Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
721/17.9PTLSB.L1-5
Relator: JORGE ANTUNES
Descritores: TRIBUNAL COMPETENTE
PRINCÍPIO DA ADESÃO
ACIDENTE DE VIAÇÃO
RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL
RESPONSABILIDADE DO COMITENTE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/07/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PARCIALMENTE PROVIDO
Sumário: - Os danos, cuja reparação é pedida, são os provenientes da prática do crime imputado ao arguido, não sendo peticionada a reparação de danos resultantes de incumprimento ou cumprimento defeituoso de qualquer contrato e o facto de a pretensão da demandante ser destinada a acionar, para além do mais, a responsabilidade mediata ou indireta, não nos arreda do domínio da responsabilidade extracontratual – a responsabilidade do comitente é, precisamente, um dos casos em que a responsabilidade é imputada a alguém que não praticou pessoalmente o facto ilícito, mas funda-se, ainda assim, num comportamento alheio ilícito, culposo e danoso.
- O regime previsto no artigo 500º do Código Civil enquadra-se no âmbito da responsabilidade extracontratual, não pressupondo a existência de qualquer vínculo contratual entre o lesado e o responsável civil.
- Tendo o colectivo, em questão prévia, entendido ser o Tribunal incompetente para conhecer do pedido de indemnização deduzido contra a demandada sociedade, não foram enunciados na decisão final os factos provados e não provados referentes a tal questão, o que gera nulidade da decisão por omissão de pronúncia, nos termos do nº 1 al. c) do artº 379º do CPP porque omitiu pronúncia sobre questão que era obrigado a decidir.
- Não obstante a circunstância de a prova se achar registada, não pode o tribunal de recurso substituir-se ao tribunal de primeira instância no julgamento de facto dessa matéria, o que redundaria na supressão de um grau de jurisdição e constituiria interpretação do artigo 379º, nº 2, do Código de Processo Penal manifestamente inconstitucional, por violação do disposto nos artigos 20º e 32º da Constituição da República Portuguesa.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam em conferência na 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa

I – relatório
1. No âmbito do processo nº 5817/18......, tendo o Ministério Público encerrado o respetivo inquérito com a dedução de acusação contra o arguido AA, imputando-lhe o cometimento, em autoria material e concurso real, de um crime de sequestro e de um crime de ofensa à integridade física simples, respetivamente p. e p. pelos artigos 158º, nº 1, e 143º, nº 1, ambos do Código Penal, foi deduzido pedido de indemnização pela lesada BB contra o referido arguido e contra a sociedade Talentos Rápidos – Táxis, Lda. (nos termos de fls. 147 e segs. daquele que ora constitui o Apenso B dos presentes autos). A Demandante alegou os factos em que baseou o pedido de indemnização, fundamentou juridicamente a responsabilidade da sociedade demandada no disposto no artigo 500º, nº 2, do Código Civil e na respetiva qualidade de comitente, tendo peticionado a condenação dos demandados a pagar à demandante a quantia de € 5.120,00 (cinco mil, cento e vinte euros), acrescida de juros à taxa legal.
2. Sendo os autos remetidos à distribuição, pelo Juízo Local Criminal de ...... e atribuídos por sorteio ao Juiz …, foi proferido despacho nos termos do disposto no artigo 311º do Código de Processo Penal, no qual foi liminarmente admitido o pedido de indemnização formulado (cfr. despacho de fls. 170vº do referido Apenso B).
Posteriormente, foi determinada a remessa dos autos ao Processo 721/17……, para “ser ponderada a eventual conexão de processos nos termos do disposto no artigo 29º do Código de Processo Penal”.
3. Por decisão proferida nos autos de Processo Comum nº 721/17….., então pendentes nos Juízos Locais Criminais de ...... – Juiz …, foi reconhecida a conexão e determinada a apensação de processos (cfr. despacho de fls. 119 dos presentes autos). Posteriormente, tal Juízo Local Criminal declarou-se incompetente para proceder ao julgamento conjunto dos processos apensados e ordenou a remessa dos mesmos, para distribuição ao Juízo Central Criminal de ...... (cfr. despacho de fls. 134 dos presentes autos).
4. Sendo os autos distribuídos ao Juiz … do Juízo Central Criminal de ......, foi então proferido despacho judicial nos termos do disposto no artigo 313º do Código de Processo Penal, tendo nele sido determinado, para além do mais, a notificação dos demandados supra indicados para contestarem o pedido de indemnização civil (que novamente se admitiu - cfr. despacho de fls. 143 destes autos).
5. A Demandada Talentos Rápidos, Lda., apresentou a contestação ao pedido de indemnização civil que consta de fls. 189 a 192, alegando factos e tecendo considerações de direito, tendo invocado a sua ilegitimidade nos presentes autos e concluído pela improcedência do pedido de indemnização em relação a si. Arrolou uma testemunha.
Tal contestação foi admitida, bem como a prova com ela arrolada.
6. Realizou-se o julgamento, tendo o Tribunal Coletivo, por Acórdão de 15 de outubro de 2020, decidido:
Nos termos expostos, o Tribunal Colectivo decide:
a) Absolver o arguido AA da prática do crime de violência após a subtracção, p. e p. no artigo 211º do Código Penal; (proc. nº 721/17……)
b) Determinar o arquivamento dos autos quanto à prática pelo arguido AA do crime de furto, p. e p. no artigo 203º do Código Penal, por falta de legitimidade do Ministério Público para exercer o procedimento criminal – artigo 203º nº 3, 113º nº 1, 115º nº 1, todos do Código Penal e 49º do Código de Processo Penal; (proc. nº 721/17…..)
c) Condenar o arguido AA, pela prática, como autor de um crime de ofensa à integridade física, p. e p. pelos artigos 1430, nº 1, do Código Penal, na pena de 18 (dezoito) meses de prisão (proc. nº 5817/18…….);
d) Condenar o arguido AA, pela prática, como autor e em concurso real de um crime de sequestro, p. e p. pelo artigo 158°, nº 1, do Código Penal, pena de 9 (nove) meses de prisão (proc. nº 5817/18…..);
e) Condenar os arguidos AA e CC, pela prática, como co-autores, de um crime de falsificação, p. e p. pelo artigo 256 nº 1 b) e nº 3º do Código Penal na pena de 1 (um) ano de prisão cada um.
