Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | ARLINDO CRUA | ||
Descritores: | CONTRADITÓRIO DECISÃO SURPRESA DISPENSA NULIDADE NULIDADE PROCESSUAL EXCESSO DE PRONÚNCIA SUBSTITUIÇÃO | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 05/09/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | PROCEDENTE | ||
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Sumário: | I - A observância do princípio do contraditório, com consequente proibição da prolação de decisão-surpresa, que tem como campo normal de aplicabilidade as questões, de direito material ou formal, susceptíveis de oficioso conhecimento pelo Tribunal, impõe que o juiz, previamente ao conhecimento das questões, de mérito da causa ou puramente processuais, não tratadas pelas partes, deva previamente convidá-las a tomar posição, apenas estando dispensado de o fazer em caso de manifesta desnecessidade - o nº. 3, do art.º 3º, do CPC; II - Tal dispensa de observância possui, assim, natureza excepcional, preenchendo-se nas situações em que a questão já foi suficientemente discutida ou quando a falta de prévia audição das partes seja insusceptível de prejudicar o resultado final; III - o Tribunal omite a prática de um acto ou formalidade legalmente imposta, tradutora do cumprimento do vinculativo princípio do contraditório, ao não permitir às partes uma activa participação na equacionada questão de ausência de título executivo eficaz, conducente à verificação de falta de título executivo e, consequentemente, à absolvição do executado da instância executiva; IV - efectivamente, impunha-se ao Tribunal a quo, que, previamente a tal conhecimento suscitasse perante as partes aquela questão decidenda, de forma a conceder-lhes ampla e efectiva possibilidade de a discutir, contestar, valorar e ajuizar; V - o não cumprimento do princípio do contraditório, conducente à prolação de decisão surpresa, pode constituir, segundo diferenciados entendimentos, comportamento tradutor dos seguintes vícios: » a prática de nulidade secundária, por omissão de acto ou formalidade legalmente prescritos, inscrita no art.º 195º, do Cód. de Processo Civil; » causa de nulidade da sentença decorrente de excesso de pronúncia (apreciação de questão que, naquele contexto, o Tribunal não poderia tomar conhecimento), com legal enquadramento na 2ª parte, da alínea d), do nº. 1, do art.º 615º, do Cód. de Processo Civil; » a prática de nulidade extraformal, geneticamente derivada das garantias constitucionais, como omissão ou vício de natureza material ou substantiva. VI - não cumprindo o Tribunal o princípio do contraditório, conducente à prolação de decisão surpresa, tal determina a prática de irregularidade que, podendo influir no exame ou na decisão da causa – art.º 195º, do CPC -, se transmuta ou converte em nulidade processual, dado ter sido omitida a prática de um acto ou formalidade legalmente prescrita – exercício e observância do princípio do contraditório, na vertente de prolação de decisão-surpresa; VII - a ocorrência daquele vício como que se reflecte na sentença proferida, ou seja, tem efeitos reflexos sobre esta, mas não constitui, por si só, causa da sua nulidade, nomeadamente por excesso de pronúncia, pois a mácula da omissão da prática do acto pré-existe à sua prolação; VIII – em tais situações de nulidade, mesmo a admitir-se a aplicabilidade da regra da substituição, enunciada no citado art.º 665º, do Cód. de Processo Civil, esta deve depender sempre da existência de uma adequada e expressa pronúncia das partes (nomeadamente em sede alegações recursórias e resposta) sobre a questão omitida ao contraditório, e que fundamentou a decisão sob apelo, não bastando, para tal, uma referência ou alusão concisa ou en passant, em termos de simples acessoriedade, relativamente á invocação do vício de omissão de observância do princípio do contraditório e consequente prolação de decisão surpresa. Sumário elaborado pelo Relator – cf., nº. 7 do art.º 663º, do Cód. de Processo Civil | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
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Decisão Texto Integral: | ACORDAM os JUÍZES DESEMBARGADORES da 2ª SECÇÃO da RELAÇÃO de LISBOA o seguinte [1]: I – RELATÓRIO 1 – V…, representado por M…, na qualidade de Acompanhante de Maior Acompanhado, deduziu oposição à execução, mediante embargos e oposição à penhora, peticionando que: - os embargos sejam julgados procedentes, julgando-se verificada a excepção invocada e extinguindo-se a execução; - seja restituída a totalidade “dos valores penhorados, referente a saldos bancário, salário, Sub-Natal do ano 2022 e horas extra, acrescidos de juros moratórios”; - seja suspenso o prosseguimento da execução, nos termos do disposto no art.º 733º, nº. 1, alín. c), do Cód. de Processo Civil. Alegou, em suma, o seguinte: » A N…, SA., instaurou a presente acção executiva, com base em duas injunções, às quais foi aposta fórmula executória – Injunção nº103193/21.3YIPRT e Injunção nº22527/21.0YIPRT; » O Embargante/Executado é uma pessoa que apresenta um quadro clínico diagnosticado como incapacidade intelectual ligeira e moderada, designado por deficiência intelectual ou atraso mental; » Tal quadro clínico é crónico e irreversível, com tendência ao agravamento, por instalação de défices adicionais da senescência, verificando-se desde o nascimento; » É autónomo na realização das actividades básicas da vida diária, incluindo a sua alimentação, higiene e vestuário, embora necessite de incentivo e supervisão; » Apenas realiza pequenas compras em estabelecimentos comerciais próximos da sua habitação, mediante uma lista prévia e, mesmo assim, nem sempre traz os bens necessários; » Apesar de conhecer o valor facial do dinheiro, revela dificuldade na determinação do valor económico de bens de maior valor; » Conhece o valor do seu vencimento, mas é incapaz de efectuar a sua adequada gestão, confiando na sua irmã M… para o efeito; » Sendo incapaz de gerir o seu património ou compreender o alcance dos negócios ou estipulações que celebra; » Subscreve, sem ponderação, qualquer produto ou serviço que porventura lhe seja proposto, sendo facilmente enganado; » Por Sentença proferida em 03 de Novembro de 2021, transitada em julgado em 23 de Novembro de 2021, foi decretado o Acompanhamento de Maior do mesmo, da competência da sua irmã M…, com efeitos retroactivos à maioridade do Embargante/Executado; » Ou seja, os efeitos de tal Sentença retroagem aos 18 anos do Embargante/Executado, sendo que ele actualmente tem praticamente 50 anos; » Em termos patrimoniais, carece o aqui Embargante/Executado da autorização prévia da sua Acompanhante para, entre outros, subscrever contratos de serviços que importem a contracção de dívidas; » Sendo fácil concluir que o Embargante/Executado sofre de incapacidade de exercício de direitos e de cumprimento de deveres; » No dia 01 de Setembro de 2021 a Embargada/Exequente envia mail ao Embargante/Executado, convidando-o a pagar a dívida em prestações; » Tendo tomado conhecimento de tal comunicação, a sua irmã, no cumprimento dos seus deveres de Acompanhante, em 13 de Dezembro de 2021 contactou a Embargada/Exequente, através de correio electrónico, dando conhecimento de tal circunstancialismo, remetendo a certidão da sentença supra mencionada; » Sendo a sua preocupação a de saber a totalidade dos montantes em dívida, esclarecendo fundamentadamente a situação de incapacidade do irmão, ficando, assim, confiante de que as conversações, a partir daquela data, passassem a acontecer consigo; » Todavia, na sua resposta, a N… em 06 de Janeiro de 2022, consubstanciou-se em informar que, após recepção da reclamação não encontrou razão para anular a dívida; » Como se tal não bastasse, constata que existiam, não um contrato, mas três contratos em nome do Embargante; » Indagando-se como é possível a Embargada/Exequente celebrar contratos sucessivos com alguém que incumpre; » Sendo irrazoável e inaceitável que venha agora exigir pagamento de uma dívida resultante de falta de seriedade e reiterado assédio negocial por parte da Embargada/Exequente; » Fazendo-o relativamente a pessoa com deficiência mental, com incapacidade para contratar por si, sendo que tal comportamento corresponde a actuação danosa por parte da Embargada/Exequente, que não agiu com a prudência normal e esperável; » no âmbito dos presentes autos encontram-se penhorados saldos de depósitos bancários, que são co-titulados pela Acompanhante do Embargante/Executado; » o Embargante/Executado é deficiente mental, não tendo capacidade de compreender o conteúdo e alcance de qualquer tipo de contrato, estando desde os 18 anos de idade privado do controlo da sua vontade, o que é facilmente notório, e de fácil percepção, mesmo pela via telefónica; » o que não foi suficiente para a N… não contratar; » assim, não pode considerar-se tal dívida existente e, como tal, exigível, pois a base negocial está ferida de nulidade. 2 – Notificada a Exequente/Embargada N…, S.A., nos termos e para os efeitos do prescrito no nº. 2 do art.º 732º, do Cód. de Processo Civil, veio apresentar contestação, aduzindo, em resumo, o seguinte: -» os embargos carecem totalmente de fundamento; -» o documento que o Embargante juntou não prova a alegada condição de maior acompanhado, uma vez que o código de acesso à certidão se encontra expirado; -» E, ainda que tivesse sido estabelecido ao Embargante o regime de maior acompanhado, aos negócios pelo mesmo celebrados, porque dependentes de autorização, aplica-se o regime da anulabilidade e não o da nulidade; -» Ademais, caso o Embargante tivesse excecionado a anulabilidade, o que não sucedeu, também a sua dedução seria, processualmente, inadmissível, porquanto: - o Embargante confessa que a Acompanhante tomou conhecimento da dívida e dos contratos em Dezembro 2021; - nessa data os negócios já estavam cumpridos; - pelo que a arguição da anulabilidade sempre teria de ser feita em ação a intentar para o efeito e não por via de exceção - art.º 287º n.º 2 do CC; » Acresce que, caso a sentença de declaração de maior acompanhado tivesse transitado em julgado em 23.11.2021, considerando a data em que a Acompanhante teve conhecimento dos contratos (Dezembro de 2021), dispunha de um ano após essa data para, por via de ação, arguir a anulabilidade; » O que não sucedeu, pelo que a eventual anulabilidade foi sanada e, a sua arguição, após essa data, sempre se revelaria extemporânea; » Ademais, a Acompanhante do Embargante vive em Inglaterra, vivendo o Embargante acompanhado com um amigo, A…, conseguindo utilizar o telemóvel de forma autónoma; » O Embargante contratou à Embargada serviços, essenciais, de telecomunicações, o que a sua Acompanhante não podia deixar de conhecer, constituindo, também, claro abuso de direito a nulidade que veio alegar nos autos; » Tanto o conhecia a Acompanhante que, precisamente, porque eram essenciais e o Embargante necessitava deles, não foi intentada qualquer ação para anulação dos contratos; » A Embargada contratou com o Embargante de boa-fé, pois desconhecia qualquer impedimento do Embargante para contratar e não era notório que tal impedimento existisse; » Tendo prestado ao embargante os serviços que este solicitou, na sua morada e manteve-os em virtude dos vários acordos de pagamento, que o Embargante solicitou, mas não cumpriu; » Na eventualidade dos contratos poderem ser declarados nulos ou anuláveis - o que não se concebe, por todo o exposto -, resulta do referido regime a obrigação de restituição do que foi prestado (art.