Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
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| Relator: | EDGAR TABORDA LOPES | ||
| Descritores: | PROCEDIMENTO CAUTELAR DE APREENSÃO DE VEÍCULOS AUTOMÓVEIS CONTRATO DE MÚTUO CLÁUSULA DE RESERVA DE PROPRIEDADE INUTILIDADE NULIDADE | ||
| Nº do Documento: | RL | ||
| Data do Acordão: | 05/26/2025 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Texto Parcial: | N | ||
| Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
| Decisão: | IMPROCEDENTE | ||
| Sumário: | I - A cláusula de reserva de propriedade tem o seu âmbito de aplicação nos contratos de compra e venda, enquanto forma de protecção do vendedor (portanto, reportada a um contrato de alienação e, não de mútuo, p. ex.) sendo que, a referência feita no artigo 409.º do Código Civil no sentido de que essa reserva ocorre “até ao cumprimento total ou parcial das obrigações da outra parte ou até à verificação de qualquer outro evento”, implica que, cumpridas as obrigações do comprador, fica consolidada a transferência de propriedade para este. II – Estabelecida uma cláusula de reserva de propriedade a favor do financiador/mutuante não proprietário, tal cláusula é inútil (porque estando cumpridas as obrigações do comprador a mesma extinguiu‑se e não pode ser actuada, sendo que, não sendo proprietário, não pode suspender efeitos translactivos do que não é, nem nunca foi, seu) e nula (por inexistência e impossibilidade de objecto – artigo 280.º e 409.º do Código Civil – uma vez que perante o vendedor está cumprida a obrigação do comprador). III – O procedimento cautelar de apreensão de veículos automóveis previsto Decreto-Lei n.º 54/75, de 12 de Fevereiro tem o seu âmbito de aplicação nos casos de incumprimento do contrato de compra e venda por parte do comprador, havendo cláusula de reserva de propriedade a favor do vendedor e visando antecipar o efeito da resolução desse contrato, está dependente e é instrumental da respectiva acção intentada para o efeito (de resolução do contrato de compra e venda). IV - O financiador/mutuante da aquisição da viatura não pode utilizar a providência cautelar referida em I, mesmo invocando ter-lhe sido cedida pelo alienante do veículo automóvel a cláusula de reserva de propriedade. V – O financiador mutuante não está desprotegido, pois tem à sua disposição, para garantia do seu crédito, a possibilidade de utilizar o instituto da hipoteca (artigos 686.º, n.º 1, e 688.º, n.º 1, alínea f), do Código Civil), bem assim como, reunidos os respectivos pressupostos, recorrer ao procedimento cautelar comum. VI – Uma interpretação actualista tem de partir do texto da lei, só sendo legítimo estender o seu campo de aplicação, se de tal interpretação resultar um desfecho compatível com o sistema jurídico enquanto unidade, e não for afrontado o regime jurídico dos institutos com que contende, sob pena de arbitrariedade e agressão à certeza e segurança jurídicas. VII - Não é possível qualquer interpretação actualista do regime constante do Decreto-Lei n.º 54/75, no sentido de permitir ao mutuante não proprietário o recurso à reserva de propriedade como meio de garantia do seu crédito, antes tendo a interpretação do mesmo de partir da letra da lei e de se conter dentro do espírito do sistema, ainda que considerado segundo as condições específicas do tempo em que o regime legal em causa é aplicado (sendo certo que o diploma vai na sua 14.ª redacção e o legislador, conhecendo as divergências jurisprudenciais existentes, nunca sentiu necessidade de fazer equivaler o financiador ao vendedor para efeitos de utilização desta providência). VIII – É com este entendimento que se logra relevar a Natureza das Coisas, na unidade do sistema jurídico. Da responsabilidade do Relator, em conformidade com o n.º 7 do artigo 663.º do Código de Processo Civil. | ||
| Decisão Texto Parcial: | |||
| Decisão Texto Integral: | Acordam na 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa[1] Relatório B, SA. intentou o presente procedimento cautelar de apreensão judicial de veículo automóvel contra R, LDA., pedindo que seja ordenada a apreensão do veículo automóvel de marca MINI, modelo Cooper D Cx Man (F56), com a matricula xx-yy-zz, bem como a chave e os respectivos documentos. Em suma, alega a Requerente que: - no dia 21/12/2021, celebrou um acordo escrito com a Requerida (designado de “Contrato de Crédito”, com o n.º …), através do qual lhe concedeu um financiamento no valor de € 9.348,34, tendo-se este comprometido a restituir àquela, tal valor e juros, a liquidar em 37 prestações mensais e sucessivas, no valor total de € 10.807; - é titular de reserva de propriedade sobre o veículo, reserva essa transmitida pelo fornecedor deste aquando da venda; - a Requerida deixou de pagar as prestações que se venceram desde o dia 28/09/2024, na sequência do que lhe enviou uma carta (a 07/01/2025), na qual lhe pediu o pagamento das importâncias em atraso no prazo de 8 dias, findo o qual consideraria definitivamente incumprido o acordo celebrado entre ambos, sucedendo que a mesma Requerida não procedeu, até à data, ao pagamento da quantia que deve, nem à entrega da viatura, a qual continua a utilizar, provocando-lhe a inerente depreciação, quer pelo uso, quer pelo decurso do tempo. O Tribunal a quo proferiu Despacho de Indeferimento Liminar, assim culminado: “Pelas razões de facto e de Direito que se deixaram expostas, julgo manifestamente improcedente o presente procedimento cautelar, em consequência do que o indefiro liminarmente. Custas: Custas pela requerente, de acordo com o que determina o art.º 539.º, n.º 1 e n.º 2, do Código de Processo Civil. Registe e notifique”. É deste despacho que a Requerente apresentou Recurso lavrando as seguintes Conclusões: “1. Decidiu o Tribunal a quo julgar liminarmente improcedente o presente procedimento cautelar, por entender não ser lícito à Recorrente, na qualidade de Mutuante de um contrato de financiamento para aquisição de um veículo automóvel, em que ficou sub-rogada da reserva de propriedade do veículo, que lhe foi transmitida pelo fornecedor, socorrer-se do procedimento cautelar especificado em causa, o abrigo do Decreto-Lei n.º 54/15, de 12 de fevereiro, entendendo que o mesmo está vedado às entidades financiadoras; 2. A decisão recorrida limita o âmbito de aplicação do artigo 409.º do Código Civil e não se adapta à realidade da prática comercial atual, particularmente no âmbito do sector de venda de veículos automóveis, a qual, ao invés, impõe uma interpretação atualista, com vista a dar uma resposta jurídica adequada às várias situações contratuais que entretanto se instituíram na prática comercial; 3. -. O artigo 409.º do Código Civil, constituindo uma exceção à regra prevista no artigo 408.º do mesmo Diploma Legal, tem como efeito suspender a transmissão do bem, permitindo ao alienante reservar para si a propriedade da coisa até ao cumprimento das obrigações assumidas pelo comprador; 4. A reserva da propriedade, tradicionalmente uma garantia dos contratos de compra e venda, tem vindo, face à evolução verificada das modalidades de contratação entretanto surgidas, a ser constituída como garantia dos contratos de mútuo cujo objeto e finalidade é financiar a aquisição de um determinado bem, ou seja, quando existe uma clara interdependência entre o contrato de mútuo e o contrato de compra e venda; 5. Tem-se desenvolvido uma corrente jurisprudencial que considera admissível a constituição de reserva de propriedade, tendo por finalidade garantir um direito de crédito de terceiro, ao abranger no âmbito da expressão “contrato de alienação” contida no artigo 18.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 54/75, de 12 de Fevereiro, o contrato de mútuo conexo com o de compra e venda. 6. Do disposto no artigo 9.º do Código Civil resulta que à atividade interpretativa não basta o elemento literal das normas, devendo o intérprete atender à vontade do Legislador, tendo sobretudo em conta, a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias históricas da sua formulação e, numa perspetiva atualista, as condições específicas do tempo em que é aplicada; 7. É entendimento da ora Recorrente, e assim tem sido admitido pela Jurisprudência, a admissibilidade da reserva da propriedade com vista a garantir os direitos de crédito emergentes de um contrato de financiamento cuja finalidade última é a de assegurar o pagamento do preço do bem; 8. É na relação entre pagamento integral do preço da coisa vendida/ transferência da sua propriedade que o pactum reservati dominni encontra a sua razão de ser; 9. Tal entendimento encontra acolhimento na Lei, a qual permite como condicionante à transferência da propriedade, qualquer outro evento futuro que não apenas o cumprimento das obrigações decorrentes do contrato de compra e venda (cfr. artigo 409.º, n.º 1, in fine); 10. Não se pode também esquecer, a este propósito, o princípio da liberdade contratual previsto no artigo 405.º do Código Civil, pois que na verdade o comprador do veículo associa o pagamento do preço do bem ao cumprimento do contrato de financiamento (mediante o pagamento mensal da prestação), aceitando, por essa razão, a constituição da garantia da reserva da propriedade; 11. Resulta claramente dos autos que o Fornecedor transmitiu à ora Recorrente a reserva da propriedade do veículo, acordando a manutenção da propriedade até à ocorrência de determinado evento, ao abrigo da liberdade contratual e devidamente prevista nas cláusulas das Condições Gerais do Contrato; 12. Tenha-se também presente que a própria Lei expressamente determina que se o devedor cumprir com dinheiro ou outra coisa fungível emprestada por terceiro pode sub-rogá-lo nos direitos do credor (cfr. artigo 591.º do Código Civil), sendo que, de acordo com o disposto no artigo 582.º do mesmo Diploma Legal, aplicável ex vi do artigo 594.º, a sub-rogação importa a transmissão, para o sub-rogado, das garantias e acessórios do direito transmitido; 13. A não se entender assim, chegaríamos à situação absurda de, incumprido o contrato de mútuo e sendo vedado ao financiador invocar o incumprimento e resolução do contrato de mútuo como causa do acionamento da reserva da propriedade constituída a seu favor, o mutuário – adquirente do veículo remisso não poder ser desapossado do veículo de que não é efetivamente proprietário, o que se traduziria num inaceitável efeito pernicioso que os princípios subjacentes ao nosso Ordenamento Jurídico não podem deixar de rejeitar; 14. O acionamento da reserva de propriedade pode, pois, ter lugar em consequência do incumprimento do contrato de financiamento; 15. A Sentença em crise violou assim o disposto nos artigos 9º, 405º, 408º, 409º, 582º (aplicável ex vi 594º) e 591º, todos do Código Civil, e bem assim o artigo 18º do Decreto-Lei n.º 54/75 de 12 de fevereiro; 16. Em face do exposto, forçoso será concluir pela legitimidade da Recorrente, na sua qualidade de financiadora com uma cláusula de reserva de propriedade registada a seu favor, para se valer da mesma e, assim, socorrer-se do procedimento cautelar especificado, ao abrigo do Decreto-Lei n.º 54/75. Nestes termos e nos mais de Direito aplicáveis, deverá ser concedido provimento ao presente recurso e, consequentemente, ser revogada a decisão recorrida e, assim, ser admitido o procedimento cautelar especificado, ao abrigo do Decreto-Lei n.º 54/75. Só assim se decidindo será CUMPRIDO O DIREITO E FEITA JUSTIÇA!”. * Questões a Decidir São as Conclusões do(s)/a(s) recorrente(s) que, nos termos dos artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, delimitam objectivamente a esfera de actuação do Tribunal ad quem (exercendo uma função semelhante à do pedido na petição inicial, como refere, Abrantes Geraldes[2]), sendo certo que tal limitação já não abarca o que concerne às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (artigo 5.º, n.º 3, do Código de Processo Civil), aqui se incluindo qualificação jurídica e/ou a apreciação de questões de conhecimento oficioso. In casu, e na decorrência das Conclusões do Recorrente, há que verificar novamente da correcção da decisão de indeferimento liminar da providência, nomeadamente quanto ao que respeita à admissibilidade da cláusula de reserva de propriedade a favor do mutuante e quanto à utilizabilidade por este da providência cautelar prevista no Decreto-Lei n.º 54/75, de 12 de Fevereiro. Corridos que se mostram os Vistos, cumpre decidir. *** Fundamentação de Facto A factualidade indiciária apurada foi a seguinte: 1. A 22/12/2021 a Requerente e a Requerida celebraram por escrito um acordo que denominaram de “contrato de crédito n° 337995”, nos termos do qual a primeira declarou conceder à segunda um crédito no valor de 10.807€ 23.400, destinado a financiar a aquisição do veículo automóvel de marca MINI, modelo Cooper D Cx.Man (F56), com a matrícula xx-yy-zz e chassis n.º …, vendido por “---------”, pelo preço de 16.000€, mais declarando a Requerida obrigar-se a proceder ao pagamento do valor do crédito, juros e demais encargos, em 37 prestações mensais, sendo 36 no montante de 118,05€ cada uma, acrescidas do valor de € 3,60 a título de comissão de gestão mensal, e uma última no valor de 6.400€. 