f) Em cúmulo jurídico, condenar o arguido AA na pena única de 2
(dois) anos e 6 (seis) meses de prisão, suspensa por 3 (três) anos, sujeita a regime de prova;

g) Custas pelo arguidos, fixando-se a taxa de justiça em 3 U. C.s cada um – artigo 513º nº 1 e nº 3 do Código de Processo Penal;
Parte Cível:
h) Declarar a incompetência absoluta deste Tribunal para apreciar o pedido de indemnização deduzido por BB contra a Talentos Rápidos Táxis, Lda.. e absolve-se da instância o arguido AA – artigo 73º do Código de Processo Penal e artigos 96º al. a) e 99º nº 1 do Código de Processo Civil, aplicável ex vi artigo 4º do Código de Processo Penal.
i) Condenar o arguido AA no pagamento a BB de € 5.120,00 (cinco mil e cento e vinte euros e zero cêntimos), valor a que acrescem juros vencidos e vincendos, à taxa de 4%, desde a data da notificação do pedido cível, até integral pagamento;
j) Custas pelo demandado AA – artigo 527º nº 1 e 2 do Código de Processo Civil;
Notifique.”.
7. Inconformada com a decisão final, dela interpôs recurso a Demandante BB, pedindo que seja “revogada sentença, quanto ao ponto h) do dispositivo, condenando-se a Demandada Talentos Rápidos – Táxis, Lda. no pagamento solidariamente com o arguido, da quantia de € 5.120,00”.
Extraiu a recorrente da sua motivação de recurso as seguintes conclusões:
I.  A incompetência absoluta invocada pelo Tribunal para apreciar o pedido de indemnização deduzido pela Demandante contra a Demandada Talentos Rápidos – Táxis, Lda., e consequente absolvição da instância do arguido AA viola tanto a aplicação do princípio consagrado na lei processual penal no artigo 71.º, o “princípio da adesão”, como esvazia o sentido do disposto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 500.º do Código Civil, quanto à responsabilidade extracontratual do Comitente pelos danos causados pelo Comissário.
II. O direito que sustenta o pedido cível dirigido pela Apelante à Demandada Talentos Rápidos não resulta de qualquer relação contratual entre a Apelante e qualquer um dos Demandados, sim em facto ilícito culposo, provado, praticado pelo Arguido, no exercício de funções decorrentes da relação de comissão que o relacionava então com a Demandada Sociedade — configurando assim responsabilidade extracontratual.
III. O pedido formulado não decorre do incumprimento pela Demandada Sociedade do contrato de transporte em táxi que tacitamente se possa ter celebrado entre ela e a Apelante, não se pedindo danos decorrentes do incumprimento do próprio transporte, ou do seu cumprimento defeituoso.
IV. E a existência de relações contratuais entre o Arguido e a Demandada não pode constituir óbice a que a Demandada responda, enquanto comitente, pelos danos causados pelo seu comissário à Demandante.
V. Como previsto no artigo 500.º do Código Civil, existe responsabilidade civil extracontratual do comitente pelos danos causados pelo comissário, “ainda que intencionalmente ou contra as instruções daquele”, estando cumpridos os requisitos para a existência de relação de comissão, neste ato verificados.
VI. A decisão de incompetência material constituiu, ainda para mais, decisão-surpresa, não tendo sido respeitado o direito ao contraditório prévio por parte da Demandante, com consequente nulidade de tal decisão.
VII. Aplicado corretamente o preceito do processo de adesão, estando em causa um pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime, que tem por objeto danos causados por essa mesma prática e dando como verificada a responsabilidade do comitente pelos atos do comissário, era o Tribunal a quo competente, em razão da matéria, para julgar o pedido formulado quando à Demandada.
VIII. Deve, assim, ser revogada sentença, quanto ao ponto h) do dispositivo, condenando-se a Demandada Talentos Rápidos – Táxis, Lda., no pagamento solidariamente com o Arguido, da quantia de € 5.120,00.
8. O recurso foi admitido, por ser tempestivo e legal.
9. A demandada Talentos Rápidos, Lda., apresentou resposta ao recurso interposto pela demandante, pugnando pela sua improcedência, argumentando, em suma, o seguinte:
- No caso concreto dos Demandados, não existia, entre eles, a relação comitente-comissário;
- Ainda que existisse tal relação comitente-comissário entre os Demandados, jamais a Demandada, enquanto sociedade, poderia responder criminalmente pelos atos ilícitos do "seu" motorista (que não era);
- Outra situação era se a sociedade desse instruções ao motorista para ele prevaricar mas, isto não ficou provado aliás, nem sequer foi alegado...
- A Sociedade, neste caso, poderia responder quando muito, apenas e só, civilmente;
- A conduta do Arguido foi totalmente alheia à Demandada - esta não participou, não pediu para fazer, e desconhece, de todo, o que se passou!
- A Demandada nunca deu qualquer instrução ao Demandado para adotar qualquer tipo de comportamento ilícito ou, até censurável.
- A relação existente entre os Demandados (a sociedade Demandada e o motorista Arguido) era de um puro contrato de prestação de serviços, pelo que, o motorista do táxi da Demandada, nem sequer conduzia na qualidade de "seu trabalhador".
- Na verdade, nunca aquele senhor condutor foi admitido ao serviço da Demandada, isto é, não era, não é, nem nunca foi, seu empregado para desempenhar o que quer que fosse;
- Aliás, o motorista era totalmente independente da sociedade Demandada;
- Nunca, com ele, foi celebrado um contrato de trabalho;
- Nunca o condutor recebeu qualquer salário da Demandada;
- Nunca a Demandada processou qualquer recibo de vencimento ao motorista;
- Nunca a Demandada efetuou qualquer desconto em sede de Segurança Social ao motorista.
