Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
767/22.5GCALM.L1-5
Relator: ANA LÚCIA GORDINHO
Descritores: NULIDADE
FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
VÍCIOS DO ARTº 410º DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
ERRO DE JULGAMENTO
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/20/2025
Votação: UNANIMIDADE COM * DEC VOT
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: I - Só se verifica a nulidade da sentença por violação do disposto no artigo 374.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, se houver uma falta absoluta de tal fundamentação e não uma mera fundamentação deficiente.
II - Os vícios previstos no referido artigo 410.º, n.º 2 devem resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência. A impugnação ampla da decisão da matéria de facto analisa a fundo a apreciação da prova.
III - Para que ocorra um erro de julgamento da matéria de facto sindicável em sede de recurso é preciso que se demonstre que a convicção a que o tribunal de 1.ª instância chegou sobre a veracidade de determinado facto não é plausível face à prova produzida.
IV - O crime de violência doméstica geralmente é consumado através de ações que integram outros tipos de crime (sendo os mais habituais a ofensa à integridade física, a injúria, a ameaça ou até o sequestro), sendo necessário estabelecer quando é que estes deixam de ser autonomizáveis e passam a integrar o crime de violência doméstica.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os Juízes da 5.º Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. Relatório
No processo comum singular n.º 767/22.5GCALM, que corre termos no Juízo Local Criminal de Almada, J2, foi proferida sentença, datada de 19.07.2024, nos termos da qual foi decidido, entre o demais, condenar o recorrente, AA, pela prática, como autor material, de um crime de violência doméstica, pp. pelo artigo 152.º, n.ºs. 1, alíneas a ) e c) e 2 do Código Penal, na pena de dois anos e oito meses de prisão, cuja execução se suspendeu pelo período de três anos, com sujeição a regime de prova, mediante plano a elaborar pela DGRSP que contemple, entre o mais necessário à reinserção do arguido, a obrigação de frequência do Programa para Agressores de Violência Doméstica (PAVD) e obrigação de entregar à ordem dos autos até ao termo do prazo de um ano e seis meses a quantia fixada à assistente a título de indemnização.
Foi, ainda, o arguido condenado, nos termos do disposto no artigo 152.º, n.ºs 4 e 5 do Código Penal, na pena acessória de proibição de contactos pelo período de três anos, determinando-se que o mesmo se abstenha de contactar, por qualquer forma por si ou por entreposta pessoa, com a ofendida e ou de se aproximar da residência da ofendida ou do seu local de trabalho, devendo sempre manter um perímetro nunca inferior a 500 metros, com sujeição a meios de controlo à distância, tudo sem prejuízo dos contactos necessários ao exercício das responsabilidades parentais referente ao filho de ambos, preferencialmente por meios telemáticos.
Também foi julgado parcialmente procedente, por provado, o pedido de indemnização cível e, em consequência, foi condenado o demandado / arguido a pagar à demandante a título de indemnização pelos danos morais sofridos, a quantia de € 2.000,00 (dois mil euros).
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Inconformado com esta decisão, veio AA interpor o presente recurso, apresentado motivações e concluindo do seguinte modo (transcrição):
“A) Por, aliás, Douta Sentença proferida pelo Tribunal a quo em 19.07.2024, foi o Arguido ora Recorrente condenado pela prática como autor material de um Crime de Violência Doméstica, p.p. pelo artigo 152.º, n.ºs. 1, alíneas a) e c) e 2 do Código Penal, na pena de dois anos e oito meses de prisão, cuja execução se suspende pelo período de três anos, 1contado do trânsito em julgado da presente sentença, com sujeição a regime de prova e na pena acessória de proibição de contactos pelo período de três anos, bem como no pagamento de € 2.000,00 a título de indemnização à Ofendida.
B) Tal Sentença levanta aspectos que merecem a discordância do Arguido, e que estão na base da interposição do presente recurso, nomeadamente, factos incorrectamente julgados e provas que impõem decisão diversa, falta de fundamentação da decisão condenatória e exagero, desnecessidade e desproporcionalidade nas penas aplicadas e indemnização cível.
C) Não vai este recurso limitado à questão de se saber se a sentença enferma ou não de nulidades processuais ou de algum dos vícios contemplados no art.º 410.º do CPP que imporiam, como impõem, na óptica do Recorrente, a absolvição do arguido pelos factos que lhe são imputados;
D) Mas essencialmente (embora sem conceder), - se a mesma recorrida sentença fez a melhor ou a mais curial aplicação do direito aos factos assentes, “maxime” se a severa pena de prisão e demais sanções acessórias encontradas para a punição do recorrente foi a mais adequada ao caso concreto e respeitou os ditames consignados no art.º 18.º n.º 2 da C.R.P (princípios da necessidade, proibição do excesso ou proporcionalidade das penas), sendo a adequada e proporcional à defesa do ordenamento jurídico e da medida da culpa;
E) Uma vez que, no limite interpretativo e sempre sem conceder, a escassa prova cfr. supra referenciado e constante dos autos não foi corroborada em sede de audiência de discussão e julgamento por outra prova mais concreta, directa ou mais isenta, palpável e incólume e que sem qualquer rebuço ou dúvida não ultrapassável pudesse ditar (como ditou) um veredicto de condenação tão severa quanto ao aqui recorrente.
F) Para extrair as conclusões e condenação do Arguido, o Tribunal a quo lançou mão do Princípio da Livre Apreciação da Prova, a qual não se confunde, de modo algum, com a apreciação arbitrária da prova, nem tão pouco com a mera impressão gerada pelos diversos meios probatórios no espírito do julgador.
G) A prova livre tem, pois, como pressupostos valorativos, a obediência a critérios da experiência comum e da lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica.
H) Segundo a Douta Sentença recorrida, em sede de audiência de julgamento, o Arguido apenas declarou quanto à sua condição sócio económica tendo exercido o direito ao silêncio quanto aos factos de que se encontra acusado, pese embora as declarações que prestou em sede de instrução criminal, negando no essencial os factos de que se encontra pronunciado e com os quais foi confrontado.
I) As testemunhas de Acusação, bem como a testemunha arrolada no P.I.C., inquiridas em sede de audiência de julgamento, nenhuma presenciou quaisquer factos, daqueles que constam da Acusação Pública, tudo o que sabem foi-lhes transmitido pela Assistente.
J) Aliás, o militar da GNR BB, não viu sequer quaisquer marcas de agressão na Ofendida, caso tivesse visto, teria feito imediatamente a competente reportagem fotográfica.
K) A testemunha arrolada em sede de Pedido de Indemnização Civil, trata-se da vizinha do andar de baixo do prédio habitado pelo casal, sendo pessoa idosa que raramente sai de casa, desde que o Arguido e Ofendida habitam no prédio, nunca ouviu discussões, gritos ou outros barulhos que indiciassem situações de violência, nem sequer nunca viu a Ofendida com quaisquer marcas de agressão.
L) Aliás, esta testemunha descreve-os como um casal que pareciam muito amigos e muito educados.
M) As testemunhas de Defesa inquiridas em sede de audiência de julgamento, foram unânimes em afirmar que o Arguido é uma pessoa calma, tranquila e trabalhadora, nunca tendo visto quaisquer animosidades entre o casal, descrevendo-os como um casal normal.
N) Apenas a Assistente, no fundo, confirma o libelo acusatório.
O) Com base nos depoimentos assim produzidos e na existência de duas versões sobre os mesmos factos, em vez de aplicar-se o Princípio da Presunção da Inocência, previsto no artigo 32º da CRP, conforme se impunha, ao invés, condenou-se o Arguido.
P) Quem acusa tem de provar e se não prova vale o princípio da presunção da inocência, nos termos do art.º 32º, da CRP.
Q) Os presentes autos respeitam a dois incidentes ocorridos entre Arguido e Ofendida em duas datas diferentes, ........2022 e ........2022.
R) Quanto ao primeiro episódio – ........2022 – não existe qualquer prova, para além do veiculado pela Ofendida e uma reportagem fotográfica feita em data posterior à da alegada ocorrência.
S) Quanto ao segundo episódio – ........2022 – não existe qualquer prova para além do veiculado pela Ofendida e das imagens de videovigilância da área de serviço, das quais não decorre qualquer agressão perpetrada pelo Arguido à Ofendida.
T) Neste segundo episódio e em desabono da versão da Ofendida, milita o facto de, segundo as imagens visionadas, era um local público, de muito movimento, viram-se várias pessoas que passaram e pararam junto do carro onde se encontravam o Arguido e a Ofendida e nenhuma demonstrou qualquer reacção que indiciasse que, entre eles, estivesse a ocorrer uma agressão ou qualquer discussão.
U) Ora, se o Arguido estivesse a agredir a Ofendida dentro do carro, segundo as regras da experiência comum, tais pessoas teriam, no mínimo, parado para observar o que estava a acontecer e tal não se verificou.
V) Aliás, das imagens visionadas, verifica-se, sim, a Ofendida a sair do carro e a arremessar algo, parecendo pedras, na direcção do Arguido.
W) A conduta tipificada no Crime de Violência Doméstica é um “estado de agressão permanente”.
X) Ora, dos elementos constantes dos autos articulados com a prova produzida em audiência, salvo melhor opinião, não podem levar à conclusão de que estamos perante a prática de um Crime de Violência Doméstica, cuja ratio legal vai muito mais além das ofensas à integridade física.
Y) O que se exige para a distinguir dos tipos legais que, autonomamente, poderiam integrar os factos, é que a actuação do sujeito seja de tal forma capaz de subjugar a vítima que se torne um “plus” em relação a esses mesmos tipos legais.
Z) Não resultou da descrição das condutas na Douta Acusação Pública, que tivesse sido intenção do Arguido maltratar física e psicologicamente a Ofendida, no sentido de causar-lhe medo e inquietação e lesando-a na sua dignidade pessoal e enquanto mulher.
AA) Até porque em 10 anos de casamento, foram os episódios relatados nos autos os únicos.
BB) Tais episódios, a serem verdadeiros, assumem baixa gravidade, até porque apenas determinaram um período de três dias de doença sem afectação da capacidade para o trabalho em geral, a conduta da Ofendida – ter voltado para casa três semanas após o primeiro episódio e, quando esta saiu definitivamente de casa, o Arguido nunca mais a procurou.
CC) Nunca a Ofendida se sentiu em perigo e parece mesmo, ao longo do processo, ter desvalorizado a alegada conduta do Arguido, culminando no facto de, volvidos cerca de três meses após o segundo episódio, ter entregado o aparelho de teleassistência.
DD) Ao contrário do veiculado na douta sentença recorrida, não existe qualquer contexto de onde se possa extrair que as condutas pontuais descritas tenham tomado tamanho desvalor que leve a considerar que a Ofendida tenha sofrido maus-tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais.