2. Das condições particulares do contrato consta que a diferença (7.000€) do valor do crédito para o preço da compra e venda corresponde à “entrada inicial”. 3. Das condições particulares do contrato consta igualmente, sob a epígrafe “garantias”, a “reserva de propriedade sobre o bem a favor do mutuante”. 4. Do ponto 1 do artigo 1.º das condições gerais do contrato consta que “o mutuante concede ao mutuário, que aceita, o montante total do crédito para a aquisição do bem objecto do contrato de compra e venda conexo com o presente contrato, nos lermos das condições gerais e das presentes condições gerais, concedendo o mutuário ao mutuante autorização para este entregar directamente o montante total do crédito ao fornecedor, deduzido dos encargos financiados, se aplicável, ficando o mutuante sub-rogado nos direitos (incluindo de crédito) do fornecedor decorrentes do contrato de compra e venda, os quais, por esta via, se transmitem para o mutuante”. 5. Do ponto 2 do artigo 9.º das condições gerais do contrato consta que “se as partes assim o acordarem nas condições particulares, o mutuário declara conhecer e aceitar a transmissão pelo fornecedor a favor do mutuante da reserva de propriedade acordada entre o mutuário e o fornecedor. A referida transmissão é promovida por sub-rogação pelo fornecedor a favor do mutuante (ou seja, pela substituição do fornecedor pelo mutuante) nos direitos (incluindo o crédito) que para aquele emergem do contrato de compra e venda que celebrou com o mutuário. O mutuário reconhece ainda, atenta a conexão entre o contrato de compra e venda e o presente contrato, que a resolução do presente contrato importará a automática resolução do contrato de compra e venda conexo, podendo o mutuante accionar a seu favor a reserva de propriedade sobre o bem”. 6. Por apresentação de 16.02.2022 mostra-se inscrita a favor da Requerente a reserva de propriedade do veículo automóvel identificado em 1. 7. A Requerida não pagou à Requerente as prestações que se venceram a 28.09.2024 e no dia 28 de cada um dos meses subsequentes de Outubro, Novembro e Dezembro. 8. Com data de registo de 7.01.2025 a Requerente enviou à Requerida uma carta, endereçada para a morada indicada no contrato identificado em 1., aí lhe comunicando, para além do mais, estarem por liquidar as referidas três prestações mensais, e mais lhe declarando que “decorrido prazo de 8 (...) dias sem que V. Exa. proceda ao pagamento ora solicitado, a mora converter-se-á em incumprimento definitivo e o contrato acima identificado e respectivo contrato de compra e venda conexo considerar-se-ão automática e imediatamente rescindidos, sem necessidade de qualquer outra comunicação”. * Fundamentação de Direito Comecemos por verificar a linha argumentativa seguida pelo Tribunal a quo: I - A providência cautelar, que não é um fim, mas um meio, surge como antecipação e preparação duma providência ulterior; prepara o terreno e abre o caminho para uma providência final; II – A relação estabelecida entre o procedimento cautelar e a providência definitiva resulta do teor do artigo 362.º, n.º 1 e n.º 2, do Código de Processo Civil, quando alude à natureza conservatória ou antecipatória adequada a assegurar a efectividade do direito concretamente ameaçado, enquanto preparação da defesa desse interesse no âmbito da tutela a conceder por via de uma acção principal já proposta ou a propor. III - Também o artigo 364.º, n.º 1, n.º 2 e n.º 3, do Código de Processo Civil, estipula que, excepto se for decretada a inversão do contencioso, o procedimento cautelar é sempre dependência de uma causa principal, da qual constitui seu incidente, correndo sempre por apenso à mesma (quer seja prévia ou posterior). IV - Por regra, os procedimentos cautelares exigem a verificação de dois pressupostos essenciais, a saber: 1.º - A verificação da aparência de um direito (fumus boni iuris), consubstanciada na elementar probabilidade da sua efectiva existência. 2.º - A demonstração do perigo de insatisfação desse direito aparente (periculum in mora), o qual se traduz no fundado receio que a demora natural da tramitação do pleito cause um prejuízo grave e de difícil reparação. V - No que se refere ao primeiro requisito, “… pede-se ao tribunal uma apreciação ou um juízo de mera probabilidade ou verosimilhança; quanto ao 2.º, pede-se-lhe mais alguma coisa: um juízo, senão de certeza e segurança absoluta, ao menos de probabilidade mais forte e convincente.” (Alberto dos Reis, “Código de Processo Civil Anotado”, Volume I, 3.ª edição, Coimbra Editora, Ld.ª, Coimbra, 1948, pág. 621). VI - Importando verificar os específicos pressupostos elencados nos artigos 15.º a 22.º do Decreto-Lei n.º 54/75, de 24 de Fevereiro, logo o artigo 15.º («Fundamentos a apreensão cautelar de veículo automóvel e seus documentos»), dispõe: “1 – Vencido e não pago o crédito hipotecário ou não cumpridas as obrigações que originaram a reserva de propriedade, o titular dos respectivos registos pode requer em juízo a apreensão do veículo e do certificado de matrícula. 2 – O requerente expõe na petição o fundamento do pedido e indica a providência requerida. 3 – A prova é oferecida com a petição referida no número anterior.” VII – O artigo 16.º («Deferimento da apreensão), n.º 1, dispõe que “Provados os registos e o vencimento do crédito ou, quando se trate de reserva de propriedade, o não cumprimento do contrato por parte do adquirente, o juiz ordenará a imediata apreensão do veículo”. VIII - O artigo 17.º, n.º 1, regula o modo como deve ser efectuada a apreensão e o artigo 22.º, n.º 1, estabelece como consequência da apreensão a proibição de circulação do veículo. IX – São estes os requisitos (cumulativos) da providência: a) Existência de um contrato de alienação de veículo automóvel, em que tenha sido convencionada a reserva de propriedade a favor do titular do registo; b) Incumprimento das obrigações assumidas pelo adquirente que tenham condicionado a reserva de propriedade. X – Perante a alegação da Requerente e para a eventualidade de tal acervo fáctico vir a ficar demonstrado, se se verificariam, ou não, cumulativamente, os requisitos subjacentes ao decretamento da providência de apreensão judicial de veículo alienado com reserva de propriedade (que tem como pressupostos a existência de um contrato de alienação de veículo automóvel, em que tenha sido convencionada a reserva de propriedade a favor do titular do registo, bem como o incumprimento das obrigações assumidas pelo adquirente que tenham condicionado essa reserva). XI - O Decreto-Lei n.º 54/75 foi publicado numa época em que a aquisição de veículos automóveis seguia a forma tradicional (compra e venda), sendo que, hoje, tal aquisição pode revestir, outras formas: desde logo, a que passa pela intervenção de entidades de financiamento a crédito, seja mediante mútuos, seja mediante contratos de locação financeira, com opção de aquisição final do bem locado (inovações contratuais, de resto, deram lugar a legislação específica, como a vertida no Decreto-Lei n.º 149/95, de 24 de Junho, cujo artigo 21.º prevê também um procedimento cautelar especialíssimo para a apreensão de veículo objecto de locação financeira). X - Coloca-se, então, a questão de saber se o procedimento cautelar especificado em causa tem aplicação ao caso dos autos, em que a reserva de propriedade surge registada a favor de um terceiro, que não o vendedor do veículo automóvel. XI - Trata-se de questão já vastamente debatida na jurisprudência, e em situação semelhante à dos presentes autos, foi seguido pelo Tribunal da Relação de Lisboa (Processo nº 2883/23.7T8OER-António Moreira), o entendimento (maioritário) de que o procedimento cautelar em causa está vedado às entidades financiadoras. XII - A venda com reserva de propriedade configura uma venda sob condição suspensiva. Como resulta do artigo 409.º, n.º 1, do Código Civil (“nos contratos de alienação é lícito ao alienante reservar para si a propriedade da coisa até ao cumprimento total ou parcial das obrigações da outra parte ou até à verificação de qualquer outro evento). XIII - O contrato a que a Requerente se reporta e que funda o seu alegado direito não é um contrato de alienação, mas sim um contrato de mútuo. XIV - O “contrato de alienação” foi celebrado entre o Requerido e o fornecedor e vendedor do veículo, em cujos direitos, aliás, a Requerente entende ter ficado sub-rogada. XV – O procedimento cautelar em causa faz sentido quando equacionado para garantia do direito do vendedor, o qual, guardando para si a reserva da propriedade (de um bem que, reafirma-se, é seu até à celebração do contrato mediante o qual opera a transmissão da propriedade), vê o adquirente incumprir as obrigações que para si nascem do contrato de compra e venda, mormente a obrigação de pontual pagamento do preço convencionado. XVI - A intervenção de um terceiro, não adquirente, que guarda para si a reserva de propriedade – por cessão da posição jurídica que o vendedor deveria assim ocupar (isto é, como titular da reserva) –, introduz um novo elemento para o qual o procedimento em causa não foi gizado, pois que é inabalável a diversidade de escopo e natureza entre a compra e venda e o mútuo. XVII - É este entendimento, aliás, que vem plasmado no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12.05.2005 (Processo n.º 05B538-Araújo Barros), no qual se decidiu que “nenhuma perspectiva, formal ou substancial, consente que se confunda contrato de alienação, que implica a transferência, ainda que sob condição suspensiva, da propriedade de um veículo, com um contrato de mútuo que teve como mutuante outra entidade e de cuja resolução resulta o vencimento das prestações convencionadas e não a obrigação de restituição do veículo vendido”). XVIII - Acresce a natureza instrumental de que é dotado o procedimento cautelar, estando dependente da posterior instauração da competente acção, a qual, ela sim, de forma definitiva, se destinará a definir o direito (e, nessa acção, a Requerente nunca deixaria de surgir como mera financiadora-credora, mas nunca como vendedora do bem sobre o qual incide a reserva de propriedade). XIX - Como tal, pergunta-se como poderia a mesma, nessa acção, exigir a apreensão (definitiva) do veículo, quando para tanto carece claramente de legitimidade. XX – A mesma interrogação vale para a situação em que é pedida a inversão do contencioso nos termos previstos no artigo 369.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, pois também para essa eventualidade se exige ao tribunal que adquira no procedimento a convicção segura acerca da existência do direito acautelado e que a providência decretada seja a adequada a alcançar a composição definitiva do litígio. XXI - Não pode aceitar-se que a financiadora possa lançar mão de um procedimento cautelar (repita-se, originariamente pensado para proteger o vendedor) para obter uma pretensão a que, afinal, não tem direito posteriormente. XXII - No apontado sentido, pode ler-se o já citado Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12.05.2005, assim sumariado: “1. Só o vendedor de um veículo automóvel a prestações, com reserva de propriedade, que é titular do respectivo registo, detém legitimidade para requerer, em processo cautelar, a apreensão do veículo. 2. Se o alienante do veículo e a financiadora da respectiva aquisição forem pessoas diferentes, não pode esta última, ainda que em associação com aquela, instaurar providência cautelar destinada à apreensão do veículo vendido. 3. A apreensão de veículo automóvel constitui uma providência que, no que concerne ao contrato de compra e venda com reserva de propriedade, visa antecipar o efeito da resolução do contrato, sendo, sempre, dependente ou instrumental da competente acção de resolução. 4. Se o vendedor, com reserva de propriedade e titular do respectivo registo, não pode intentar a acção de que depende a providência, que é a acção de resolução cujo direito lhe assistiria, na medida em que não é credora do preço do veículo, que lhe foi pago, é manifesta a inviabilidade (improcedência) do procedimento cautelar de apreensão, que deve ser indeferido por faltar o nexo de instrumentalidade em relação à acção principal.” XXIII - Como argumentos que acrescem: - o credor pode constituir hipoteca sobre o veículo, assim ficando com uma garantia real sobre o mesmo; - perante o artigo 18.º, n.º 1 do citado Decreto-Lei n.º 54/75 (Dentro de quinze dias a contar da data da apreensão, o credor deve promover a venda do veículo apreendido, pelo processo de execução ou de venda de penhor, regulado na lei de processo civil, conforme haja ou não lugar a concurso de credores; dentro do mesmo prazo, o titular do registo de reserva de propriedade deve propor acção de resolução do contrato de alienação”), pode concluir-se que a entidade financiadora não pode propor a acção de “resolução do contrato de alienação” (porque não é a alienante); - perante o artigo 409.º, n.º 1, do Código Civil, não pode aceitar-se que a mesma entidade financiadora seja a alienante do veículo. XXIV – O Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 02.10.2007 (Processo n.