- Existia, sim aliás, conforme referido e é prática corrente no sector, um acordo de prestação de serviços, ao abrigo do qual a Demandada entregava o táxi ao prestador de serviços (condutor) para que este gerisse, como bem entendesse, a exploração do táxi;
- Dúvidas não há de que, o condutor era um agente totalmente, independente, e autónomo da Demandada.
- Acresce que, conforme referido, por razões óbvias, a Demandada nem sequer presenciou os factos.
- Por outro lado, mal seria, alguém, neste caso, a Demandada, ser criminalmente responsabilizada, e, condenada, por algo praticado por outra pessoa. Obviamente, e como muito bem entendeu o tribunal "a quo", a sociedade não foi, nem poderia ser, condenada por um crime praticado por um indivíduo que nem sequer é trabalhador da empresa.
10. Colhidos os vistos e realizada a Conferência, cumpre decidir.
*
II – questões a decidir.
Como é pacificamente entendido, o âmbito dos recursos é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, que delimitam as questões que o tribunal ad quem tem de apreciar, sem prejuízo das que forem de conhecimento oficioso (cfr. Germano Marques da Silva in Curso de Processo Penal, vol. III, 2ª ed., pág. 335, Simas Santos e Leal Henriques, in Recursos em Processo Penal, 6ª ed., 2007, pág. 103, e, entre muitos outros, o Ac. do S.T.J. de 05.12.2007, Procº 3178/07, 3ª Secção, disponível in Sumários do STJ, www.stj.pt, no qual se lê: «O objecto do recurso é definido e balizado pelas conclusões extraídas da respectiva motivação, ou seja, pelas questões que o recorrente entende sujeitar ao conhecimento do tribunal de recurso aquando da apresentação da impugnação - art. 412.°, n.° 1, do CPP -, sendo que o tribunal superior, tal qual a 1.ª instância, só pode conhecer das questões que lhe são submetidas a apreciação pelos sujeitos processuais, ressalvada a possibilidade de apreciação das questões de conhecimento oficioso, razão pela qual nas alegações só devem ser abordadas e, por isso, só assumem relevância, no sentido de que só podem ser atendidas e objecto de apreciação e de decisão, as questões suscitadas nas conclusões da motivação de recurso, (...), a significar que todas as questões incluídas nas alegações que extravasem o objecto do recurso terão de ser consideradas irrelevantes.»)
Atentas as conclusões apresentadas, que traduzem as razões de divergência do recurso com a decisão impugnada – o acórdão final proferido nos autos –, as questões a examinar e decidir prendem-se com o seguinte:
- (in)competência do Tribunal para apreciação do pedido de indemnização deduzido contra a sociedade demandada;
- nulidade por omissão de pronúncia em matéria de responsabilização civil da Demandada Talentos Rápidos – Táxis, Lda.
*
III – Transcrição dos segmentos da decisão recorrida relevantes para apreciação do recurso interposto. 
Da decisão recorrida, com interesse para as questões em apreciação em sede de recurso, consta o seguinte:
“(…)
***
BB deduziu pedido de indemnização civil contra AA e Talentos Rápidos Táxis, Lda. pedindo a condenação solidária dos demandados no pagamento de 5.120,00, (€ 5.000 a título de danos morais e € 120,00 por danos patrimoniais) acrescidos de juros à taxa legal, desde a data da notificação.
Alega que em consequência da conduta de AA descrita na acusação sofreu equimoses, hematomas e escoriações, que lhe causaram dores, temeu pela sua vida e sofre até hoje de medo e angústia ao recordar-se do sucedido.
Mais sustenta que AA que rasgou a roupa que envergava, que valia o montante peticionado a título de danos patrimoniais.
Sustenta que na qualidade de comissária, a Talentos Rápidos é solidariamente responsável pela compensação devida à demandante.
Foi recebida a acusação, admitido o pedido cível e designado dia para audiência de discussão e julgamento.
Os arguidos não contestaram a acusação, nem AA o pedido cível.
A Talentos Rápidos – Táxis, Lda. contestou o pedido cível, alegando que não tem qualquer relação de comissão com o arguido, pelo que inexiste título de imputação de responsabilidade aquiliana.
***
Procedeu-se a audiência de discussão e julgamento, com obediência do legal formalismo.
***
Da competência do Tribunal para conhecer do pedido cível:
O pedido de indemnização deduzido contra a Talentos Rápidos – Táxis, Lda. alicerça-se em relação contratual firmada entre esta e o arguido, pelo qual o segundo presta serviços de transporte por conta da primeira. Ou seja, a demandante não invoca como causa de pedir a prática de acto ilícito por parte desta demandada.
Conforme o Acórdão do Pleno das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça n.° 7/99, de 17-6-1999 (DR. n.° 179, Série I-A de 1999-08-03), decidiu que se em processo penal for deduzido pedido cível, tendo o mesmo por fundamento um facto ilícito criminal, verificando-se o caso previsto no artigo 377.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, ou seja, a absolvição do arguido, este só poderá ser condenado em indemnização civil, se o pedido se fundar em responsabilidade extracontratual ou aquiliana, com exclusão da responsabilidade civil contratual.
A adesão da demanda cível compreendida em processo penal restringe-se à indemnização por danos decorrentes de facto ilícito típico penal.
A não ser assim, verifica-se inadimplência dos pressupostos vertidos no artigo 73º do Código de Processo Penal e consequente incompetência absoluta do Tribunal, por extravaso do princípio da adesão.
Como se escreve no Ac. do STJ de 28-05-2015, relatado por Helena Moniz (www.dgsi.pt): “vertendo ao caso concreto em apreciação, não tendo os demandados pessoas colectivas sido condenados pela prática de qualquer crime, não resta qualquer facto gerador de responsabilidade civil por facto ilícito, nos termos dos artigos 483º e seguintes do Código Civil, nem sequer responsabilidade pelo risco.
Consequentemente, a responsabilidade civil imputada aos mesmos será de natureza contratual e, consequentemente, alheia ao processo penal e à competência dos Tribunais criminais.”