EE) Deverão os factos dados como provados sob os nºs 7, 8, 9 e 22 na sentença recorrida, passar a constar do elenco dos factos não provados.
FF) Para a verificação do Crime de Violência Doméstica não se exija reiteração criminosa, sempre será necessária alguma gravidade das condutas, de modo a justificar, de acordo com a qualificação jurídica descrita na Acusação Pública, a aplicação de uma pena de prisão cujo mínimo legal é elevado.
GG) No crime de Violência Doméstica visa proteger-se a dignidade humana da vítima, a sua saúde física e psíquica, a sua liberdade de determinação, que são brutalmente ofendidas, não apenas através de ofensas, ameaças ou injúrias, mas essencialmente através de um clima de medo, angústia, intranquilidade, insegurança, infelicidade, fragilidade e humilhação.
HH) O que importa saber é se a alegada conduta do Arguido, pelo seu carácter violento ou pela sua configuração global de desrespeito pela pessoa da vítima ou de desejo de prevalência de dominação sobre a mesma, é susceptível de ser classificada como “maus-tratos”. E no caso dos autos, não é!
II) Ora, não se mostrando verificados todos os elementos integradores do Crime de Violência Doméstica, segundo resulta da Lei, a Ofensa à Integridade Física deverá ter prevalência sobre a aplicação do regime legal da violência doméstica, em caso de concurso.
JJ) Existe, portanto, clara e inequivocamente, vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto – art.º 410.º n.º 2 alínea a) do CPP - Do excesso de pronúncia – art.º 379.º 1 - c) do CPP.
KK) Foi cometida, pelo Tribunal a quo, a nulidade de excesso de pronúncia, tendo também sido violado o disposto no art.º 374.º nº 2 do CPP, quanto à deficiência do exame crítico da prova.
LL) O Recorrente deveria, assim, ter sido absolvido do crime por que vinha acusado no libelo acusatório e, na eventualidade de condenação do Arguido, apenas o poderia ter sido por Ofensas à Integridade Física Simples, devendo ter-se feito operar a ALTERAÇÃO DA QUALIFICAÇÃO JURÍDICA que se impunha, o que não aconteceu.
MM) O arguido desconhece os fundamentos da sua condenação, uma vez que o Tribunal a quo não específica, como é sua obrigação, a sua motivação de forma concreta, concisa, objectiva, dos motivos de facto e de direito que levaram à condenação do arguido bem como a indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do Tribunal e condenar o arguido, nos termos do art.º 374º, n.º 2, do C. P. P.
NN) Não se vislumbra de que prova produzida resultaram provados a maioria dos factos elencados na Douta Sentença recorrida.
OO) A sentença recorrida padece de omissão na apreciação crítica da prova, nos termos e para os efeitos do disposto nos art.ºs 374.º, n.º 2 e 379.º, n.º 1, al. a), ambos do Código de Processo Penal.
PP) Quanto à medida da pena, a condenação do Arguido nos exactos moldes em que o foi, é claramente exagerada, atentos os factos apurados, a culpa do agente, à ilicitude, a ausência total de antecedentes criminais, as suas perspectivas de reinserção social.
QQ) Não deveria o Arguido ter sido condenado, uma vez que não praticou factos subsumíveis ao Crime de Violência Doméstica. Apenas se admite embora sem conceder, condenação por prática de Crime de Ofensas à Integridade Física Simples e, nessa senda, atentas as condições pessoais do Arguido, em pena de multa.
RR) Mais, não se compreende o alcance da aplicação da pena acessória de proibição de contactos pelo período de três anos, por um lado, amplamente excessiva, tendo em consideração os factos dados como provados e, por outro lado, desnecessária, uma vez que resultou provado que o Arguido, desde ........2022, nunca mais se aproximou da Ofendida, aliás, nem sabe onde ela se encontra com o filho comum.
SS) Bem como, não se vislumbra o alcance da sujeição a regime de prova mediante plano a elaborar pela DGRSP que comtemple, entre o mais necessário à reinserção do arguido, a obrigação de frequência do Programa para Agressores de Violência Doméstica (PAVD), ministrado por esta entidade.
TT) Quanto à obrigação de entregar à ordem dos autos, até ao termo do prazo de um ano e seis meses, a quantia fixada à assistente a título de indemnização, se também se afigura excessiva e desnecessária, não se sabe se o Arguido poderá cumprir tal obrigação, uma vez que, por motivos de doença oncológica recente, desconhece o mesmo quando e se poderá voltar a trabalhar e obter os mesmos rendimentos do trabalho.
UU) Quanto à decisão proferida em sede de P.I.C., deverá a mesma ser revogada, quer porque o mesmo não praticou o crime pelo qual se encontra acusado e, caso se dê como provada, o que se admite, embora sem conceder, a prática de um crime de ofensas à integridade física simples, o “quantum” indemnizatório é exagerado.
VV) Entende, portanto, o Recorrente que a decisão proferida pelo Tribunal a quo deverá ser substituída por outra que absolva o Recorrente da prática do crime de Violência Doméstica e, consequentemente, julgue improcedente por não provado o P.I.C. deduzido nos autos.
WW) Ou caso decidam Vs. Ex.ªs, Venerandos Desembargadores, pela condenação do Recorrente, apenas se admite, embora sem conceder, na condenação pela prática do crime de ofensas à integridade física Simples e em pena de multa.
Termos em que, Deve o presente Recurso ser julgado procedente, determinando-se, em consequência, a revogação da Douta Sentença recorrida.
Assim se fazendo JUSTIÇA!”
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O recurso foi admitido, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito suspensivo.
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O Ministério Publico respondeu ao recurso, pugnando pela manutenção da decisão recorrida, apresentando as seguintes conclusões:
“1.) Entendemos que os fundamentos que permitiram ao Tribunal decidir pela prova dos factos que constam na acusação não contraditam qualquer regra da lógica, sendo escorreita e de acordo com as regras de experiência comum.
II.) Como é explicita e claramente referido na sentença recorrida, o tribunal a que atendeu, entre outros, ao teor dos autos de notícia, à transcrição de mensagens, às lesões evidenciadas pela ofendida, ao depoimento das testemunhas e da própria ofendida
III.) Do cômputo da prova produzida resulta a confirmação da versão trazida aos autos pela acusação tal como foram explicados os factos pela ofendida, conjugados com o depoimento das testemunhas de acusação, pela bastante prova documental existente e pelas próprias regras de senso comum e experiência de vida concatenadas com a natureza do crime.
IV.) O facto de o recorrente valorar a prova produzida em audiência de julgamento de forma diferente do tribunal à que, não invalida a apreciação feita pelo Mmo. Juiz a qua. O princípio da livre apreciação da prova produzida em audiência de julgamento, permite ao tribunal a que apreciá-la livremente, de acordo com as regras da experiência comum, baseado em critérios lógicos e na sua convicção.
V.) O ficto de as agressões não terem sido presenciadas é comum no crime de violência doméstica, relevando a natureza deste crime, sendo que "a prova, no tipo legal de crime de violência doméstica, não é catalogada, nem os factos, traduzidos em injúrias, ameaças verbais, empurrões e bofetadas, necessitam de qualquer outra prova que as sustente, par além das declarações, consistentes e convincentes da própria vitima (...) pelo que, e julgador pode (e deve) recorrer à prova por presunção judicial "-cfz. Acórdão da Relação de Evora, p. n.º 73/11.0JAPTM.E2, in www.dgsi.pt.
VI.) Os factos praticados, isolados ou reiterados, integrarão o tipo legal de crime de violência doméstica se, apreciados à luz do circunstancialismo concreto da vida familiar e sua repercussão sobre a mesma, transmitirem um quadro de degradação da dignidade de um dos elementos, incompatível com a dignidade e liberdade pessoais inerentes ao ser humano.
VII. Foi o que sucedeu in cau, o arguido e a ofendida viviam juntos, como casal, desde 2012, têm um filho em comum, tendo-se provado nomeadamente que, o arguido dirigiu, em número não concretamente apurado, à ofendida expressões ofensivas (não prestas, não ganhas a suficiente, tu não és nada), que no dia ...-...-2023, em frente ao filho de ambos de 6 anos, a agrediu e lhe tirou os documentos e os do seu filho, tanto assim que a ofendida saiu de casa.
VIII.) A solução punitiva diferenciada do crime base e do crime de violência doméstica resultará do diferente juízo de danosidade social de uma ofensa à integridade física praticada entre dois estranhos (violência interpessoal entre dois estranhos) e a praticada no seio de relações familiares, emocionais ou de coabitação.
IX.) A condenação não é exagerada aproximando-se do limite mínimo legal e visando claramente a reinserção social do arguido.
Face ao exposto, consideramos que andou bem o Tribunal a quo quando decidiu pela condenação do recorrente, AA dado que a sentença ora recorrida não e merecedora de qualquer censura, não sendo violadora de qualquer norma legal.”.
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Remetido o processo a este Tribunal, o Exma. Senhora Procuradora-Geral Adjunta emitiu o seguinte parecer:
“1. Do objeto do recurso.
Inexiste circunstância que obste ao conhecimento do recurso, tempestivamente interposto por quem, para tanto, tem legitimidade e interesse em agir, sendo de manter o regime e efeito fixado nos autos e deve ser julgado em conferência, nos termos do disposto no art.º. 419.º, n.º 3, do Código de Processo Penal.
Vem o presente recurso interposto pelo arguido AA da sentença de 19/07/2024 do Juiz 2 do Juízo Local Criminal de Almada, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, que o condenou:
- a) pela prática, como autora material, de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.ºs. 1, alíneas a ) e c) e 2 do Código Penal na pena de dois anos e oito meses de prisão, cuja execução se suspende pelo período de três anos, contado do trânsito em julgado da presente sentença, com sujeição a regime de prova mediante plano a elaborar pela DGRSP que comtemple, entre o mais necessário à reinserção do arguido, a obrigação de frequência do Programa para Agressores de Violência Doméstica (PAVD), ministrado por esta entidade e à obrigação de entregar à ordem dos autos até ao termo do prazo de um ano e seis meses a quantia fixada à assistente a título de indemnização.
- b) nos termos do disposto no artigo 152.º, n.ºs 4 e 5 do C.P., na pena acessória de proibição de contactos pelo período de três anos determinando-se que o mesmo se abstenha de contactar por qualquer forma por si ou por entreposta pessoa com a ofendida e ou de se aproximar da residência da ofendida ou do seu local de trabalho devendo sempre manter um perímetro nunca inferior a 500 metros, com sujeição a meios de controlo à distância, tudo sem prejuízo dos contactos necessários ao exercício das responsabilidades parentais referente ao filho de ambos preferencialmente por meios telemáticos.
- c) Mais decido julgar parcialmente procedente, por provado, o pedido de indemnização cível e, em consequência, condeno o demandado arguido a pagar à demandante a título de indemnização pelos danos morais sofridos, a quantia de € 2000 (dois mil euros), do demais peticionado se absolve o demandado.