º 07A2680-Fonseca Ramos) é claro no sentido de afastar uma “interpretação actualista” do Decreto-Lei n.º 54/75, que permitisse o entendimento adoptado pela Requerente: “I) - Os artigos 15º, 16º, e 18º, do Decreto-Lei nº54/75, de 12.2 – procedimento cautelar de apreensão de veículos automóveis – têm o seu campo de aplicação em caso de incumprimento das obrigações do contrato de compra e venda por parte do comprador, havendo cláusula de reserva de propriedade. II) - Tal regime jurídico impede que o financiador da aquisição dele beneficie, invocando ter-lhe sido cedida pelo alienante do veículo automóvel a cláusula de reserva de propriedade. III) - Em caso de incumprimento do contrato de mútuo, não pode quem financiou a aquisição requerer aquele procedimento cautelar, nem prevalecer-se da cláusula de reserva de propriedade – art.º 409º do Código Civil. IV) - A interpretação actualista tem de partir do texto da lei, só sendo legítimo estender o seu campo de aplicação, se de tal interpretação resultar um desfecho compatível com o sistema jurídico enquanto unidade, e não for afrontado o regime jurídico dos institutos com que contende, sob pena de, a coberto de uma interpretação postulada pela essoutra realidade social que a convoca, se tornar arbitrária a interpretação da lei, ferindo, assim, a certeza e a segurança jurídicas, valores caros ao Direito.” XXV – Assim também decidiu ainda o Tribunal da Relação de Lisboa, no seu Acórdão de 26.11.2009 (Processo n.º 1952/09-2-Ezagy Martins: “I- Quanto à interpretação actualista vale a consideração de que “A letra não é só o ponto de partida, é também um elemento irremovível de toda a interpretação…o texto funciona também como limite da busca do espírito. II- Em sede de uma tal abordagem interpretativa impõe-se a constatação de que a norma é modo de expressão dessa ordem global que é a “unidade do sistema jurídico”, por isso a interpretação de uma fonte não se faz isoladamente, resulta pelo contrário da inserção desse texto num conjunto jurídico dado. III- A reserva de propriedade a favor do mutuante, para garantia do cumprimento das obrigações do mutuário, também adquirente do bem, apenas pode ser constituída pelo vendedor. IV- Não podendo ser aquela validamente convencionada no contrato de mútuo onde apenas intervêm os que nele assumem as posições de mutuante e mutuário. V- E assim também quanto à cessão da titularidade da reserva de propriedade, à qual seriam extensivas as regras da cessão de créditos, nos termos do art.º 588º, do Código Civil. VI- O art.º 409º, n.º 1, do Código Civil ao aludir a “contratos de alienação” não tem vocação para abarcar o contrato de mútuo ou de financiamento. VII- A cláusula em que o financiador reserva para si a propriedade de uma coisa alienada pelo vendedor, porque contrária a uma disposição de natureza imperativa, é nula, nos termos do art.º 294º do Código Civil. VIII- O crédito concedido por terceiro não está contemplado, no art.º 6º do Dec-Lei n.º 359/91, de 21 de Setembro. IX- O terceiro que financiou a aquisição do bem alienado com reserva de propriedade não pode lançar mão do procedimento cautelar de apreensão de veículo automóvel, já que nunca lhe assistirá o direito de alienação do bem.” XXVI - Conclui-se, pois, que, não vindo alegada (e não podendo, consequentemente, vir a ser objecto de prova) factualidade que traduza a celebração entre a requerente e o requerido de um contrato de alienação de veículo automóvel, em que tenha sido validamente convencionada a reserva de propriedade a favor do titular do registo (vendedor da viatura) e assim não assumindo a requerente a qualidade de titular do registo para os efeitos apontados no 15.º, do Decreto-Lei n.º 54/75, de 24 de Fevereiro, mostra-se desde logo afastada a verificação de um dos pressupostos essenciais fundadores do decretamento da providência cautelar especificada requerida. XXVII – Por outro lado, mesmo que resultassem provados todos os factos alegados pela Requerente nunca se mostraria preenchido um pressuposto essencial ao decretamento da providência apresentada, pelo que tem de julgar-se manifestamente improcedente o presente procedimento cautelar especificado, sem necessidade de apreciação do segundo pressuposto apontado para sua procedência (o referente ao incumprimento das obrigações assumidas pelo adquirente que tenham condicionado a reserva de propriedade), por motivo de ficar tal análise prejudicada. XXVIII - Por fim, sempre se dirá que não estando o Tribunal adstrito à providência cautelar concretamente requerida, poderia equacionar-se se a pretensão da Requerente deveria ser objecto de apreciação e decisão à luz do regime legal estabelecido para o procedimento cautelar comum, mas para isso impunha-se que esta tivesse alegado e logrado provar a existência de um quadro factual edificador do fundado receio de que a conduta do requerido lhe causa lesão grave e dificilmente reparável do seu direito, o que, manifestamente, não sucedeu (alegar que o bem objecto da providência está sujeito a depreciação pelo uso e pelo decurso do tempo não significa que daí decorra um dano grave e dificilmente reparável) XXIX - Na verdade, com relação ao pressuposto referente ao prejuízo grave e de difícil reparação há que ponderar a alegação do requerente, da qual resultará (perante o que permite art.º 412.º, n.º 1, do Código de Processo Civil) que a permanência do veículo na detenção do comprador e o seu uso continuado determinarão necessariamente o seu desgaste, com a inerente diminuição do valor desse bem (adveniente da sua utilização) e a consequente redução da garantia patrimonial do crédito da requerente, mas não vem alegada qualquer factualidade que, a resultar demonstrada, possa evidenciar com suficiente rigor a existência de uma lesão grave e de impossível ou sequer de difícil reparação (na medida em que nos encontramos perante interesses de índole patrimonial, cuja ofensa é quantificável e ressarcível,) tendo presente que está em causa um singelo direito de crédito da requerente e não o seu direito de propriedade sobre a viatura cuja entrega peticiona (a qual não é sua, nem tendo a mesma inscrita no registo, a seu favor, reserva de propriedade válida). XXX – Acresce que a Requerente nem sequer alegou factos que materializem a impossibilidade ou dificuldade de obter do requerido a reparação da lesão do seu direito (de crédito), não invocando, por exemplo, que este não tem bens móveis ou imóveis ou rendimentos no seu património ou que, tendo esses bens, vem praticando concretos actos que visem a sua diminuição, dissipação ou alienação. XXXI - Conclui-se, assim, que o alegado circunstancialismo desprovido da invocação de outros factos que motivem as concretas consequências da descrita situação lesiva e da sua continuação ou reiteração não consubstancia objectivamente e de forma razoável a existência de um risco de lesão grave e de difícil ou impossível reparação, pelo que, se conclui que não foi invocada factualidade que permitisse ao Tribunal vir a considerar suficientemente fundada a existência do perigo de lesão grave e de difícil reparação do seu direito, e, consequentemente, que permitisse julgar verificado o enunciado pressuposto do periculum in mora, não tendo, neste particular, sido cumprido o ónus de alegação que sobre a Requerente impendia, de concretizar em factos a fundada existência de lesão grave e irreparável do seu direito. XXXII - Sendo manifesta e inevitável a improcedência deste procedimento cautelar, o que justifica o seu indeferimento liminar. * Raciocínio claro, escorreito, pragmático e sem “ruído”, estando juridicamente particularmente bem fundamentado. Resta saber se também com razão. A Requerente-Recorrente entende que não e, basicamente, afirma a necessidade da interpretação actualista do regime do Decreto-Lei n.º 54/75. Mas a sua pretensão e o seu entendimento estão condenados ao insucesso, como decorre da própria decisão recorrida, cujo percurso argumentativo acabámos de percorrer. Por outro lado, está em causa uma questão comum há largos anos nos Tribunais portugueses e que tem gerado assinalável controvérsia (aliás visível no próprio Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30 de Setembro de 2014 (Processo n.º 844/09.8TVLSB.L1.S1-Maria Clara Sottomayor), citado pela Recorrente[3], tem um voto de vencido[4]… E o exposto no Acórdão da Relação de Lisboa de 07 de Dezembro de 2023 (Processo n.º 2883/23.7T8OER-A.L1-2-António Moreira) merece destaque pela exaustividade e acerto na argumentação, que transcrevemos sem rebuço e com a devida vénia[5]: - concorda-se “os fundamentos expressos na decisão recorrida para indeferir liminarmente o requerimento inicial, especialmente quanto ao afastamento da necessidade da interpretação actualista do D.L. 54/75, de 12/2”; - “para além do argumento aí apresentado, no sentido da entidade mutuante não estar desprotegida, já que sempre lhe era permitido recorrer à constituição de hipoteca sobre o veículo automóvel cuja aquisição é financiada (e sendo que o “acesso” a tal instrumento jurídico de garantia decorre claramente do disposto no art.º 4º do D.L. 54/75, de 12/2), importa salientar que as afirmações constantes do referido acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30/9/2014 (…), quer no sentido de que “a cláusula de reserva da propriedade mais não é, afinal, do que uma resposta às necessidades de adaptação da ordem jurídica ao tráfico negocial, o qual evoluiu muito, ao nível da circulação de bens e do acesso ao crédito, desde a data em que foi elaborado o Código Civil”, quer no sentido de que “a utilização da reserva de propriedade a favor do financiador resulta da evolução socioeconómica e representa a resposta do sistema a novas necessidades do comércio jurídico, devido à insuficiência do modelo tradicional de garantias do crédito, sobretudo das garantias reais”, não reflectem a realidade nem decorrem de qualquer factualidade verificada, ainda que sob a forma de factos públicos e notórios. Com efeito, afirmar que o tráfico negocial evoluiu ao nível da circulação de bens e do acesso ao crédito mais não representa que o reconhecimento que institutos negociais históricos e sedimentados, como a compra e venda ou como o mútuo, continuam a ser utilizados como antes da entrada em vigor do Código Civil de 1966 (e já assim eram utilizados no domínio do Código de Seabra). Que é o mesmo que afirmar que carecem apenas de ser aplicados tendo em atenção “as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada” (conforme dispõe o nº 1 do art.º 9º do Código Civil), mas já não com recurso a uma interpretação que vai além da sua letra e espírito”; - “Do mesmo modo, afirmar que a utilização do instituto da reserva de propriedade como meio de garantia do financiador é a resposta do sistema à insuficiência do modelo tradicional de garantias reais é esquecer a existência do instituto da hipoteca, seu alcance e modo de exercício. É que a menção feita no D.L. 54/75, de 12/2, ao “crédito hipotecário” (nº 1 do art.º 15º) e ao “vencimento do crédito” (nº 1 do art.º 16º) é quanto basta para concluir que o sistema apresenta uma resposta adequada e eficaz às necessidades de garantia do mutuante financiador de aquisições de veículos automóveis, através da faculdade de recurso à mais tradicional das garantias, como é a hipoteca”; - “quanto ao afirmado “resultado insólito” (porque contrário ao fim visado pelo legislador), que consiste na circunstância da propriedade se transferir “para o comprador, no momento do pagamento pelo terceiro [o mutuante], adquirindo aquele [o comprador] a propriedade plena sem ter pago o preço”, assim seria se o preço (entendido o mesmo como a contrapartida pecuniária da entrega da coisa vendida) não estivesse satisfeito na sua totalidade ao vendedor. Mas é exactamente porque o bem é entregue pelo vendedor ao comprador, do mesmo passo que este providencia pela satisfação integral da obrigação de pagamento do preço (ainda que com recurso à quantia emprestada pelo mutuante) que não há que falar em qualquer resultado não querido pelo legislador, mas apenas e tão só aos efeitos típicos do contrato de compra e venda”; - o “Supremo Tribunal de Justiça vem repetidamente afastando a referida interpretação actualista, rejeitando que assista à entidade financiadora o direito à apreensão do veículo a que se destinou o financiamento, e relativamente ao qual é titular do registo da reserva de propriedade”: - acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12/5/2005 (relatado por Araújo Barros) onde ficou a constar do sumário que: “1. Só o vendedor de um veículo automóvel a prestações, com reserva de propriedade, que é titular do respectivo registo, detém legitimidade para requerer, em processo cautelar, a apreensão do veículo. 2. Se o alienante do veículo e a financiadora da respectiva aquisição forem pessoas diferentes, não pode esta última, ainda que em associação com aquela, instaurar providência cautelar destinada à apreensão do veículo vendido. 