Assim sendo, conclui-se pela incompetência absoluta deste Tribunal para apreciar o pedido de indemnização deduzido por BB contra a Talentos Rápidos Táxis, Lda.. e absolve-se desta instância o arguido AA artigo 73º do Código de Processo Penal e artigos 96º al. a) e 99º nº 1 do Código de Processo Civil, aplicável ex vi artigo 4º do Código de Processo Penal.
***
Posteriormente ao despacho que designou dia para a audiência não ocorreram outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa.
***
II Factos provados:
Da discussão da causa resultou provada a seguinte matéria de facto:
(…)
Proc. n.° 5817/18…..
6. O arguido, à data dos factos, exercia as suas funções de taxista na empresa denominada “Talentos Rápidos Táxis Lda.”.
7. No dia 29 de Junho de 2018, cerca das 16h45, na Avenida ......, em ......, o arguido conduziu o veículo táxi, identificado com o n.° 34...... e matrícula ......-......-SG, propriedade da empresa “Talentos Rápidos Táxis Lda.”.
8. Nessas circunstâncias de tempo e lugar, encontrava-se a ofendida BB, falante ….., e que por ter sido surpreendida pela chuva que então principiou a cair, acenou ao mencionado Táxi que, de imediato, parou e no qual a ofendida BB entrou, tendo indicado como morada de destino a Avenida ......, n.° ......, em ......
9. O arguido acedeu levá-la ao referido destino.
10. Ao chegar ao destino, a ofendida BB reparou que não tinha dinheiro consigo, pelo que, retirou o cartão de crédito da carteira, que exibiu ao arguido, disponibilizando-se para pagar o serviço prestado, desse modo.
11. Sucede que o arguido não aceitou tal forma de pagamento e de forma exaltada, proferia expressões na língua Portuguesa, que a ofendida não percebia e reiniciou bruscamente a marcha.
12. O arguido continuou a proferir expressões, de forma exaltada, em língua portuguesa, incompreensíveis para a ofendida BB, prosseguindo pela Avenida ......., em direcção à .......
13. Tal atitude do arguido causou na ofendida BB, que não percebia a língua portuguesa, grande receio pelo que pudesse suceder, tendo ficado atemorizada, temendo pela sua segurança, aprisionada no interior de um veículo em marcha, com as portas trancadas pelo arguido.
14. Aproveitando, porém, a imobilização do táxi num semáforo, pouco antes de chegar ao ......, a ofendida conseguiu desbloquear as portas (através do fecho centralizado da porta do passageiro frontal) e assim abrir a porta traseira do passageiro, para sair do veículo.
15. Contudo, o arguido agarrou-a, primeiro pelo pescoço, que apertou, e depois pelo vestido, que rasgou, o arguido desferiu-lhe socos no corpo ao mesmo tempo que a puxava para o interior do veículo, impedindo-a de sair.
16. A ofendida conseguiu soltar-se e sair do veículo, mas foi perseguida pelo arguido no exterior do mesmo, o qual a agarrou e lhe começou a desferir socos na cara e no corpo, bem como pontapés a nível das pernas, tendo levado a que caísse ao chão.
17. Sucede também que a estatura e constituição física do arguido eram superiores à da ofendida, o que a levou a temer pela sua segurança, provocando-lhe grande medo e angústia.
18. Como consequência directa e necessária da actuação do arguido, sofreu BB para além das dores, escoriações nas mãos, nos pulsos e sangramento no rosto.
19. O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, com o intuito de coarctar a liberdade de movimentos da ofendida BB, impedindo-a de se movimentar de forma livre e de acordo com a sua vontade, para sair do táxi.
20. Através da sua conduta o arguido quis privá-la da sua liberdade de locomoção, o que logrou fazer, forçando-a a manter-se no interior do veículo “Táxi” já depois do destino que a mesma tinha e pretendia, até ao momento em que a mesma conseguiu destrancar as portas do táxi e sair para o seu exterior.
21. Para conseguir os seus intentos o arguido anulou a capacidade da ofendida BB de resistir e de obstar à concretização de tais intentos.
22. O arguido quis agir como agiu, também com o propósito alcançado de atingir a integridade física e de causar dores a BB.
23. Agiu sempre de modo deliberado, livre e conscientemente, e sabia o arguido que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.
24. AA completou o 9º ano de escolaridade; exerce a profissão de ...... e aufere € 3,00/hora; vive com a companheira e um filho comum, de 2 anos.
25. (…)
26. (…)
27. AA foi condenado, por sentença transitada a 15 de Maio de 2017, exarada no proc. nº 3256/13....... do J...... da ILC de ......, pela prática, a 28 de Julho de 2013, de crime de furto p. e p. no artigo 203º do Código Penal, na pena de 100 dias de multa.
28. AA foi condenado, por sentença transitada em julgado a 29 de Março de 2019, exarada no proc. nº 9/17...... do J...... do Tribunal Judicial de ......, pela prática, a 26 de Fevereiro de 2017, de crime de falsificação p. e p. no artigo 256º nº 1 al. e) e nº 3 do Código Penal, na pena de 200 dias de multa.
Parte cível:
29. O vestido de BB estragado pelo arguido tinha o valor de USD $ 300,00.
30. BB sente medo e angústia até à presente data, como consequência da actuação de AA.
***
III Factos não provados:
1. (…)
2. (…)
3. (…)
4. (…)
5. O arguido recebeu BB com maus modos e acedeu a levá-la ao referido destino, tendo realizado o percurso de forma brusca, com constantes acelerações e travagens, o que desde logo deixou a ofendida assutada.
6. O arguido disse à ofendida que uma vez que não tinha dinheiro, não a iria deixar no destino pedido.
***
IV- Motivação da decisão de facto:
Os arguidos não prestaram declarações sobre qualquer factualidade constante dos laudos acusatórios.
Proc. nº 721/17……
(…)
Proc. n.º 141/17......
A ofendida BB relatou os factos de forma vívida, credível e isenta, em conformidade com o que resultou provado/não provado.