O Ministério Público e a assistente responderam em tempo ao recurso.
2. Delimitação do objeto do recurso.
É pacífico o entendimento de que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que o recorrente extrai da respetiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.
O recorrente sustenta, em síntese, que não foi produzida prova dos factos e do crime pelo qual veio a ser condenado, a não ser as declarações da ofendida CC, motivo pelo qual requer a sua absolvição; subsidiariamente requer a redução da pena e a não aplicação da pena acessória de proibição de contactos com a ofendida por VE, bem como a não sujeição a programa para agressores por violência doméstica (por os entender desnecessários); ou, ainda subsidiariamente, a condenação apenas pela prática de crime de ofensa à integridade física em multa; e ainda a absolvição do PIC.
O objeto do recurso mostra-se assim circunscrito às seguintes questões:
1ª Impugnação sobre a matéria de facto;
2ª Vícios do art.º 410.º e de falta de fundamentação (art.ºs 374.º, n.º 2 e 379.º, n.º1, alínea a), todos do Código de Processo Penal;
3.ª Medida concreta das penas.
3. Posição do Ministério Público.
3.1. Posição do Ministério Público na 1.ª Instância.
O Digno Magistrado do Ministério Público junto da 1.ª Instância respondeu ao recurso apresentado pelo arguido sustentando a improcedência do mesmo.
3.2. Posição do Ministério Público no TRL.
Analisados os fundamentos do recurso, bem como os da sentença recorrida, a qual se encontra devidamente fundamentada, de facto e de direito, acompanhamos a resposta da Digna Magistrada do Ministério Público junto da 1.ª Instância, ao recurso interposto pelo recorrente quando pugna pela improcedência do recurso, conforme melhor se alcança do teor da fundamentação inserta na mesma peça processual para a qual, e por uma questão de economia processual, se remete.
3.2.1. Da impugnação da matéria de facto.
O arguido impugna expressamente os factos dados como provados na sentença recorrida 7, 8, 9 e 22, os quais considera incorretamente julgados, e indica na sua peça recursiva excertos ou passagens de declarações de algumas testemunhas, desgarrados, desinseridas do contexto, sem atender ao conjunto e demais declarações prestadas pelas testemunhas, limitando-se a alegações genéricas e subjetivas acerca da prova, não condizentes com o que foi efetivamente dito pelas mesmas, e sem coincidência com a verdade processual, pelo que não cumpre o requisito de indicação de concretas provas que imponham decisão diversa da recorrida (art.º412.º, n.º 3, alínea b), do CPP).
Pelo que o recurso nesta parte deverá inteiramente improceder.
3.2.2 Da alegada falta de fundamentação (art.º 374.º, n.º 2 e 379.º, n.º 2, al.a), do CPP)
Há que referir que, e como bem se fundamenta no acórdão recorrido, que o tribunal a quo formou a sua convicção na concatenação crítica do conjunto da prova produzida, designadamente a documental, pericial e testemunhal, apreciada de acordo com o seu valor probatório e as regras da experiência, segundo dita o princípio da livre apreciação da prova consagrado no art.º127.º do Código de Processo Penal.
Pelo que se encontra devidamente fundamentada, não merecendo censura.
3.2.3. Quanto ao alegado vício do art.º 410.º, n.º 2, al.a), do CPP
Este vício é um vício evidente e grosseiro que terá que resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, o que claramente não se verifica nem o recorrente alega ou esclarece a que excertos da decisão se refere tal vício.
Pelo que também neste segmento deverá naufragar a pretensão do recorrente, mantendo-se a decisão recorrida.
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Pelo exposto, e salvo o devido e muito respeito por diferente opinião, somos do parecer que o recurso interposto pelo arguido deve ser julgado totalmente improcedente, mantendo-se na íntegra a sentença recorrida”.
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Notificado do parecer do Ministério Público junto deste Tribunal, o recorrente nada veio dizer.
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Colhidos os vistos, o processo foi presente a conferência, por o recurso dever ser aí decidido, de harmonia com o disposto no artigo 419.º, n.º 3, alínea c) do Código de Processo Penal.
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II. Questões a decidir:

Como é pacificamente entendido tanto na doutrina como na jusrisprudência, o âmbito dos recursos é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, que delimitam as questões que o tribunal de recurso tem de apreciar, sem prejuízo das que forem de conhecimento oficioso1.
Atentas as conclusões apresentadas, no caso em análise são as seguintes as questões a decidir por ordem de procedência lógica:
• Da admissibilidade do recurso na parte referente ao pedido de indmenização civil;
• Da nulidade da sentença por falta de apreciação crítica da prova;
• Impugnação da matéria de facto;
• Qualificação jurídica dos factos;
• Adequação das penas impostas.
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III. Com vista à apreciação das questões suscitada, importa ter presente o seguinte teor da sentença proferida:
“Da prova produzida em audiência resultaram provados, com relevância para a decisão da causa, os seguintes factos:
1. O arguido e a ofendida CC viveram como se marido e mulher se tratassem entre data não apurada de 2012 e o dia ... de ... de 2017, data do seu casamento, tendo-se separado em ... de ... de 2022.
2. Do relacionamento entre o arguido e a ofendida CC nasceu um filho, DD, no dia ... de ... de 2015.
3. O agregado familiar do arguido e da ofendida residia na ....
4. Durante o convívio em conjunto, por número de vezes não concretamente apurado, o arguido dirigiu-se à ofendida e disse “Tu tens alguém, tu não fazes as coisas como deve ser, tu não ganhas o suficiente, como pessoa não prestas, tu não és nada”
5. Aquando da pandemia devido à Covid-19, o relacionamento entre o arguido e a ofendida passou a ser pautado por discussões frequentes devido a questões monetárias.
6. No dia ... de ... de 2022, em hora não concretamente apurada cerca das 22h00 na residência comum, na sequência de uma discussão, o arguido colocou as mãos nos ombros da ofendida e com força empurrou-a, fazendo-a cair ao chão.
7. Após, com a ofendida caída no chão, o arguido colocou-se por cima da mesma e desferiu-lhe chapadas na face e na cabeça, sem que a mesma tenha tido a oportunidade de se defender.
8. Ao presenciar o sucedido, o filho de ambos, DD, por várias vezes, pediu ao arguido que parasse de agredir a ofendida e colocou-se entre ambos de modo a impedi-lo de continuar agarrando-se às pernas do arguido para que este largasse à ofendida.
9. Nesse dia o arguido tirou a mala à ofendida, ficando com os documentos do filho de ambos (passaporte e cartão de cidadão) e disse-lhe podes ir embora eu vou ficar com o DD e tu podes desaparecer.
10. Como consequência da conduta do arguido, a ofendida sofreu dores e “equimose de cor amarelada no ombro esquerdo que mede 4.5 cmx2cm”.
11. Sofreu dores na face e na parte esquerda da cabeça.
12. Tais lesões foram causa direta, necessária e adequada de um período de 3 dias de doença, sem afetação da capacidade para o trabalho em geral
13. Nesse dia a ofendida CC abandonou a residência, permanecendo na residência de uma amiga cerca de 3 / 4 semanas
14. Em data não apurada de... de 2022, a ofendida regressou à residência comum e reatou o relacionamento com o arguido.
15. No dia ... de ... de 2022, pelas 09h00, após deixarem o filho na ama, o arguido disse à ofendida que levá-la ao trabalho.
16. No entanto, no trajeto que realizavam, o arguido fez um desvio, imobilizando o veículo no Posto de abastecimento de combustível da ... na ..., na ..., no sentido ....
17. Ali chegado, no interior do seu veículo automóvel, o arguido perguntou à ofendida o que havia denunciado à polícia.
18. Desagradado, o arguido, de modo a retirar-lhe o telemóvel, agarrou com força no braço esquerdo da ofendida e apertou-o.
19. Como consequência da conduta do arguido, a ofendida sofreu “equimoses de cor roxa:
- no 1/3 da face posterior do braço esquerdo, que mede 5cmx2.5cm;
- no 1/3 superior da face externa do braço esquerdo, que mede 2cmx0.5cm;
- no 1/3 médio da face anterior do braço esquerdo, que mede 1cmx1.5cm;
- no 1/3 médio da face anterior do antebraço esquerdo, que mede 2cmx1cm.”
20.Tais lesões foram causa direta, necessária e adequada de um período de 3 dias de doença, sem afetação da capacidade para o trabalho em geral.
21. Nesse dia, a ofendida abandonou a residência e foi residir para a residência de uma amiga, local onde permaneceu até ao dia ... de ... de 2022.
22. Ao agir da forma descrita, o arguido fê-lo com o propósito concretizado de molestar corporal e psicologicamente a ofendida, humilha-la, intimidá-la, levando-a a suportar agressões físicas e psicológicas, faze-la temer pela sua vida e pela sua saúde, tratando-a de forma incompatível com a dignidade humana, bem sabendo que a ofendida era sua mulher e mãe do seu filho menor, e bem sabendo ainda que todas as suas descritas condutas eram adequadas a atingir tais propósitos, o que conseguiu.
23. Mais, ao não se coibir de praticar tais factos no interior da residência da ofendida onde esta se deveria sentir protegida e onde ninguém a pode auxiliar e na presença do seu filho menor de idade, bem sabia o arguido que as suas condutas eram especialmente gravosas e censuráveis.
24.O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo ser penalmente proibido o seu comportamento.
25. O arguido trabalha na … por conta de própria, atividade que desenvolve há cerca de quatro meses, em virtude do que aufere o montante mensal de € 1500, tendo estado no fundo de desemprego durante um ano. O arguido vive sozinho, tem um filho com a ofendida. Paga de renda de casa o montante mensal de € 436. Tem de escolaridade o 11.º ano.
26. Em consequência da actuação do arguido a ofendida sentiu-se humilhada e envergonhada,
27. sofreu dores,
28. temeu e teme pela sua integridade física e do seu filho, bem como pelas consequências que as atitudes do pai a que o seu filho assistiu possam ter na sua pessoa,
30. A ofendida é costureira de profissão, desconhecendo-se a sua concreta condição.
Da prova produzida em audiência não resultaram provados, com relevância para a decisão da causa, os seguintes factos:
a) Por causa da conduta do arguido a ofendida teve de ir viver para fora do país;
b) A ofendida continua a ser difamada.
c) Em consequência da conduta do arguido sofre de depressão.
d) Por se encontrar a residir em Portugal a ofendida isola-se e não tem qualquer alegria de viver.
Motivação da decisão da matéria de facto
O Tribunal fundou a sua convicção numa análise global da prova produzida, ponderada criticamente, à luz das regras da experiência e da livre convicção do julgador (cfr. artigo 127.º do Código de Processo Penal), exceptuando a apreciação da prova pericial analisada nos termos do artigo 163.º do Código Penal.