3. A apreensão de veículo automóvel constitui uma providência que, no que concerne ao contrato de compra e venda com reserva de propriedade, visa antecipar o efeito da resolução do contrato, sendo, sempre, dependente ou instrumental da competente acção de resolução. 4. Se o vendedor, com reserva de propriedade e titular do respectivo registo, não pode intentar a acção de que depende a providência, que é a acção de resolução cujo direito lhe assistiria, na medida em que não é credora do preço do veículo, que lhe foi pago, é manifesta a inviabilidade (improcedência) do procedimento cautelar de apreensão, que deve ser indeferido por faltar o nexo de instrumentalidade em relação à acção principal”; - “acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2/10/2007 (relatado por Fonseca Ramos,(…)) ficou a constar do respectivo sumário que: “I) - Os artigos 15º, 16º, e 18º, do Decreto-Lei nº54/75, de 12.2 – procedimento cautelar de apreensão de veículos automóveis – têm o seu campo de aplicação em caso de incumprimento das obrigações do contrato de compra e venda por parte do comprador, havendo cláusula de reserva de propriedade. II) – Tal regime jurídico impede que o financiador da aquisição dele beneficie, invocando ter-lhe sido cedida pelo alienante do veículo automóvel a cláusula de reserva de propriedade. III) – Em caso de incumprimento do contrato de mútuo, não pode quem financiou a aquisição requerer aquele procedimento cautelar, nem prevalecer-se da cláusula de reserva de propriedade – art.º 409º do Código Civil. IV) A interpretação actualista tem de partir do texto da lei, só sendo legítimo estender o seu campo de aplicação, se de tal interpretação resultar um desfecho compatível com o sistema jurídico enquanto unidade, e não for afrontado o regime jurídico dos institutos com que contende, sob pena de, a coberto de uma interpretação postulada pela essoutra realidade social que a convoca, se tornar arbitrária a interpretação da lei, ferindo, assim, a certeza e a segurança jurídicas, valores caros ao Direito”. - “acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16/9/2008 (relatado por Alberto Sobrinho (…)) ficou a constar do respectivo sumário que: “1. A cláusula de reserva de propriedade constitui excepção à regra de que a transferência de direitos reais sobre coisas determinadas se dá por mero efeito do contrato -nº 2 do art.º 408º C.Civil. Mediante esta cláusula, consistente na possibilidade do transmitente reservar para si a propriedade da coisa (art.º 409º C.Civil), a transferência do direito para a esfera do adquirente só se verificará após o pagamento do preço ou depois de preenchido o evento a que as partes a subordinaram. O efeito real do contrato fica dependente de uma condição suspensiva. 2. O Dec-Lei 54/75 não previa aquelas situações que as novas realidades económico-financeiras e do crédito ao consumo colocaram. Foi arquitectado para conferir apenas ao vendedor a possibilidade de apreensão do veículo, já que a propriedade lhe continua a pertencer até ao pagamento integral do preço. Mas mesmo numa interpretação actualista não se pode omitir o texto da lei e apenas há que ajustar o sentido da norma à evolução sócio-jurídica do ordenamento em que se integra, sem violação dos princípios imanentes a esse mesmo ordenamento. 3. O regime específico de apreensão de veículos automóveis apenas convive com o princípio de que essa faculdade radica na esfera do vendedor com reserva de propriedade e já não com a entidade financiadora, mesmo que lhe tenha sido transmitida a titularidade dessa reserva. Aliás, não seria compatível esta faculdade com a instauração da acção, a propor obrigatoriamente pela financiadora, para resolução do contrato de alienação, sendo que apreensão do veículo integra precisamente o primeiro passo no caminho da resolução desse contrato. 4. São realidades distintas e de efeitos diferentes o contrato de alienação com reserva de propriedade, que implica a transferência, sob condição suspensiva, da propriedade do veículo, e o contrato de mútuo que produz apenas a transferência para o mutuário da quantia entregue e em que a sua resolução implica o vencimento das prestações convencionadas, mas já não a restituição do veículo. Por isso, a expressão outro evento referida no nº l do art.º 409º C.Civil tem de se reportar a um acontecimento que, para além de ter uma ligação directa com o contrato de alienação, se contenha dentro do objectivo e das finalidades próprias desse específico contrato”; - acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 31/3/2011 (relatado por Álvaro Rodrigues (…)) ficou a constar do respectivo sumário que: “I- Só quando o vendedor do bem em prestações (alienante) é simultaneamente o financiador da sua aquisição por outrem faz sentido que no respectivo contrato de crédito ou mútuo se inclua e mencione a cláusula da reserva de propriedade, se acordada pelos contraentes. De contrário, se não é o proprietário do bem que vende, nada poderá transmitir (“nemo plus iuris ad alium transferre postest quam ipse habet”), e também, por nada ter e nada poder transmitir, nada poderá reservar sob condição. II- É sempre o efeito de uma aquisição derivada de quem é dono e aliena que permite a este subordinar a transferência do direito de propriedade (que normalmente se dá por simples efeito do contrato – Art.º 408º, nº 1) do bem à verificação da condição suspensiva do pagamento integral do preço, pela inserção da cláusula da reserva de propriedade, que representa para si uma garantia de cumprimento. III- A situação do mutuante/financiador quanto a possíveis garantias do seu crédito, é idêntica, aliás (ressalvadas as diferenças que decorrem de uma mais rápida degradação, tanto do valor dos bens como da sua conservação material), à das entidades bancárias que concedem crédito à habitação; não incluem a seu favor cláusulas de reserva de propriedade nos respectivos contratos de mútuo porque não são as alienantes do imóvel financiado, mas constituem outras garantias do seu crédito, reais ou pessoais (hipoteca, fiança, etc.), que também se podem usar no crédito para aquisição de veículo automóvel – cfr, entre outros, e com mais esclarecida desenvoltura, Fernando de Gravato Morais, in “Contratos de Crédito Ao Consumo”, Almedina, pág. 304-309. IV- Por outro lado, não decorre da aludida conexão de interesses, também só por si, que o mutuante/financiador fique sub-rogado nos direitos do vendedor ou do devedor, pois que a vontade de sub-rogar tem que ser expressa ( art.ºs 589º e 590º, nºs 1 e 2, do CC), e no caso de ser o devedor a sub-rogar o terceiro que lhe emprestou o dinheiro para cumprir o contrato, terá que a declaração além de ser expressa constar do documento do empréstimo ( Art.º 591º, nºs 1 e 2, do CC)”; - “acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12/7/2011 (relatado por Garcia Calejo (…)) ficou a constar do respectivo sumário que: “I - O art.º 409.º, n.º 1, do CC, estabelece a possibilidade do alienante reservar para si a propriedade da coisa, até que o devedor cumpra, total ou parcialmente, as suas obrigações, configurando uma excepção ao princípio geral, segundo o qual, a propriedade da coisa vendida se transfere por mero efeito do contrato (art.º 879.º, al. a), do CC). II - Por força da cláusula de reserva de propriedade, a propriedade da coisa alienada só se transfere no momento em que o comprador cumpra todas as suas obrigações, operando essa cláusula como garantia do adquirente cumprir essas obrigações (normalmente o pagamento do preço). III - A cláusula de reserva de propriedade e a correspondente condição suspensiva, não incide propriamente sobre a essência do contrato de compra e venda, mas tão só sobre o efeito real do contrato, ou seja, sobre a transferência da propriedade da coisa. IV - A disposição constante do art.º 409.º, n.º 1, do CC, apenas permite ao alienante reservar para si a propriedade da coisa e já não ao (eventual) financiador do negócio, o qual, ao conceder ao comprador os meios económicos para realizar o negócio, não intervém no contrato de alienação. V - Suspendendo, a cláusula em questão, somente os efeitos translativos inerentes a um contrato de alienação, só nesse tipo de contrato pode ser estipulada, não sendo válida a cláusula de reserva de propriedade a favor do financiador/mutuante constante do contrato de mútuo, porque legalmente inadmissível, face ao disposto no art.º 409.º, n.º 1, do CC. VI - Sendo nula tal cláusula, nos termos do art.º 294.º do CC, é evidente que não pode produzir o efeito da transferência de propriedade do bem da vendedora para o financiador. VII - A expressão “outro evento”, constante do art.º 409.º, n.º 1, do CC, diz respeito ao próprio contrato de alienação e não a qualquer outro, mesmo que relacionado com ele. VIII - O art.º 6.º, n.º 3, al. f), do DL n.º 359/91, de 21-09 (diploma que estabelece o regime jurídico do crédito ao consumo) nada modifica os contornos da questão, pois o facto de no contrato de crédito para financiamento da aquisição de bens ou serviços dever constar “o acordo sobre a reserva de propriedade”, refere-se, de harmonia com o determinado no art.º 409.º, n.º 1, do CC, ao alienante e não ao financiador/mutuante. IX - Só quando o vendedor do bem em prestações é simultaneamente o financiador da sua aquisição, é que faz sentido e se justifica que no respectivo contrato de crédito se inclua e mencione a cláusula de reserva de propriedade, se acordada pelos contratantes. X - A disposição inserta no art.º 6.º, n.º 3, al. f), do DL n.º 359/91, reporta-se somente a situações em que o vendedor/proprietário mantém essa qualidade, por efeito da reserva, ao mesmo tempo que financia a aquisição através de alguma das formas previstas no art.º 2.º do diploma (diferimento do pagamento, mútuo, utilização de cartões de crédito ou qualquer outro acordo de financiamento semelhante). XI - Do art.º 589.º do CC resulta que a sub-rogação pressupõe o pagamento ao credor por terceiro, dependendo de que aquele expressamente manifeste ao terceiro a vontade no sentido da sub-rogação, que constitui uma forma de transmissão de créditos que coloca o sub-rogado na titularidade do mesmo direito de crédito que pertencia ao primitivo credor (art.º 593.º, n.º 1, do CC). XII - A sub-rogação a favor do mutuante, prevista no art.º 591.º do CC, embora dispense o acordo do credor, exige a declaração expressa, no documento de empréstimo, de sub-rogação feita pelo devedor ao mutuante – cf. n.º 2 daquela disposição legal”. - “Para além da referida jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, que se tem por largamente maioritária, também este Tribunal da Relação de Lisboa tem vindo repetidamente a decidir no mesmo sentido já acima apontado”: - “acórdão de 3/7/2007 (relatado por Rijo Ferreira (…)) ficou a constar do respectivo sumário que: “I. A reserva de propriedade (art.º 409º do CCiv) é exclusiva do alienante, não se aplicando ao financiador; II. Deve ser liminarmente indeferida a providência cautelar de apreensão do veículo e respectivos documentos, requerida pelo financiador que tem inscrita reserva de propriedade a seu favor, por lhe estar vedada a instauração da acção principal de resolução do contrato de alienação”; - “acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa de 15/4/2008 (relatado por Orlando Nascimento(…)) ficou a constar do respectivo sumário que: “1. A reserva de propriedade configura-se como uma autêntica retenção do direito de propriedade, destinada a assegurar o vendedor contra os efeitos da aplicação da regra geral estabelecida no art.º 408.º, n.º 1, do C. P. Civil, qual seja, ficar despido do seu direito de propriedade sem receber a contrapartida, o preço. 2. Esta definição conceptual da figura da reserva de propriedade impede a sua aplicação no âmbito do contrato de mútuo, a favor do mutuante, pela própria natureza do contrato, ainda que consentida pelo mutuário e objecto de cedência, em documento particular, posterior à celebração do contrato de mútuo, assinado pelo vendedor, com reserva de propriedade registada a seu favor, uma vez que este acto - de cedência da reserva de propriedade - se não configura como cessão da posição contratual. 3. O mutuante que, ainda assim, logrou registar a reserva de propriedade a seu favor, não pode fazer uso do procedimento cautelar previsto no art.º 15.º do Dec. Lei n.º 54/75, de 12 de Fevereiro, o qual é dependência da acção de resolução do contrato de compra e venda e não da acção de resolução do contrato de mútuo”; - “acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa de 25/3/2010 (relatado por Carlos de Melo Marinho (…)) ficou a constar do respectivo sumário que: “1. Corresponde, de forma mais adequada e harmónica, à leitura da unidade do sistema jurídico nacional (exigida ao julgador por força do disposto no n.º 1 do art.º 9.º do Código Civil) a conclusão segundo a qual o Direito constituído não admite o pactum reservati dominii nos negócios jurídicos em que não esteja em causa a transmissão do direito real que se reserva, ou seja, nos pactos negociais que não envolvam a sua transferência; 2. Emerge do art.º 409.º, n.