Confirma a dinâmica do encontro e que tentou pagar o transporte com o cartão, ao que AA arrancou a viatura e acelerou. A ofendida abriu a porta, conseguiu sair do táxi e foi perseguida, batida com murros na cara e no corpo e viu a roupa rasgada pelo arguido, quando tentava libertar-se e fugir. As agressões na via pública continuaram, até que um motorista da Uber e respectivo passageiro – as testemunhas DD e EE - a recolheram da rua e a levaram do local.
BB declarou que sentiu muito medo, temeu ser assassinada; até hoje tem medo de apanhar um táxi na rua e recordar-se do sucedido lhe causa angústia. O vestido rasgado pelo arguido tinha sido adquirido por USD $300,00.
EE dá conta de que viu BB a entrar no táxi e minutos depois foi surpreendido por esta, em desalinho, com a cara ensanguentada e marcada por escoriações, a bater na viatura Uber onde se deslocava, pedindo socorro. Refere que tirou uma foto à matrícula do táxi de AA e a enviou à ofendida.
DD secundou o depoimento de EE.
As fotos da ofendida após a agressão constam de fls. 19 e ss. e foram examinadas pelo Tribunal, assim como a informação cedida pela Talentos Rápidos sobre a identificação do condutor da viatura (fls. 32, 33).
Proc.n.º 141/17.
(…)
Factos do pedido cível:
O Tribunal Colectivo ponderou as declarações de BB, que são consistentes e coerentes com a natureza dos factos ocorridos, tal como descritos pela própria e parcialmente presenciados por EE e DD.
Já o valor indicado para a roupa que envergava e que o arguido estragou, é plausível e compatível com os preços médios praticados.
O Tribunal Colectivo atentou nos relatórios sociais e CRCs juntos aos autos.
V Do Direito:
(…)
C) Do crime de ofensas à integridade física:
A matéria de facto provada permite enquadramento como ofensas à integridade física, cujo tipo base se encontra p. e p. no artigo 143.º, n.º 1 do Código Penal.
Como se referiu no Acórdão da Relação de Lisboa de 26/06/1990, in CJ, 1990, III, pág. 171 “a expressão ofensa corporal tem sentido de corresponder a uma agressão física, independentemente de dela resultarem ferimentos, consubstanciada num acto violento contra a integridade física de alguém”.
No caso concreto e face aos factos assentes por provados, conclui-se, sem margem para dúvidas, que quanto ao arguido estão reunidos todos os elementos, objectivos e subjectivos, tipificadores de um crime de ofensas à integridade física simples, na medida em que este, ao agir do modo descrito nos n.ºs 6 e ss. dos factos provados, actuou com conhecimento e vontade de produzir lesões no corpo da queixosa, logo, com dolo directo – artigo 14º nº 1 do Código Penal (artigo 3º dos factos provados).
Ao agir livremente como fez, quando podia e devia agir de outro modo, tendo consciência de que a sua conduta era proibida e punida por lei, esta é-lhe ética e juridicamente censurável, ou seja, o arguido agiu com culpa.
Conclui-se, pois, que o arguido foi autor do tipo criminal descrito no artigo 143º, n.º 1 do Código Penal, na forma consumada.
D) Do crime de sequestro:
O arguido foi acusado pela prática, em co-autoria, de um crime de sequestro, p. e p. no artigo 158, nº 1 do Código Penal.
Este ilícito corresponde, por referência aos factos constantes na acusação, à privação da liberdade de outrem.
A doutrina vem proclamando a suficiência, para verificação de tal crime, do dolo genérico, da consciência e vontade de privar alguém da sua liberdade de movimento e de a confinar a um determinado espaço.
«A estrutura da conduta é basicamente dolosa, no dizer de Muñoz Conde, para quem o dolo se traduz na vontade de impedir a alguma pessoa uso da sua liberdade ambulatória». (Derecho Penal, pág. 47).
«Basta-se o crime (de sequestro) com o preenchimento do dolo genérico, consistente na intenção de privar alguém da sua liberdade de movimento e de a confinar a um determinado espaço.» (Leal Henriques e Simas Santos, ob. cit., pág. 333. No mesmo sentido, Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense, I, pag. 409).
Atente-se ainda, no teor do Ac. da Relação de Coimbra de 11 de Março de 2009, segundo o qual, O crime de sequestro é um crime de execução permanente e não vinculada, em que se tutela o bem jurídico de liberdade de locomoção - in www. dgsi.pt.
***
No caso em apreço, ficou provado (cfr. nºs 6 e ss. dos factos provados) que a ofendida ficou retido no táxi, que retomou a marcha contra a sua vontade e propósito de sair do mesmo, tendo logrado fugir quando o arguido fez menção de trancar as portas.
Pelo que, será de condenar o arguido pela prática do crime de sequestro agravado, p. e p. no artigo 158, nº 1 do Código Penal.
***
VI – Da medida da pena:
Feito pela forma descrita o enquadramento jurídico-penal da conduta do arguido, importa agora determinar a natureza e medida da sanção a aplicar aos arguidos.
(…)
***
VII – Pedido de indemnização Civil:
Em ordem a aferir à responsabilidade civil do arguido, cumpre averiguar da verificação dos pressupostos do artigo 483º nº 1 do Código Civil, aplicável ex vi artigo 129º do Código de Processo Penal.
São eles:
- Um facto voluntário do agente,
- Ilícito,
- Culposo,
- A existência de um dano,
- E o nexo de causalidade entre o facto e o dano.
Atenta a factualidade tida como provada, bem como a qualificação jurídica já operada, dúvidas não subsistem de que o arguido cometeu facto ilícito, doloso e culposo, causando prejuízos à demandante, correspondente ao valor da roupa rasgada, que ficou provado ser USD $300,00.
Foram pedidos € 120,00, valor inferior ao provado e a que se cingirá a condenação, por não se poder condenar ultra petitum.
Ainda, o arguido causou a BB danos morais, correspondentes a dor pelas pancadas sofridas, medo de que o arguido a matasse e actualmente ainda medo e angústia, despoletadas pela recordação do sucedido.
