recorrente com o seguinte teor:
«Pugna-se, após não serem suscitadas objeções quanto à sua admissibilidade, tempestividade, legitimidade, espécie, forma, momento de subida e efeito fixado, que seja o recurso julgado em decisão sumária, por via do art.º 417º-6-b) e d), com referência ao art.º 420º-1-a) do CPP.
E conclui-se que será de improceder o recurso em análise, mantendo-se a decisão recorrida.
Os recursos são julgados através de decisão sumária, nomeadamente, quando o recurso dever ser rejeitado (alínea b) do nº 6 do art.º 417º) ou a questão a decidir já tiver sido judicialmente apreciada de modo uniforme e reiterado (alínea d) do mesmo preceito).
E, por seu turno, o recurso é rejeitado sempre que for manifesta a sua improcedência (alínea a) do art.º 420º).
Sucede, porém, que nem o recurso deve ser rejeitado, nem a questão a decidir já foi judicialmente apreciada de modo uniforme e reiterado, muito menos sendo manifesta a sua improcedência.
Quanto à questão do auto patrocínio forense no domínio penal, enfoca-se não ser unânime na jurisprudência a valência de qualquer um dos pontos de vista.
Na realidade, as razões que apontam para a proibição da auto - defesa são, marcadamente, desvanecidas na fase processual dos recursos, tanto mais que nem sequer foi requerida a realização de audiência nos termos do art.º 411º-5 do CPP.
Fundamentalmente, tais razões prendem-se com a eventual confusão que se possa gerar em ambos os papéis interventores no processo, o de arguido e de advogado, o que não ocorre no domínio escrito, estando porventura evidenciado de forma mais sintomática nas fases que comportam, de algum modo, a oralidade, como na prestação de declarações de arguido em inquérito, na prestação de declarações ou inquirições em fase de instrução ou na fase de julgamento.
Na fase de recurso, apenas se colocaria a questão, de forma pertinente, se eventualmente existisse audiência preconizada pela Defesa, o que não acontece.
Trata-se de realizar a defesa de forma escrita, sem haver implicação alguma para o processo, em relação à parte processual do arguido e ao respetivo defensor, advogado.
A apresentação do recurso interposto não coloca em causa, de modo algum, a ritologia normal e adequada em termos processuais, não havendo forma de confusão alguma entre o domínio e estatuto do arguido e do defensor.
Não há confusão de nenhuma espécie entre os estatutos processuais respetivos, nem existe nenhuma norma legal beliscada, que seja essencial à administração da justiça.
Não se descortina qual seja ou dano ou a desconsideração, o fator negativo que afaste as normas que devem ser devidamente convocadas para a questão.
Tais normas são claras.
O art.º 6-3-c) da CEDH enuncia, com efeito, o direito à auto-defesa ou à assistência de um defensor de livre escolha.
Nada impede, a ser livre escolha, que o arguido escolha, precisamente, de forma livre; forma livre é sem restrições.
Sem restrições é poder escolher o advogado que pretende e entende, aceita-se que sem que seja afetado o rito processual e sem existir confusão, por exemplo a prestar declarações como arguido ou a inquiri subsequentemente as testemunhas da acusação – aí sim, existe razão para afastar a autodefesa por colocar em causa a ritologia processual, por se evidenciar a sobreposição de estatutos.
O art.º 14º-3-d) do PIDCP consagra até o direito de qualquer pessoa acusada de uma infração penal defender-se a si própria ou ter um Defensor à sua escolha.
São instrumentos legais internacionais de proteção de direitos fundamentais.
Assim, quando a resposta ao recurso suscita a questão prévia, alicerçando-se o aresto ali mencionado, não pode deixar de se ter em linha de conta que o art.º 64º-1-e) do CPP é uma norma, em tal interpretação restritiva, que colide com as normas de caráter geral e universal acima indicadas, violando diretamente o princípio da livre escolha do defensor.
No caso / Decisão do TEDH 15/11/2001 (Correia de Matos contra Portugal) decidiu-se que podem os próprios Estados decidir legislar no sentido de vedar a auto-defesa, que não ficará em causa o art.º 6º da CEDH.
Porém, de modo diverso, o Comité dos Direitos Humanos das Nações Unidas (declaração de 28/3/2006, comunicação 1123/2002) apreciou queixa do mesmo cidadão e aplicando o art.º 14º-3-d) do PIDCP considerou que a legislação portuguesa e a jurisprudência, não permitindo em caso algum que o acusado seja libertado da obrigação de ser representado por advogado em processo penal, e desde que não sejam apresentadas razões objetivas e suficientemente importantes pelas quais a auto defesa poderia atentar contra os interesses da justiça, não respeitaram a referida disposição legal do PIDCP (CPP Comentado, 2014, Almedina, Conselheiro Henriques Gaspar).
Ou seja, além do direito que o arguido tem de se defender a si próprio, por via de ambos os preceitos legais acima referidos, até acresce que sendo o mesmo advogado, pode fazê-lo por maioria de razão, não só porque na qualidade de arguido se pode auto representar mas igualmente porque nessa mesma qualidade tem direito a escolher livremente o defensor, podendo a escolha radicar em si próprio, desde que essa escolha não coloque em causa o curso da justiça, o seu rito e a sua eficácia.
De resto, a assistência obrigatória de patrocínio em processo penal radica, em primeira linha, no interesse do arguido.
Assim, a norma que pretensamente veda o auto-defesa, expressamente contraria os preceitos legais universais acima vertidos e o art.º 32º-3 da CRP.
Atendendo ao art.º 8º-2 da CRP, o art.º 32º-3 da CRP deverá ser conjugado com o estalão de direito internacional dos direitos humanos fixado nos referidos art.ºs 14º do PIDCP e art.º 6º da CEDH (Profs. Gomes Canotilho e Vital Moreira, 2007: 495, Anotação IV ao art.º 29º: “nos termos do art.º 8º (da CRP), as normas penais, internacionais e europeias prevalecem sobre o direito interno”).