º 1, do invocado encadeado normativo que é no exclusivo quadro do processo jurídico de transformação em alheio daquilo que inicialmente é próprio, isto é, no seio de um qualquer contrato de alienação, que se viabiliza a introdução de uma condição suspensiva relativa à translação da propriedade; 3. Não se extraia da datação temporal dos Decretos-Lei n.º 54 e 55/75, de 12 de Fevereiro – que regulam o registo da propriedade automóvel – que o que deles resulta necessite de actualização e adaptação às novas realidades económicas, já que o primeiro foi objecto de onze actualizações ao longo dos anos sem que o legislador tenha procurado clarificar e alargar os contornos da reserva; 4. Não é tecnicamente aceitável a sub-rogação tácita do mutuante na posição jurídica do vendedor nos termos dos art.ºs 589.º e seguintes do Código Civil, desde logo porque o primeiro dos invocados preceitos exige a expressa manifestação da vontade de operar a inerente rotação subjectiva; 5. Não parecem estar envolvidos riscos de denegação de Justiça ou de frustração de direitos por via interpretativa, já que o mutuante continua a ter ao seu dispor amplos e generosos meios de reacção perante o incumprimento do mutuário”; - “acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa de 25/1/2011 (relatado por Luís Lameiras(…)) ficou a constar do respectivo sumário que: “I – O processo cautelar de apreensão de veículo, no que à compra e venda com reserva de propriedade se refere, tem por objectivo preservar a integridade desse bem, em vista à sua restituição ao vendedor, consequente da resolução do contrato (artigos 15º, nº 1, 16º, nº 1, e 18º, nº 1, do DL nº 54/75, de 12 de Fevereiro); II – Ainda que exista contrato de financiamento, e o comprador o haja incumprido, a utilização do mecanismo de apreensão cautelar de veículo apenas é permitida como dependência da acção resolutória do contrato de compra e venda; III – Se o procedimento cautelar for fundado, apenas, na resolução do contrato de financiamento deve ser liminarmente indeferido”; “acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa de 6/12/2011 (relatado por Orlando Nascimento (…)) ficou a constar do respectivo sumário que: “I - Sendo um dos pressupostos de decretamento do procedimento cautelar a simples verosimilhança da existência do direito, que não a certeza jurídica do mesmo, mesmos existindo divergência jurisprudencial sobre a possibilidade de utilização de tal meio processual, pode o tribunal indeferir liminarmente o procedimento, por manifesta improcedência, com fundamento em que o requerente nunca poderá propor a acção de que ele depende. II - A utilização da reserva de propriedade, com eficácia real, para garantia de um direito de crédito ultrapassa os limites da lei, violando o princípio do numerus clausus de restrições aos direitos reais estabelecido pelo art.º 1306.º e o disposto no art.º 409.º, ambos do C. Civil. Nessas circunstâncias, a estipulação da cedência da reserva de propriedade, por não se tratar de uma coisa susceptível de negócio jurídico, em si mesma, é nula, nos termos do art.º 280.º, n.º 1, do C. Civil. III - É nula, por impossibilidade legal e contrariedade à lei, nos termos do art.º 280.º, n.º 1, do C. Civil, a estipulação da reserva de propriedade a favor do vendedor, no âmbito de um contrato de compra e venda de um veículo, até pagamento do preço, nos termos do art.º 409.º do C. Civil, quando o respectivo preço já se encontra pago aquando dessa estipulação. IV - A presunção registral estabelecida pelo art.º 7.º do C. R. Predial é elidida quando se sabe que o titular activo da reserva de propriedade não tem e nunca teve a propriedade do veículo em causa e que, quando foi registada a reserva de propriedade a favor do vendedor, já a obrigação do comprador se encontrava cumprida. V - A sub-rogação, por declaração do devedor, nos termos do art.º 591.º do C. Civil, não é meio adequado para operar a transmissão da reserva de propriedade, inicialmente constituída a favor do vendedor do veículo, para o mutuante da quantia destinada ao pagamento do preço, por se tratar de um instrumento de transmissão de créditos, alheio à constituição e transferência da reserva de propriedade, que é uma restrição ao direito real de propriedade. VI - O procedimento cautelar, previsto no art.º 15.º, n.º 1 do Dec. lei n.º 54/75 de 12/ de Fevereiro, sendo dependente da acção declarativa de resolução do contrato de alienação com reserva de propriedade, não é o meio processual próprio para requerer a apreensão do veículo com fundamento no incumprimento do contrato de mútuo. Para este efeito existem os meios processuais adequados, não existindo qualquer lacuna na lei processual a tal respeito, não fazendo sentido falar-se em interpretação actualista da lei ou em interpretação extensiva, em ordem a justificar a utilização daquele procedimento cautelar”; - “acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa de 13/3/2012 (relatado por Pimentel Marcos (…)) ficou a constar do respectivo sumário que: “I - No contexto económico em que o Decreto-Lei n.º 54/75, de 2 de Fevereiro, foi elaborado, a concessão de crédito para aquisição de veículos automóveis era efectuada através do contrato de venda a prestações com garantia hipotecária ou reserva de propriedade, nos termos do artigo 934º e seguintes do Código Civil, sendo o crédito concedido directamente pelo vendedor ao comprador. II - Sucede, porém, que o incremento do comércio automóvel e a liberalização e especialização na concessão de crédito, mormente a partir dos anos 90, conduziram a que o sistema de crédito directo do vendedor ao comprador fosse ultrapassado pelo sistema de financiamento através das instituições de crédito. III - Após o Decreto-Lei n.º 359/91, de 21 de Setembro (diploma que estabelece o regime jurídico do crédito ao consumo), no campo da venda automóvel começaram a aparecer empresas financiadoras dos consumidores, celebrando com estes, enquanto compradores, contratos de mútuo (financiamento à aquisição de bens de consumo), passando, então, a ser prática corrente o vendedor ceder ao financiador da aquisição a sua posição contratual, particularmente no caso de venda de veículos automóveis a cláusula de reserva de propriedade. IV - O artigo 409.º, n.º 1, do Código Civil, estabelece a possibilidade de o alienante reservar para si a propriedade da coisa, até que o devedor cumpra, total ou parcialmente, as suas obrigações, configurando, assim, uma excepção à regra geral, segundo a qual a propriedade da coisa vendida se transfere por mero efeito do contrato [artigo 879.º, al. a), do CC]. V - Do seu teor literal decorre que só nos contratos de alienação – maxime, nos contratos de compra e venda – é lícita a estipulação da cláusula de reserva de propriedade a favor do alienante. VI - No mesmo sentido apontam os artigos 15º, 18º, 19º e 21º do Decreto-Lei 54/75, de 12 de Fevereiro, dos quais decorre que é pressuposto do recurso à providência cautelar de apreensão neles prevista a existência de um contrato de alienação de veículo, em que tenha sido convencionada a reserva de propriedade, só dela podendo lançar mão o alienante. VII - Suspendendo, a cláusula em questão, somente os efeitos translativos inerentes a um contrato de alienação, só nesse tipo de contrato pode ser estipulada, não sendo válida a cláusula de reserva de propriedade a favor do financiador/mutuante constante do contrato de mútuo, porque legalmente inadmissível, face ao disposto no artigo 409.º, n.º 1, do Código Civil. VIII - O artigo 6.º, n.º 3, al. f), do Decreto-Lei n.º 359/91 não modifica os contornos da questão, pois o facto de no contrato de crédito para financiamento da aquisição de bens ou serviços dever constar “o acordo sobre a reserva de propriedade”, refere-se, de harmonia com o determinado no artigo 409.º, n.º 1, do Código Civil, ao alienante e não ao financiador/mutuante, isto é, diz respeito apenas a situações em que quem financia o pagamento é quem detém o direito de propriedade sobre o bem alienado. IX -A expressão “outro evento”, constante do artigo 409.º, n.º 1, diz respeito ao próprio contrato de alienação e não a qualquer outro, mesmo que relacionado com ele. X - Consequentemente, em caso de incumprimento do contrato de mútuo, quem financiou a aquisição não tem legitimidade para requerer aquele procedimento cautelar nem prevalecer-se da cláusula de reserva de propriedade”; - “acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa de 28/2/2013 (relatado por Ana Azeredo Coelho (…)) ficou a constar do respectivo sumário que: “I) A cláusula de reserva de propriedade apenas tem sentido quando relacionada com a transferência de propriedade. II) A menção legal de que a reserva ocorre até ao cumprimento da obrigação não oferece particular dúvida: cumpridas as obrigações do comprador, consolida-se a transferência de propriedade operada pela compra e venda. III) A previsão legal de que a reserva ocorre até à verificação de «qualquer outro evento» tem de ser entendida no contexto do contrato de alienação, ou seja, de evento relacionado com as vicissitudes desse contrato, que «afecte» o contrato de alienação, não podendo exorbitar do seu âmbito. IV) Esta natureza da reserva da propriedade não é afastada por um mero acto de registo de um acordo que não detenha aquelas necessárias características, sem o que se reservaria a propriedade quem nunca dela foi titular. V) A cláusula de reserva de propriedade a favor do mutuante não proprietário é inútil, porque estando cumpridas as obrigações do comprador a mesma extinguiu-se e não pode ser actuada. VI) A cedência da reserva de propriedade ao mutuante, cumprido o contrato de alienação é nula por impossibilidade do objecto. VII) A interpretação actualista - quer do artigo 409.º, do CC, quer do artigo 18.º, do DL 54/75 - nem se impõe nem é possível. VIII) Não se impõe face a um diploma que sofreu onze intervenções legislativas, a última das quais em Novembro de 2008, sem que o legislador tenha entendido esclarecer a legitimidade do mutuante para a providência prevista. IX) Não é possível por não encontrar apoio na letra da lei nem se reportar a realidades inexistentes à data da sua publicação. X) A liberdade contratual está sujeita a limites quais sejam os do artigo 280.º, do CC, citado, como liminarmente resulta da sua sede legal, o artigo 405.º, n.º 1, do CC. XI) A sub-rogação do mutuante nos direitos do vendedor implicaria que estes existissem, o que não se verifica após o pagamento do preço, suscitando-se o mesmo obstáculo perante uma eventual cessão da posição contratual. XIII) A providência de apreensão de veículo apenas pode ser decretada na dependência actual ou futura de acção de resolução do contrato de alienação, antecipando, nomeadamente, o efeito de resolução da transmissão da propriedade operada pelo contrato de alienação. XIV) As pretensões do mutuante podem ser garantidas pelo instituto da hipoteca e acauteladas nos termos do procedimento cautelar comum, inexistindo lacuna da lei”; - “acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa de 17/12/2015 (relatado por Teresa Pardal (…)) ficou a constar do respectivo sumário que: “- É inválida, por ser contra a lei, a cláusula de reserva de propriedade a favor da mutuante num contrato de mútuo, pois tal cláusula visa proteger o contraente que transmite a propriedade do incumprimento da contraparte e no contrato de mútuo não está em causa a transmissão do direito de propriedade, existindo meios próprios para garantir o crédito do mutuante; - Ao mover-se dentro do princípio da liberdade contratual, as partes têm de atender aos limites impostos pela lei, não podendo, mediante uma reserva de propriedade a favor do mutuante, fixar restrições à tipicidade que vigora no âmbito dos direitos reais”; - “acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa de 19/11/2019 (relatado por Maria Amélia Ribeiro(…)) ficou a constar do respectivo sumário que “em caso de incumprimento do contrato de mútuo, o financiador não pode lançar mão do procedimento cautelar de apreensão de veículo, ao abrigo do Decreto-Lei nº 54/75, de 12.2, nem prevalecer-se da cláusula de reserva de propriedade”. Por outro lado, e recuperando o afirmado no” Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 9/1/2020 (Processo n.º 11755/19.9T8LSB.L1-2-Arlindo Crua[6]) “pode-se afirmar a existência de três posições diferenciadas, relativamente à questão em apreço, que podem ser assim sintetizadas: - A primeira “admite a constituição, ab initio, da cláusula de reserva de propriedade a favor da entidade financiadora do contrato de alienação”; - A segunda “considera que a cláusula de reserva de propriedade só pode ser estipulada a favor do alienante, mas que tal não impede que a reserva possa ser estipulada para garantia do pagamento do crédito do mutuante/financiador, sendo posteriormente transmitida para este, com sub-rogação dele nos direitos do vendedor/alienante”; - A terceira “apenas admite a estipulação de cláusula de reserva de propriedade em benefício do alienante/vendedor, não admitindo a transmissão da mesma cláusula, por parte do alienante/vendedor, por cessão da posição contratual ou por sub-rogação dos seus direitos, para o mutuante/financiador”. Enquanto o acórdão em questão está em linha com a segunda posição, já da resenha jurisprudencial que veio de se fazer pode-se então extrair o conjunto de argumentos que permitem sustentar o decidido na instância recorrida, em linha com a terceira posição”; - “surpreende-se a limitação da aplicação do procedimento cautelar a que respeita o art.