Ponderadas a natureza das ofensas e dor e sofrimento causados à ofendida, este Tribunal considera adequado e proporcional ao ressarcimento dos danos morais sofridos, o valor de € 5.000,00 peticionado.
Sobre a quantia total de € 5.120,00 incidem juros, desde a data de notificação do arguido do pedido de indemnização civil – conforme artigo 805º nº 3 do Código Civil, à taxa anual de 4% e artigo 559º do Código Civil, e Portaria n.º 291/03, de 8 de Abril. (…).
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iv – fundamentação.
iv.1. da (in)competência do Tribunal para apreciação do pedido de indemnização civil deduzido contra a sociedade demandada e baseado na responsabilidade do comitente.
A recorrente insurge-se contra a decisão recorrida argumentando que a incompetência absoluta declarada pelo Tribunal a quo para apreciar o pedido de indemnização por si deduzido contra a Demandada Talentos Rápidos – Táxis, Lda., viola tanto a aplicação do princípio consagrado na lei processual penal no artigo 71.º - o “princípio da adesão” - como esvazia o sentido do disposto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 500.º do Código Civil, quanto à responsabilidade extracontratual do Comitente pelos danos causados pelo Comissário.
O Tribunal a quo declinou a competência para conhecer do pedido deduzido contra a sociedade demandada, invocando os seguintes argumentos:
- O pedido de indemnização deduzido contra a Talentos Rápidos – Táxis, Lda. alicerça-se em relação contratual firmada entre esta e o arguido, pelo qual o segundo presta serviços de transporte por conta da primeira (…) a demandante não invoca como causa de pedir a prática de acto ilícito por parte desta demandada;
- o Acórdão do Pleno das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça n.° 7/99, de 17-6-1999 (DR. n.° 179, Série I-A de 1999-08-03), decidiu que se em processo penal for deduzido pedido cível, tendo o mesmo por fundamento um facto ilícito criminal, verificando-se o caso previsto no artigo 377.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, ou seja, a absolvição do arguido, este só poderá ser condenado em indemnização civil, se o pedido se fundar em responsabilidade extracontratual ou aquiliana, com exclusão da responsabilidade civil contratual.
- A adesão da demanda cível compreendida em processo penal restringe-se à indemnização por danos decorrentes de facto ilícito típico penal;
Concluiu pela incompetência absoluta do Tribunal para apreciar o pedido de indemnização deduzido por BB contra a Talentos Rápidos Táxis, Lda., decretando a absolvição da instância do “arguido AA artigo 73º do Código de Processo Penal e artigos 96º al. a) e 99º nº 1 do Código de Processo Civil, aplicável ex vi artigo 4º do Código de Processo Penal”.
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Tendo em consideração, por um lado, o regime legal processual civil que a decisão recorrida usou como respaldo, por outro lado, a circunstância de não ter expressamente declarado qualquer consequência absolutória da demandada sociedade e, por fim, por um último lado, o facto de na alínea i) do dispositivo do Acórdão ter sido proferida decisão que condenou o demandado AA no pedido, evidencia, desde logo, a ocorrência de um lapso de escrita que, ao abrigo do disposto no artigo 380º do Código de Processo Penal, este Tribunal ad quem não está impedido de ultrapassar e corrigir. 
Tendo concluído pela sua incompetência absoluta para conhecer do pedido de indemnização deduzido contra a demandada Talentos Rápidos – Táxis, Lda., o Tribunal a quo indicou a norma legal que prevê o efeito dessa incompetência – o artigo 99º, nº 1 do Código de Processo Civil estabelece que a verificação da incompetência absoluta implica a absolvição do réu da instância. Em caso de pluralidade de réus (leia-se demandados, no âmbito da lide cível enxertada no processo penal), sendo a incompetência absoluta referente a apenas um deles, será esse o “réu” a absolver da instância.
E não pode deixar de se entender que essa foi a intenção do Coletivo que proferiu a decisão recorrida, posto que em lado algum expressamente extraíu quanto à demandada Talentos Rápidos – Táxis, Lda. a consequência/efeito absolutório previsto na norma citada na decisão e, por outro lado, proferiu decisão condenatória do demandado AA.
Avançaremos, pois, partindo da correção desse evidente lapso, passando a ler-se “absolve-se da instância a demandada Talentos Rápidos – Táxis, Lda.” onde se lia “absolve-se da instância o arguido AA”.
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O artigo 71º do Código de Processo Penal consagra o princípio da adesão – “O pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respetivo, só o podendo ser em separado, perante o tribunal civil, nos casos previstos na lei.
Como se refere no “Assento nº 7/99”[1], citado na decisão recorrida:
“(…) dos vários sistemas possíveis nesta matéria para fazer valer a responsabilidade civil resultante da prática de um crime a lei seguiu a via da adesão obrigatória, como tal consagrada no artigo 71.o do Código de Processo Penal.
(…) o pedido de indemnização civil a deduzir no processo penal tem necessariamente por causa de pedir o facto ilícito criminal, ou seja, os mesmos factos que constituem também o pressuposto da responsabi­lidade criminal. ”.
E ponderando a previsão do artigo 377º, nº 1, do Código de Processo Penal, prossegue o referido Assento:
“E assim se compreende que é por força da autonomia entre as duas responsabilidades que o Tribunal absolva da responsabilidade criminal, mas possa conhecer da responsabilidade civil. Só que esta última é a responsabilidade emergente do facto ilícito criminal, ou seja, a responsabilidade a que se refere o artigo 483.o, n.o 1, do Código Civil.
Esta responsabilidade vem assim definida:
«Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilici­tamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obri­gado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação.»
Desta forma, o n.o 1 do artigo 377.o do Código de Processo Penal, quando manda condenar a indemni­zação civil, tem como pressuposto que esta indemni­zação resulte de um facto ilícito criminal e, no fundo, tendo como base o já citado artigo 483.o do Código Civil. Daí a alusão a que o pedido seja fundado: não é qualquer pedido, mas sim o fundado na responsa­bilidade aquiliana.
Disto tudo resulta que, no caso do referido preceito do Código de Processo Penal, só pode tratar-se de uma situação de responsabilidade civil extracontratual, com exclusão da responsabilidade civil contratual.”.