A Constituição admite a supremacia de todo o direito internacional de Direitos Humanos, se for mais protetor de que o direito Constitucional (Profª Ana Maria Guerra Martins, 2006: 120).
Contra tal doutrina, sem razão, o Ac. TC 578/2001, com 2 votos a favor, 2 votos de vencido e voto decisivo do Presidente, com “algumas dúvidas” (Prof. Paulo Pinto de Albuquerque (Comentário ao CPP à luz da CRP e da CEDH – 2ª edição, pág. 188).
Portanto, como se verifica, a questão não é unânime, inclusivamente, os argumentos doutrinais acima indicados e reproduzidos traduzem a forma adequada e correta de abordar a matéria e fazem soçobrar a tendência autoritária para vedar tudo e mais alguma coisa, mesmo sem cabimento ou razoabilidade, salvo o devido respeito, por todos que entendam o contrário.
Só assim não seria em casos graves e objetivamente graves em que o arguido obstruísse substancial e persistentemente os trabalhos do tribunal, quando enfrente uma acusação grave e não seja capaz de agir no seu interesse, ou quando seja necessário proteger testemunhas vulneráveis (Paulo Pinto de Albuquerque, obra citada, pág. 189).
Para se determinar se um processo oferece as garantias suficientes ter-se-á de ter em conta as circunstâncias particulares em que o mesmo se desenrola.
Entre essas garantias, encontra-se a possibilidade de o arguido se defender ele mesmo ou através de uma certa representação, o que exige, em regra a nomeação de um advogado como seu defensor (Sub Judice – justiça e sociedade, Direitos Humanos no TE, nº28, 2004, pág. 15, Conselheiro Ireneu Cabral Barreto).
Vistas as coisas à luz da razão, não existe norma absolutamente nenhuma que proíba direta e automaticamente a auto-representação.
Posto isto, quando se preconiza a rejeição do recurso por via dos art.º s 64º-1-e), 414º-2, 417º-6-b) e d) e 420º-1-a) do CPP, aplicam-se normas inconstitucionais, no entendimento que das mesmas se faz, por violarem os art.º s 8º-1-2-3-4, 12º-1-2, 16º1-2, 18º-1-2, 32º-1-3 da CRP, 6º-3-c) da CEDH e 14º-3-d) do PIDCP, pois estas normas possibilitam que o arguido sendo advogado se auto represente no processo penal, atendendo a que tal circunstância não coloca, de forma alguma e em concreto ou de forma até abstrata, a administração da justiça, em nada a belisca.
Portanto, só por capricho injustificado se dirá o contrário, salvo o devido respeito.
Não se vê no facto de quem realiza e assina um recurso, que será julgado sem oralidade, possa conflituar com o que quer que seja.
Mais preponderantemente, o próprio Estatuto do Tribunal Penal Internacional (Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional – 17/7/1998) prevê a auto-defesa, de forma expressa.
Preceitua o art.º 67º sobre os direitos do arguido que o mesmo terá direito a estar presente e a defender-se a si próprio ou a ser assistido por defensor à sua escolha, se não o tiver, será informado do direito a lhe ser nomeado.
Essa circunstância, esse direito, só é tolhido quando nos termos do art.º 63º-2 o mesmo perturbar persistentemente a audiência, ao ponto de ter de ser removido em circunstâncias transitórias e excecionais.
Será, assim, evidente, a todas as luzes da clarividência, que quando por crimes graves o Tribunal Penal Internacional admite e viabiliza a autodefesa como manifestação de direito fundamental, se torna totalmente injustificado que os tribunais portugueses se lembrem de aplicar uma norma, através de um errático entendimento, que contraria o Direito internacional, de carácter geral e fundamental.
Mas para que – sem conceder – não seja por tal circunstância que não seja o recurso analisado, caso assim seja entendido, deve o recorrente dispor do prazo de 10 dias para que a sua mandatária (que igualmente tem poderes forenses conferidos), venha a remeter o mesmo recurso devidamente assinado, ratificando-se o processado nessa conformidade, para que não precluda o direito a ver o recurso interposto e analisado e decidido, em nome do acesso à justiça, igualmente preceituado em termos constitucionais, que seriam violados se acaso não fosse o mesmo analisado e julgado em face do diverso entendimento acerca da auto defesa, com isso levando-o à rejeição formal.
Quanto à questão do cumprimento da sanção acessória, o MP labora em erro evidente e manifesto, salvo o devido respeito.
Tudo quanto foi dito a esse respeito na resposta ao recurso, acolhida pelo parecer do Senhor PGA, é inteiramente válido mas em outra dimensão, em outra realidade, que não a dos autos.
A resposta, pura e simplesmente, omite a realidade nua e crua: o recorrente não tem o título de habilitação a conduzir na sua posse, como disso deu conta nos termos que estão descritos no interposto recurso.
A hipótese traduzida pelo Ministério Público aplica-se a quem não entrega voluntariamente a carta de condução, sabendo dela e tendo-a na sua posse.
Não é o caso dos autos.
O recorrente não dispondo do título para o poder ter entregue não o podia ter feito, como disso deu conta.
E foi por isso que já cumpriu duplamente o período de inibição de conduzir, em face das comunicações feitas nos termos do art.º 500 do CPP.
Não pode, por isso, acontecer a apreensão de uma licença de condução nos termos do art.º 500-3 quando o mesmo dela não tem a posse.
O que significa que essa norma não viabiliza o carácter eterno e perpétuo da sanção acessória.
Foi dado cumprimento ao mencionado preceito após ser dado cumprimento ao art.º 500-1.