º 15º do D.L. 54/75, de 12/2, aos casos em que assista ao titular do registo da reserva de propriedade legitimidade substantiva para intentar a acção de resolução do contrato de compra e venda, nos termos da segunda parte do nº 1 do art.º 18º do diploma em questão”; - “a entidade que financiou o pagamento do preço pelo comprador/mutuário não poderá assumir-se como titular do direito a obter a resolução do contrato de compra e venda, porque a consequência da afirmação judicial desse direito seria a aquisição do direito de propriedade reservado, por uma das formas que não está imperativamente prevista na lei”; - “resulta do nº 1 do art.º 409º do Código Civil que a reserva de propriedade se assume como uma garantia a favor do proprietário alienante, no sentido de condicionar a transmissão do seu direito de propriedade sobre a coisa vendida ao cumprimento integral das obrigações assumidas pelo adquirente no âmbito do contrato de alienação, designadamente a obrigação correspectiva de pagamento do preço. Pelo que nos casos em que inexistem quaisquer obrigações do adquirente para com o alienante, e desde logo a obrigação de pagamento do preço, extinta pelo cumprimento, igualmente se extingue o direito correspondente à reserva de propriedade. E, nessa medida, qualquer convenção no sentido da transmissão do direito em questão a um terceiro revela-se nula, nos termos do nº 1 do art.º 280º do Código Civil, porque se reporta a um objecto legalmente impossível”; - “reportando-se o procedimento cautelar em questão também a situações de créditos hipotecários vencidos e não pagos, e não apenas aos casos de incumprimento de obrigações que originaram a reserva de propriedade, nos termos do art.º 409º, nº 1, do Código Civil, não se pode falar de qualquer circunstância que conduza à desprotecção das entidades financiadoras dos compradores de veículos sujeitos a registo (que seja estranha às mesmas e com a qual não podiam ter contado, ao tempo da concessão do crédito), na medida em que a própria lei prevê para essas entidades financiadoras (e já o prevê desde 1975) o mesmo tipo de protecção que prevê para o vendedor, no caso do clássico contrato de compra e venda a prestações, e bastando que seja (ou tivesse sido) constituída hipoteca sobre o veículo sujeito a registo, tal e qual como sucede no caso dos bens imóveis”; - “qualquer interpretação do art.º 15º do D.L. 54/75, de 12/2, tem de se conter dentro do espírito do sistema, ainda que considerado segundo as condições específicas do tempo em que o regime legal em causa é aplicado, não sendo admissível a invocada interpretação actualista, que o art.º 9º do Código Civil não autoriza”; - “do contrato celebrado entre requerente e requerida consta a afirmação da existência da reserva de propriedade sobre o veículo automóvel vendido pela (…), a favor da requerente. E também é certo que do clausulado do mesmo contrato emerge a declaração da requerida de que conhece e aceita a “transmissão pelo fornecedor a favor do mutuante da reserva de propriedade acordada entre o mutuário e o fornecedor”. Mas como ficou igualmente afirmado no clausulado contratual geral que o valor emprestado pela requerente à requerida era entregue directamente pela requerente à vendedora (e só assim faz sentido a dinâmica do referido financiamento e a invocada conexão entre o contrato de compra e venda e o contrato de mútuo), daí resulta que esta última não podia acordar com a requerida qualquer reserva de propriedade, no âmbito do contrato de compra e venda que celebrou com a mesma, porque essa estipulação só se revelaria válida se estivesse em causa o cumprimento de qualquer obrigação da requerida emergente do contrato de compra e venda, designadamente e desde logo o pagamento do preço (…), integralmente satisfeito pela indicada “entrada inicial” de €(…) e pelo “montante total do crédito” de (…).”; - “verificando-se o pagamento integral do preço e não existindo qualquer outra obrigação da requerida, emergente do contrato de compra e venda, que legitimasse a reserva da propriedade a favor da vendedora (…), qualquer estipulação no sentido da constituição de tal reserva de propriedade é nula, nos termos do nº 1 do art.º 280º do Código Civil. E, nessa medida, inexiste qualquer direito da vendedora (…) à reserva de propriedade que pudesse ter sido validamente transmitido à requerente”. Com relevância para esta matéria, a argumentação é ainda confirmada pelo: - Acórdão da Relação de Lisboa de 27 de Setembro de 2007 (Processo n.º -Pedro de Lima Gonçalves), que sintetiza de forma objectiva e clara que o “mutuante com reserva de propriedade não pode fundadamente requerer a apreensão de veículo nos termos do artigo 21.º do Decreto-Lei n.º 54/75, de 12 de Fevereiro não só porque é nula a cláusula em causa na medida em que contraria disposição imperativa (artigos 294.º e 409.º do Código Civil) como também porque, ainda que válida fosse tal cláusula, a acção de que tal procedimento cautelar depende (artigo 383.º do Código de Processo Civil) é a acção de resolução do contrato de alienação conforme prescreve expressamente o artigo 18.º/1 do Decreto-Lei n.º 54/75 e não a acção tendente a obter o pagamento da quantia mutuada”; - Acórdão da Relação de Lisboa de 17 de Julho de 2008 (Processo n.º 6158/2008-7-Rosa Ribeiro Coelho), onde se afirma que: - “A reserva de propriedade a favor do mutuante, para garantia do cumprimento das obrigações do mutuário, também adquirente do bem, apenas pode ser constituída pelo vendedor”, não podendo “ser validamente convencionada no contrato de mútuo onde apenas intervêm os que nele assumem as posições de mutuante e mutuário”; - “A apreensão de veículo automóvel e dos seus documentos é um procedimento cautelar específico, instituído nos arts. 15º, nº1 e 16º, nº1 do Dec. Lei nº 54/75, de 12.2, para os casos em que esteja vencido e não pago o crédito hipotecário que sobre ele incida ou em que haja falta de cumprimento das obrigações que originaram a reserva de propriedade convencionada na sua venda”, sendo certo que, tal “procedimento é, como resulta do art.º 18º do mesmo diploma legal, dependência da acção de resolução do contrato de alienação do veículo”, pelo que não “pode ser usado, por falta do necessário nexo de instrumentalidade, se for dependente da acção de resolução do contrato de financiamento outorgado pelas partes”; - Acórdão de 18 de Dezembro de 2008 (Processo n.º 3888/07.0TVLSB-A.C1-Jaime Ferreira), onde se referiu que a providência regulada pelo Decreto-Lei n.º 54/75, “é dependência de uma causa, que tenha por fundamento o direito acautelado – art.º 383º, nº 1, CPC –, causa essa que deve ter por objecto a resolução do contrato de alienação, conforme muito claramente resulta do art.º 18º, nºs 1, 2ª parte, e 3”, pelo que este “procedimento cautelar apenas pode ser usada pelo alienante que tenha a seu favor uma garantia de reserva de propriedade, pois só este tem legitimidade para pedir a resolução do contrato de alienação – artºs 874º e segs. do C. Civ., designadamente o art.º 934º, conjugados com o art.º 409º, nº 1, do C.C” (donde, só “o vendedor de um veículo automóvel a prestações, com reserva de propriedade, que é titular do respectivo registo, detém legitimidade para requerer, em processo cautelar, a apreensão do veículo” sendo que se “o alienante do veículo e a financiadora da respectiva aquisição forem pessoas diferentes, não pode esta última, ainda que em associação com aquela, instaurar providência cautelar destinada à apreensão do veículo vendido”; - Acórdão da Relação de Coimbra 23 de Junho de 2009 (Processo n.º 2620/08.6TBAGD.C1-Arlindo Oliveira), onde se decidiu que a “providência cautelar de apreensão do veículo automóvel constitui uma providência que, no que concerne ao contrato de compra e venda com reserva de propriedade, visa antecipar o efeito da resolução do contrato de compra e venda, sendo dependente e instrumental da competente acção de resolução do contrato de alienação” e que, por “força das suas especificidades, a providência cautelar de apreensão do veículo automóvel só é possível quando o requerente seja o vendedor de um veículo automóvel a prestações, com reserva de propriedade registada a seu favor, estando o recurso à mesma vedada à entidade financiadora”, só fazendo “sentido estipular uma cláusula de reserva de propriedade a favor de quem detém a propriedade sobre um certo e determinado bem, ficando suspensa a favor do respectivo beneficiário a transmissão do bem, o que só se pode verificar em relação ao alienante e não em relação ao mutuário”; - Acórdão da Relação de Évora de 07 de Outubro de 2009 (Processo n.º 324/08.9TBPTG.E1-Eduardo Tenazinha), onde se concluiu que só “quem pode transmitir o direito de propriedade, pode reservar para si esse direito”; - Acórdão da Relação do Porto de 24 de Outubro de 2011 (Processo n.º 1931/11.8TBPRD.P1-Maria Adelaide Domingos), onde se concluiu que é “nula a cláusula aposta no contrato de mútuo por via da qual o mutuante reserve para si a propriedade do veículo cuja aquisição foi financiada através daquele contrato”; - Acórdão da Relação de Coimbra de 04 de Fevereiro de 2012 (Processo n.º 2/09.1TBFVN.C1-Barateiro Martins) onde, depois de se constatar que no “contrato de mútuo, é usual a aposição de uma convenção em que o financiador reserva para si a propriedade da coisa até integral pagamento das prestações do empréstimo pelo consumidor”, se concluiu e decidiu que tal “cláusula é nula por ser contrária a uma norma de natureza imperativa – art.º 409.º do CC”; - Acórdão da Relação de Évora de 25 de Fevereiro de 2015 (Processo n.º 176/14.0TBBJA.E1-Abrantes Mendes), onde se decidiu não ser “válida a cláusula de reserva de propriedade constituída a favor da entidade que financiou a compra efectuada pela requerida a terceiro de um veículo automóvel sobre que incide aquela garantia e, em consequência, só por isso, improcede o pedido de restituição do referido veículo, pois que só nos contratos de alienação será lícito ao vendedor/proprietário clausular a reserva de propriedade”; - Acórdão da Relação do Porto de 08 de Março de 2016 (Processo n.º 2032/14.2TBVNG-C.P1-Luís Cravo), onde se decidiu que, face “ao disposto no art.º 409º, nº 1, do C.Civil, a cláusula de reserva de propriedade suspende, somente os efeitos translativos inerentes a um contrato de alienação, donde, só nesse tipo de contrato pode ser estipulada, não sendo válida uma tal cláusula a favor do financiador/mutuante constante do contrato de mútuo, porque legalmente inadmissível, sendo assim nula tal cláusula, nos termos do art.º 294.º do mesmo C.Civil” e se acrescenta que não “pode falar-se, sem mais, em sub-rogação do mutuante na posição jurídica do vendedor, nos termos dos arts. 589º e segs. do C. Civil, pois a sub-rogação voluntária assenta sempre num contrato, realizado entre o credor e terceiro ou entre o devedor e terceiro, devendo ser, em qualquer caso, expressamente manifestada a vontade de sub-rogar, e exigindo-se, quanto à sub-rogação a favor do terceiro mutuante, que seja feita, no documento do empréstimo, a declaração de que a coisa se destina ao cumprimento da obrigação e que o mutuante fica sub-rogado nos direitos do credor”; - Acórdão da Relação do Porto de 14 de Maio de 2020 (Processo n.º 1497/14.7TBSTS-F.P1-Fernando Baptista de Oliveira), onde, de forma assaz fundamentada, se decidiu que: - no “contrato de mútuo, tendo por finalidade o financiamento de aquisição de um determinado bem, apesar da conexão que possa existir entre os dois contratos, o mutuante/financiador não pode reservar para si o direito de propriedade sobre esse bem, pela simples razão que não é seu titular, sendo juridicamente impossível que alguém reserve um direito de propriedade que não tem”; - apenas “pode reservar para si o direito de propriedade sobre um bem, suspendendo a sua transmissão, quem outorga contrato de alienação do mesmo na posição de alienante, pois só ele é o titular do direito reservado”, de forma que a consideração de uma relação tripolar briga com a essência da previsão legal do artigo 409.º do Código Civil; - não pode vingar aqui, nem: - “a figura da sub-rogação, nomeadamente o disposto nos art.º 589º e 591º CC, pois que tais preceitos têm a ver com a transmissão de créditos, sendo certo que, após o contrato de financiamento, o vendedor não podia transmitir para o mutuante o seu direito, porquanto este já se encontrava extinto pelo pagamento”; - “o recurso ao princípio da liberdade contratual ou autonomia da vontade ínsito no art.º 405º nº 1 do Cód. Civil, pois, como decorre desta disposição, esse princípio não é ilimitado, já que a fixação pelas partes do conteúdo contratual tem como balizas os “limites da lei”, impostos no art.º 280.º do C.C., designadamente a impossibilidade jurídica do seu objecto”; - sendo “legalmente impossível o objecto da estipulação em análise (reserva de propriedade a favor do financiador), a mesma é nula por contrária a uma disposição de natureza imperativa (art.