Assim, atendeu-se ao teor dos autos de notícia de fls. 74 e ss. e 3 e 13-14; aditamentos de fls. 16 e 32, ficha de RVD de Risco Elevado de fls. 8e ss., e de fls. 33 e ss, transcrição de mensagens de fls. 60-82 e quanto às lesões evidenciados pela ofendida ao teor do exame médico de fls. 17-18 e ainda do teor do relatório social junto aos autos.
Quanto à ausência de antecedentes criminais ao teor do último CRC junto aos autos.
O arguido apenas declarou quanto à sua condição sócio económica tendo exercido o silêncio quanto aos factos de que se encontra acusado, pese embora as declarações que prestou em sede de instrução criminal negado no essencial os factos de que se encontra pronunciado e com os quais foi confrontado.
Assim, os factos dados por provados resultaram do depoimento das testemunhas e da ofendida demandante.
A saber.
A assistente CC confirmou a vivencia em conjunto com o arguido e os maus tratos a que foi sujeita por parte deste, sendo que o arguido sempre criou obstáculos em que a ofendida visse a família, impedindo-a de sair de Portugal. A relação degradou-se com o Covid porque havia mais dificuldades com o dinheiro. Quando regressou de ver os seus familiares o arguido foi ao aeroporto buscar e perguntou onde a depoente iria ficar. Foram para casa e uma horas depois bateu na depoente, descrevendo os termos em que o arguido actuou tirando os documentos do filho e dizendo para que esta se fosse embora.
Ficou cerca de duas a três semana fora de casa e depois regressou novamente quando o arguido foi ter consigo ao trabalho, poucos dias depois, o arguido que tinha dito que lhe daria boleia para o trabalho acabou por imobilizar a viatura na estação de combustível onde questionou sobre o que tinha dito à polícia tendo agarrado a ofendida com força e querendo ainda ver o que a mesma tinha no telemóvel.
Mais referiu que num momento de distração do arguido conseguiu sair do carro e ir embora, tendo ido buscar o filho à ama mas o mesmo já ali não se encontrava. Nunca mais voltou para casa e foi observada pelo médico do hospital.
Durante cerca de dois meses e meio não conseguiu ver o filho. Refere que para além da pressão psicológico foi embora com o filho porque precisava de apoio psicológico. Sofreu de dores de cabeça. Receia a proximidade com o arguido por si pelo seu filho.
Já anteriormente o arguido não deixava que a assistente fosse visitar a sua família, dirigindo-lhe expressões, como não trabalha num sítio bom, não recebia o suficiente, que o dinheiro que ganhava não era suficiente, após o nascimento do menino dizia que não era boa mãe, que não sabia fazer as coisas.
Após a separação ainda viveu alguns meses em Portugal, mas devido ao facto de o arguido instrumentalizar o seu filho contra si acabou por se afastar.
Quanto aos factos do dia ... de ... de 2022, conjugadamente com as declarações da assistente, o Tribunal teve em consideração o depoimento da testemunha EE, militar da GNR, que confirmou a deslocação à residência do então casal, tendo constatado que o menino se encontrava apavorado e a ofendida magoada. O menino não queria ficar sem o pai, mas também não queria que a mãe se fosse embora.
Em virtude de se queixar de dores de cabeça foi chamada a ambulância que prestou assistência à ofendida.
Descreveu o que lhe foi descrito na altura pela ofendida, confirmando o teor de fls. 3 a 5 dos autos.
A testemunha FF, agente da PSP, de forma igualmente isenta, segura e credível referiu ter tido apenas esta intervenção com o arguido e a ofendida tendo recebido a queixa que consta dos autos a fl.s 59 a 66 . Procedeu à preservação e recolha de imagens. No dia em que a senhora fez a denúncia tinha marcas e procederam a reportagem fotográfica.
As testemunhas GG e HH referiram ter privado socialmente com o arguido e a ofendida sem que se tenham apercebido de qualquer desentendimento entre ambos ou a ofendida manifestou qualquer desagrado relativamente à conduta do arguido para consigo.
Descreveram o arguido como uma pessoa amistosa, calma e tranquila.
A testemunha II sendo irmão do arguido referiu que se encontravam com bastante frequência e que na sequência desses encontros nunca a ofendida referiu que pretendia divorciar-se do seu irmão. Uma vez houve que a ofendida foi à ... e houve uma discussão entre eles porque a ofendida não foi visitar a mãe do arguido o que gerou uma discussão entre ambos.
A testemunha JJ referiu conhecer o arguido e a ofendida por serem seus vizinhos nunca tendo ouvido qualquer desentendimento entre ambos. Nunca se apercebeu que a ofendida tivesse marcas, por vezes ouvi a senhora a dizer que se ia embora e o arguido a dizer então vai, normalmente a senhora falava mais alto do que o senhor.
Note-se que o Tribunal não deixou de valorar as declarações da assistente por terceiros, designadamente, as testemunhas nunca terem presenciado qualquer agressão física ou verba, pois que o normal é que assim seja, sendo que as declarações da assistente para além de nos terem merecido credibilidade, mostram-se documentadas pelos exames a que foi sujeita e pela visualização das gravações do sistema de videovigilância da bomba de gasolina onde embora não seja visível o interior do veiculo é possível ver movimentos bruscos no seu interior e a ofendida a sair sozinho do interior da viatura, sendo que o arguido reconheceu o seu veículo.
Quanto aos factos não provados, assim os considerou o Tribunal, por sobre eles não ter incidido qualquer elemento de prova confirmando-os”.
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IV. Questão prévia
Da admissibilidade do recurso na parte referente à condenação no pedido cível
O recorrente foi condenado a pagar à demandante a quantia de € 2.000,00, a título de danos não patrimoniais.
Nos termos do artigo 400.º, n.º 2 do Código de Processo Penal “(…) o recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil só é admissível desde que o valor do pedido seja superior à alçada do tribunal recorrido e a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente em valor superior a metade desta alçada”.
Assim, o recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil só é admissível quando o valor do pedido seja superior à alçada do tribunal recorrido (o que ocorre no caso dos autos) e a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente em valor superior a metade desta alçada, o que não acontece no caso dos autos, pois, de acordo com o disposto no artigo 44.º da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto (Lei de Organização do Sistema Judiciário), em matéria cível, a alçada dos tribunais da Relação é de € 30 000,00 (trinta mil euros) e a dos tribunais de primeira instância é de € 5.000,00 (cinco mil euros).
Assim, cingindo-se este segmento do recurso à imposição de uma indemnização civil de valor inferior a metade da alçada do tribunal de primeira instância, o mesmo é inadmissível, e por isso não será apreciado.
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V. Do Mérito do Recurso
V a) Da nulidade da sentença
Defende o recorrente que a sentença proferida é nula, por não se encontrar devidamente fundamentada na parte referente à motivação, não tendo sido feita uma apreciação crítica da prova.
Nos termos do artigo 374.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, são requisitos da sentença, após a elaboração do relatório (n.º 1 do mesmo preceito), a fundamentação, com enumeração dos factos dados provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a convicção da decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.
Como se escreve no Ac. da Relação de Lisboa de 26.04.20232O exame crítico deve consistir na explicitação coerente, lógica e racional do processo de formação da convicção do julgador, devendo traduzir-se na indicação das razões que levaram à formação da sua convicção, isto é, dos motivos pelos quais as diferentes provas foram, ou não, valoradas e em que sentido, nele se explanando ainda os fundamentos que levaram o Tribunal a considerar, ou não, idóneos e credíveis os meios de prova produzidos”.
Deste modo, no exame crítico que se faz da prova é necessário que fique consignado o processo de formação da convicção do julgador, ficando expresso por que motivo determinadas provas foram atendidas, em detrimento de outras, e ainda a explicação dos critérios lógicos ou as regras da experiência comum utilizados na apreciação efetuada.
A inobservância destas exigências acarreta a nulidade da decisão, como determina o artigo 379.º, n.º 1 alínea a) do Código de Processo Penal.
Todavia, tem sido entendimento da jurisprudência que só existe nulidade por violação do disposto no artigo 374.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, se houver uma falta absoluta de tal fundamentação e não uma mera fundamentação deficiente3.
Analisando a motivação acima transcrita verificamos que o tribunal a quo explicou as provas que valorou para formar a sua convicção, fazendo um exame critico das mesmas, dizendo por que acreditou nas declarações da assistente, conjugando-as com os demais meios de prova.
Com efeito, em relação aos factos impugnados pelo recorrente, o tribunal começou por explicar que atendeu às declarações prestadas pela assistente, sendo certo que, em relação aos factos ocorridos em ........2022, conjugou estas declarações com o depoimento da testemunha EE, militar da GNR, que foi chamado “à residência do então casal, tendo constatado que o menino se encontrava apavorado e a ofendida magoada. O menino não queria ficar sem o pai, mas também não queria que a mãe se fosse embora. Em virtude de se queixar de dores de cabeça foi chamada a ambulância que prestou assistência à ofendida. Descreveu o que lhe foi descrito na altura pela ofendida, confirmando o teor de fls. 3 a 5 dos autos”. E considerou, em relação aos factos ocorridos em ........2022, as declarações da assistente e o depoimento da testemunha FF, agente da PSP, que recebeu a queixa e procedeu à preservação e recolha de imagens. Esta testemunha afirmou que, no dia em que a assistente fez a denúncia, tinha marcas de agressão e, por isso, procedeu a reportagem fotográfica.
Mais se referiu que as declarações da assistente “para além de nos terem merecido credibilidade, mostram-se documentadas pelos exames a que foi sujeita e pela visualização das gravações do sistema de videovigilância da bomba de gasolina onde embora não seja visível o interior do veiculo é possível ver movimentos bruscos no seu interior e a ofendida a sair sozinho do interior da viatura, sendo que o arguido reconheceu o seu veículo”.
Daqui decorre que o tribunal recorrido analisou as provas de forma crítica e explicou de forma clara e lógica por que motivo acreditou nas declarações da assistente.
Ora, a ser assim, como é evidente que o é, o tribunal a quo fundamentou devidamente a sua decisão, pelo que não ocorre a invocada nulidade.
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V b) Impugnação da matéria de facto
De acordo com o disposto no artigo 410.º, n.º 1 do Código de Processo Penal “sempre que a lei não restringir a cognição do tribunal ou os respetivos poderes, o recurso pode ter como fundamento quaisquer questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida” e, nos termos do artigo 428.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, “as relações conhecem de facto e de direito”.
O recorrente veio impugnar a matéria de factos, dizendo, no essencial, que os factos descritos nos pontos 7, 8, 9 e 22 deviam ser dados como não provados.
No que se refere a esta temática, há duas formas de impugnar a matéria de facto:
• Através da invocação de vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2 do Código de Processo Penal (impugnação em sentido estrito, a chamada “revista alargada”), sendo que o vício pode resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, tendo por fundamento:
– Insuficiência para a decisão da matéria de facto provada,
– Contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, ou
– Erro notório na apreciação da prova.