º 289º n.º 1 do CC; » E, não podendo o Embargante restituir à Embargada os serviços que esta lhe prestou, sempre teria de lhe restituir valor correspondente. Conclui, requerendo que os presentes embargos sejam julgados totalmente improcedentes. 3 – Por despacho de 21/02/2023, foi designada data para tentativa de conciliação, a qual veio a ocorrer, conforme acta datada de 09/05/2023. Desta Acta consta, apenas, o seguinte: “Iniciada a presente diligência pelas 11:20 horas, pela Mma. Juiz foi tentada a conciliação das partes o que não se mostrou possível. *** Após, pela Mma Juiz foi proferido o seguinte: DESPACHO Uma vez que não foi possível a obtenção de acordo, oportunamente abra conclusão. Notifique. Do antecedente despacho foram os presentes desde já notificados. *** A presente diligência foi declarada encerrada pelas 11:40 horas”. 4 – Em 17/06/2023, foi proferido saneador sentença, exarando-se, na parte DISPOSITIVA, o seguinte: “Em face de todo o exposto, por verificação da exceção dilatória da falta de título executivo, decido absolver o executado da instância executiva, nos artigos 576.º, n.ºs 1 e 2, 577.º, 578.º e 278.º, n.º 1, alínea e), todos do Código de Processo Civil, em consequência, declaro extinta a execução. Custas pela exequente. Registe e notifique. Comunique ao Sr. AE”. 5 – Inconformada com o decidido, a Exequente/Embargada interpôs recurso de apelação, em 18/07/2023, por referência à decisão prolatada. Apresentou, em conformidade, a Recorrente as seguintes CONCLUSÕES (que ora se transcrevem, na íntegra): “1. A decisão recorrida absolveu, sem fundamento, o Apelado da instância, por ter considerado verificada a exceção dilatória da falta de título executivo. 2. Salvo, porém, o devido respeito, a decisão recorrida é, desde logo, nula, porque não observou o contraditório, e carece de fundamento, porque não fez o devido enquadramento dos factos, tendo decidido com erro. 3. A sentença recorrida constituiu uma decisão surpresa porque o Recorrido não suscitou nos autos a questão da exceção dilatória da falta de título executivo, não podendo o Tribunal a quo deixar de observar o princípio do contraditório antes de proferir decisão. O que não sucedeu. 4. Com efeito e contrariamente ao que consta da sentença, em momento algum foram as partes notificadas para exercer o contraditório sobre o fundamento da decisão, facto que encontra confirmação na ata da audiência prévia. 5. E porque não foi observado o contraditório, tal omissão determina a nulidade da sentença recorrida. 6. Adicionalmente, carece a decisão de fundamento e rigor, porque não fez o devido enquadramento dos factos e decidiu com erro: - a sentença recorrida enuncia, como questão prévia, que a Recorrente apresentou requerimento executivo com base num requerimento de injunção quando, na verdade - como consta do requerimento executivo e é confessado pelo Recorrido nos embargos -, os requerimentos de injunção são dois; - a sentença recorrida, apesar de ter assumido a existência de, apenas, um requerimento executivo, incluiu os dois títulos executivos na decisão, citando os fundamentos de um e remetendo para fatura do outro, sem ter o cuidado de verificar que não só não estão relacionados, como fundamento que considerou para o efeito apenas se verificaria em relação a um dos títulos. 7. A haver motivos para improceder, apenas, um título executivo, por julgar verificada a exceção dilatória da falta de título executivo, não poderia o Tribunal recorrido improceder os dois. 8. Inexistindo, igualmente, fundamento para que o Tribunal recorrido tivesse absolvido da instância em relação aos montantes que não configuram qualquer indemnização. De tudo quanto ficou exposto, resulta que, a decisão recorrida - violou, desde logo, o princípio da proibição de decisões surpresa e o princípio do contraditório consagrado no art.º 3º do CPC, - decidiu sem fundamento e rigor, absolvendo da instância em relação aos dois títulos executivos por referência a fundamento que apenas se verificaria em relação a um deles”. Conclui, no sentido de “ser declarada nula e substituída por decisão que ordene o exercício do contraditório em relação à exceção considerada na decisão e determine o conhecimento do mérito da ação em relação às quantias peticionadas e em relação às quais não se verifica qualquer exceção de uso indevido do processo”. 6 – O Recorrido/Apelado/Embargante apresentou contra-alegações, nas quais formulou as seguintes CONCLUSÕES: “1. Alega a recorrente que a douta sentença a quo procedeu a uma incorrecta avaliação da matéria de facto, não tendo observado o contraditório e, consequentemente, não fez o devido enquadramento dos factos, tendo decidido com erro, devendo a sentença ser declarada nula. 2. Entende, porém, o aqui Recorrido/Embargante que a Recorrente/Embargada carece de razão e que a douta sentença a quo andou bem na decisão, na medida em que, decidindo com perfeita observância dos factos e da lei aplicável, decidiu pela absolvição da instância executiva. 3. E decidiu bem, porquanto entendeu não dispor a Recorrente/Embargada de título executivo eficaz e, por isso, a sua pretensão não se ajustar à finalidade do procedimento de injunção. 4. E a omissão ou insuficiência de título executivo, como é o caso dos autos, são de conhecimento oficioso. 5. Quando a recorrente afirma nas suas alegações que “(…) no título executivo 103193/21.3YIPRT não é peticionado nenhum valor a título indemnizatório.”, falta à verdade, pois que do mesmo, na parte da exposição dos factos que fundamentam a sua pretensão, consta expressamente “(…) é o executado devedor à exequente de €297,68, a título indemnizatório pelos encargos associados à cobrança da dívida.” 6. Só pode ser objecto do pedido de injunção o cumprimento de obrigações pecuniárias directamente emergentes de contrato, mas já não podem ser peticionadas naquela forma processual obrigações com outra fonte, nomeadamente, derivada de responsabilidade civil. 7. A cláusula penal, mesmo que se traduza numa quantia pecuniária desde logo fixada contratualmente, está excluída do âmbito da injunção por não se tratar de uma obrigação pecuniária em sentido estrito. 8. Quando o autor/requerente use de forma indevida ou inadequada o procedimento de injunção verifica-se uma excepção dilatória inominada, que obsta ao conhecimento do mérito da causa e dá lugar à absolvição da instância. 9. Tal excepção dilatória inominada, afecta o conhecimento e o prosseguimento da acção especial em que se transmutou o procedimento de injunção, por não se mostrarem reunidos os pressupostos legalmente exigidos para a sua utilização, não permite qualquer adequação processual ou convite ao aperfeiçoamento – Ac. RP, de 15.01.2019, relatado por Rodrigues Pires (in www.dgsi.pt). 10. Bem andou a Meritíssima Juiz a quo quando considerou improcedente a acção e absolveu o Recorrido do pedido contra si formulado. 11. Não merece, pois, qualquer reparo a Douta Sentença proferida em primeira instância”. Conclui, no sentido da improcedência da apelação, com consequente confirmação da decisão recorrida. 7 – O recurso foi admitido por despacho datado de 06/09/2023, como apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo. 8 – Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar, valorar, ajuizar e decidir. ** II – ÂMBITO DO RECURSO DE APELAÇÃO Prescrevem os nºs. 1 e 2, do art.º 639º do Cód. de Processo Civil, estatuindo acerca do ónus de alegar e formular conclusões, que: “1 – o recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão. 2 – Versando o recurso sobre matéria de direito, as conclusões devem indicar: a) As normas jurídicas violadas; b) O sentido com que, no entender do recorrente, as normas que constituem fundamento jurídico da decisão deviam ter sido interpretadas e aplicadas; c) Invocando-se erro na determinação da norma aplicável, a norma jurídica que, no entendimento do recorrente, devia ter sido aplicada”. Por sua vez, na esteira do prescrito no nº. 4 do art.º 635º do mesmo diploma, o qual dispõe que “nas conclusões da alegação, pode o recorrente restringir, expressa ou tacitamente, o objecto inicial do recurso”, é pelas conclusões da alegação da Recorrente Apelante que se define o objecto e se delimita o âmbito do recurso, sem prejuízo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, apenas estando este tribunal adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objecto do recurso. Pelo que, na ponderação do objecto do recurso interposto pela Recorrente Embargada, delimitado pelo teor das conclusões expostas, a apreciação a efectuar na presente sede consubstancia-se em aferir acerca do seguinte: A) Da decisão recorrida constituir uma decisão surpresa (violação do princípio da proibição de decisão surpresa); » Da ausência de observância do princípio do contraditório previsto no art.º 3º, do Cód. de Processo Civil; » A nulidade da sentença recorrida decorrente de tal omissão – Conclusões 3 a 5; B) Do indevido enquadramento dos factos e da errónea decisão; » Do requerimento executivo tendo por base dois requerimentos de injunção e não um requerimento de injunção; » Da inclusão dos dois títulos executivos na decisão, apesar da alusão a apenas um requerimento executivo; » Do facto de no título executivo 103193/21.3YIPRT não ser peticionado nenhum valor indemnizatório, pelo que, a haver motivos para improceder, tal abrangeria apenas um título executivo; » Da inexistência de fundamentação para a absolvição da instância, relativamente aos montantes que não configuram qualquer indemnização – Conclusões 6 a 8. ** III - FUNDAMENTAÇÃO A – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO O quadro factual a considerar resulta do relatório e iter processual supra exposto. ** B - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO No âmbito da oposição à execução, e prevendo acerca da oposição mediante embargos [2], prescrevem os n.ºs 1 e 2, do art.º 728º, do Cód. de Processo Civil [3], que: “1 – o executado pode opor-se à execução por embargos no prazo de 20 dias a contra da citação. 