E o que acontece é que em tal período estribado pelo art.º 500º-3 do CPP se acaso o recorrente tivesse circulado e fosse fiscalizado com vista à apreensão do título isso não teria acontecido, pelos motivos acima indicados, porque desconhece onde esteja a licença de condução, não sendo a apreensão viável.
E teria então agido ilicitamente, porque comunicada a decisão nos termos do art.º 500-1 e 500º-3 teria conduzido no período da inibição.
É que, realmente, nem se diga, que não existiu fiscalização ou possibilidade de fiscalização; porque no período de inibição que foi comunicado aos organismos, se acaso o recorrente tivesse incumprido teria sido levantado o respetivo auto, nessa conformidade.
O que o arguido não pode é fazer-se na carta de condução para a ter podido entregar.
Assim, por via das comunicações efetivadas marcaram-se os períodos de impossibilidade de circular efetivamente, de conduzir veículos, o que foi cumprido nos termos insertos no interposto recurso, que aqui se dá por inteiramente reproduzido.
A solução legal prevista na lei para o cumprimento da sanção acessória é a que resulta das comunicações feitas por via do art.º 500º do CPP, inclusivamente para quem não tem a posse da carta de condução, por a mesma se ter extraviado.
Não existe nenhuma outra norma prevista para a situação dos autos, em que não é viável a entrega ou apreensão da carta, o que não poderá redundar numa pena acessória perpétua.
Decorrido o período de inibição de condução fixado na sentença após tais comunicações encontra-se a mesma cumprida, porque o foi efetivamente.
Estando cumprida a pena principal e a pena acessória, devem os autos ser arquivados nessa conformidade, ante a procedência do recurso.
E ser reconhecido que igualmente nenhum crime de desobediência foi cometido, nos sobreditos termos (atenda-se que convocado à PSP em Santarém, foi prestada direta e pessoalmente a informação sobre a impossibilidade em entregar a licença, de forma expressa)».
7. Realizado o exame preliminar, foi proferida, em 2 de Dezembro de 2024, pela ora relatora, decisão sumária a rejeitar o recurso por inadmissibilidade, nos termos conjugados dos art.º 420º, n.º 1, al. b) e 414º, n.º 2 do C.P.P.
8. O recorrente, inconformado, ao abrigo do disposto no art.º 417º, n.º 8 do C.P.P., apresentou a presente reclamação para a conferência.
Invoca, para tanto, e em síntese, que:
«Foi proferida Decisão sumária por se considerar estar verificada circunstância que obsta ao conhecimento do recurso, ou por o mesmo dever ser rejeitado, precisamente em virtude de ter o mesmo sido apresentado por advogado que coincidentemente é o recorrente e arguido.
Foi entendido que por via do art.º 64º-1 e 64º-1-e) do CPP, conjugado com o art.º 1º da Lei 49/2004 de 24/8, está vedada a auto defesa, na circunstância concreta que se traduz em auto defesa quando cumulada a situação entre ser-se arguido e recorrente e se ser advogado, portanto, a auto defesa no segmento específico assim refletido, diferentemente da situação de auto defesa por parte de arguido recorrente que não é advogado.
Ou seja, existem 2 tipos diversos de auto – defesa: - a defesa feita pelo próprio arguido, dispensando a constituição de advogado; - a defesa feita pelo próprio arguido que, adicionalmente, é advogado, advogando em causa própria.
São modalidades distintas. Porque a segunda delas contempla o exercício de um direito fundamental, o direito a escolher advogado, do leque total de advogados existentes, como resulta expressamente do art.º 32º-3 da CRP ao dizer que o arguido tem direito a escolher defensor e a ser por ele assistido em todos os atos do processo, especificando a lei os casos e as fases em que a assistência por advogado é obrigatória.
Assim, entendendo a Decisão reclamada ser inadmissível o recurso, rejeitando-o, verifica-se que teve por base a aplicação de normas que são inconstitucionais, o art.º 64º-1-e) do CPP e o art.º 1º da Lei 49/2004 de 24/8, porque diferentemente do considerado, violam, efetivamente, o art.º 32º-3 da CRP, concretamente, o direito à escolha de defensor, tendo fator excludente nessa aplicação feita, da integralidade do exercício desse direito fundamental e geral.
Os recursos são julgados através de decisão sumária, nomeadamente, quando o recurso dever ser rejeitado (alínea b) do nº6 do art.º 417º) ou a questão a decidir já tiver sido judicialmente apreciada de modo uniforme e reiterado (alínea d) do mesmo preceito).
E, por seu turno, o recurso é rejeitado sempre que for manifesta a sua improcedência (alínea a) do art.º 420º).
Sucede, porém, que nem o recurso deve ser rejeitado, nem a questão a decidir já foi judicialmente apreciada de modo uniforme e reiterado, muito menos sendo manifesta a sua improcedência.
Quanto à questão do auto patrocínio forense no domínio penal, enfoca-se não ser unânime na jurisprudência, sendo que as razões mais ponderosas se cifram na sua admissibilidade por motivos vários e diversos.
Na realidade, as razões que apontam para a proibição da auto - defesa são, marcadamente, desvanecidas na fase processual dos recursos, tanto mais que nem sequer foi requerida a realização de audiência nos termos do art.º 411º-5 do CPP.
Fundamentalmente, tais razões prendem-se com a eventual confusão que se possa gerar em ambos os papéis interventores no processo, o de arguido e de advogado, o que não ocorre no domínio escrito, estando porventura evidenciado de forma mais sintomática nas fases que comportam, de algum modo, a oralidade, como na prestação de declarações de arguido em inquérito, na prestação de declarações ou inquirições em fase de instrução ou na fase de julgamento.
Na fase de recurso, apenas se colocaria a questão, de forma pertinente mas ainda assim desvanecida, se eventualmente existisse audiência preconizada pela Defesa, o que não acontece e se acaso o arguido tivesse de ser ouvido em declarações, que igualmente não ocorre.