• ou mediante a impugnação ampla da matéria de facto, a que se refere o artigo 412.º, n.ºs 3, 4 e 6 do Código de Processo Penal (impugnação em sentido lato).
Quanto à primeira situação - impugnação em sentido estrito - insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão e o erro notório na apreciação da prova -, sendo de conhecimento oficioso, deve resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência, sem recurso a quaisquer provas documentadas, limitando-se a atuação do tribunal de recurso à sua verificação na sentença/acórdão e, não podendo saná-los, à determinação do reenvio, total ou parcial, do processo para novo julgamento (artigo 426.º, n.º 1 do Código de Processo Penal).
Quanto à segunda situação - impugnação em sentido lato -, impõe-se, conforme resulta da do disposto nos n.ºs 3 e 4 do artigo 412.º do Código de Processo Penal, que:
• o recorrente enumere/especifique os pontos de facto que considera incorretamente julgados (artigo 412.º, n.º 3, alínea) do Código de Processo Penal);
• indique as provas que, no seu entendimento, impõem decisão diversa da recorrida, e que especifique, com referência aos suportes técnicos, a prova gravada (alínea b) do mesmo artigo).
• Sendo caso disso, as provas que devem ser renovadas (alínea c) da mesma norma).
O n.º 4 do mesmo preceito legal exige, outrossim, que “quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na ata, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação”.
Estamos perante dois institutos diferentes com natureza e consequências distintas.
Os vícios previstos no referido artigo 410.º, n.º 2 devem resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência. A impugnação ampla da decisão da matéria de facto analisa a fundo a apreciação da prova.
A existência de um dos vícios do referido artigo 410.º demonstra que há algo algum erro na decisão da matéria de facto, mas a circunstância de se não verificar nenhum daqueles vícios não garante que a matéria de facto haja sido bem julgada. O mesmo é dizer que podem não existir vícios previstos no n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal e, no entanto, a prova ter sido mal apreciada.
Estamos em crer que o recorrente pretendeu impugnar a matéria de facto, pois indicou os factos que considera incorretamente julgados e defende que a prova produzida imporia decisão diversa, baseando-se em elementos externos ao texto da sentença.
Para que ocorra um erro de julgamento da matéria de facto sindicável em sede de recurso é preciso que se demonstre que a convicção a que o tribunal de 1.ª instância chegou sobre a veracidade de determinado facto é implausível face às provas.
Todavia, como se escreveu no Ac. da RL de 06.10.20214O recurso da matéria de facto não serve para os sujeitos processuais sobreporem a sua opinião sobre o sentido da prova a uma convicção formada por um tribunal depois de efetuado o exame crítico da mesma e sem o cumprimento cabal do art.º 412º nºs 3, 4 e 6 do CPP, como é o caso do presente não tem sequer aptidão para introduzir seja que alteração for na matéria de facto, apenas porque o Mº.Pº. se insurge contra a interpretação que o Tribunal fez da prova produzida por achar que uma análise concatenada e global de todas as provas disponíveis deveria permitir dar como provados os factos não provados em 1 a 13.
Uma forma genérica de impugnação, além de permitir converter em regra uma exceção, desvirtua completamente o regime do duplo grau de jurisdição da matéria de facto, que se traduz num reexame pontual e parcial da prova, porque restrito aos precisos pontos de facto que o recorrente entende incorretamente julgados e às concretas razões de discordância e prejudica e pode mesmo inviabilizar o exercício legítimo do princípio do contraditório pelos demais sujeitos processuais com interesse juridicamente relevante no desfecho do recurso.
Além disso, se fosse aceite, transferiria para o tribunal de recurso a incumbência de encontrar e selecionar, segundo o seu próprio critério, as específicas passagens das gravações que melhor se adequassem aos interesses do recorrente, ou seja, de fazer conjeturas sobre quais seriam os fundamentos do recurso, o que não é aceitável, porque o tribunal não pode, nem deve substituir-se ao recorrente, no exercício de direitos processuais que só a este incumbem, nos termos da lei, nem deve tentar perscrutar ou interpretar a sua vontade, interferindo, por essa via, com a própria inteligibilidade e concludência das motivações do recurso, logo, com a definição do seu objeto”.
Por conseguinte, de modo algum o recurso da matéria de facto pode destinar-se a postergar o princípio da livre apreciação da prova. A decisão do Tribunal há de ser sempre uma "convicção pessoal — até porque nela desempenham um papel de relevo não só a atividade puramente cognitiva, mas também elementos racionalmente não explicáveis (v. g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova) e mesmo puramente emocionais5.
Importa, ainda, dizer que as indicações exigidas pelos n.ºs 3 e 4 do artigo 412.º do Código de Processo Penal, são imprescindíveis pois delimitam o âmbito da impugnação da matéria de facto e este ónus de impugnação da decisão proferida sobre matéria de facto não pode considerar-se cumprido quando o recorrente se limite de uma forma vaga ou genérica a questionar a bondade da decisão proferida sobre matéria de facto.
Ora, no caso em apreciação o recorrente identifica os pontos que considera incorretamente julgados. Todavia, não faz uma análise global da prova produzida, limita-se a salientar certos depoimentos para com eles tentar descredibilizar o depoimento da assistente.
Todavia, em fase de recurso não é suficiente afirmar-se que houve um ou outro depoimento ou comportamento contrário ao que foi dado como provado ou invocar que ninguém presenciou os factos ou que nunca ninguém presenciou atritos entre o arguido e a vítima, sendo necessário que, partindo desses elementos, o recorrente discuta a demais prova e demonstre que não existe qualquer suporte no raciocínio empreendido pelo Tribunal a quo. O recorrente tem de demonstrar que o raciocínio constante da decisão recorrida não é o correto e que a prova que indicou conjugada com a demais impõe uma decisão diferente, o que manifestamente não foi efetuado.
Acresce que no recurso apresentado o recorrente não invoca a existência de meios de prova que não tivessem sido considerados na sentença recorrida, apenas questiona a avaliação que o tribunal fez daqueles, procurando impor a sua visão dos factos, de modo a que se conclua em sentido diverso ao julgado provado.
Ao analisarmos a sentença dos autos, constatamos que o tribunal recorrido formou a sua convicção sobre os factos e fundamentou o juízo crítico sobre a prova em que suportou tal convicção de acordo com as regras da lógica e da experiência comum. A ser assim, no exame crítico efetuado, o Tribunal recorrido seguiu um processo lógico e racional na apreciação da prova, tendo esta sido apreciada segundo as regras da experiência e da livre apreciação, nos termos do disposto no artigo 127.º do Código de Processo penal.
Por outro lado, o Tribunal da Relação na apreciação do recurso da matéria de facto só deve alterar a decisão proferida pelo tribunal de primeira instância se as provas indicadas pelo recorrente impuserem necessariamente uma decisão diversa da proferida (alínea b) do n.º 3 do citado artigo 412.º do Código de Processo Penal), sendo que tal possibilidade só se verifica se a decisão recorrida padecer de arbitrariedade, ilegalidade ou impossibilidade lógica. O mesmo é dizer que a convicção do julgador só deverá ser modificada se se constatar que a decisão da primeira instância sobre os precisos factos impugnados deveria ter sido diferente, o que pode acontecer quando a convicção se baseou em provas ilegais ou proibidas; quando foram violadas as regras da experiência comum e da lógica; quando foram ignorados os conhecimentos científicos ou inobservadas as regras específicas e princípios vigentes em matéria probatória (designadamente, os princípios da livre apreciação da prova e “in dubio pro reo”); quando foram violadas as normas referentes a validade da prova e sobre a eficácia probatória especial de certos meios de prova (por ex. a confissão, a prova pericial) ou da que emerge de certo tipo de documentos (autênticos e autenticados).
Por isso, a jurisprudência tem entendido que se a convicção a que chegou o Tribunal a quo ainda puder ser plausível de acordo com essas mesmas regras e a versão que o recorrente apresenta é meramente alternativa e igualmente possível, então, deverá manter-se a opção do julgador que beneficiou do princípio da oralidade e da imediação da prova.
Assim, a reapreciação da prova só determinará a alteração da matéria de facto quando se concluir que as provas impõem uma decisão diversa, negando-se tal alteração quando a reapreciação apenas permita uma decisão diferente da proferida. Se a decisão de facto impugnada se mostrar devidamente fundamentada e se apresenta como uma das possíveis soluções face às regras da experiência comum, deve a mesma prevalecer.
Tudo que temos vindo a dizer é suficiente para concluir que o recorrente apenas apresenta a sua versão dos factos, não fazendo uma análise critica dos meios de prova idónea a alterar a factualidade dada como assente na primeira instância.
Por isso, a pretensão do recorrente não pode vingar.
Não obstante o que temos vindo a escrever, diremos, ainda, que o arguido não colocou em causa o facto descrito no ponto 4., ou seja, que “Durante o convívio em conjunto, por número de vezes não concretamente apurado, o arguido dirigiu-se à ofendida e disse “Tu tens alguém, tu não fazes as coisas como deve ser, tú não ganhas o suficiente, como pessoa não prestas , tú não és nada”.
E ignorou, relativamente aos factos ocorridos no dia ........2022, que foi encontrada no corpo da assistente “equimose de cor amarelada no ombro esquerdo que mede 4.5 cmx2cm”, ou seja, compatível com a agressão que alegou ter sido vítima, como sofreu 3 dias de doença. Ignorou também que a testemunha EE, militar da GNR, confirmou a deslocação à residência do então casal, tendo constatado que o filho do casal se encontrava apavorado e a ofendida magoada e que pelo facto de a assistente se queixar de dores de cabeça foi chamada a ambulância, tendo-lhe sido prestada assistência médica.
Ora, estes factos indiscutivelmente corroboram a versão dos factos trazida pela assistente.
Já relativamente aos factos ocorridos em ... de ... de 2022, o arguido também ignorou as lesões encontradas na assistente, clinicamente comprovadas, e que a testemunha FF, agente da PSP, visualizou tais marcas de agressão e as documentou nos autos. Estes factos ocorreram no interior do veículo automóvel, pelo que é normal que outras pessoas que circulavam na bomba de gasolina não se tenham apercebido das agressões.
Em suma, sabendo nós que neste tipo de criminalidade, por regra, não há testemunhas dos factos, é totalmente irrelevante que as testemunhas indicadas no recurso não tenham presenciado os factos, e, por isso, tem o julgador de se socorrer de outros meios de prova para formar a sua convicção.