2 – Quando a matéria da oposição seja superveniente, o prazo conta-se a partir do dia em que ocorra o respectivo facto ou dele tenha conhecimento o executado” (sublinhado nosso). O artigo 729º elenca os fundamentos de oposição à execução baseada em sentença (a qualificação da sentença como título executivo encontra-se tipificada na alínea a), do nº. 1, do art.º 703º), prevendo o art.º 731º, a propósito dos fundamentos de oposição à execução baseada noutro título, que “não se baseando a execução em sentença ou em requerimento de injunção ao qual tenha sido aposta fórmula executória, além dos fundamentos de oposição especificados no artigo 729º, na parte em que sejam aplicáveis, podem ser alegados quaisquer outros que possam ser invocados como defesa no processo de declaração”. A oposição do executado “visa a extinção da execução, mediante o reconhecimento da actual inexistência do direito exequendo ou da falta dum pressuposto, específico ou geral, da acção executiva”, assumindo “o carácter duma contra-acção tendente a obstar à produção dos efeitos do título executivo e(ou) da acção que nele se baseia. Quando veicula uma oposição de mérito à execução, visa um acertamento negativo da situação substantiva (obrigação exequenda), de sentido contrário ao acertamento positivo consubstanciado no título executivo (judicial ou não), cujo escopo é obstar ao prosseguimento da acção executiva mediante a eliminação, por via indirecta, da eficácia do título executivo enquanto tal” [4]. No caso sub júdice a decisão (saneador sentença) Recorrida/Apelada defende, no essencial, que: § O requerimento de injunção, in casu, assenta no incumprimento do “contrato de prestação de bens e serviços de telecomunicações” celebrado entre as partes, aí se incluindo o valor correspondente ao da cláusula penal; § O procedimento de injunção é aplicável ás obrigações pecuniárias directamente emergentes dos contratos, não tendo a virtualidade de servir para exigir obrigações pecuniárias resultantes de responsabilidade civil contratual (ou extracontratual, de enriquecimento sem causa ou de relações de condomínio); § Ou seja, a prestação só pode ter por objecto imperativamente uma obrigação pecuniária, isto é, uma entrega em dinheiro em sentido estrito (e não já uma obrigação de valor, que não tem por objecto a entrega de quantias em dinheiro e visa apenas proporcionar ao credor um valor económico de um determinado objecto ou de uma componente do património); § A jurisprudência tem considerado que, nesta forma processual, é inadmissível o pedido de pagamento da cláusula penal por incumprimento contratual; § Ou seja, as injunções não são a via processual adequada para acionar a cláusula penal, mesmo que compulsória, decorrente da mora ou de qualquer vicissitude na execução do contrato; § Ora, in casu, a cláusula penal/indemnização por não cumprimento do contrato, peticionada no procedimento injuntivo, de que emergiu o requerimento/documento dado à execução, não consubstancia uma obrigação pecuniária directamente emergente de um contrato; § Assim, no que concerne ao pedido de pagamento do montante correspondente à cláusula penal/indemnizatória, recorreu-se a uma forma processual que legalmente não é a prevista para a tutela jurisdicional respectiva; § Pelo que, a exequente não poderia ter recorrido ao requerimento de injunção e, tendo-o feito, deu causa à verificação de uma excepção dilatória inominada, prevista nos artigos 555º, nº. 1, 37º, nº. 1, 1ª parte, geradora de absolvição da instância, conforme vertido nos artigos 576º, nºs. 1 e 2, 577º, 578º e 278º, nº. 1, alín. e), todos do Cód. de Processo Civil; § Tal excepção atinge e contagia todo o procedimento de injunção, por não se mostrarem reunidos os pressupostos legalmente exigíveis para a sua utilização, e não apenas o pedido referente ao valor da cláusula penal peticionada; § Assim, ao requerimento de injunção dado à execução não deveria ter sido aposta força executiva, pois não podia deixar-se prosseguir acção especial/comum para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos que houvesse resultado de transmutação de injunção interposta para acionamento dessa cláusula; § Pois, de contrário, admitir-se-ia que o credor, para obter título executivo, que bem sabia, à partida, que não podia obter, defraudasse as exigências prescritas nas disposições legais que disciplinam o procedimento injuntivo; § O recurso ao procedimento de injunção, quando este não se ajusta à pretensão formulada, acarretando excepção inominada, nulidade de conhecimento oficioso, pode esta ser conhecida em sede de execução cujo título executivo é o requerimento injuntivo, ao qual, embora ao arrepio da lei, tenha sido atribuída força executória por secretário judicial; § Efectivamente, a omissão ou insuficiência de título executivo são de conhecimento oficioso e podem ser apreciadas e declaradas até ao primeiro acto de transmissão dos bens penhorados (art.ºs 734º, nº. 1 e 726º, nº. 2, alín. a), ambos do Cód. de Processo Civil); § Sendo, inclusive, irrelevante que os executados se tenham abstido de invocar tal vício, nomeadamente em sede de oposição à execução; § Pelo exposto, a exequente não dispõe de título executivo eficaz, em virtude da pretensão formulada não se ajustar à finalidade do procedimento de injunção; § Conclui-se, assim, por verificação da excepção dilatória da falta de título executivo, pelo que se decide absolver o executado da instância executiva e, consequentemente, declara-se extinta a execução. Por sua vez, nas alegações recursórias sustenta a Recorrente/Exequente/Embargada constituir a decisão apelada uma decisão surpresa, em virtude do Recorrido não ter suscitado nos autos a questão da excepção dilatória da falta de título executivo, pelo que o Tribunal a quo não poderia deixar de observar o princípio do contraditório antes de proferir decisão. Acrescenta que, contrariamente ao que consta da sentença, em momento algum foram as partes notificadas para exercer o contraditório sobre o fundamento da decisão, o que se encontra devidamente comprovado pelo teor da acta da audiência prévia. Pelo que, tal inobservância do contraditório determina a nulidade da sentença recorrida, o que deve ser declarado, substituindo-a por decisão que ordene o exercício do contraditório em relação à excepção considerada na decisão. Na resposta contra-alegacional, o Recorrido, relativamente ao presente fundamento recursório, apenas corrobora o decidido, aludindo que a omissão ou insuficiência de título executivo são de conhecimento oficioso. Analisemos. - Da violação do princípio da proibição de decisão surpresa e da ausência de observância do princípio do contraditório previsto no art.º 3º, do Cód. de Processo Civil Em primeiro lugar, urge consignar o seguinte: consta no relatório do saneador sentença apelado que “foi realizada tentativa de conciliação, tendo sido suscitada a questão da possibilidade de verificação de exceção dilatória inominada, tendo as partes mantido o alegado nos articulados”. Referencia a Recorrente que “tal não sucedeu”, e que “caso tivesse sido dada oportunidade para o exercício do contraditório, tal não poderia deixar de constar na ata da referida diligência”, sendo que “da ata da tentativa de conciliação nada consta”. Ora, compulsada a acta de tentativa de conciliação, reproduzida no ponto 3 do relatório supra, constata-se que da mesma não consta o referenciado no relatório do saneador sentença sob sindicância, ou seja, não consta que aquando da tentativa de conciliação tenha sido suscitada a verificação da aludida excepção, sendo, aliás, tal acta totalmente omissa relativamente a tal questão. Donde, não se pode concluir se não no sentido de que o conhecimento, na aludida sede, daquela excepção nunca foi equacionado ou suscitado. Enunciando as causas de nulidade da sentença, prescreve a alínea d), do nº. 1, do art.º 615º, do Cód. de Processo Civil, ser “nula a sentença quando: d) o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”. Por sua vez, o nº. 2, do art.º 608º, do mesmo diploma, prevendo acerca das questões a resolver e sua ordem, referencia que “o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras”. No regime jurídico das nulidades dos actos decisórios releva “a divergência entre o que é objectivamente praticado ou declarado pelo juiz, e o que a lei determina ou o que resultou demonstrado da produção de prova”. Estamos no campo do error in procedendo, que se traduz “na violação de uma disposição reguladora da forma (em sentido amplo) do ato processual: o ato executado é formalmente diferente do legalmente previsto. Aqui não se discute se a questão foi bem julgada, refletindo a decisão este julgamento acertado – por exemplo, é irrelevante que a sentença (à qual falte a fundamentação) reconheça a cada parte o que lhe pertence (suum cuique tribuere)” [5] [6]. Assim, nas situações ou manifestações mais graves, o error in procedendo fere o acto de nulidade, estando-se perante vícios do acto processual formais, pois os “vícios substanciais, como por ex., os cometidos na apreciação da matéria de fundo, ou na tramitação do processo, são objecto de recurso, não se inserindo na previsão normativa das nulidades” [7]. A diferenciação ocorre, assim, por referência ao error in judicando, que “é um vício de julgamento do thema decidendum (seja este de direito, processual ou material ou de facto). O juiz falha na escolha da norma pertinente ou na sua interpretação, não aplicando apropriadamente o direito – dito de outro modo, não subsume correctamente os factos fundamento da decisão à realidade normativa vigente (questão de direito) -; ou falha na afirmação ou na negação dos factos ocorridos (positivos ou negativos), tal como a realidade histórica resultou demonstrada da prova produzida, havendo uma divergência entre esta demonstração e o conteúdo da decisão de facto (questão de facto). Não está aqui em causa a regularidade formal do ato decisório, isto é, se este satisfaz ou não as disposições da lei processual que regulam a forma dos atos. A questão não foi bem julgada, embora a decisão – isto é, o ato processual decisório – possa ter sido formalmente bem elaborada. A decisão (ato decisório) que exteriorize um error in judicando não é, com este fundamento, inválida. O meio adequado à sua impugnação é o recurso, sendo o objecto deste o julgamento em que assenta a pronúncia. Confirmando-se o julgamento, a decisão é mantida; no caso oposto, é, por consequência, cassada, ou revogada e substituída – dependendo do sistema de recursos vigente” [8]. As nulidades de sentença – cf., artigos 615º e 666º -, integrando, juntamente com as nulidades de processo – artigos 186º a 202º -, “o género das nulidades judiciais ou adjectivas”, distinguem-se, entre si, “porquanto, às primeiras, subjazem desvios ao formalismo processual prescrito na lei, quer por se praticar um ato proibido, quer por se omitir uma ato prescrito na lei, quer por se realizar um acto imposto ou permitido por lei mas sem o formalismo requerido, enquanto que as segundas se traduzem na violação da lei processual por parte do juiz (ou do tribunal) prolator de alguma decisão”. Como vício de limite, a nulidade de sentença enunciada na transcrita alínea d) divide-se em dois segmentos, sendo o segundo atinente ao excesso de pronúncia. Neste, em correspondência com o citado 2º segmento, do nº. 2 do art.