Trata-se de realizar a defesa de forma escrita, sem haver implicação alguma para o processo, em relação à parte processual do arguido e ao respetivo defensor, advogado. A apresentação do recurso interposto não coloca em causa, de modo algum, a ritologia normal e adequada em termos processuais, não havendo forma de confusão alguma entre o domínio e estatuto do arguido e do defensor; não existe em momento nenhum que o mesmo indivíduo preste declarações como arguido e pratique atos forenses inerentes à advocacia e à defesa.
Não há confusão de nenhuma espécie entre os estatutos processuais respetivos, nem existe nenhuma norma legal beliscada, muito menos de cariz constitucional, que seja essencial à administração da justiça.
Não se descortina qual seja ou dano ou a desconsideração, o fator negativo que afaste as normas que devem ser devidamente convocadas para a questão. Tais normas são claras. O art.º 6-3-c) da CEDH enuncia, com efeito, o direito à auto – defesa ou à assistência de um defensor de livre escolha. Este preceito resulta igualmente violado e aquelas mesmas normas que fundamentam a decisão são inconstitucionais porque violam igualmente o mesmo.
Nada impede, a ser livre escolha, que o arguido escolha, precisamente, de forma livre; forma livre é sem restrições. Sem restrições é poder escolher o advogado que pretende e entende, aceita-se que sem que seja afetado o rito processual e sem existir confusão, por exemplo a prestar declarações como arguido ou a inquirir subsequentemente as testemunhas da acusação – aí sim, existe razão para afastar a auto defesa por colocar em causa a ritologia processual, por se evidenciar a sobreposição de estatutos, porque se deva considerar ter de sucumbir o direito à escolha de defensor em face da boa aplicação da justiça e do seguimento do processo, em termos de tramitação sem incidentes.
O art.º 14º-3-d) do PIDCP consagra até o direito de qualquer pessoa acusada de uma infração penal defender-se a si própria ou ter um Defensor à sua escolha.
Disposição esta que igualmente se mostra violada pela Decisão recorrida, sendo que os preceitos legais que fundamentam a mesma são inconstitucionais por a mesma violarem. São instrumentos legais internacionais de proteção de direitos fundamentais.
Assim, não pode deixar de se ter em linha de conta que o art.º 64º-1-e) do CPP é uma norma, em tal interpretação restritiva que veda a auto defesa por arguido advogado, que livremente se escolhe a si próprio como seu defensor, que colide com as normas de caráter geral e universal acima indicadas, violando diretamente o princípio da livre escolha do defensor, o mesmo acontecendo com o art.º 1º da Lei 49/2004 de 24/8 e, ou, quando conjugadas nesse sentido restritivo. No caso / Decisão do TEDH 15/11/2001 (Correia de Matos contra Portugal) decidiu-se que podem os próprios Estados decidir legislar no sentido de vedar a auto - defesa, que não ficará em causa o art.º 6º da CEDH. Porém, de modo diverso, o Comité dos Direitos Humanos das Nações Unidas (declaração de 28/3/2006, comunicação 1123/2002) apreciou queixa do mesmo cidadão e aplicando o art.º 14º-3-d) do PIDCP considerou que a legislação portuguesa e a jurisprudência, não permitindo em caso algum que o acusado seja libertado da obrigação de ser representado por advogado em processo penal, e desde que não sejam apresentadas razões objetivas e suficientemente importantes pelas quais a auto defesa poderia atentar contra os interesses da justiça, não respeitaram a referida disposição legal do PIDCP (CPP Comentado, 2014, Almedina, Conselheiro Henriques Gaspar).
Ou seja, além do direito que o arguido tem de se defender a si próprio, por via de ambos os preceitos legais acima referidos, até acresce que sendo o mesmo advogado, pode fazê-lo por maioria de razão, não só porque na qualidade de arguido se pode auto representar, mas, igualmente, porque nessa mesma qualidade tem direito a escolher livremente o defensor, podendo a escolha radicar em si próprio, desde que essa escolha não coloque em causa o curso da justiça, o seu rito e a sua eficácia.
De resto, a assistência obrigatória de patrocínio em processo penal radica, em primeira linha, no interesse do arguido. Não existe razão alguma para se considerar no âmbito dos presentes autos, que fique o arguido desfavorecido no seu interesse sendo auto representado. Assim, as normas que, pretensa e alegadamente, vedam a autodefesa, expressamente contrariam os preceitos legais universais acima vertidos e o art.º 32º-3 da CRP.
Tanto mais, como se disse, que a lei só pode restringir o direito universal de escolha do defensor, vertido no art.º 32º-3 da CRP e demais normas de caráter geral universal, nos casos expressamente previstos na própria Constituição, devendo tais restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos, nos termos do art.º 18º-2 da CRP. Ora, o art.º 64º-1-e) do CPP e o art.º 1º da Lei 49/2004 são normas ordinárias, não são normas constitucionais, pelo que por essa mesma via, não teriam e não têm a virtualidade de poder fazer soçobrar o exercício do direito contemplado em termos fundamentais, a escolher-se livremente e amplamente, o defensor respetivo, sem exceções.
Por outro lado, mesmo que fossem normas fundamentais, de caráter constitucional, não se verifica quais sejam os outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos, que permitam tal restrição. Precisamente porque as razões que possam militar a favor da proibição da auto defesa, considerada na modalidade em que o arguido e recorrente é cumulativamente advogado e tem o direito a se escolher a si próprio, não são superiores ao direito à escolha do defensor nos termos do art.º 32º-3 da CRP, tudo nos termos que se vêm motivando e indicando. Atendendo ao art.º 8º-2 da CRP, o art.º 32º-3 da CRP deverá ser conjugado com o estalão de direito internacional dos direitos humanos fixado nos referidos art.º s 14º do PIDCP e art.º 6º da CEDH (Profs. Gomes Canotilho e Vital Moreira, 2007: 495, Anotação IV ao art.º 29º: “nos termos do art.º 8º (da CRP), as normas penais, internacionais e europeias prevalecem sobre o direito interno”).