Assim, bem andou o tribunal recorrido ao concluir que “Note-se que o Tribunal não deixou de valorar as declarações da assistente por terceiros, designadamente, as testemunhas nunca terem presenciado qualquer agressão física ou verbal, pois que o normal é que assim seja, sendo que as declarações da assistente para além de nos terem merecido credibilidade, mostram-se documentadas pelos exames a que foi sujeita e pela visualização das gravações do sistema de videovigilância da bomba de gasolina onde embora não seja visível o interior do veiculo é possível ver movimentos bruscos no seu interior e a ofendida a sair sozinho do interior da viatura, sendo que o arguido reconheceu o seu veículo”.
Em suma, o tribunal a quo fez um exame crítico da prova, seguiu um processo lógico e racional na apreciação da mesma, segundo as regras da experiência e da livre apreciação, nos termos do disposto no artigo 127.º do Código de Processo penal.
Aqui chegados, concluímos que a decisão recorrida não merece censura, o que nos leva também a concluir que a dúvida quanto aos factos só existiu para o arguido e não para o julgador.
Assim, não há lugar à aplicação do princípio in dubio pro reo, que tem efetiva relevância e aplicação no domínio da apreciação da prova. Porém, apenas será de aplicar quando o julgador, finda a produção de prova, tenha ficado com uma dúvida não ultrapassável relativamente a factos relevantes, devendo, apenas nesse caso, decidir a favor do arguido.
No caso concreto, não resulta da sentença proferido que o julgador tenha ficado com qualquer dúvida, nem nós a temos, quanto à ocorrência de qualquer facto relevante e que nesse estado de dúvida tenha decidido contra o arguido/recorrente.
Improcede, assim, também nesta parte o recurso interposto pelo arguido.
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V c) Da qualificação jurídica dos factos
Sustenta o recorrente que os factos dados como provados não integram o tipo legal do crime de violência doméstica de que vinha acusado, pelo que devia ter sido absolvido (o que não se confunde com a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, como parece acontecer no recurso em apreciação, pois esta só ocorre quando existe uma lacuna no apuramento da matéria de facto necessária para a decisão de direito – artigo 410.º, n.º 2, alínea a) do Código de Processo Penal).
Defende o recorrente que, mantendo-se a matéria de facto, os factos integram a prática de dois crimes de ofensa à integridade física simples.
Vejamos.
A Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência contra as Mulheres e a Violência Doméstica, adotada em Istambul, a 11 de maio de 2011 (ratificada por Portugal em 2013), no seu artigo 3.º, alínea b) estabelece que, para os respetivos efeitos, «Violência doméstica» abrange todos os atos de violência física, sexual, psicológica ou económica que ocorrem na família ou na unidade doméstica, ou entre cônjuges ou ex-cônjuges, ou entre companheiros ou ex-companheiros, quer o agressor coabite ou tenha coabitado, ou não, com a vítima.
Nos termos do artigo 152.º do Código Penal, pelo qual o recorrente foi condenado:
“1- Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade, ofensas sexuais ou impedir o acesso ou fruição aos recursos económicos e patrimoniais próprios ou comuns:
a. Ao cônjuge ou ex-cônjuge;
(…) c) A progenitor de descendente comum em 1.º grau; +
(…) é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.
2 - No caso previsto no número anterior, se o agente:
a. Praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima;
(…) é punido com pena de prisão de dois a cinco anos”.
O crime de violência doméstica foi introduzido no Código Penal pela Lei 59/2007, de 04.09, agora a par do crime de maus tratos (artigo 152.º - A do Código Penal).
A crescente proliferação dos fenómenos de violência ocorridos no seio familiar, suscetíveis de acarretarem consigo sérias consequências para a saúde física e psíquica e/ou para o desenvolvimento harmonioso da personalidade ou para o bem-estar e dignidade pessoal da vítima, tem vindo, ao longo dos anos, a suscitar uma cada vez maior preocupação e consciencialização ético social.
Assim, o tipo legal foi criado na sequência da consciencialização de que no seio da família existem frequentemente situações violentas, ao arrepio dos valores inerentes a tal instituição num Estado de Direito (cf. artigos 13.º e 67.º da Constituição da República Portuguesa). Nas palavras de Taipa de Carvalho, a incriminação destas condutas foi o “resultado da progressiva consciencialização da gravidade destes comportamentos e de que a família, a escola, e a fábrica não mais podiam constituir feudos sagrados, onde o Direito Penal se tinha de abster de intervir6.
Tais preocupações suscitaram, inclusivamente, sucessivas alterações legislativas ao nível deste tipo de crime. Repare-se que, ao contrário do que acontecia na versão originária do Código Penal de 1982 (artigo 153.º), deixou de ser elemento constitutivo deste tipo de crime “a malvadez ou egoísmo”. Ou seja, com a redação introduzida pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de março, deixou de se exigir que o agente atuasse revelando maldade ou egoísmo o que significa, na prática, um alargamento das condutas suscetíveis de serem abrangidas por este tipo de ilícito.
Para além disso, fruto da redação introduzida pela Lei n.º 7/2000, de 27 de maio, este crime passou a assumir natureza pública.
Acrescente-se que a alteração decorrente da Lei n.º 59/2007 de 15 de setembro, retificada através da Declaração de Retificação n.º 102/2007, de 31 de outubro, ao afastar expressamente a necessidade de reiteração (muito embora a doutrina maioritária considerasse já que um único ato, pela sua gravidade, podia ser suscetível de preencher este tipo de crime) alargou a abrangência do crime de maus tratos, agora designado por violência doméstica.
No crime de violência doméstica, tal como acontecida no tipo legal que o antecedeu, ou seja, o crime de maus tratos, o bem jurídico protegido é a saúde, bem jurídico complexo que abrange a saúde física psíquica e mental, bem jurídico este que pode ser afetado por toda a multiplicidade de comportamentos que afetem a dignidade pessoal do cônjuge”7.
Não se protege a comunidade conjugal, mas a proteção da pessoa individual e da sua dignidade humana.8
Como se escreveu no Ac.do STJ de 05.11.20089o bem jurídico protegido nesta incriminação, tendo em conta até a sua inserção sistemática no Título I do CP (“Crimes contra as pessoas”), é a pessoa do cônjuge (ou equiparado), a sua integridade física, a sua saúde e a sua dignidade, enquanto pessoa humana, e não a instituição familiar. Na verdade, da descrição típica não consta qualquer referência que possa induzir a preocupação do legislador com a família, ou o ambiente familiar. É certo que a punição do cônjuge infrator poderá contribuir para a pacificação familiar, mas também poderá suceder o oposto. Em qualquer caso, serão efeitos reflexos ou laterais da tutela penal, pois é óbvio que a preocupação do legislador, neste preceito, é o cônjuge-vítima, a sua saúde física ou psíquica, a sua dignidade como pessoa. É um crime contra as pessoas, não um crime contra a família”.
Ainda sobre o bem jurídico tutelado, afirma Plácido Conde Fernandes que não se vê “razão para alterar o entendimento, já sedimentado, sobre a natureza do bem jurídico protegido, como sendo a saúde, enquanto manifestação da dignidade da pessoa humana e da garantia da integridade pessoal contra os tratos cruéis, degradantes ou desumanos, num bem jurídico complexo que abrange a tutela da sua saúde física, psíquica, emocional e moral. A dimensão de garantia que é corolário da dignidade da pessoa humana fundamenta a pena reforçada e a natureza pública, não bastando qualquer ofensa à saúde física, psíquica, emocional ou moral da vítima, para preenchimento do tipo legal. O bem jurídico, enquanto materialização direta da tutela da dignidade da pessoa humana, implica que a norma incriminadora apenas preveja as condutas efetivamente maltratantes, ou seja, que coloquem em causa a dignidade da pessoa humana, conduzindo à sua degradação pelos maus-tratos10.
A violência doméstica pode abranger todas as violações de carácter físico (empurrões, beliscões, pontapés, espancamento, murros, estrangulamento, queimaduras, agressão com objetos, esfaqueamentos, uso de água a ferver, ácido, fogo, etc.) e sexual, mas também a violência psicológica e mental, que pode consistir em agressões verbais repetidas, perseguição, clausura e privação de recursos físicos, financeiros e pessoais, controlo e limitação de contactos. Mas, nem todas as ofensas à integridade física, à honra e consideração ou à liberdade de determinação de outrem, constituem um crime de violência doméstica, apenas pelo facto de ocorrerem no seio de uma relação conjugal ou equiparada.
Já sabemos que este crime geralmente é consumado através de ações que integram outros tipos de crime (sendo os mais habituais a ofensa à integridade física, a injúria, a ameaça ou até o sequestro), sendo necessário estabelecer quando é que estes deixam de ser autonomizáveis e passam a integrar o crime de violência doméstica.
A Jurisprudência tem entendido que ocorre o crime em análise quando, em face do comportamento demonstrado, for possível formular o juízo de que o agente manifestou desprezo, desejo de humilhar ou especial desconsideração pela vítima.
Como se escreve no Acórdão da RL de 21.03.202311importa, assim, analisar e caracterizar o quadro global da agressão de forma a determinar se ela evidencia um estado de degradação, enfraquecimento ou aviltamento da dignidade pessoal da vítima que permita classificar a situação como de maus tratos, o que por si mesmo, constitui, nas palavras de Nuno Brandão, «um risco qualificado que a situação apresenta para a saúde psíquica da vítima», e impõe a condenação pelo crime de violência doméstica.
O que releva é saber se a conduta do agente, pelo seu carácter violento ou pela sua configuração global de desrespeito pela pessoa da vítima ou de desejo de prevalência de dominação sobre a mesma é suscetível de se classificar como “maus tratos”.
(…) Se da imagem global dos factos não resultar este quadro de maus tratos, nos moldes e com os referidos contornos, que justifiquem aquela especial tutela e punição agravada, a situação integrará a prática de um ou dos vários crimes em causa e que de outra forma seriam consumidos por aquele”.
Podemos, ainda e a este propósito, ler no Ac. RP de 28.09.201112, “No ilícito de violência doméstica é objetivo da lei assegurar uma ‘tutela especial e reforçada’ da vítima perante situações de violência desenvolvida no seio da vida familiar ou doméstica que, pelo seu carácter violento ou pela sua configuração global de desrespeito pela pessoa da vítima ou de desejo de prevalência de dominação sobre a mesma, evidenciem um estado de degradação, enfraquecimento ou aviltamento da dignidade pessoal quanto de perigo ou de ameaça de prejuízo sério para a saúde e para o bem-estar físico e psíquico da vítima”.
Defende o recorrente que as condutas descritas não integram a prática deste crime, pois tudo de resume a dois episódios de baixa gravidade.
No entanto, dos factos assentes verificamos que nem tudo se resume aos factos ocorridos em ... de ... de 2022 e a ... de ... de 2022, pois, durante o período em que viveram juntos e depois durante a constância do matrimónio, o arguido dirigiu-se, um número não apurado de vezes, à ofendida dizendo “Tu tens alguém, tu não fazes as coisas como deve ser, tu não ganhas o suficiente, como pessoa não prestas , tu não és nada”, ou seja, destratando-a, menorizando-a enquanto pessoa e acusando-a de traição. Não temos dúvidas que estes factos evidenciam violência psicológica, tendo a ofendida de suportar estes comportamentos.