º 608º, “encontra-se vedado ao juiz conhecer de causas de pedir não invocadas ou de excepções que não sejam do seu conhecimento oficioso” [9]. No excesso de pronúncia, e a nulidade daí resultante de excesso de pronúncia de facto, nas palavras de Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro [10], “não é de conhecimento oficioso, só podendo o tribunal que proferiu a decisão anular (parcialmente) a sentença com esse fundamento, sobre requerimento da parte (art.º 196º). Embora este vício seja impressivo, por representar uma ostensiva violação do matricial princípio dispositivo, é por esta mesma razão que não se justifica o seu conhecimento oficioso. Se o vencido renuncia a invocar a inadmissibilidade da pronúncia sobre o facto essencial – o que está na sua disponibilidade (art.º 264º) -, sujeita-se á sua consideração pelo tribunal ad quem na base factual do julgamento de direito”. Estatui o art.º 3º, do Cód. de Processo Civil, prevendo acerca da necessidade do pedido e da contradição, que: “1 - O tribunal não pode resolver o conflito de interesses que a ação pressupõe sem que a resolução lhe seja pedida por uma das partes e a outra seja devidamente chamada para deduzir oposição. 2 - Só nos casos excecionais previstos na lei se podem tomar providências contra determinada pessoa sem que esta seja previamente ouvida. 3 - O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem. 4 - Às exceções deduzidas no último articulado admissível pode a parte contrária responder na audiência prévia ou, não havendo lugar a ela, no início da audiência final”. Ajuizando acerca do princípio do contraditório, refere Lebre de Freitas [11] vigorar no presente uma noção lata de contraditoriedade, “entendida como garantia da participação efectiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, mediante a possibilidade de, em plena igualdade, influírem em todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação com o objecto da causa e que em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão”. Pelo que, o desiderato ou escopo principal de tal princípio “deixou assim de ser a defesa, no sentido negativo de oposição ou resistência à atuação alheia, para passar a ser a influência, no sentido positivo de direito de incidir ativamente no desenvolvimento e no êxito do processo”. E, concretizando a operacionalidade de tal princípio no plano das questões de direito, acrescenta ser exigível que, “antes da sentença, às partes seja facultada a discussão efectiva de todos os fundamentos de direito em que a decisão se baseie”. Acrescenta que a “proibição da chamada decisão-surpresa tem sobretudo interesse para as questões, de direito material ou de direito processual, de que o tribunal pode conhecer oficiosamente: se nenhuma das partes as tiver suscitado, com concessão à parte contrária do direito de resposta, o juiz – ou o relator do tribunal de recurso – que nelas entenda dever basear a decisão, seja mediante o conhecimento do mérito da causa, seja no plano meramente processual, deve previamente convidar ambas as partes a sobre elas tomarem posição, só estando dispensado de o fazer em casos de manifesta desnecessidade (art.º 3-3)”. Especificando e concretizando, entende ser necessário tal convite, exemplificativamente, na situação em que o Tribunal, ainda que concordando com a qualificação jurídica que as partes atribuíram a um contrato, “se propuser aplicar uma norma jurídica, específica ou genérica, do respectivo regime (…) que as partes durante o processo não tiveram em conta”. E, a falta de tal convite, quando deva ter lugar, determina ou gera nulidade, nos quadros do artigo 195º, do Cód. de Processo Civil. Deste forma, não basta, para o assegurar do cumprimento desta vertente do contraditório, que “às partes, em igualdade, seja dada a possibilidade de, antes da decisão, alegarem de direito (…)”, sendo ainda exigível que “mesmo depois desta alegação, possam fazê-lo ainda quanto a questões de direito novas, isto é, ainda não discutidas no processo” [12] [13]. Subjaz, deste modo, ao princípio do contraditório a ideia “de que repugnam ao nosso sistema processual civil, decisões tomadas á revelia de algum dos interessados, regra que apenas sofre desvios quando outros interesses se sobreponham”. Com efeito, “a liberdade de aplicação das regras do direito (art.º 5º, nº 3) ou a oficiosidade no conhecimento de determinadas exceções sem outras condicionantes potenciariam decisões que, em divergência com as posições jurídicas assumidas pelas partes, constituiriam verdadeiras decisões-surpresa”, pretendendo-se, assim, com a regra enunciada no nº. 3, “impedir que, a coberto desse princípio, as partes sejam confrontadas com soluções jurídicas inesperadas ou surpreendentes, por não terem sido objecto de qualquer discussão” (sublinhado nosso). Por outro lado, a legal solução “propicia ao juiz melhores condições para uma ponderação serena dos argumentos”, pelo que a audição das partes apenas “pode ser dispensada em casos de «manifesta desnecessidade» (conceito indeterminado que deve ser encarado sob uma perspectiva objectiva), de indeferimento de nulidades (art.º 201º) e sempre que as partes não possam, objectivamente e de boa-fé, alegar o desconhecimento das questões de direito ou de facto a decidir ou as respectivas consequências” [14]. A dispensa da observância do princípio do contraditório tem, deste modo, natureza excepcional, apenas se justificando “quando a questão já tenha sido suficientemente discutida ou quando a falta de audição das partes não prejudique de modo algum o resultado final”. Donde, estando-se perante uma diferenciada qualificação jurídica dos factos, legítima de acordo com o nº. 3, do art.º 5º, do Cód. de Processo Civil, não está dispensada “a necessidade de o juiz auscultar as partes, na medida em que uma diversa qualificação jurídica pode contender com a posição que cada uma delas adotou no processo, interferindo na tutela dos respectivos interesses” [15]. Jurisprudencialmente, em termos exemplificativos, afiramos o juízo expedido no douto Acórdão do STJ de 19/12/2018 - Relator: Roque Nogueira, Processo nº. 543/05.0TBNZR.C1.S1, in www.dgsi.pt -, do qual consta que “o que se quis impedir, com o aludido preceito, foi, precisamente, que a coberto do princípio «jus novit curia», emergente do art.5º, nº3, e do princípio da oficiosidade no conhecimento da generalidade das excepções dilatórias e das excepções peremptórias, constantes dos arts.578º e 579º, as partes sejam confrontadas com soluções jurídicas inesperadas, por não terem sido objecto de discussão no processo”. Acrescenta, citando Abrantes Geraldes - Temas da Reforma do Processo Civil, 1º vol., 2ª ed., pág.77 -, que “a liberdade de aplicação das regras de direito adequadas ao caso e a oficiosidade no conhecimento de excepções, conduziam, com alguma frequência, a decisões que, embora tecnicamente correctas, surgiam contra a corrente do processo, à revelia das posições jurídicas que cada uma das partes tomara nos articulados ou nas alegações de recurso. Eram as chamadas «decisões-surpresa» legitimadas pelo regime jurídico-processual anterior, que nenhumas limitações colocavam ao poder imediato de integração da matéria de facto nas normas aplicáveis” (sublinhado nosso). Por sua vez, o douto aresto do mesmo Alto Tribunal de 12/07/2018 - Relator: Hélder Roque, Processo nº. 177/15.0T8CPV-A.P1.S1, in www.dgsi.pt - defende decorrer do princípio do contraditório a “a regra fundamental da proibição da indefesa, em função da qual nenhuma decisão, mesmo interlocutória, deve ser tomada, pelo tribunal, sem que, previamente, tenha sido dada às partes ampla e efetiva possibilidade de a discutir, contestar e valorar”. Todavia, acrescenta, ressalvando e balizando a amplitude da aplicabilidade de tal princípio, que “a decisão-surpresa que a lei pretende afastar, afoitamente, contende com a solução jurídica que as partes não tinham a obrigação de prever, para evitar que sejam confrontadas com decisões com que não poderiam contar e não com os fundamentos não expectáveis de decisões que já eram previsíveis, não se confundindo a decisão-surpresa com a suposição que as partes possam ter concebido quanto ao destino final do pleito, nem com a expectativa que possam ter realizado quanto à decisão, quer de facto, quer de direito, sendo certo que, pelo menos, de modo implícito, a poderiam ou tiveram em conta, designadamente, quando lhes foi apresentada uma versão fáctica não contrariada e que, manifestamente, não consentiria outro entendimento” (sublinhado nosso). Por fim, analisando o princípio contraditório em termos constitucionais, pode referenciar-se o douto aresto do Tribunal Constitucional nº. 330/2001 - Relator: Conselheiro Messias Bento, Processo nº. 102/2001, Jurisprudência do Tribunal Constitucional, in www.dgsi.pt -, no qual se menciona que “o direito de acesso aos tribunais é, entre o mais, o direito a uma solução jurídica dos conflitos, a que se deve chegar em prazo razoável e com observância das garantias de imparcialidade e independência, mediante um correcto funcionamento das regras do contraditório [cf. o acórdão n.º 86/88 (publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, volume 11º, páginas 741 e seguintes)]. Tal como se sublinhou no acórdão n.º 358/98 (publicado no Diário da República, II série, de 17 de Julho de 1998), repetindo o que se tinha afirmado no acórdão n.º 249/97 (publicado no Diário da República, II série, de 17 de Maio de 1997), o processo de um Estado de Direito (processo civil incluído) tem, assim, de ser um processo equitativo e leal. E, por isso, nele, cada uma das partes tem de poder fazer valer as suas razões (de facto e de direito) perante o tribunal, em regra, antes que este tome a sua decisão. É o direito de defesa, que as partes hão-de poder exercer em condições de igualdade. Nisso se analisa, essencialmente, o princípio do contraditório, que vai ínsito no direito de acesso aos tribunais, consagrado no artigo 20º, n.º 1, da Constituição, que prescreve que "a todos é assegurado o acesso [...] aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos"”. Acrescenta, então, que “a ideia de que, no Estado de Direito, a resolução judicial dos litígios tem que fazer-se sempre com observância de um due process of law já, de resto, o Tribunal a tinha posto em relevo no acórdão n.º 404/87 (publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, volume 10º, páginas 391 e seguintes). E, no acórdão n.