A Constituição admite a supremacia de todo o direito internacional de Direitos Humanos, se for mais protetor de que o direito Constitucional (Profª Ana Maria Guerra Martins, 2006: 120). Contra tal doutrina, sem razão, o Ac. TC 578/2001, com 2 votos a favor, 2 votos de vencido e voto decisivo do Presidente, com “algumas dúvidas” (Prof. Paulo Pinto de Albuquerque (Comentário ao CPP à luz da CRP e da CEDH – 2ª edição, pág. 188).
Portanto, como se verifica, a questão não é unânime, inclusivamente, os argumentos doutrinais acima indicados e reproduzidos traduzem a forma adequada e correta de abordar a matéria e fazem soçobrar a tendência autoritária para vedar tudo e mais alguma coisa, mesmo sem cabimento ou razoabilidade, salvo o devido respeito, por todos que entendam o contrário.
Só assim não seria em casos graves e objetivamente graves em que o arguido obstruísse substancial e persistentemente os trabalhos do tribunal, quando enfrente uma acusação grave e não seja capaz de agir no seu interesse, ou quando seja necessário proteger testemunhas vulneráveis (Paulo Pinto de Albuquerque, obra citada, pág. 189).
Para se determinar se um processo oferece as garantias suficientes ter-se-á de ter em conta as circunstâncias particulares em que o mesmo se desenrola. Entre essas garantias, encontra-se a possibilidade de o arguido se defender ele mesmo ou através de uma certa representação, o que exige, em regra, a nomeação de um advogado como seu defensor (Sub Judice – justiça e sociedade, Direitos Humanos no TE, nº28, 2004, pág. 15, Conselheiro Ireneu Cabral Barreto). Vistas as coisas à luz da razão, não existe norma absolutamente nenhuma que proíba direta e automaticamente a auto - representação quando o arguido é advogado e é por ele próprio que visa ser defendido. Posto isto, quando se preconiza a rejeição do recurso por via dos art.º s 64º-1-e), art.º 1º da Lei 49/2004 de 24/8, 414º-2, 417º-6-b) e d) e 420º-1-a) do CPP, aplicam-se normas inconstitucionais, no entendimento que das mesmas se faz, por violarem os art.º s 8º-1-2-3-4, 12º-1-2, 16º1-2, 18º-1-2, 32º-1-3 da CRP, 6º-3-c) da CEDH e 14º-3-d) do PIDCP, pois o sentido normativo destas normas possibilitam que o arguido, sendo advogado, se auto represente no processo penal, atendendo a que tal circunstância não coloca, de forma alguma e em concreto ou de forma até abstrata, a administração da justiça, em nada a sacrifica ou prejudica, acrescendo que as normas constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias, como resulta do art.º 18º-1-2 da CRP só podem restringi-los em termos necessários para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos, o que não acontece, como flui da Decisão reclamada, que se não estriba em preceito constitucional algum e nem convoca o interesse atendível em salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.
Portanto, inexiste razão ou motivo para fazer sucumbir o exercício de tal direito fundamental, o direito à escolha irrestrita do defensor, previsto no art.º 32º-3 da CRP e acolhido pelas normas indicadas de direito internacional fundamental e geral. Não se vê no facto de quem realiza e assina um recurso, que será julgado sem oralidade, possa conflituar com o que quer que seja, muito menos que fique em causa qualquer outro direito ou interesse constitucionalmente protegido. Mais preponderantemente, o próprio Estatuto do Tribunal Penal Internacional (Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional – 17/7/1998) prevê a auto - defesa, de forma expressa, reportando-se até à modalidade de autodefesa sem a questão do patrocínio forense por advogado. Preceitua o art.º 67º sobre os direitos do arguido que o mesmo terá direito a estar presente e a defender-se a si próprio ou a ser assistido por defensor à sua escolha, se não o tiver, será informado do direito a lhe ser nomeado.
Essa circunstância, esse direito, só é tolhido quando nos termos do art.º 63º-2 o mesmo perturbar persistentemente a audiência, ao ponto de ter de ser removido em circunstâncias transitórias e excecionais. Será, assim, evidente, a todas as luzes da clarividência, que quando por crimes graves o Tribunal Penal Internacional admite e viabiliza a auto - defesa como manifestação de direito fundamental, se torna totalmente injustificado que os tribunais portugueses se lembrem de aplicar uma (s) norma (s) de carácter ordinário, através de um errático entendimento, que contraria o Direito internacional, de carácter geral e fundamental e apropria Constituição.
Além do acima exposto, existem outras circunstâncias que motivam, de qualquer forma, que deva o recurso ser admitido e não rejeitado. Verifica-se que já foram praticados atos inerentes à defesa pelo arguido, na sua própria qualidade de advogado: recursos e reclamações diversas, seja reclamações perante a não admissão recursiva, seja reclamações para as conferências, quer junto do TRL quer junto do próprio TC.
Pelo que, no plano do rigor, não deve prevalecer, desta feita, o entendimento restritivo que anteriormente não aconteceu, em vezes diversas. Não se coloca em causa a valia técnica reconhecida e merecida ao Tribunal e, concretamente, à Exmª Senhora Juíza Desembargadora Relatora.
Sucede, porém, que se trata de uma questão de entendimento, crendo-se que a razão reside no primado da possibilidade de escolha irrestrita do defensor, não existindo interesse constitucionalmente previsto ou protegido que o deva fazer decair ou limitar, ainda que se considerem as razões em sentido diverso.
O facto precedente e procedente de já terem sido praticados inerentes à Defesa na modalidade de autodefesa por arguido que é cumulativamente advogado, deverá igualmente levar à aceitação do recurso.