º 280º, nº 1, do Cód Civil)”; - Acórdão da Relação de Lisboa de 09 de Março de 2021 (Processo n.º 3208/19.1T8OER.L1-7-Ana Resende), onde se assinalou que, do “disposto no art.º 409, do CC, decorre que o legislador reportou a aposição da clausula de reserva de propriedade aos contratos de alienação, no pressuposto do domínio do bem com a titularidade da respetiva propriedade” e se concluiu que “carece de validade a cláusula de reserva de propriedade estabelecida a favor do financiador/mutuante”; - Acórdão da Relação de Guimarães de 11 de Maio de 2023 (Processo n.º 1683/23.9T8BRG.G1-Conceição Sampaio), onde – em situação idêntica à dos presentes autos – se concluiu que, face “à natureza e finalidade que a reserva de propriedade assume no nosso ordenamento jurídico, ela só poderá ser convencionada no âmbito de um contrato de alienação, já que a sua característica essencial é a de suspender os efeitos translativos inerentes a tais contratos”, pelo que, em “caso de incumprimento do contrato de mútuo, o financiador não pode prevalecer-se da cláusula de reserva de propriedade, não podendo lançar mão do procedimento cautelar de apreensão de veículo, ao abrigo do Decreto-Lei nº 54/75, de 12.2”; - Acórdão da Relação do Porto de 18 de Outubro de 2023 (Processo n.º 3074/17.1T9PRT-P.P1-William Themudo Gilman), que decidiu que a “cláusula de reserva de propriedade incluída no contrato de financiamento para aquisição dum veículo automóvel a um terceiro celebrado entre o mutuante e o mutuário é nula porque legalmente impossível, nos termos conjugados dos artigos 409º, n.º 1 e 280º, n.º 1 do Código Civil”; - Acórdão da Relação de Lisboa de 11 de Julho de 2024 (Processo n.º 354/23.0T8BRR-C.L1-1-Renata Linhares de Castro) onde se decidiu que a estipulação de “uma reserva de propriedade a favor da entidade mutuante, que não foi alienante (a qual apenas financiou a aquisição desse veículo, sendo que a vendedora nenhuma reserva de propriedade estipulou em seu favor)” “padece de nulidade, porquanto juridicamente impossível (já que o mutuante nunca foi proprietário do veículo, não o tendo vendido, e apenas o alienante pode suspender os efeitos translactivos do bem de que era proprietário)”. - Acórdão da Relação do Porto de 11 de Novembro de 2024 (Processo n.º 310/21.3T8PRD.P2-Fernanda de Almeida), onde se assinalou que se verifica “impossibilidade legal de constituição de reserva de propriedade a favor de quem não é titular de direito de propriedade e, sendo legalmente impossível a reserva de um direito de propriedade de que se não dispõe, uma estipulação nesse sentido é nula (nº1, do art.º 280.º, do CC)” e se acrescenta que, suspendendo “a reserva de propriedade, apenas, os efeitos translativos inerentes a um contrato de alienação, só poderá uma tal reserva ser estipulada nesse contrato, não sendo lícita estipulação do mutuante de reserva, para si, do direito de propriedade sobre o bem no contrato de mútuo que tenha por finalidade o financiamento da aquisição do bem, pese embora a conexão que possa existir entre contratos, pois que aquele dele não é titular”. * É certo que as questões suscitadas neste recurso não são líquidas no ordenamento jurídico nacional, como o demonstra a Apelante ao fazer referência (para além do citado Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30 de Setembro de 2014), aos Acórdãos da Relação de Lisboa de 27 de Junho de 2002 (Processo n.º 0053286-Salvador da Costa), 30 de Maio de 2006 (Processo n.º -), 18 de Março de 2008 (Processo n.º 2647/2008-1-Eurico Reis) e 09 de Março de 2021 (Processo n.º 25212/20.7T8LSB.L1-Conceição Saavedra), e da Relação de Coimbra de 15 de Julho de 2008 (Processo n.º 187/08.4TBAGN.C1-Hélder Roque). Todavia, para além de ser uma posição minoritária, não parece lograr superar a argumentação sólida desenvolvida nos Acórdãos já citados. De facto, para além de não deixar desprotegida a sociedade financiadora (mutuante), uma vez que tem à sua disposição instrumentos jurídicos - como a hipoteca - que própria lei (artigos 4.º, 15.º e 16.º do Decreto-Lei n.º 54/75, artigos 686.º, n.º 1, e 688.º, n.º 1, alínea f), do Código Civil[7]) assume como adequados à sua situação (a constituição de hipoteca sobre o veículo automóvel cuja aquisição financia), sabe a pouco recorrer apenas ao critério da evolução, modernização e criatividade do comércio e à liberdade contratual, como que isso fosse fundamento para… violar a lei, “actualizando-a” e corrigindo-a[8]. Claro que o desenvolvimento económico origina a necessidade de encontrar novos mecanismos de fomento quer da produtividade, quer das vendas (de preferência com custos e riscos menos elevados), quer dos lucros e que isso se faz – fundamentalmente – a coberto da utilização do estruturante princípio da liberdade contratual[9] (cfr., artigo 405.º[10] do Código Civil). Mas isto não permite tudo. Nomeadamente não permite violar a natureza de institutos jurídicos consagrados, como a compra e venda ou a reserva de propriedade (atribuindo-a esta a quem não seja… proprietário), não podendo sobrepor-se a limites quais como o que decorre do artigo 280.º do Código Civil[11]. Como bem se escreve no já citado Acórdão da Relação de Lisboa de 28 de Fevereiro de 2013, “a cláusula de reserva de propriedade, nos termos legais descritos – artigo 409.º, do CC - apenas tem sentido quando relacionada com a transferência de propriedade operada pela compra e venda. Daí constar da previsão do artigo a sua constituição «nos contratos de alienação». Dir-se-ia que a cláusula em causa foi constituída no contrato de alienação do veículo (de que apenas consta a declaração de venda e constituição da reserva), estando assim salvaguardada a previsão daquela norma. Porém, a norma continua estabelecendo que a reserva ocorre «até ao cumprimento total ou parcial das obrigações da outra parte ou até à verificação de qualquer outro evento». A menção ao cumprimento da obrigação não oferece particular dúvida: cumpridas as obrigações do comprador, consolida-se a transferência de propriedade operada pela compra e venda. Mas a lei prevê que a cláusula se mantenha até à ocorrência de «qualquer outro evento». O que sustentaria a possibilidade de ficar subordinada, por exemplo, ao cumprimento do contrato de mútuo conexo. Entendemos que não é assim. Quer se entenda que a reserva tem natureza resolutiva (determinando o facto que a despoleta a resolução do contrato de alienação) quer se defenda que tem natureza suspensiva (determinando o facto a perfeição do negócio), sempre a mesma se encontra ligada às vicissitudes do contrato de alienação, à sua eficácia plena ou à sua resolução. O inominado evento que a poderá despoletar é assim um evento que «afecte» o contrato de alienação porque apenas a afecção deste poderá fazer reverter a propriedade ao alienante. Dir-se-á: a teleologia da cláusula de reserva de propriedade é a de protecção do direito do credor do preço do bem, face à alienação do mesmo pelo devedor/vendedor ou face aos demais credores do vendedor. Razão de ser que encontra a sua sede, quando haja dissociação entre comprador e financiador, na protecção do financiador. A reserva de propriedade seria assim um direito real de garantia que se desligaria do contrato de alienação e “seguiria” o bem. Mas tal redundaria em violação da tipicidade que o artigo 1306.º, do CC, impõe face ao que o artigo 409.º estatui. Refere o STJ em Acórdão de 9 de Outubro de 2008 proferido no processo 3965/07 (uniformização de questão diversa) (Rel. Paulo Sá): «apesar da sua função de garantia de cumprimento de uma obrigação pecuniária, não assume a reserva de propriedade a estrutura de garantia real de cumprimento obrigacional, além do mais, por não fazer parte do respectivo elenco típico (art.º 1306.º, n.º 1, do CC)». De tudo concluímos que o evento a que alude a parte final do artigo 409.º, n.º 1, do CC, não pode exorbitar do âmbito do contrato de alienação. Assim, visto o disposto no artigo 409º, nº 1, do Código Civil, a reserva de propriedade apenas pode ocorrer por parte do alienante da mesma propriedade. Quer se opte por uma natureza de condição resolutiva ou suspensiva da reserva, parece iniludível que ela apenas possa ocorrer a favor do alienante. Esta natureza da reserva da propriedade não pode ser iludida por um mero acto de registo de um acordo que não detenha aquelas necessárias características (pareceria, aliás, que o titular activo da reserva de propriedade apenas poderia ser o titular da inscrição de aquisição imediatamente anterior, sendo sujeito passivo o que dele adquiriu, sem o que se afigura algo distorcido o princípio do trato sucessivo). Caso contrário, as consequências seriam as de se reservar a propriedade quem nunca a adquiriu e de resolver o contrato de alienação quem dele não foi parte. Ou, pior, admitir a resolução desse contrato pela resolução implícita do mútuo com ele conexo e alheio juridicamente à transmissão. Parece-nos que esta tese força a natureza dos institutos jurídicos fazendo-os envergar vestes a essa natureza desadequadas, sem que se veja nenhum especial interesse em que assim aconteça, vista a possibilidade de acautelar os interesses das financiadoras por outros modos mais adequados à garantia do crédito. Como considerar então a cedência da reserva pelo vendedor ao financiador? Cremos que apenas como inútil e nula. Inútil, porque estando cumpridas as obrigações do comprador enquanto parte do contrato de alienação a mesma extinguiu-se e não pode ser actuada. Nula, porque tal retira objecto à cedência, que se torna legalmente impossível preenchendo a previsão do artigo 280.º, do CC”. A esta argumentação acrescemos um critério que em situações deste tipo permite sempre dar alguma luz. Trata-se da concretização (ou operacionalização) daquilo a que Pedro Pais de Vasconcelos chama, na sua “Última Aula”, de “Natureza das Coisas”[12]: para “a operacionalidade do método da “Natureza das Coisas” é necessário por em contacto o dever ser e o ser, mediados pela “Natureza das Coisas”. A mediação entre o ser e o dever-ser deve ser feita a dois níveis, ao nível da legislação – da criação da norma – e ao da concretização – da aplicação da norma aos factos concretos”. É neste último plano que nos situamos in concretu: “Logo na clássica tarefa de interpretar a lei, a Natureza das Coisas intervém, como manda o artigo 9º do Código Civil, na reconstituição do pensamento legislativo a partir do texto, na tomada em consideração da unidade do sistema jurídico, das circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada. Na interpretação da lei, de qualquer lei até da lei constitucional, deve ainda ser chamado a contribuir o modo como, na sua génese, no seu processo legislativo, foi tida em consideração e respeitada a Natureza das Coisas e corrigido, quando não tenha sido suficientemente ou não tenha sido bem tida consideração. Tratar-se-á então de uma interpretação corretiva praeter legis ou mesmo contra legis mas secundum ius”[13]. E o campo das relações socialmente típicas é mesmo um dos campos de funcionamento privilegiado deste tipo de considerações: “Há muitas posições e relações no direito privado que são socialmente típicas” e que “têm, na Natureza das Coisas – enthia moralia – conteúdos de valor – de dever-ser e de dever-agir – que estão estabelecidos e estabilizados, que são típicas na sociedade e na vida, e que transportam consigo uma normatividade própria”, sendo que, “o seu conteúdo não está, nem tem de estar na lei, pelo menos, completamente. Tem de ser concretizado, caso a caso, conforme a situação em que se encontrem (…) de modo a se poder concluir qual é o modo de agir que cada uma das posições-em-relação espera da outra, tem uma expectativa de comportamento da outra, de que a outra se comporte deste modo e não se comporte daquele modo e se esse comportamento merece ser juridicamente protegido pela boa fé”[14]. Ora, este tipo de relacionamento comercial cruzado, entre comprador, vendedor e financiador, por muito que seja inovador e facilitador do comércio jurídico não altera a raiz dos contratos que estão em causa, mas permite a utilização do aludido modelo de verificação da “Natureza das Coisas”. Como dizia Oliveira Ascensão, a “semelhança da situação ou da apresentação faz presumir que o regime jurídico também é semelhante”[15], pelo que, perante “uma incompleição do sistema normativo que contraria o plano deste”[16], importa fazer as necessárias valorações para encontrar a solução adequada: “Podemos fazer a comparação com uma obra de arquitectura. Não dizemos que tudo o que lá não está é lacuna – pode não estar e nenhuma razão haver para estar. Mas pode faltar um bocado – um corpo do edifício, uma varanda, um telhado – que contrarie a própria traça do edifício, e só então dizemos que há lacuna”[17]. No processo de valoração dos factos e do Direito que temos diante de nós nestes autos, a consideração a dar à reserva de propriedade e à utilização pelo financiador (como se fosse o vendedor-alienante da viatura) da providência cautelar prevista no Decreto-Lei n.