º 62/91 (publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, volume 18º, páginas 153 e seguintes) sublinhou-se que o princípio da igualdade das partes e o princípio do contraditório "possuem dignidade constitucional, por derivarem, em última instância, do princípio do Estado de Direito". As partes num processo têm, pois, direito a que as causas em que intervêm sejam decididas "mediante um processo equitativo" (cf. o n.º 4 do artigo 20º da Constituição), o que – tal como se sublinhou no acórdão n.º 1193/96 (publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, volume 35º, pagina 529 e seguintes) – exige não apenas um juiz independente e imparcial (um juiz que, ao dizer o direito do caso, o faça mantendo-se alheio, e acima, de influências exteriores, a nada mais obedecendo do que à lei e aos ditames da sua consciência), como também que as partes sejam colocadas em perfeita paridade de condições, por forma a desfrutarem de idênticas possibilidades de obter justiça, pois, criando-se uma situação de indefesa, a sentença só por acaso será justa. O processo civil tem uma estrutura dialéctica ou polémica: ele reveste a forma de um debate ou discussão entre as partes (audiatur et altera pars), sendo o juiz uma instância passiva. Nele – insiste-se –, o juiz não pode tomar qualquer providência contra determinada pessoa, sem que ela seja ouvida. E mais: essa audição tem, em regra, que preceder o decretamento da providência. Só excepcionalmente, quando haja razões de eficácia e de celeridade que imponham o seu diferimento e que este não limite ou restrinja, de forma intolerável, o direito de defesa, ela pode ser diferida para momento ulterior, pois só então se justifica que a audição da parte não seja prévia”. E, no que concerne ao alcance do contraditório exigível no campo das decisões surpresa, consignou-se no douto aresto do Tribunal Constitucional de 10/07/2019 – nº. 426/19, Relatora: Joana Fernandes Costa – que “têm sido repetidamente assinaladas na jurisprudência constitucional, as condições para que assim seja. Nas palavras do Acórdão n.º 173/2016, na linha de muitos outros: «Como o Tribunal Constitucional vem reiteradamente decidindo, «recai sobre as partes o ónus de analisarem as diversas possibilidades interpretativas, suscetíveis de virem a ser seguidas e utilizadas na decisão, cumprindo-lhes adotar as necessárias e indispensáveis precauções, em conformidade com um dever de litigância diligente e de prudência técnica (…)». Cabe-lhes, assim, «a formulação de um juízo de prognose, analisando e ponderando antecipadamente as várias hipóteses de enquadramento normativo do pleito e de interpretação razoável das normas convocáveis para a sua dirimição, de modo a confrontarem atempadamente o tribunal com as inconstitucionalidades que – na sua ótica – poderão inquinar tais normas ou interpretações normativas» (Carlos Lopes do Rego, Os Recursos de Fiscalização Concreta na Lei e na Jurisprudência do Tribunal Constitucional, Almedina, Coimbra, janeiro de 2010, pp. 81-82)”. Cotejados os expostos ensinamentos doutrinários e jurisprudenciais, articulemo-los com o caso sub júdice. Resulta claro que nos presentes autos o Embargante/Executado nunca invocou que a Exequente/Embargada não dispunha de título executivo eficaz, em virtude da pretensão formulada não se ajustar à finalidade do procedimento de injunção, ou seja, que ocorresse excepção dilatória de falta de título executivo, pelo que, o conhecimento feito constar no saneador sentença prolatado surge mediante juízo oficioso do Tribunal. Oficiosidade que, reconheça-se, relativamente a tal matéria, é perfeitamente legítima. Todavia, compulsados os autos, nomeadamente no âmbito da tentativa de conciliação designada após a apresentação dos articulados, bem como em toda a consequente tramitação processual, não se descortina que o Tribunal tenha, de alguma forma, mas necessariamente explícita ou indicativa, comunicado às partes a eventualidade de a vir a conhecer acerca da aludida excepção dilatória inominada, de forma a concretizar a sua prévia audição. Ou seja, não consta dos autos a tomada de qualquer atitude ou a prática de qualquer diligência, conducente a que as partes intervenientes pudessem, em juízo prévio, pronunciar-se acerca da oficiosa pretensão do Tribunal em considerar verificada a excepção dilatória da falta de título executivo eficaz, em virtude da pretensão formulada nos procedimentos injuntivos, que vieram a constituir os títulos executivos, não se ajustarem à finalidade do procedimento de injunção. Omitiu, deste modo, o Tribunal a prática de um acto ou formalidade legalmente imposta, tradutora do cumprimento do vinculativo princípio do contraditório, ao não permitir às partes uma activa participação na equacionada questão de ausência de título executivo eficaz, conducente à verificação de falta de título executivo e, consequentemente, à absolvição do executado da instância executiva. Pois, impunha-se ao Tribunal a quo, que, previamente a tal conhecimento suscitasse perante as partes aquela questão decidenda, de forma a conceder-lhes ampla e efectiva possibilidade de a discutir, contestar, valorar e ajuizar. Efectivamente, conforme sumariado no douto aresto desta Relação de 18/12/2012 - Relator: Eurico Reis, Processo nº. 2400/08.9YXLSB.L1-1, in www.dgsi.pt -, “o direito a ser ouvido (right to be heard) constitui um elemento essencial do direito a um julgamento leal e mediante processo equitativo que a todos está constitucionalmente garantido, não podendo ser decretada, sob pena de nulidade da decisão, a condenação de alguém como litigante de má fé sem prévia notificação do mesmo para que se pronuncie, querendo, quanto a tal matéria”. Ora, aqui chegados, questiona-se: qual o vício concretamente em equação? A prática de nulidade secundária, por omissão de acto ou formalidade legalmente prescritos, inscrita no art.º 195º, do Cód. de Processo Civil? Ou, conforme parece defender a Apelante, a causa de nulidade da sentença decorrente de excesso de pronúncia (apreciação de questão que, naquele contexto, o Tribunal não poderia tomar conhecimento)? Temos entendido que, não cumprindo o Tribunal o princípio do contraditório, conducente à prolação de decisão surpresa, tal determina a prática de irregularidade que, podendo influir no exame ou na decisão da causa – art.º 195º, do CPC -, se transmuta ou converte em nulidade processual, dado ter sido omitida a prática de um acto ou formalidade legalmente prescrita – exercício e observância do princípio do contraditório, na vertente de prolação de decisão-surpresa [16] [17]. Em idêntica trilha, defendeu o douto Acórdão do STJ de 11/09/2012 - Relator: Fonseca Ramos, Processo nº. 2326/11.09TBLLE.E1.S1, in www.dgsi.pt - que “ao não ter sido dada ao recorrente, prévia oportunidade de se pronunciar sobre a intenção dos julgadores de o sancionarem como litigante de má fé em multa e indemnização (sobre esta foi ouvido depois da condenação no incidente de quantificação – nº 2 do art.º 457ºdo Código de Processo Civil), cometeu-se uma nulidade – art.º 201º, nº1, daquele Código – já que estando em causa a omissão de formalidade relacionada com o direito de defesa, sendo ilegal a proibição da indefesa, sempre tal omissão tem influência na decisão deste concreto aspecto da causa. A condenação da parte como litigante de má fé, sem a sua prévia audição, violaria os princípios constitucionais de acesso ao direito, do contraditório e da proibição da indefesa, consagrados na Lei Fundamental “. No mesmo sentido, pronunciou-se recentemente o douto Acórdão do STJ de 29/02/2024 – Relator: Emídio Francisco Santos, Processo nº. 19406/19.5T8LSB.L1.S1, in www.dgsi.pt -, o qual começou por equacionar se a nulidade decorrente da prolação de decisão sem observância do princípio do contraditório estaria sujeita ao regime das nulidades de sentença (inscrito no art.º 615º, do Cód. de Processo Civil) ou ao das nulidades previstas no nº. 1, do art.º 195º, do mesmo diploma. Reconhece que a questão é controvertida, pois, segundo um dos entendimentos, a decisão proferida sem observância do princípio do contraditório está ferida pela nulidade prevista na 2ª parte, da alínea d), do nº. 1, do art.º 615º, do CPC (excesso de pronúncia), enquanto que o outro entendimento entende que tal decisão está ferida da nulidade prevista no nº. 1, do art.º 195º, do mesmo diploma. No dirimir destas alternativas, aduz que, no entender de tal Tribunal, “a decisão proferida sem observância do princípio do contraditório é nula, mas a nulidade de que padece não está prevista na 2.ª parte da alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC (decisão que conhece de questão de que não podia tomar conhecimento); está prevista n.º 1 do artigo 195.º do CPC. Vejamos. A decisão (sentença ou despacho) que conhece de questões de que não podia tomar conhecimento viola – e viola directamente - o n.º 2 do artigo 608.º do CPC, na parte em que proíbe ao juiz conhecer de questões que não tenham sido suscitadas pelas partes e que a lei lhe não permita conhecer, ao passo que a decisão proferida sem observância do princípio do contraditório é tomada com violação do n.º 3 do artigo 3.º do CPC. E diz-se que ela é tomada com violação deste preceito porque tal violação ocorreu em momento anterior à prolação do despacho. Com efeito, não era no momento da decisão que devia ser observado o princípio do contraditório, era antes de ela ser proferida que o juiz tinha o dever de dar à parte a possibilidade de se pronunciar sobre a questão que iria decidir. Logo, quando o tribunal profere uma decisão sem observância do contraditório, como prescreve o n.º 3 do artigo 3.º do CPC, não está a conhecer de uma questão de que não pode tomar conhecimento. (….) Quando decide sem cumprimento do princípio do contraditório, o que o tribunal está a fazer é a omitir, no processo de decisão, uma formalidade que a lei prescreve. Socorrendo-nos das palavras de Manual de Andrade, estamos perante um desvio do formalismo processual seguido, em relação ao formalismo processual prescrito na lei [Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, Limitada, 176]. Visto que não há norma especial que sancione a omissão desta formalidade, aplica-se-lhe a regra geral do n.º 1 do artigo 195.