De resto, o art.º 98º do CPP prevê que possa o arguido apresentar exposições, memoriais e requerimentos em qualquer fase do processo, desde que se contenham dentro do objeto do processo ou tenham por finalidade a salvaguarda dos seus direitos fundamentais, sendo sempre integrados nos autos (nº1). E, aliás, verifica-se, igualmente, que o arguido recorrente tem mandatária e advogada constituída, sendo que determinados atos processuais inerentes à defesa e próprios da advocacia foram praticados ora pela mesma, ora em autodefesa, de forma alternativa.
Assim, a ser o caso, sempre deverá acontecer a notificação para que pela mesma seja ratificado o processado, porque a consideração feita de que já não seja viável em face do decurso do prazo para a interposição do recurso se ter esgotado levaria a que fosse violado o art.º 20º-1 da CRP no sentido em que se contraria o acesso ao direito e aos tribunais para defesa de direitos e interesses legalmente protegidos, tendo essa afirmação implícita os art.º s 411º-1, 414º-2 e 420-1-b) do CPP, normas essas, em face do entendimento das mesmas feito, igualmente inconstitucionais, no sentido normativo em que devem ser analisadas e aplicadas naquela conformidade fundamental.
Uma vez que na interposição do presente recurso não foi possível a mesma analisar e alterar, a ser o caso, o que muito bem entendesse e o assinasse e remetesse, foi o mesmo realizado e subscrito pelo signatário.
Ora, o que foi invocado foi o cumprimento da sanção acessória, que se encontra em causa, no sentido em que se contém dentro do objeto do processo e tendo por finalidade a salvaguarda dos seus direitos fundamentais.
Pelo que igualmente nessa vertente, deve a questão ser analisada e apreciada e decidida.
Por outro lado, o cumprimento da pena principal e acessória são do conhecimento oficioso.
Pelo que se pugna nos sobreditos termos legais»
9. Cumprido o contraditório, o Sr. Procurador-Geral Adjunto, louvado no parecer anteriormente emitido, sustenta a improcedência da reclamação.
10. Colhidos os vistos foram os autos à conferência, cumprindo, agora, decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO
1. A decisão sumária sob reclamação (excluindo o relatório) é do seguinte teor:
«Como já se deixou enunciado no relatório (ponto 7.), suscita-se previamente questão susceptível de conduzir à rejeição do recurso, em concreto, a de saber se ao recorrente, que é concomitantemente advogado, assiste a possibilidade de assegurar a sua própria defesa, para o que ora releva, em sede recursiva1.
Vejamos, então.
Dispõe o art.º 64º, n.º 1 C.P.P. que: «É obrigatória a assistência de defensor:
e) Nos recursos ordinários ou extraordinários»
Por seu turno, a Lei n.º 49/2004, de 24 de Agosto2, determina no art.º 1º que:
«7 - Consideram-se actos próprios dos advogados e dos solicitadores os actos que, nos termos dos números anteriores, forem exercidos no interesse de terceiros e no âmbito de actividade profissional, sem prejuízo das competências próprias atribuídas às demais profissões ou actividades cujo acesso ou exercício é regulado por lei.
10 - Nos casos em que o processo penal determinar que o arguido seja assistido por defensor, esta função é obrigatoriamente exercida por advogado, nos termos da lei»
Consabidamente «A obrigatoriedade de defensor nos recursos tem a razão de ser na especificidade do meio; o recurso é um remédio jurídico contra erros de julgamento de facto ou de direito, nos limites e pressupostos de admissibilidade previstos na lei. Nos recursos dirigidos aos tribunais superiores, a matéria e o objeto apresentam componente técnicas e jurídicas, cuja apresentação e discussão não podem ser compreendidas fora do exercício da defesa técnica através de defensor».3
Por outro lado, como tem sido pacificamente entendido na doutrina e jurisprudência, estando em crise situação em que o arguido é, também, advogado, ao mesmo está legalmente vedada a possibilidade de arcar, motu proprio e de forma exclusiva, com a sua defesa, maxime naqueles actos em que está legalmente prevenida a reserva de defensor4.
Na verdade, «Com a entrada em vigor da Lei nº 49/2004, de 24.08, firmou-se o entendimento que o advogado-arguido carece de constituir outro advogado que o defenda, atendendo a que o exercício da advocacia é incompatível com qualquer cargo, função ou atividade que afetem a isenção, independência e dignidade da função, idêntica disciplina se impondo quando seja arguido um magistrado»5
«A "fusão" dos sujeitos processuais defensor e arguido (mesmo que este seja advogado) não significa uma melhor defesa. Pelo contrário, poderá ser um fator prejudicial a uma defesa mais efetiva. A imposição de um defensor, mesmo quando o arguido é advogado perspetivada na nossa ordem jurídica como uma condição essencial para assegurar as garantias de defesa do arguido (art.º 32.°/1 e 3 CRP), a due process of law, a fair process, a fair trial, igualdade de armas e uma boa administração da justiça, interpretação esta que tem sido considerada conforme à CRP (acs. TC 578/2001, 461/2004, 196/2007) e à CEDH (v. o recente ac. TEDH Correia de Matos v. Portugal, 4 de Abril de 2018)»6
Ademais a respeito desta controvérsia e em conformidade, a Ordem dos Advogados já proferiu parecer neste mesmo sentido7.
Vale tudo por dizer, como na síntese do Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 17 de Outubro de 2023, processo n.º 3465/19.3T9VCT.G1, que «(…) no processo penal, o arguido que é advogado não se pode auto-representar na prática de atos que a lei reserva ao defensor, como o é o caso do exercício do direito ao recurso.
Como vimos, é esta a solução legal decorrente, expressamente, do artigo 64.º, n.º 1, alínea e), do Código de Processo Penal, encontra-se conforme à Constituição da República Portuguesa [artigo 32.º, n.º 3] e não afronta as disposições constantes de instrumentos internacionais sobre a matéria, designadamente, a Convenção Europeia dos Direitos do Homem e o Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos».