Esta linha de entendimento tem sido seguida na nossa Jurisprudência de modo uniforme e constante.
Disso constituem exemplo numerosos acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, todos eles no sentido de que em processo penal só poderá conhecer-se da responsabilidade civil emergente do facto ilícito criminal, ou seja, a responsabilidade cujos pressupostos estão previstos no artigo 483.o, n.o 1, do Código Civil, responsa­bilidade aquiliana ou responsabilidade extracontratual.
Nesse sentido se decidiu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12 de janeiro de 2000[2], onde se pode ler que “como flui, claramente, do disposto nos arts. 71°, n° 1, e 74°, n° 1, do C.P.P., 128°, do C.P./82, e 129º, do C.P./95, a acção cível que adere ao processo penal é a que tem por objecto a indemnização de perdas e danos causados por um crime e só essa. Logo, se o pedido não é de indemnização por danos ocasionados pelo crime, se não se funda na responsabilidade civil do agente, pelos danos que, com a prática do crime, causou, então, o pedido é, legalmente, inadmissível no processo penal. Consequentemente, pelos danos causados por um facto que não é susceptível de integrar um tipo legal de crime e que viola, exclusivamente, um crédito ou uma obrigação em sentido técnico, não pode pedir-se a respectiva indemnização no processo penal. Portanto, agora na perspectiva da competência do tribunal criminal, este é incompetente, em razão da matéria, para conhecer da pura responsabilidade civil contratual”.
No mesmo sentido, pode consultar-se o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12 de novembro de 2009[3]. Uma vez mais, o Supremo Tribunal de Justiça afirmou que “a causa de pedir na acção cível conexa com a criminal é sempre a responsabilidade civil extracontratual [pois que fundada na prática de um crime e não no incumprimento contratual] e não qualquer outra fonte de obrigações, como a responsabilidade civil contratual ou o enriquecimento sem causa”.
De novo com o mesmo entendimento, pode ler-se o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27 de fevereiro de 2013[4], onde, depois de se fazer referência ao acórdão de fixação de jurisprudência nº 7/99 e ao que nele se concluiu, se mencionou: “O artigo 377º nº 1 do CPP, tem pois em vista somente as situações em que apesar de o arguido ser absolvido pelos factos que constituem ilícito criminal, permaneçam factos que constituam responsabilidade civil objectiva, nos termos previstos no artº 483º nº 2 do Código Civil, ou seja, tem que existir necessariamente a mesma causa de pedir, isto é, os mesmos factos que são também pressuposto de responsabilidade criminal. Somente a responsabilidade contratual é excluída do campo do artº 377º nº 1 do CPP.”.
Ainda no mesmo sentido, deverá ver-se o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28 de maio de 2015[5], citado na decisão recorrida. Em tal aresto, seguiu-se o entendimento constante de que a ação civil que adere ao processo penal, ficando nele enxertada, é apenas a que tem por objeto a indemnização de perdas e danos emergentes do facto que constitua crime - se o pedido não é de indemnização por danos ocasionados pelo crime, não se funda na responsabilidade civil do agente pelos danos que, com a prática do crime causou, então esse pedido não é admissível em processo penal.
Neste último Acórdão do STJ pode ler-se o seguinte:
Dito de outro modo, os factos geradores da responsabilidade civil têm que ser os mesmos que justificam a responsabilidade criminal. Os responsáveis é que podem ser sujeitos jurídicos diferentes.
É claro que situações existem em que o responsável criminal (arguido), está a agir em nome de um responsável meramente civil – trabalhador a agir em nome ou em representação da entidade empregadora ou gerente a agir em nome ou em representação da sociedade (podendo coexistir uma responsabilidade solidária).
Assim, se a arguida fosse funcionária do A... , caso em que ocorreria uma relação de subordinação à respectiva entidade bancária sob cuja direcção e em cujo interesse actuava, poderia este responder enquanto comitente, nos termos do art.º 500º, nº 1, do CC. Tratar-se-ia ainda assim de responsabilidade objectiva do Banco.”.
O Tribunal a quo entendeu que a demanda da sociedade Talentos Rápidos – Táxis, Lda. era fundada em responsabilidade contratual.
Mas tal entendimento não se mostra correto.
Os danos cuja reparação é pedida, como é bom de ver, são os provenientes da prática do crime imputado ao arguido AA. Como refere a demandante, não é peticionada a reparação de danos resultantes de incumprimento ou cumprimento defeituoso de qualquer contrato.
O facto de a pretensão da demandante ser destinada a acionar, para além do mais, responsabilidade mediata ou indireta, não nos arreda do domínio da responsabilidade extracontratual – a responsabilidade do comitente é, precisamente, um dos casos em que a responsabilidade é imputada a alguém que não praticou pessoalmente o facto ilícito, mas funda-se, ainda assim, num comportamento alheio ilícito, culposo e danoso.
A regulamentação da responsabilidade do comitente assenta no artigo 500º, nº 1, do Código Civil, preceito que estabelece:
“Aquele que encarrega outrem de qualquer comissão responde, independentemente de culpa, pelos danos que o comissário causar, desde que sobre este recaia também a obrigação de indemnizar.”.
Deste preceito decorre que o comitente é considerado res­ponsável por factos que não cometeu, sendo que a imputação de responsabilidade opera ainda que o comitente não tenha tido qualquer culpa pelos danos verificados na esfera de um terceiro lesado.
Constitui um caso de responsabilidade por facto alheio.
O comitente responde pelo ato do comissário. O seu dever de indemnizar origina-se na esfera do comissário, recaindo depois sobre a pes­soa do comitente.
O regime previsto no artigo 500º do Código Civil enquadra-se no âmbito da responsabilidade extracontratual, não pressupondo a existência de qualquer vínculo contratual entre o lesado e o responsável civil.[6]
A responsabilidade do comitente assenta na comissão[7] e depende, para além dela, dos seguintes requisitos:
- que ocorram danos causados pelo comissário no exercício da sua funções;
- que o comissário esteja obrigado a indemnizar (por imputação delitual ou objetiva).