º do CPC, na parte em que dispões que a omissão de uma formalidade que a lei prescreve produz nulidade quando a irregularidade cometida possa influir na decisão da questão”. Ainda a favor do entendimento adoptado, acrescenta que “se, na realidade, a decisão proferida sem observância do princípio do contraditório configurasse um caso de excesso de pronúncia, sujeito ao regime das nulidades da sentença, o que faria sentido é que a nulidade fosse suprida nos mesmos termos em que é suprida a nulidade causada por excesso de pronúncia, o que não acontece. Com efeito, socorrendo-nos das palavras de Alberto dos Reis a propósito da supressão da nulidade por excesso de pronúncia: “O juiz deve declarar sem efeito o que tenha escrito na sentença em relação à questão ou questões de que não podia tomar conhecimento” [Código de Processo Civil Anotado, Volume V, Coimbra Editora, Limitada, página 150]. Não é este o caminho que se segue para suprir a nulidade causada pela inobservância do princípio do contraditório. Embora se anule a decisão recorrida, esta anulação tem por objectivo fazer cumprir o formalismo que foi omitido e proferir nova decisão sobre a questão. Daí que a declaração de nulidade implique a notificação da parte para exercer o direito ao contraditório e a prolação de nova decisão sobre a mesma questão que tinha sido decidida anteriormente, embora precedida de um processo irregular. Em segundo lugar, o n.º 2 do artigo 630.º do CPC, na parte em que dispõe que não é admissível recurso das decisões proferidas sobre as nulidades previstas no n.º 1 do artigo 195.º, salvo se contenderem com os princípios da igualdade ou do contraditório, aponta no sentido de que o legislador configura a omissão de formalidades que contendam com o princípio do contraditório como nulidade prevista no n.º 1 do artigo 195.º do CPC” (sublinhado nosso). Por sua vez, o douto aresto desta Relação de Lisboa de 26/09/2023 – Relator: Diogo Ravara, Processo nº. 7165/22.9T8LSB.L1-7, in www.dgsi.pt -, analisando situação com algumas semelhanças à ora em apreciação, e transcrevendo o nº. 3, do art.º 3º, do Cód. de Processo Civil, começou por referenciar constituir este a expressa consagração “do princípio do contraditório na vertente da proibição da prolação de decisões surpresa, garantindo aquele preceito às partes a sua efetiva intervenção no desenvolvimento de todo o litigio, sob pena de nulidade da decisão que o não respeite: é o que se chama de contraditório dinâmico. Como bem se aponta no ac. STJ 17-06-2014 (Mª Clara Sottomayor), p. 233/2000.C2.S1, “deve esclarecer-se, (…), que se tem entendido que o art.º 3.º do CPC não introduz no nosso sistema o instituto da proibição de decisões surpresa tal como foi configurado na Alemanha, país donde dimanou e tem longo historial, verificando-se importantes diferenças de regime entre o Código de Processo Civil português e o alemão. O direito ao contraditório (Rechtliches Gehör), no direito alemão constitui um direito fundamental, baseado na dignidade da personalidade humana, e está consagrado no artigo 103.º, I, da Constituição Alemã, onde se afirma: «Perante o tribunal todos têm direito a ser ouvidos». Este princípio constitucional tem seguimento nos §§139, n.º 2 e 278, n.º 3 da Zivilprozessordnung (Código de Processo Civil alemão), deles resultando que o legislador germânico confere ao direito ao contraditório uma dimensão que vai muito para além do que comporta, mesmo em interpretação extensiva, a lei portuguesa, até porque entre nós não existe preceito correspondente ao §139 da ZPO (cf. acórdão deste Supremo Tribunal, de 04-06-2009, processo n.º 09B0523, relatado pelo Conselheiro João Bernardo). A doutrina aceita, contudo, o princípio da proibição das decisões surpresa, enquanto proibição de decisão baseada em fundamento que não tenha sido previamente considerado pelas partes, entendendo que esta vertente do direito ao contraditório tem fundamentalmente aplicação às questões de conhecimento oficioso que as partes não tenham suscitado. Neste sentido, antes de decidir com base em questão (de direito material ou de direito processual) de conhecimento oficioso que as partes não tenham considerado, o juiz deve convidá-las a sobre ela se pronunciarem, seja qual for a fase do processo em que tal ocorra”. Acrescenta, citando Lebre de Freitas – ob. cit., pág. 126 e 127 – que “por princípio do contraditório entendia-se tradicionalmente a imposição de que; a) formulado um pedido ou tomada uma posição por uma parte devia à outra ser dada oportunidade de se pronunciar antes de qualquer decisão; b) oferecida uma prova por uma parte, a parte contrária devia ser chamada a controlá-la e ambas sobre ela tinham o direito de se pronunciar. Assim se garantia o desenvolvimento do processo em discussão dialética, com as vantagens decorras da fiscalização recíproca das afirmações e provas feitas pelas partes. A esta conceção, válida mas restritiva, substitui-se hoje uma noção mais lata de contraditoriedade, com origem na garantia constitucional do rechtliches Gehör germânico, entendida como garantia da participação efetiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, mediante a possibilidade de, em plena igualdade, influírem em todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação com o objeto da causa e que em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão. O escopo principal do princípio do contraditório deixou assim de ser a defesa. no sentido negativo de oposição ou resistência à atuação alheia, para passar a ser a influência, no sentido positivo de direito de incidir ativamente no desenvolvimento e no êxito do processo.”. Aduz, ainda, que a propósito desta matéria de proibição das decisões-surpresa, Miguel Teixeira de Sousa – Nulidades do processo e nulidades da sentença: em busca da clareza necessária in Blog do IPPC, disponível no seguinte endereço: https://blogippc.blogspot.com/2020/09/nulidades-do-processo-e-nulidades-da.html -, em comentário ao Acórdão do STJ de 02/06/2020 – Relator: Lima Gonçalves, Processo nº. 496/13.0TVLSB.L1.S1 – referenciou que “o CPC trata das nulidades processuais nos art.ºs 186.º a 202.º e das nulidades da sentença e do acórdão nos art.ºs 615.º, 666.º e 685.º. Perante isto, pode colocar-se a questão: por que motivo têm tratamento em diferentes lugares do CPC as nulidades processuais e as nulidades da sentença? Ou noutra formulação: dado que a sentença é um acto processual, qual o motivo para que a nulidade da sentença não esteja tratada em conjunto com as nulidades processuais? Ou noutra formulação ainda mais precisa: constando do art.º 195.º CPC uma regra geral sobre a nulidade dos actos, qual a justificação para que exista uma regulamentação específica sobre a nulidade da sentença? A resposta tem a ver com a dupla perspectiva pela qual a sentença pode ser considerada (assim como qualquer outro acto processual) e é a seguinte: a sentença pode ser vista como trâmite ou como acto: no primeiro caso, atende-se à sentença no quadro da tramitação da causa; no segundo, considera-se o conteúdo admissível ou necessário da sentença. Disto decorre que uma sentença pode constituir uma nulidade processual, se for considerada na perspectiva da sentença como trâmite: basta, por exemplo, que ela seja proferida fora do momento apropriado na tramitação processual. Um exemplo (naturalmente académico): se, no procedimento comum, o juiz proferir uma decisão logo a seguir ao termo da fase dos articulados, verifica-se uma nulidade processual nos termos do art.º 195.º, n.º 1, CPC, porque foi praticado um acto que a lei, naquele momento, não permite. Importa notar, no entanto, que, atendendo à diferença da sentença como trâmite e como acto, a nulidade processual do art.º 195.º CPC nada tem a ver com a nulidade da sentença dos art.ºs 615.º, 666.º e 685.º CPC. É fácil verificar que assim é. A nulidade processual decorrente do disposto no art.º 195.º, n.º 1, CPC existe mesmo que a sentença não padeça de nenhum outro vício, nomeadamente daqueles que estão enumerados no art.º 615.º CPC. Quer dizer: a sentença pode conter toda a fundamentação exigível, pode não padecer de nenhuma contradição entre os fundamentos e a decisão, pode não conter nenhuma omissão ou nenhum excesso de pronúncia e pode não condenar em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido, mas, ainda assim, porque é proferida fora do momento adequado, verifica-se a nulidade processual imposta pelo art.º 195.º, n.º 1, CPC. Voltando ao exemplo (académico) acima referido: o proferimento da sentença logo depois da fase dos articulados constitui uma nulidade processual; no entanto, essa sentença pode não padecer de nenhum dos fundamentos de nulidade enumerados no art.º 615.º, n.º 1, CPC. O inverso também é possível (e é, aliás, a situação mais frequente): se a sentença é proferida no momento processualmente adequado, mas se a mesma não contém toda a fundamentação exigível, padece de uma contradição entre os fundamentos e a decisão, contém uma omissão ou um excesso de pronúncia ou condena em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido, não há nenhuma nulidade processual nos termos do art.º 195.º, n.º 1, CPC, embora se trate de sentença que é nula segundo o disposto nos art.ºs 615.º, n.º 1, 666.º e 685.º CPC”. Acrescenta-se, em citação do mesmo Autor, que “assente esta distinção básica entre a sentença considerada como trâmite e a sentença considerada como acto, importa tratar agora do problema relacionado com as decisões-surpresa e com a sua correcta solução jurídica. A questão a resolver é a seguinte: uma decisão-surpresa é uma nulidade processual nos termos do art.º 195.º, n.º 1, CPC ou uma nulidade da sentença de acordo com o estabelecido nos art.ºs 615.º, 666.º e 685.º CPC? Segundo se pode imaginar, as dificuldades sentidas pela jurisprudência decorrem da circunstância de a decisão-surpresa resultar da omissão da audição prévia das partes e de, portanto, parecer que a ela está subjacente uma nulidade processual nos termos do art.º 195.º, n.º 1, CPC. Há aqui, no entanto, uma confusão que importa procurar desfazer. A audição prévia das partes é um pressuposto ou uma condição para que a decisão não seja considerada uma decisão-surpresa. Quer dizer: a decisão-surpresa é um vício único e próprio: a decisão é uma decisão-surpresa quando tenha sido omitida a audição prévia das partes. Noutros termos: há um vício (que é a decisão-surpresa), e não dois vícios independentes (a omissão da audiência prévia das partes e a decisão-surpresa). Em concreto: há um vício processual que é consequência da omissão de um acto. Se assim é, claro que o que há que considerar é o vício em si mesmo (a decisão-surpresa), e não separadamente a causa do vício e o vício. Em parte alguma do direito processual ou do direito substantivo se considera a causa do vício e o vício como duas realidades distintas. A única distinção que é possível fazer é ontológica: é a distinção entre a causa e a consequência. Dado que a decisão-surpresa corresponde a um único vício e porque este nada tem a ver com a decisão como trâmite, o vício de que padece a decisão-surpresa só pode ser um vício que respeita à decisão como acto. Em concreto, a decisão-surpresa é uma decisão nula por excesso de pronúncia (art.º 615.º, n.