Assim sendo, na evidência de que o requerimento de interposição do recurso foi subscrito (somente) pelo próprio recorrente, mostrando-se, concomitantemente, esgotado o prazo de recurso e já notificada (da peça interposta), em 26 de Setembro de 2024, a mandatária do recorrente8, não é já, porque a destempo, sequer de equacionar a questão de ratificação do acto em apreço9.
Nos termos expostos, outra solução não resta senão a de se concluir pela inadmissibilidade do recurso apresentado.
III – DISPOSITIVO
Nestes termos e com tais fundamentos, decide-se:
a) Rejeitar o recurso interposto por AA;
b) Condenar o recorrente no pagamento de taxa de justiça que se fixa em 4 UC.
Comunique e notifique, de imediato»
2. Com as alterações introduzidas ao C.P.P. pela Lei n.º 48/2007, no que ao paradigma dos recursos respeita, o legislador eivado do objectivo de racionalizar o funcionamento dos tribunais superiores, maxime promovendo uma maior intervenção dos juízes que os compõem a título singular, determinou um funcionamento dos tribunais de recurso em trinómio - decisões da competência do relator, em conferência e em audiência10 - e sem que se verifique uma qualquer relação hierárquica entre estes níveis de decisão (entre si diferenciados e independentes).
Assim sendo, e no que concerne à possibilidade de reclamação para a conferência das decisões do relator11, dir-se-á que, por natureza e definição, assumindo-se tal procedimento como meio de controlo da legalidade da decisão sumária proferida (e não como direito a uma dupla apreciação do recurso12), não se bastará com a mera manifestação de discordância do recorrente e/ou com a reiteração dos fundamentos aduzidos no recurso interposto. Ao invés, imporá uma motivação nova, com argumentário concretamente dirigido à decisão sumária prolatada.
«Pela própria natureza e definição, a figura jurídica de reclamação prevista no n.º 8 do art.º 417 do CPP, como em qualquer ramo do direito, constitui uma prerrogativa legal, procedimental de controlo, de impugnação de algum dos actos decisórios enunciados nos nºs 6 e 7 do citado art.º 417º, posta à disposição do destinatário da decisão que por ela se considere prejudicado, com vista à sua revogação, modificação ou substituição com base em violação da lei.
A reclamação para a conferência não constitui instrumento de manifestação da mera discordância do recorrente em relação à decisão reclamada. Ou até de mera renovação dos fundamentos do recurso. Exige uma motivação, autónoma, de rebatimento jurídico das razões ou dos fundamentos da decisão de que se reclama, no sentido de demonstrar a sua ilegalidade.
Obrigando assim o reclamante a demonstrar a ilegalidade que aponta à decisão reclamada, no caso, a decisão sumária do relator»13
No caso, o reclamante insurge-se quanto à decisão sumária proferida, sustentando a inexistência dos requisitos legais para a sua prolação, aduzindo concretamente que «(…) nem o recurso deve ser rejeitado, nem a questão a decidir já foi judicialmente apreciada de modo uniforme e reiterado, muito menos sendo manifesta a sua improcedência». Em abono e em abreviada síntese, sufraga o entendimento que o arguido que é concomitantemente advogado pode assumir a sua própria defesa.
Atentemos, pois.
Inaugurando a apreciação da reclamação na parte em que o reclamante se insurge quanto à decisão sumária proferida, na vertente da alegada omissão dos pressupostos legais para tal, cumpre, desde já, esclarecer que, conforme resulta inequivocamente daquela, o recurso não foi rejeitado alavancado nas previsões a que aludem as 417º, n.º 6, al. d) e 420º, n.º 1, al. a) do C.P.P. (ou seja, por estar em causa questão que já tenha sido judicialmente apreciada de modo uniforme e reiterado e/ou por manifesta improcedência do recurso), mas sim ao abrigo do disposto nos art.º 420º, n.º 1, al. b) 414º, n.º 2 do C.P.P., ou seja, por ter sido detectada causa que devia ter determinado a sua não admissão, especificamente porque o recorrente, desacompanhado de advogado, não reunia as condições necessárias para recorrer.
Assim sendo, neste contexto e ante o paradigma legal, afigura-se desde logo evidente que a circunstância de putativamente «a questão não ser unânime», não encerra, de todo, qualquer impossibilidade de rejeição do recurso.
Resta-nos, pois, aquilatar se o recurso interposto pelo ora reclamante deve ser rejeitado, conforme foi decidido na decisão sumária ora em crise.
E, na verdade, sem desdouro para o argumentário aduzido pelo reclamante, tal qual daquela consta «A "fusão" dos sujeitos processuais defensor e arguido (mesmo que este seja advogado) não significa uma melhor defesa. Pelo contrário, poderá ser um fator prejudicial a uma defesa mais efetiva. A imposição de um defensor, mesmo quando o arguido é advogado perspetivada na nossa ordem jurídica como uma condição essencial para assegurar as garantias de defesa do arguido (art.º 32.°/1 e 3 CRP), a due process of law, a fair process, a fair trial, igualdade de armas e uma boa administração da justiça, interpretação esta que tem sido considerada conforme à CRP (acs. TC 578/2001, 461/2004, 196/2007) e à CEDH (v. o recente ac. TEDH Correia de Matos v. Portugal, 4 de Abril de 2018)»14
«Como afirmam J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, em anotação ao citado artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa, “a assistência do defensor é, segundo a Constituição, um direito do arguido em todos os actos do processo (i. é, em todos os actos em que o arguido intervenha ou possa intervir), sendo obrigatória independentemente da vontade dele (…). Incumbe também à lei (depois da revisão de 1997) especificar os casos em que é obrigatória a assistência por advogado. Trata-se de uma concretização do direito ao advogado que implicará uma densificação legal dos casos e fases em que se torna indispensável a competência, a experiência e saber de um profissional do foro para tornar efectiva a defesa nos momentos processuais decisivos à garantia dos direitos materiais e processuais (interrogatório para decretação de medidas de coacção, audiência de julgamento, exercício do direito de recurso)”.