º 54/75, dariam ao nosso edifício jurídico uma traça desconforme à que resulta do regime da compra e venda, da reserva de propriedade, do sistema legal de garantias e da tipicidade dos direitos reais.. É, pois, entendimento de que o financiador não pode utilizar a providência cautelar em causa, que permite atender à ordem jurídica no seu conjunto. É esse o entendimento que corresponde à “Natureza das Coisas” (ou, se se preferir a já citada fórmula de Henrique Mesquita, à adaptação “aos interesses em jogo, apreciados e valorados à luz das soluções ditadas pelo legislador para os problemas que directa e expressamente se ocupa”). A tudo acresce que não é possível fazer interpretações actualistas que não tenham um mínimo de correspondência com a letra da lei e com as realidades jurídicas em que se inserem: como de forma paradigmática escreveu o Juiz Conselheiro Fonseca Ramos, no acima citado Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 02 de Outubro de 2007, a “interpretação actualista, também ela, tem de partir do texto da lei, só sendo legítimo estender o seu campo de aplicação, se dela resultar um desfecho que se compagine com o sistema jurídico enquanto unidade e o resultado interpretativo não afrontar o regime jurídico dos institutos com que contende, sob pena de, a coberto de uma interpretação postulada pela essoutra realidade social que a convoca, se tornar arbitrária a interpretação da lei, ferindo, assim, a certeza e a segurança jurídicas valores caros ao Direito”. Por tudo o exposto, a conclusão – muito bem fundamentada – a que chegou o Tribunal a quo, não merece qualquer censura, atento o rigor analítico com que aborda e decide todas as questões que tinha de decidir no momento liminar da providência interposta (para além do já exposto, também a ausência da relação necessária entre a providência e a propositura da acção de resolução do contrato de alienação, para a qual, a entidade financiadora não teria legitimidade[18]…) O recurso será, pois, julgado improcedente, confirmando-se a Decisão proferida. *** DECISÃO Com o poder fundado no artigo 202.º, n.ºs 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa, e nos termos do artigo 663.º do Código de Processo Civil, acorda-se, nesta 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, face à argumentação expendida e tendo em conta as disposições legais citadas, em julgar improcedente a apelação e confirmar a Decisão recorrida. * Custas a cargo da Recorrente. Notifique e, oportunamente remeta à 1.ª Instância (artigo 669.º CPC). Lisboa, 26 de Maio de 2025 Edgar Taborda Lopes João Bernardo Peral Novais Alexandra Castro Rocha[19] _______________________________________________________ [1] Por opção do Relator, o Acórdão utilizará a grafia decorrente do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1945 (respeitando nas citações a grafia utilizada pelos/as citados/as). A jurisprudência citada no presente Acórdão, salvo indicação expressa noutro sentido, está acessível em http://www.dgsi.pt/ e/ou em https://jurisprudencia.csm.org.pt/. [2] António Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 6.ª edição Atualizada, Almedina, 2020, página 183. [3] Assim sumariado: “1. A reserva de propriedade é uma figura atípica, de natureza mista, com elementos obrigacionais e reais, a qual, apesar da designação de “propriedade”, não confere ao titular o poder de uso, fruição ou disposição de um verdadeiro proprietário, visando antes assegurar ao vendedor o pagamento do preço. 2. É válida a transferência da propriedade reservada do vendedor para o terceiro mutuante, como garantia do crédito concedido por este ao comprador. 3. A cláusula A das condições gerais do contrato de financiamento, significa, no contexto em que foi proferida, de acordo com os critérios do art.º 236.º, n.º 1 do CC, uma declaração expressa, no documento de empréstimo, de que a coisa se destina ao cumprimento da obrigação e de que o mutuante fica sub-rogado, pelo devedor, nos direitos do credor (art.º 591.º, n.ºs 1 e 2 do CC). 4. O Código Civil, ao remeter, no art.º 9.º, n.º 1, para as “condições específicas do tempo em que a norma é aplicada” aderiu ao actualismo, considerando que é legítimo ao intérprete ter em conta a evolução socioeconómica verificada entre o momento da elaboração da norma e o momento da sua aplicação, transpondo para o condicionalismo actual o juízo de valor feito pelo legislador na norma a interpretar e ajustando o significado da norma à evolução entretanto sofrida”. [4] Do Juiz Conselheiro Moreira Alves, que escreveu que: - “atento o disposto nos Art.ºs 409º nº 1 do C.C. e 5º nº 1 b) do D.L. 54/75, pensamos que só nos contratos de alienação será lícito ao vendedor/proprietário clausular a reserva de propriedade”; - “O contrato de mútuo que a A. celebrou com a Ré, não é, evidentemente, um contrato de alienação e a A. nunca adquiriu a propriedade do veículo em causa, limitando-se a financiar a aquisição”, pelo que “não tendo a A. a qualidade de proprietária do veículo não se vê como possa reservar para si a propriedade de algo que nunca foi seu, e, com base na titularidade da reserva, obter a declaração de propriedade sobre um veículo que nunca lhe pertenceu, conseguindo a sua restituição definitiva, aliás, corolário da qualidade de proprietária”; - “A cláusula, enquanto titulada pela A., afigura-se-nos nula”; - “não se vê que os citados preceitos possam ser interpretados actualísticamente no sentido” da decisão que fez vencimento, “visto que na letra da lei não existe o mínimo de correspondência verbal, no referido sentido, ainda que imperfeitamente expresso (Art.º 9º nº 2 do C.C.)”; - “não parece justificado lançar-se mão de mecanismos jurídicos como o da “alienação da propriedade em garantia” ou da “transmissão da propriedade em garantia” consagrados no direito brasileiro ou alemão, para justificar a licitude da reserva da propriedade a favor da financeira (que não seja, simultaneamente a vendedora), uma vez que tais mecanismos não foram adoptados pelo nosso direito positivo”; - “por muito actualistas que sejam tais concepções, a sua aplicação, traduzir‑se-á na criação de uma nova norma, o que não é função da jurisprudência nem do intérprete”; - “mesmo a admitir-se que na interpretação do Art.º 409º do C.C. caberia a constituição de reserva de propriedade para garantir um critério alheio, tal só significaria que o comprador não adquiriria a propriedade da coisa comprada ao vendedor reservatório, enquanto não pagasse o crédito ao terceiro financiador. Mas não significaria a atribuição ao terceiro da propriedade da coisa, que se manteria na esfera jurídica do vendedor”; - não se vê como a dita propriedade do veículo pudesse ser adquirida pela A. (financeira) por via da cessão ou sub-rogação”, institutos “típicos do direito das obrigações, que não dos direitos reais e, se a dúvida ainda era sustentável face à redacção do Art.º 785º do Código de 1867, o novo Código eliminou-a com toda a clareza, restringindo intencionalmente o objecto da cessão aos créditos”; - “ a aplicação das regras da cessão de créditos a quaisquer outros direitos, consignada no Art.º 588º do C.C., não abrange os direitos reais cuja forma de transmissão e constituição é regulada no Livro das Coisas (Artºs 1316º e seg.)”, pelo que, “por via da cessão de créditos ou sub-rogação, transmitem-se direitos de crédito, não se transmitem nem se constituem direitos reais”; - “não consta dos autos a celebração de qualquer contrato por via do qual a A. (financeira) tenha adquirido à vendedora, a propriedade do veículo em questão, nem consta que tenha adquirido essa propriedade por qualquer outra forma idónea para produzir tal aquisição”, pelo que “não tendo a A. a qualidade de proprietária do veículo, não podia assumir a titularidade da reserva de propriedade e muito menos reivindicar tal propriedade com a consequente entrega definita do veículo”. [5] Acrescentando apenas a inserção dos links para os Acórdãos citados e colocando em itálico os sumários. [6] No qual, maioritariamente, fez vencimento a posição defendida pela ora Recorrente. [7] Tendo ainda disponível o procedimento cautelar comum para promover a apreensão do veículo – artigo 381.º do Código de Processo Civil) [8] Aliás, há que sublinhar que o Decreto-Lei n.º 54/75 vai já na sua 14.ª versão (https://www.pgdlisboa.pt/leis/lei_mostra_articulado.php?nid=598&tabela=leis&ficha=1&pagina=1) - tendo as oito últimas ocorrido desde 2002 -, sem que, sendo conhecidas as divergências jurisprudenciais sobre o assunto, o legislador tenha sentido necessidade de as resolver, simplesmente admitindo que o financiador pudesse também recorrer à utilização desta providência. [9] Este princípio, assinala Enzo Roppo, na actual sociedade de "modernas economias de massas", obrigou a que o contrato deixasse de ser configurado como o "reino da vontade individual (...), para servir o sistema da produção e da distribuição de massa", tornando-se, "tanto quanto possível, autónomo da esfera psicológica e subjectiva em geral do seu autor, insensível ao que nesta se manifesta e sensível sobretudo ao que se manifesta no ambiente social, nas condições objectivas de mercado", de modo a exercer a sua função fundamental no âmbito das economias capitalistas de mercado : isto é, a função de instrumento da liberdade de iniciativa económica" (O Contrato, Almedina, 1988, página 309-310) [10] “1. Dentro dos limites da lei, as partes têm a faculdade de fixar livremente o conteúdo dos contratos, celebrar contratos diferentes dos previstos neste código ou incluir nestes as cláusulas que lhes aprouver. 2. As partes podem ainda reunir no mesmo contrato regras de dois ou mais negócios, total ou parcialmente regulados na lei”. [11] E o vendedor que já recebeu o pagamento não pode transmitir uma reserva de propriedade a um terceiro, porque tal reserva se traduz num objecto legalmente impossível, como decorre do n.º 1 do artigo 280.º do Código Civil, [12] “A Natureza das Coisas recolhe o seu nome na tradicional Rerum Natura e pede-lhe emprestado algum do seu sentido, mas com uma modificação profunda. Não é uma natureza que as pessoas e as coisas tenham de permanente e imutável, determinada pelo Criador na Criação, também não é o presente estado das coisas, seja ele qual for – é algo de mais complexo. Na esteira de Pufendorf, a Natureza das Coisas distingue enthia physica e enthia moralia. Pufendorf diz, de modo expressivo, que os enthia physica são o que Deus fez e os enthia moralia são o que o homem fez. É semelhante. Os enthia physica são as realidades do mundo físico, como diz a expressão, com que o homem contacta e o envolvem, que o condicionam e que o limitam. São as coisas, as pedras, os rios, as aves, as forças da natureza, a sequência dos dias e das noites, as forças cósmicas, etc. Os enthia moralia são as realidades morais e culturais em que as pessoas vivem, os usos, os costumes e as ideologias, a maneiras de viver, as religiões, as éticas e as morais, as estéticas, as ciências, a memória e a história, etc. Tanto os enthia physica como os enthia moralia limitam, influenciam e condicionam a acção humana na vida. O Direito, como disciplina ética que é, realiza-se em comportamentos e ações humanas e, por isso, é também limitado, influenciado e condicionado pelos enthia physica e pelos enthia moralia que constituem a Natureza das Coisas. Esta é a consequência trivial da verdade nada trivial de que o Direito só rege sobre pessoas e só pode o que as pessoas puderem. E assim, é totalmente ineficaz uma lei ou um comando jurídico que revogue a lei da gravidade, que proíba que o quadrado da hipotenusa seja igual à soma do quadrado dos catetos ou revogue a lei da morte ou que ordene a felicidade de todos. É impossível. Não é, já ineficaz, mas é insensata, uma lei ou um comando jurídico que determine o que é perigosos ou imprudente, que decrete, por exemplo, limites de velocidade de circulação na estrada que sejam irrazoáveis, impostos injustos, políticas criminais contraproducentes, qualifique como crimes condutas que não atentem contra o bem comum nem contra a vida em sociedade e que a generalidade das pessoas considera lícitas e aceitáveis. Os enthia physica e os enthia moralia tanto limitam e forçam, como condicionam e influenciam o Direito” – Pedro Pais de Vasconcelos, Última lição-A Natureza das Coisas, Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa - 16 de Maio de 2016, edição do Autor, páginas 8-9. [13] Pedro Pais de Vasconcelos, Última lição…, cit., página 11. [14] Pedro Pais de Vasconcelos, Última lição…, cit., página 17. [15] José de Oliveira Ascensão, O Direito-Introdução e Teoria Geral, 3.ª edição, Fundação Calouste Gulbenkian, 1984, página 323. [16] José de Oliveira Ascensão, O Direito…, cit. página 347. [17] José de Oliveira Ascensão, O Direito…, cit., página 348. [18] A acção principal da providência não poderia ser a acção de resolução do contrato de mútuo por incumprimento… [19] Assinaturas digitais, cujos certificados estão visíveis no canto superior esquerdo da primeira página (artigos 132.º, n.º 2 e 153.º, n.º 1, do Código de Processo Civil e 19.º, n.ºs 1 e 2, e 20.º, alínea b), da Portaria n.º 280/2013, de 26 de Agosto) |