º 1, al. d), CPC), dado que se pronúncia sobre uma questão sobre a qual, sem a audição prévia das partes, não se pode pronunciar. Note-se que, como se tem vindo a repetir neste Blog, esta solução é a única que é compatível com a impugnação da decisão-surpresa através de recurso e com o objecto do recurso. O objecto do recurso é sempre uma decisão, pelo que, se houvesse uma nulidade processual, a mesma não poderia constituir objecto de recurso e teria de ser reclamada no tribunal a quo.[…] Uma última observação: é preciso ler com muito cuidado toda e qualquer doutrina e toda e qualquer jurisprudência que se tenha pronunciado sobre o problema antes de ter surgido no panorama legislativo português a temática da decisão-surpresa. Efectivamente, não se pode dizer que já antes não houvesse casos que, agora, seriam enquadráveis na decisão-surpresa. O que faltava na altura era a visão de que a decisão-surpresa constitui, em si mesma, um vício processual autónomo e próprio”. Seguidamente, após referenciar as várias soluções que têm sido jurisprudencialmente adoptadas, conclui mencionando que “a prolação de decisão de rejeição da execução com fundamento em vício que nenhuma das partes invocou e sobre a qual não teve oportunidade de se pronunciar configura uma nulidade simultaneamente do processo (art.º 195º, nº 1 do CPC) e daquela decisão ((art.º 615º, nº 1m al. d) do mesmo Código). Em consequência, deve a decisão apelada ser anulada”. Conducente a que se sumariasse que “quando o Tribunal profere uma decisão depois da omissão de um ato obrigatório, tendo essa omissão relevância para o exame ou decisão da causa verifica-se não só uma nulidade secundária (art.º 195º do CPC), mas também a nulidade da decisão, por excesso de pronúncia (art.º 615º, nº1, al. d)), uma vez que, ao proferir tal decisão, conhece de matéria que, naquelas circunstâncias, não podia apreciar” (sublinhado nosso). Aludamos, ainda, ao recente douto Acórdão da RP de 05/02/2024 – Relator: José Eusébio Almeida, Processo nº. 489/22.7T8VCD-A.P1, in www.dgsi.pt -, no qual se começou por consignar que “a invocação da violação do contraditório, depois de proferida a sentença ou despacho que consubstancia essa (invocada) violação, suscita-se em via de recurso, como exatamente sucede no caso presente. Por outro lado, e muito em síntese, por não termos dúvidas de estarmos perante um entendimento consensual, o princípio do contraditório é um princípio jurídico fundamental e estrutural de qualquer processo judicial moderno, impondo a garantia, com assento constitucional, de ninguém poder ser atingido pelos efeitos de uma decisão judicial sem ter tido a possibilidade de intervir na sua formação, ou seja, impõe-se sempre ouvir a outra parte (Audiatur et altera pars) antes da decisão, desde que se esteja perante uma decisão que não seja de mero expediente ou inócua ao direito da parte. Importa, pois, saber qual a consequência de não ter sido dada ao recorrente a possibilidade de pronúncia, antes da decisão (realidade que os autos revelam de modo claro, como se disse) que decidiu a questão de particular importância, suscitada pela requerente, mãe da criança. Ainda que a violação do princípio do contraditório, consubstanciando a prolação de uma decisão surpresa seja entendido por alguma doutrina e jurisprudência como correspondendo à nulidade (da sentença) por excesso de pronúncia, nos termos do disposto no artigo 615, n.º 1, alínea d), segunda parte, do CPC] , entendemos, com todo o respeito por outra opinião, que tal violação corresponde a uma ilegalidade, ou seja, corresponde a violação da lei (que impõe o contraditório) a qual torna a decisão ilegal, nula. Como refere Rui Pinto, “como qualquer outro ato processual, a própria decisão judicial pode padecer das nulidades inominadas do artigo 195, n.º 1. Assim, suponha-se que a sentença ou decisão é proferida parcialmente no início da audiência de julgamento, antes da produção de prova ou das alegações, ou que constitui uma decisão surpresa, com violação do artigo 3.º, n.º 3, ou que se trata de um despacho que ordena a citação do requerido para um procedimento cautelar que não admite citação prévia (cf. artigo 378). A decisão não pode deixar de ser nula.” Em consequência do que acaba de ser dito, e independentemente da natureza dos autos, temos forçosamente de concluir que a sentença recorrida, porque ilegal, é nula. Efetivamente, e repetimos, não resulta minimamente dos autos, pelo contrário, que ao requerido haja sido dada a oportunidade de se pronunciar, de alegar, de requerer o tido por conveniente, a respeito da questão que o tribunal apreciou”. Por fim, no que jurisprudencialmente concerne, referenciamos o igualmente recente douto Acórdão do STJ de 19/03/2024 – Relator: Luís Correia de Mendonça, Processo nº. 86/22.7T8PTL.G1.S1, in www.dgsi.pt -, o qual, indagando acerca das consequências a retirar da violação do contraditório, consignou expressamente que “os artigos 186.º a 202.º e 615.º não esgotam o regime das nulidades dos actos processuais”. Acrescenta configurar-se o contraditório como “um princípio estruturante do processo civil, mas é mais do que isso: é um direito processual fundamental”, decorrendo esta sua natureza “da consagração constitucional nos artigos 20.º, 1 e 202.º, 2 CRP, enquanto direito de defesa, e no artigo 32.º, 5, mas ainda do artigo 6.º da Convenção europeia de salvaguarda dos direitos do homem e das liberdades fundamentais e do artigo 47.º da Carta dos direitos fundamentais da união europeia”. Concretiza, referenciando que o direito ao contraditório “está ínsito no direito de defesa e o direito de defesa requer que o processo se estruture nas várias fases, de acordo com o princípio do contraditório. Nesta tautologia se realiza a elementar concretização da garantia do processo equitativo. Com a audiência prévia dos interessados pretende o legislador que o tribunal e as partes discutam as questões relevantes, de facto e de direito, em função de uma decisão melhor, superando a concepção meramente subjectiva-defensiva-retórica do dever de actuação do contraditório. Como refere a doutrina, «uma questão discutida será sempre melhor decidida do que uma questão não discutida»”. Desta forma, “a falta de actuação do contraditório concretiza um mau exercício dos poderes do juiz, que se traduz na impossibilidade para as partes de exercerem os respectivos poderes processuais”. Pelo que, naquilo que poderemos designar como um tertium genus quanto aos efeitos de tal violação, “a decisão final proferida nestas condições pode, por isso, considerar-se ferida de nulidade extraformal geneticamente derivada das garantias constitucionais”. Assim, tratando-se de vício da decisão final, “este deve ser feito valer em sede de recurso, não sendo de exigir à parte interessada que alegue as concretas deduções defensivas que teria utilizado se o acto omitido (de actuação do contraditório) tivesse sido praticado e que se tivessem sido devidamente levadas em conta pelo juiz teriam podido razoavelmente conduzir a uma decisão diversa daquela que foi realmente tomada. Tal influência deriva, em sim mesma, da circunstância de o juiz, ao decidir uma questão de direito ou de facto de conhecimento oficioso, ter violado o contraditório” (sublinhado nosso). Verifica-se, assim, que o não cumprimento do princípio do contraditório, conducente à prolação de decisão surpresa, pode constituir, segundo os enunciados entendimentos, comportamento tradutor dos seguintes vícios: - a prática de nulidade secundária, por omissão de acto ou formalidade legalmente prescritos, inscrita no art.º 195º, do Cód. de Processo Civil; - causa de nulidade da sentença decorrente de excesso de pronúncia (apreciação de questão que, naquele contexto, o Tribunal não poderia tomar conhecimento), com legal enquadramento na 2ª parte, da alínea d), do nº. 1, do art.º 615º, do Cód. de Processo Civil; - a prática de nulidade extraformal, geneticamente derivada das garantias constitucionais, como omissão ou vício de natureza material ou substantiva. Como já supra referenciámos, temos entendido que, não cumprindo o Tribunal o princípio do contraditório, conducente à prolação de decisão surpresa, tal determina a prática de irregularidade que, podendo influir no exame ou na decisão da causa – art.º 195º, do CPC -, se transmuta ou converte em nulidade processual, dado ter sido omitida a prática de um acto ou formalidade legalmente prescrita – exercício e observância do princípio do contraditório, na vertente de prolação de decisão-surpresa. E, apesar de reconhecermos intrínseco mérito ou validade nas posições diferenciadas, não descortinamos argumentário totalmente pertinente para alterarmos tal posição. Entende-se, assim, que a ocorrência daquele vício como que se reflecte na sentença proferida, ou seja, tem efeitos reflexos sobre esta, mas não constitui, por si só, causa da sua nulidade, nomeadamente por excesso de pronúncia, pois a mácula da omissão da prática do acto pré-existe à sua prolação. Donde se conclui pela verificação da nulidade decorrente da omissão do exercício e observância do princípio do contraditório, o que determina a nulidade dos actos praticados subsequentemente a tal omissão e que da mesma dependam em absoluto, ou seja, e in casu, a decisão proferida relativamente à determinada excepção dilatória de falta de título executivo, geradora da absolvição do Executado da instância executiva e, consequentemente, da declaração de extinção da execução. Relativamente às consequências extraíveis do reconhecimento de tal nulidade, temos defendido a posição de que, prima facie, tal determinaria, na presente fase, decisão a determinar (nesta instância de recurso, ou com prévia baixa dos autos à 1ª instância) dar efectivo conhecimento às partes do pretendido enquadramento jurídico, suscitando a sua intervenção e pronúncia, nos termos e para os efeitos do prescrito no nº. 3, do art.º 3º, do Cód. de Processo Civil, fixando prazo em conformidade. Todavia, nas situações em que as partes, no enformar do objecto recursório, em sede de alegações e contra-alegações, já emitiram pronúncia acerca de tal matéria, ou seja, já enunciaram os fundamentos argumentativos tradutores da sua posição relativamente ao enquadramento jurídico efectuado – in casu, a verificação da excepção dilatória de falta de título executivo -, temos concluído no sentido de resultar que o exercício do aludido contraditório já se mostra assegurado através das alegações, e sua resposta, apresentadas, não se justificando a emissão de comando determinante da concessão de nova pronúncia. E, assim sendo assegurado aquele exercício e a pronúncia das partes, concluiríamos pela aplicabilidade da regra da substituição, nos termos do nº. 1, do art.º 665º, do Cód. de Processo Civil, surgindo igualmente injustificada a necessidade de se proceder à prévia audição inscrita no nº. 3 do mesmo normativo, a qual sempre se configuraria, neste enquadramento, como a prática de acto inútil e, como tal, legalmente ilícito – cf., art.