A relação entre os dois foi-se depreciando, com diversas discussões, durante o período pandémico, relacionadas com questões monetárias.
A violência física ocorre nas datas indicadas, sendo que a primeira delas se mostra particularmente grave, pois o arguido empurra a ofendida com tal violência que a faz cair no chão e a seguir coloca-se em cima dela, manietando-a, desferindo diversas bofetadas na face e na cabeça. A presenciar toda a situação estava o filho menor do casal, de apenas 6 anos, que se colocou entre os dois para impedir a continuação das agressões, agarrando mesmo as pernas do pai para este largasse a ofendida. Nesse mesmo dia, o arguido retirou a mala à ofendida, ficando com os documentos do filho de ambos, dizendo-lhe que podia ir embora e que ia ficar com o filho.
Ora, estes factos são de tal modo graves que levaram a ofendida a sair da casa de morada de família e, indiscutivelmente, colocam em causa a sua dignidade enquanto pessoa, o que significa que integram os elementos objetivos do crime em apreço.
Mas a violência física também não se verificou apenas nesta situação, pois, pouco tempo depois, a ... de ... de 2022, o arguido agarrou o braço da ofendida, apertando-o, querendo saber o que ela tinha contado à polícia, provocando-lhe diversas equimoses, descritas no ponto 19 dos factos provados.
Ou seja, mesmo depois de terem sido participados os factos referentes à primeira agressão, na pendência dos presentes autos, o arguido volta a ser agressivo para com a sua mulher, quando esta até já tinha regressado a casa, certamente por pretender retomar a vida em comum. A este propósito – regresso a casa – importa dizer que neste tipo de criminalidade não raras vezes as vítimas regressam a casa, na esperança que as coisas mudem e também não raras vezes nada melhora. Não podemos, como faz o recorrente, desvalorizar os factos apenas por a ofendida ter regressado a casa.
Todos estes acontecimentos nos fazem concluir que o arguido, através das injúrias e agressões físicas, colocou em causa a dignidade e o bem estar físico e psíquico da ofendida, sua mulher e mãe do seu filho. Estão, pois, preenchidos os elementos objetivos do crime de violência doméstica pelo qual o arguido foi condenado e também os subjetivos e que constam dos pontos 22, 23 e 24 da matéria de facto apurada.
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V d) Da adequação da pena e sanções acessórias aplicadas
O crime de violência doméstica pelo qual o arguido foi condenado é sancionado com pena de prisão 2 a 5 anos – cf. artigo 152.º, n.º 1, alíneas a) e c) e n.º 2 alínea a) do Código Penal, tendo-lhe sido aplicada uma pena de 2 anos e 8 meses de prisão.
Defende o recorrente que a pena imposta é excessiva, invocando que “parece-nos, salvo outro e melhor entendimento, ser tal condenação manifestamente exagerada, atentos os factos apurados, a culpa do agente, à ilicitude, a ausência total de antecedentes criminais, as suas perspectivas de reinserção social, forçoso será de concluir pela inadequabilidade de tal condenação. A determinação da medida da pena deve ser feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção «ex vi» do disposto no art.º 71º n.º 1 do Código Penal. Para o efeito, o tribunal deverá atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo legal de crime, depuserem a favor ou contra o agente, por força do disposto no n.º 2 do mesmo artigo, não podendo a pena, em caso algum, ultrapassar a medida da culpa”.
Ora, desta alegação genérica não se compreende as razões do inconformismo do recorrente, nem os fundamentos de facto e de direito por que entende que tribunal decidiu mal.
Diremos, no entanto, que a pena, próxima do limite mínimo de dois anos se mostra ajustada.
Ficou consignado na decisão recorrida: “No caso deve ser destacado que as exigências de prevenção, no plano geral, são muito fortes.
Relativamente ao crime praticado na pessoa dos companheiros, dados estatísticos revelam que os maus tratos a cônjuge, ex-cônjuge continuam a ter uma expressão muito significativa na sociedade e acarretam consequências devastadoras no quadro do equilíbrio da família e do harmonioso desenvolvimento dos filhos, que muitas vezes acabam por ser envolvidos.
Comportamentos como os que aqui estão em causa assumem enorme gravidade individual e social, em relação à qual, felizmente, tem vindo a intensificar-se a consciencialização ético-social, denotando uma maior intervenção da sociedade neste tipo de situações.
O comportamento do arguido é absolutamente reprovável, não existindo qualquer justificação para esta sua conduta.
O grau de ilicitude dos factos criminosos é elevado, dada a reiteração dos comportamentos, a intensidade e energia criminosa, traduzidas não só nas condutas mas também na intensidade e perpetuação durante largo período de tempo, traduzidas em condutas reiteradas, diversificadas, reveladoras de uma forte, intensa energia criminosa, impulsividade descontrolada por parte do arguido, impedindo o descanso e sossego da ofendida, pondo em causa a sua tranquilidade e seu bem estar, a sua integridade física, causando-lhe medo e inquietação pela sua integridade física e do seu filho.
O lapso de tempo durante a qual perdurou, o que agrava a ilicitude e amplitude dos factos criminosos, bem como as consequências que para a mesma advieram traduzidas nos factos provados.
Por outro lado, o período de tempo durante o qual o arguido se dirigiu à ofendida com as condutas dadas como provadas, revelando um total desrespeito pela sua companheira e mulher, mãe do seu filho.
No que respeita, à censura ético-jurídica dirigida ao arguido, esta radica na modalidade mais intensa do dolo, o directo (artigo 14.º, n.º 1, do Código Penal), que presidiu a toda a sua actuação, sendo o motivo subjacente às agressões verbais, morais e físicas, completamente despropositado, próprio de quem não respeita os outros revelando uma absoluta falta de controlo.
O dolo intenso persistiu ao longo de todo o percurso da descrita actuação do arguido, durante o qual agiu, sempre, livre e conscientemente, com o propósito de maltratar a ofendida, como conseguiu nos termos dados por provados.
O arguido não tem antecedentes criminais. Está inserido profissionalmente, circunstância que deveria ter obstado à prática do ilícito em apreço, mas ainda assim não foi suficiente para tal.
Em termos de prevenção geral, como se referiu, as exigências são muito elevadas, pois a violência no seio da família é uma prática que deve ser decisivamente afastada da sociedade.
Deverá, por conseguinte, ser convenientemente sublinhada, perante a sociedade, a validade da norma que pune tal conduta e protege bens jurídicos fundamentais.
Desta forma, sopesadas todas as circunstâncias agravantes e atenuantes, julga-se adequado e equitativo condenar a arguida pela prática do referido crime de violência doméstica na pena de dois anos e oito meses de prisão”.
Em suma, cremos que a pena aplicada é justa, proporcional e adequada, não merecendo reparo.
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Refere o recorrente que “não se compreende o alcance da aplicação da pena acessória de proibição de contactos pelo período de três anos, por um lado, amplamente excessiva, tendo em consideração os factos dados como provados e, por outro lado, desnecessária, uma vez que resultou provado que o Arguido, desde ........2022, nunca mais se aproximou da Ofendida, aliás, nem sabe onde ela se encontra com o filho comum”.
A proibição de contactos coma vítima está hoje expressamente previsto para os crimes de violência doméstica no artigo 152.º, n.º 5 do Código Penal.
Os parcos argumentos invocados para a não aplicação desta proibição não podem ser atendidos. Por um lado, invocar que não mais se aproximou da ofendida é um facto que este tribunal desconhece se é ou não verdade, pois não consta da matéria de facto apurada. Por outro lado, tendo um filho em comum menor, haverá sempre necessidade de se estabelecerem contactos que serão sempre de se limitar ao estritamente necessário. Há, por isso, toda a conveniência que tal sanção acessória se mantenha.
Também contesta o recorrente a pertinência da aplicação do regime de prova, com obrigação de frequência do Programa para Agressores de Violência Doméstica.
O regime de prova - previsto nos artigos 53.º e 54.º do Código Penal - tem sentido educativo e também corretivo, devendo ser imposto quando a execução da prisão ainda se não mostra necessária, mas a sua mera suspensão não é suficiente. A obrigação de frequência de programas específicos de prevenção de violência doméstica está expressamente previsto para os crimes de violência doméstica – cf. artigo 152.º, n.º 4 do Código de Processo Penal.
No caso dos autos, tendo o arguido sido condenado pela prática de um crime de violência doméstica, optou-se por uma pena suspensa, e cremos que seria mesmo imprudente, face à gravidade do crime perpetrado, deixar o recorrente sem um acompanhamento que o ajude a pautar a sua vida conforme o direito, evitando a prática de atos semelhantes no futuro.
A verdade é também que o recorrente não avança com nenhum argumento válido para a sua não aplicação.
De igual forma se mostra ajustado fazer condição de suspensão da pena o pagamento da indemnização fixada.
Sabemos que a suspensão da execução da pena de prisão pode ser simples ou com imposição de deveres (artigo 50.º, n. 2 e 3, do Código Penal), devendo, no entanto, tal imposição de deveres responder à ideia da exigibilidade e ao princípio da proporcionalidade que são ideias básicas do Estado de Direito. Os deveres impostos não podem em caso algum representar para o condenado obrigações cujo cumprimento não seja razoavelmente de lhe exigir, sendo, por isso, que, a alínea a) do n.º 1 do artigo 51.º, prevê que o tribunal fixe o dever de pagar a indemnização devida, no todo ou na parte.
Ficou assente que o arguido aufere a quantia mensal de € 1.500,00 e paga de renda de casa € 436,00.
Ora, pagar à ofendida a quantia de € 2.000,00 no prazo no prazo de 1 ano e 6 meses, parece-nos ajustada à concreta situação do arguido.
Não ignoramos que o recorrente alegou que se encontra doente e poderá não conseguir fazer este pagamento. A doença do arguido é desconhecida para o tribunal, mas, a ocorrer, será certamente levada em conta para se aferir se o (eventual) incumprimento é culposo – cf. artigo 55.º do Código Penal.
O mesmo é dizer que a decisão recorrida neste particular também não merece qualquer censura e tem de ser confirmada.
*
VI. Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar totalmente improcedente o recurso interposto pelo arguido AA, confirmando a decisão recorrida nos seus precisos termos.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC´s.
Notifique.