Perante o invocado quadro legal, mantém-se válido o entendimento de que todo e qualquer arguido, ainda que tenha a qualidade de advogado, tem de ser assistido por defensor nos casos em que tal assistência é obrigatória, sofrendo, portanto, restrições na jurisdição penal o direito que, em geral, se reconhece ao advogado de litigar em causa própria, restrição essa que, necessariamente, o impede de renunciar ao direito de ser assistido por outro advogado, por a tal se opor o artigo 32.º, n.º3 da nossa Constituição da República Portuguesa.
Note-se, aliás, que a própria norma contida no n.º 1, do artigo 9.º, da Diretiva 2013/48/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de outubro de 2013 [relativa, designadamente, ao direito de acesso a um advogado em processo penal] (…) exceciona a legislação nacional que exige a presença ou a assistência de um advogado [a saber: “1. Sem prejuízo da legislação nacional que exige a presença ou a assistência de um advogado, os Estados-Membros devem assegurar que, relativamente a qualquer renúncia a um dos direitos referidos nos artigos (…)”].
(…) Tal posição não se mostra incompatível com o direito do arguido se defender pessoalmente, o mesmo será dizer que não é contrária aos instrumentos de direito internacional dos quais Portugal faz parte designadamente, à Convenção Europeia dos Direitos do Homem e ao Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, como, aliás, assim já se decidiu a respeito de queixa apresentada (…) junto do THDH - Correia de Matos c. Portugal - queixa nº 56402/12, sobre a qual incidiu o acórdão datado de 04/04/2018, no sentido da não violação do artigo 6.º da Convenção(…).
Submetida a questão ao Tribunal Constitucional, veio este tomar posição no sentido de que "a opção legislativa decorrente da interpretação normativa em causa, que exige que o arguido, mesmo que advogado, seja defendido por um advogado que não ele, não se vê que seja contraditada pela Constituição"»15
Ante o exposto, corroborando-se o sumariamente decidido, tendo o requerimento de interposição do recurso sido subscrito (somente) pelo próprio recorrente, mostrando-se, concomitantemente, esgotado o prazo de recurso e já notificada (da peça interposta), em 26 de Setembro de 2024, a mandatária do recorrente16, não é já, porque a destempo, sequer de equacionar a questão de ratificação do acto em apreço17.
Nos termos descritos, outra solução não resta senão a de se concluir pela inadmissibilidade do recurso apresentado e, por conseguinte, pela improcedência da reclamação.
III - DISPOSITIVO
Nestes termos e com tais fundamentos expostos, decide-se:
a) Negar provimento à reclamação;
b) Condenar o reclamante AA, no pagamento de taxa de justiça que se fixa em 3 UC, nos termos da tabela III anexa ao R.C.P.

Lisboa, 16 de Janeiro de 2025
Ana Marisa Arnêdo
Nuno Matos
Ivo Nelson Caires B. Rosa
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1. A tal não obstando a circunstância de o Tribunal a quo ter admitido o recurso, como decorre, inequivocamente, do prevenido no art.º 414º, n.º 3 do C.P.P.
2. Diploma que define o sentido e alcance dos actos próprios dos advogados e solicitadores.
3. Henriques Gaspar, Código de Processo Penal Comentado, Almedina, 2014, pág. 228.
4. Neste sentido, entre muitos outros, os Acórdãos do S.T.J. de 20/11/2014, processo n.º 7/14.0TAVRS.S1, dos Tribunais da Relação de Coimbra de 13/6/2007, processo nº 910/06.1TBCTR.C1 e de Guimarães de 3/5/2004, processo n.º 390/04-2, de 25/1/2021, processo n.º 6032/19.8GMR.G1, e de 17/10/2023, processo n.º 3465/19.3T9VCT.G1, todos in www.dgsi.pt.
5. Acórdão do S.T.J. de 1/7/2009, proc. n.º 279/96.0TAALM.S1 – 3ª secção, citado no Código de Processo Penal Comentado, Almedina, 2014, pág. 231.
6. Tiago Caiado Milheiro, Comentário Judiciário do Código do Processo Penal, Tomo I, p. 694 §16.
7. Parecer do Conselho Geral da Ordem dos Advogados n.º E-21/1997 de 2/6/1999. 8. Sra. Dra. Ana Fragoso Marques, conforme referência 162279441.
9. Neste sentido, o Acórdão do S.T.J. de 11 de Maio de 2022, ECLI:PT:STJ:2022:5656.15.7TDLSB.A.L1.A..1B
10. Respectivamente, artigos 417º, n.º 6 (com referência ao art.º 420º), 419º e 423º todos do C.P.P.
11. Ao abrigo do art.º 417º, n.º 3 do C.P.P.
12. Neste sentido o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 12/6/2023, proc. n.º 669/06.2PBGMR-A.G1, in www.dgsi.pt. «A Reclamação para a Conferência de Decisão Sumária proferida, não constitui uma forma de conferir o direito a uma dupla apreciação, em sede de recurso»
13. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 15/1/2020, processo n.º 685/13.8PBVIS.C1, in www.dgsi.pt.
14. Tiago Caiado Milheiro, Comentário Judiciário do Código do Processo Penal, Tomo I, p. 694 §16.
15. Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 17 de Outubro de 2023, processo n.º 3465/19.3T9VCT.G1, in www.dgsi.pt.
16. Sra. Dra. Ana Fragoso Marques, conforme referência 162279441.
17. Neste sentido, o Acórdão do S.T.J. de 11 de Maio de 2022, ECLI:PT:STJ:2022:5656.15.7TDLSB.A.L1.A..1B