º 130º, do Cód. de Processo Civil. Acrescente-se que, a entender-se que estaríamos perante efectiva causa de nulidade da sentença, por verificação de excesso de pronúncia, pelo facto do Tribunal recorrido ter conhecido de questão – não dispor a Exequente título válido e eficaz – de que, pela forma como se efectivou, não podia tomar conhecimento, os efeitos práticos em equação não seriam diferenciados. Com efeito, tal sempre determinaria reconhecimento de nulidade da sentença, com consequente eventual juízo de substituição – igualmente nos quadros do mesmo art.º 665º, do Cód. de Processo Civil -, no conhecimento da (im)pertinência do juízo que reconheceu a aludida excepção dilatória, conducente à absolvição do Executado da instância executiva. Ora, tal juízo, reconhecemo-lo, não parece pacífico. Nas palavras do citado douto aresto desta Relação de 26/09/2023, no caso de violação do princípio do contraditório “não se coloca a questão do o Tribunal da Relação se substituir ao Tribunal a quo, nos termos previstos no art.º 665º do CPC, visto que a anulação dos efeitos de uma decisão surpresa pressupõe que todas as partes se possam vir a pronunciar sobre a questão, antes de a mesma ser apreciada. Nesta conformidade, cumpre anular a decisão apelada, e anular a decisão recorrida, a qual deverá ser substituída por outra na qual o Tribunal a quo exponha a sua posição relativamente à eventual (i)legitimidade ativa, e determine o convite do exequente e dos executados para, querendo, se pronunciarem sobre a questão, após o que deve ser proferida nova decisão sobre a matéria” (sublinhado nosso). Perfilhando posição semelhante, consignou-se no citado douto Acórdão da RP de 05/02/2024, que “esta nulidade, no entanto, não implica, nem justifica, a substituição ao tribunal recorrido. Com efeito, o disposto no artigo 665, n.º 1 do CPC só tem cabimento nos casos de nulidade (de sentença/despacho) pelos fundamentos constantes do artigo 615 do mesmo diploma legal. Diversamente, no caso em apreço, a violação das normas processuais que impõem o contraditório, tornando a decisão ilegal, determinam a revogação e substituição desta pela determinação do cumprimento do procedimento omitido, com prejuízo dos demais atos incompatíveis praticados em primeira instância”. Assim, independentemente da posição que se adopte, o que parece claro e evidente é que, mesmo a admitir-se a aplicabilidade da regra da substituição, enunciada no citado art.º 665º, do Cód. de Processo Civil, esta deve depender sempre da existência de uma adequada e expressa pronúncia das partes (nomeadamente em sede alegações recursórias e resposta) sobre a questão omitida ao contraditório, e que fundamentou a decisão sob apelo. Não bastando, para tal, uma referência ou alusão concisa ou en passant, em termos de simples acessoriedade relativamente á invocação do vício de omissão de observância do princípio do contraditório e consequente prolação de decisão surpresa. Ora, in casu, em sede de alegações, a Apelante referenciou que a decisão recorrida constituía uma decisão surpresa, e que a sentença enunciava que a Exequente apresentou requerimento executivo com base num requerimento de injunção, quando, na verdade, são dois os requerimentos de injunção e ainda que tenha aludido a dois títulos executivos na decisão. Pelo que, aduz, a haver motivo “para improceder, apenas, um título executivo por ter considerado verificada a exceção dilatória de falta de título executivo, não poderia o Tribunal recorrido improceder os dois”. E, no demais, apenas referencia inexistir igualmente fundamento “para que o Tribunal recorrido tivesse absolvido da instância em relação aos montantes que não configuram qualquer indemnização”. O que evidencia, com concludência, estarmos perante uma parca e indirecta alegação acerca da questão de direito tratada na decisão apelada, não se podendo, assim, concluir por uma efectiva pronúncia acerca, nomeadamente, do âmbito de aplicabilidade do procedimento injuntivo, se este tem a virtualidade de servir para exigir obrigações pecuniárias resultantes de responsabilidade civil contratual (exemplificativamente, o pedido de pagamento de cláusula penal por incumprimento contratual), ou se pode ter apenas imperativamente como objecto uma obrigação pecuniária, se o recurso ao procedimento injuntivo, para peticionar o aludido pagamento de cláusula penal, configura excepção dilatória inominada, geradora de absolvição da instância executiva (por falta de título executivo) e se a verificação de tal excepção atinge e contagia todo o procedimento injuntivo e não apenas o pedido referente ao valor da cláusula penal peticionada. Donde, num juízo de procedência das conclusões recursórias, decide-se: - anular o saneador sentença recorrido; - determinar que o Tribunal a quo, mediante despacho, exponha a sua posição relativamente á aludida falta de títulos executivos eficazes na titularidade da Exequente (e enquadramento jurídico daí adveniente) e, consequentemente, convide Exequente e Executado para, querendo, pronunciarem-se sobre tal questão, após o que deverá ser prolatada nova decisão sobre tal matéria (na qual se tenha a devida atenção acerca dos concretos requerimentos de injunção e alegados títulos executivos em causa); - julgar prejudicado o conhecimento das demais questões recursórias. * Nos quadros do art.º 527º, nºs. 1 e 2, do Cód. de Processo Civil, define-se a responsabilidade tributária nos seguintes termos: as custas da presente apelação serão suportadas pelo Executado/Embargante/Apelado. *** IV. DECISÃO Destarte e por todo o exposto, acordam os Juízes desta 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa em: a) Julgar procedente o recurso de apelação interposto pela Apelante/Exequente/Embargada N…, S.A., em que figura como Apelado/Executado/Embargado V…, representado por M…; b) Em consequência: » anula-se o saneador sentença recorrido/apelado; » determina-se que o Tribunal a quo, mediante despacho, exponha a sua posição relativamente á aludida falta de títulos executivos eficazes na titularidade da Exequente (e enquadramento jurídico daí adveniente) e, consequentemente, convide Exequente e Executado para, querendo, pronunciarem-se sobre tal questão, após o que deverá ser prolatada nova decisão sobre tal matéria (na qual se tenha a devida atenção acerca dos concretos requerimentos de injunção e alegados títulos executivos em causa); » julga-se prejudicado o conhecimento das demais questões recursórias; c) as custas da presente apelação serão suportadas por Executado/Embargante/Apelado – cf., art.º 527º, nºs. 1 e 2, do Cód. de Processo Civil. -------- Lisboa, 09 de Maio de 2024 Arlindo Crua Orlando Nascimento Susana Gonçalves _______________________________________________________ [1] A presente decisão é elaborada conforme a grafia anterior ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, salvaguardando-se, nas transcrições efectuadas, a grafia do texto original. [2] Previamente à revisão do Código de Processo Civil operada pelo DL nº. 329-A/95, de 12/12, era legalmente admissível um outro meio de oposição, que se traduzia no agravo do despacho de citação – cf., art.º 812º, da redacção então vigente -, sendo que presentemente o único meio de oposição legalmente consentido são os embargos de executado. [3] As disposições legais infra citadas, salvo expressa menção em contrário, reportam-se ao presente diploma. [4] José Lebre de Freitas, A Acção Executiva à luz do código revisto, 2ª Edição, Coimbra Editora, 1997, pág. 141 e 157. [5] Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro, Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, 2014, 2ª Edição, Almedina, pág. 599. [6] Traduzem estas nulidades da sentença a “violação da lei processual por parte do juiz (ou do tribunal) prolator de alguma decisão”, pertencendo ao género das nulidades judiciais ou adjectivas – cf., Ferreira de Almeida, Direito Processual Civil, Vol. II, 2015, Almedina, pág. 368. [7] Artur Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, Vol. III, Almedina, 1982, pág. 102. [8] Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro, ob. cit, pág. 600 e 601. [9] Ferreira de Almeida, ob. cit., pág. 372. [10] Ob. cit., pág. 606. [11] Introdução ao Processo Civil, Conceito e Princípios Gerais à Luz do Novo Código, 4ª Edição, Gestlegal, 2017, pág. 126 e 127. [12] Idem, pág. 135 a 137. [13] Referem, ainda, o mesmo Autor e obra – fls. 138, nota 27 -, que os tribunais franceses vêm recusando a aplicação do princípio do contraditório “nos casos em que o tribunal se limita a retificar a qualificação feita pelas partes”. Acrescenta, porém, que tal só é de aceitar na medida em que “não acarrete a aplicação duma norma jurídica diversa ou, acarretando-a, os efeitos desta norma não sejam substancialmente diversos dos da norma precedentemente considerada, caso em que é indiscutível que nos encontramos perante uma nova questão de direito” (sublinhado nosso). [14] Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, 2019, Reimpressão, pág. 19 e 20. [15] Idem, pág. 20. [16] A nulidade processual cometida está a coberto de decisão judicial “que se lhe seguiu, que a sancionou e confirmou, pelo que o meio processual próprio para a arguir não é a reclamação, podendo o vício em causa ser objecto de recurso e ser declarado por esta Relação” – assim, o douto aresto da RP de 24/09/2015 - Relatora: Judite Pires, Processo nº. 128/14.0T8PVZ.P1, in www.dgsi.pt -, o qual cita jurisprudência e doutrina neste sentido. [17] Doutrinariamente, no mesmo sentido, referencia Manuel de Andrade - Noções Elementares de Processo Civil, 1979, p. 183 - que “se a nulidade está coberta por uma decisão judicial que ordenou, autorizou ou sancionou, expressa ou implicitamente, a prática de qualquer acto que a lei impõe, o meio próprio para a arguir não é a simples reclamação, mas o recurso competente a interpor e a tramitar como qualquer outro do mesmo tipo. Trata-se em suma da consagração do brocardo: «dos despachos recorre-se, contra as nulidades reclama-se»”. Referenciava, igualmente, Antunes Varela - Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, 1985, p. 393 - que, “se entretanto, o acto afectado de nulidade for coberto por qualquer decisão judicial, o meio próprio de o impugnar deixará de ser a reclamação (para o próprio juiz) e passará a ser o recurso da decisão”. Ainda perfilhando idêntica posição, defendia Anselmo de Castro - Direito Processual Civil Declaratório, vol. III, 1982, p. 134 - que, “tradicionalmente entende-se que a arguição da nulidade só é admissível quando a infracção processual não está, ainda que indirecta ou implicitamente, coberta por qualquer despacho judicial; se há um despacho que pressuponha o acto viciado, diz-se, o meio próprio para reagir contra a ilegalidade cometida, não é a arguição ou reclamação por nulidade, mas a impugnação do respectivo despacho pela interposição do competente recurso (…)”. |