Lisboa, 20 de maio de 2025
Ana Lúcia Gordinho
Paulo Barreto (com declaração de voto que a seguir se transcreve)
João Grilo Amaral

Declaração de voto:
Do acórdão consta o seguinte:
“Por outro lado, o Tribunal da Relação na apreciação do recurso da matéria de facto só deve alterar a decisão proferida pelo tribunal de primeira instância se as provas indicadas pelo recorrente impuserem necessariamente uma decisão diversa da proferida (alínea b) do n.º 3 do citado artigo 412.º do Código de Processo Penal), sendo que tal possibilidade só se verifica se a decisão recorrida padecer de arbitrariedade, ilegalidade ou impossibilidade lógica. O mesmo é dizer que a convicção do julgador só deverá ser modificada se se constatar que a decisão da primeira instância sobre os precisos factos impugnados deveria ter sido diferente, o que pode acontecer quando a convicção se baseou em provas ilegais ou proibidas; quando foram violadas as regras da experiência comum e da lógica; quando foram ignorados os conhecimentos científicos ou inobservadas as regras específicas e princípios vigentes em matéria probatória (designadamente, os princípios da livre apreciação da prova e “in dubio pro reo”); quando foram violadas as normas referentes a validade da prova e sobre a eficácia probatória especial de certos meios de prova (por ex. a confissão, a prova pericial) ou da que emerge de certo tipo de documentos (autênticos e autenticados).
Por isso, a jurisprudência tem entendido que se a convicção a que chegou o Tribunal a quo ainda puder ser plausível de acordo com essas mesmas regras e a versão que o recorrente apresenta é meramente alternativa e igualmente possível, então, deverá manter-se a opção do julgador que beneficiou do princípio da oralidade e da imediação da prova.
Assim, a reapreciação da prova só determinará a alteração da matéria de facto quando se concluir que as provas impõem uma decisão diversa, negando-se tal alteração quando a reapreciação apenas permita uma decisão diferente da proferida. Se a decisão de facto impugnada se mostrar devidamente fundamentada e se apresenta como uma das possíveis soluções face às regras da experiência comum, deve a mesma prevalecer.”
Não concordo.
Efectivamente, durante muito tempo não interessava no recurso da matéria de facto como decidiriam os juízes do tribunal da Relação se tivessem efectuado o julgamento em primeira instância, pois tal recurso tinha apenas a finalidade de proceder à apreciação da decisão proferida na 1ª instância, apreciação essa limitada ao exame (controlo) dos elementos probatórios valorados pelo tribunal recorrido e feita à luz das regras da lógica e da experiência, mas sempre sem colidir com os fundamentos da decisão que só a imediação e a oralidade permitiam atingir - imediação e oralidade que não estão presentes no julgamento do recurso, porque aos juízes do tribunal superior apenas são facultados registos (em suporte magnético). Por isso, ao tribunal superior cumpria verificar a existência da prova e controlar a legalidade da respectiva produção, nomeadamente, no que respeita à observância dos princípios da igualdade, oralidade, imediação, contraditório e publicidade, verificando, outrossim, a adequação lógica da decisão relativamente às provas existentes. E só em caso de inexistência de provas, para se decidir num determinado sentido, ou de violação das normas de direito probatório (nelas se incluindo as regras da experiência e/ou da lógica) cometida na respectiva valoração feita na decisão da primeira instância, esta podia ser modificada, nos termos do artigo 431º do Código de Processo Penal.
Felizmente, na busca de um efectivo recurso da matéria de facto, hoje já não é assim. O tribunal da Relação tem que criar a sua própria convicção e não se limitar a apreciar se a convicção do tribunal a quo respeitou as regras probatórias. Claro que limitado aos pontos indicados pelo recorrente.
Como se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, 26.06.2019, disponível em dgsi.pt., “obviamente que o legislador ao estabelecer o recurso sobre matéria de facto sabe que o tribunal de recurso não se encontra presente no julgamento e por isso o estabelece nas condições em que o fez permitindo, ainda assim, uma apreciação global da prova com base no registo da mesma; a falta de imediação por parte do tribunal de recurso, e nos termos em que esses recursos se mostram concedidos, não assume qualquer relevância; (...); o relevante é que do processo constavam todas as provas e elementos necessário a que o tribunal de recurso pudesse apreciar toda a prova existente e formar a sua convicção”.
E ainda Ana Maria Barata de Brito, “Os poderes de cognição das Relações em matéria de facto em processo penal”, Estudo de 2012, disponível em http://www.tre.mj.pt/docs/ESTUDOS%20%20MAT%20CRIMINAL/O%20conhec_Relacoes_materia%20de%20facto.pdf:“Se a capacidade de reapreciação da matéria de facto pelo Tribunal da Relação sofre limitações decorrentes da falta de imediação – cumpre, então, questionar: a que falta (de imediação) nos referimos? A uma privação total, como genericamente se parece afirmar? E quais as consequências dessa privação, ou em reverso, qual o plus concretamente acrescido por via da imediação? Mesmo para além dos casos de renovação da prova (art.º 430º CPP), as Relações não estão totalmente desprovidas de imediação. Têm-na desde logo, e aqui na exacta medida do juiz de julgamento, relativamente a todas as provas reais (no sentido de todas as outras provas, não pessoais: documentos, exames, perícias, apreensões, vigilâncias…). Têm-na relativamente à prova gravada/escutada – por via do acesso directo à documentação da prova, potenciado com o fim das transcrições que até 2007 mediatizavam o acesso. Ou seja, mesmo relativamente à prova pessoal existe uma imediação parcial. A prova pessoal ou oral revela-se, ao que aqui interessa, em duas componentes: de voz e de imagem. O tribunal ad quem fica privado da relação de proximidade com a imagem da pessoa que intervém no julgamento, na qualidade de arguido, testemunha ou declarante. Mas dispõe do acesso directo à voz do autor dos relatos, e pode apreender tudo o que, no processo comunicacional, é transmissível através da voz (gravada). Não deve falar-se por isso de uma total ausência de imediação, mesmo na parte referente à prova pessoal”.
Sabendo-se que os poderes do tribunal da Relação em matéria processual penal são muito limitados relativamente aos do processo civil - falta uma norma equivalente ao art.º 662.º, do Código de Processo Civil -, e até a renovação da prova está restringida aos vícios do art.º 410.º n.º 2, como determina o art.º 430.º, n.º 1, do CPP, a documentação da prova é o elemento fundamental para a apreciação do recurso da matéria de facto.
Tudo visto e aqui chegados, pelo actual estado da arte em matéria de impugnação da matéria de facto em processo penal, muito por força da jurisprudência do Tribunal de Estrasburgo na consagração de um processo equitativo, em que se exige que o tribunal da Relação crie a sua própria convicção, cave a fundo na prova, embora ainda limitado pelo quadro legal, a documentação da prova é a peça fundamental. E, se estivermos a pensar em prova pessoal, é de gravação da prova que se trata.
Do exposto decorre que este tribunal ad quem, ouvindo a prova gravada, deve formar a sua própria convicção.
Porém, no caso concreto, como bem se refere no acórdão:
“ Não obstante o que temos vindo a escrever, diremos, ainda, que o arguido não colocou em causa o facto descrito no ponto 4., ou seja, que “Durante o convívio em conjunto, por número de vezes não concretamente apurado, o arguido dirigiu-se à ofendida e disse “Tu tens alguém, tu não fazes as coisas como deve ser, tu não ganhas o suficiente, como pessoa não prestas , tu não és nada”.
E ignorou, relativamente aos factos ocorridos no dia ........2022, que foi encontrada no corpo da assistente “equimose de cor amarelada no ombro esquerdo que mede 4.5 cmx2cm”, ou seja, compatível com a agressão que alegou ter sido vítima, como sofreu 3 dias de doença. Ignorou também que a testemunha EE, militar da GNR, confirmou a deslocação à residência do então casal, tendo constatado que o filho do casal se encontrava apavorado e a ofendida magoada e que pelo facto de a assistente se queixar de dores de cabeça foi chamada a ambulância, tendo-lhe sido prestada assistência médica.
Ora, estes factos indiscutivelmente corroboram a versão dos factos trazida pela assistente.
Já relativamente aos factos ocorridos em ... de ... de 2022, o arguido também ignorou as lesões encontradas na assistente, clinicamente comprovadas, e que a testemunha FF, agente da PSP, visualizou tais marcas de agressão e as documentou nos autos. Estes factos ocorreram no interior do veículo automóvel, pelo que é normal que outras pessoas que circulavam na bomba de gasolina não se tenham apercebido das agressões.
Em suma, sabendo nós que neste tipo de criminalidade, por regra, não há testemunhas dos factos, é totalmente irrelevante que as testemunhas indicadas no recurso não tenham presenciado os factos, e, por isso, tem o julgador de se socorrer de outros meios de prova para formar a sua convicção.
Assim, bem andou o tribunal recorrido ao concluir que “Note-se que o Tribunal não deixou de valorar as declarações da assistente por terceiros, designadamente, as testemunhas nunca terem presenciado qualquer agressão física ou verbal, pois que o normal é que assim seja, sendo que as declarações da assistente para além de nos terem merecido credibilidade, mostram-se documentadas pelos exames a que foi sujeita e pela visualização das gravações do sistema de videovigilância da bomba de gasolina onde embora não seja visível o interior do veiculo é possível ver movimentos bruscos no seu interior e a ofendida a sair sozinho do interior da viatura, sendo que o arguido reconheceu o seu veículo”.
Por isso voto a decisão”.
Paulo Barreto
_______________________________________________________
1. De acordo com o estatuído no artigo 412.º do Código de Processo Penal e com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19 de outubro de 1995. Cf. também Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, vol. III, 2ª ed., pág. 335, e Simas Santos e Leal Henriques, in Recursos em Processo Penal, 7ª ed., pág. 89.
2. Disponível em https://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/8a2966946d797d1a802589a500449175?OpenDocument
3. Entre muitos outros, Cf. Ac. R.P. de 23.05.2024, in https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/89a0fb0cbe7ca5ab80258b49004cf140?OpenDocument
Ac. da R.G. de 02.11.2017, in https://www.dgsi.pt/jtrg.nsf/-/8B39EDF6138417DC8025821000509259
Ac. STJ de 27.04.2004, in https://www.pgdlisboa.pt/jurel/stj_mostra_doc.php?nid=16992&codarea=1
4. Disponível em www.dgsi.pt.
5. Prof. Figueiredo Dias, «Direito Processual Penal», Vol. I, 1974, pág. 204.
6. Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, Coimbra Editora, pág. 330.
7. cf. Taipa de Carvalho, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Coimbra Editora, 1999, Vol I, pág. 332.
8. Cf. Taipa de Carvalho, ob. e loc. cit.
9. Processo 08P2504 in www.dgsi.pt.
10. Plácido Conde Fernandes, “Violência Doméstica, Novo Quadro Penal e Processual Penal”, Jornadas sobre a Revisão do Código Penal, Revista do CEJ, 1.º semestre de 2008, n.º 8, pág. 305.
11. Cf. http://www.gde.mj.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/852b9e557af110df80258989003e2015?OpenDocument
12. in www.dgsi.pt, processo 170/10.0GAVLC.P1.