O que, de imediato, resulta da leitura do artigo 500º do Código Civil é que a responsabilidade do comitente ali prevista é independente de culpa deste – trata-se de responsabilidade objetiva assente na relação de comissão e originada por facto danoso praticado pelo comissário no exercício das suas funções.
Efetivamente, estabelece o nº 2 do artigo 500º do Código Civil que:
“A responsabilidade do comitente só existe se o facto danoso for pra­ticado pelo comissário, ainda que intencionalmente ou contra as instru­ções daquele, no exercício da função que lhe foi confiada.”.
Assim, a responsabilização do comitente depende da circunstância de o facto danoso do comissário ter sido praticado no quadro funcional da relação de comissão.
Como refere Nuno Morais[8], entre nós, a maioria da doutrina defende que se devem considerar abrangidos todos os actos que caiam no quadro geral das funções atribuídas, definindo Antunes Varela como tal todos aqueles actos que tenham com as funções cometi­das um nexo de causalidade — que sejam previsível e abstractamente ade­quadas ao exercício daquelas funções.
Excluem-se, pois, do âmbito do quadro de funções os actos praticados por ocasião do exercício das funções, sendo que neste caso, o nexo entre o facto danoso e as funções cometidas ao comissário é meramente temporal ou espacial. Mas, em contrapartida, devem-se considerar abrangidos os fac­tos ocorridos, ou actos praticados, em abuso de funções. E isto porque, por definição, o abuso de funções implica o seu uso, ou seja, uma prática exces­siva das suas próprias funções, o que manifestamente determina a existência de uma relação causal entre as funções do comissário e o facto danoso. E note-se que assim será, independentemente de o facto ter sido praticado pelo comissário intencionalmente ou contra ordens expressas do comitente.”.
A causa de pedir subjacente à responsabilização do comitente é integrada pelo facto típico, ilícito e culposo do comissário, pelos danos e pela relação de comissão.
Daí que não haja dúvida sobre a possibilidade de se acionar a responsabilidade do comitente no âmbito de lide cível enxertada no processo penal, a fim de se obter a condenação da pessoa civilmente responsável pela reparação dos danos.
E facilmente se encontram exemplos claros na jurisprudência dos nossos Tribunais que afirmam a competência do foro criminal para conhecer de pedidos de indemnização visando a responsabilização do comitente com base em factos ilícitos típicos e culposos praticados por comissário.  
Pode ler-se, desde logo, no recente Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 14 de janeiro de 2019[9] o seguinte:
“Descendo ao caso dos autos é meridiano que o Tribunal “a quo” é o materialmente competente para conhecer dos pedidos cíveis apresentados nesta lide, posto que a causa de pedir alegada foi, em parte, a conduta delituosa que nestes autos se acha acusado e foi sujeito a julgamento o arguido, sendo indiferente a fonte de tal responsabilidade para o próprio ou para terceiros com ele demandados.
Lapidar é o teor do aresto do Tribunal da Relação de Coimbra (Acórdão datado de 18/10/2017, prolatado no Processo nº 68/11.4TAPNI.C1, publicado em www.dgsi.pt) onde foi decidido que “No pedido de indemnização civil deduzido ao abrigo da previsão normativa do artigo 71.º do CPP, a causa de pedir é constituída pelos factos constitutivos da prática de um crime. II Dito de outro modo, os factos geradores da responsabilidade civil e os que justificam a responsabilidade criminal são necessariamente coincidentes. III Não obstante, nessas duas modalidades de responsabilidade, podem ser diferentes os respectivos sujeitos jurídicos passivos. IV Com efeito, o pedido de indemnização pode ser deduzido contra pessoas com responsabilidade meramente civil, ou seja, as que não são penalmente co-responsáveis pelos factos imputados ao arguido no estrito âmbito do processo penal v.g. responsabilidade das pessoas obrigadas e vigilância de outrem (art. 491.º do CC), responsabilidade do comitente no caso de acto do comissário no exercício da função que constitua crime (arts. ....º e 503.º do CC), responsabilidade da seguradora (…)”.
No Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 17 de abril de 2013[10],  são-nos oferecidos outros exemplos jurisprudenciais na matéria. Ali podemos ler as seguintes referências aos Acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 6 de outubro de 2009 e de 13 de dezembro de 2000:
Por exemplo, a questão da responsabilidade do Banco comitente no caso objecto do citado ARC de 06-10-2009 mereceu uma resposta positiva porque dos factos provados concretamente se omnicompreendeu que o director de balcão daquele, “… servindo-se dessas funções e prometendo taxas de juro elevadíssimas em contrapartida de supostas aplicações em sucursais do Banco no estrangeiro, cuja constituição propõe a diversos clientes do mesmo, convence estes clientes a entregarem-lhe valores, supostamente destinados a constituir tais aplicações - entregando-lhes, por sua vez, "documentos" por si forjados (designadamente, quanto ao "timbre", aos dizeres, e às "assinaturas”), com o nome do Banco, a "confirmar" as ditas "aplicações" -, quando, na realidade, deposita esses valores em contas que possuía noutras instituições bancárias e utiliza-os em proveito próprio”, numa formulação de cariz hipotético dir-se-á que a responsabilidade objectiva do Banco comitente funda-se no facto tipicamente ilícito e culpável directa e necessariamente danoso causalmente do desempenho funcional ou profissional de director de balcão qual comissário contratado da actividade bancária  de risco da prática de tal facto adequadamente não imprevisível directa e imediatamente pelo comitente.
Para contraponto, a questão da responsabilidade do Centro Popular Cultural e Desportivo no caso objecto do ARC de 13-12-2000 mereceu resposta negativa porque dos factos provados, que o Arguido jogador 8 da equipa de futebol daquela Agremiação, ao desferir livre e consciente e deliberadamente um murro na cara mais um pontapé na zona do braço e abdómen da pessoa do Assistente que era o árbitro da partida do campeonato de divisão distrital da Associação de Futebol ao minuto 24 da II parte do jogo e na sequência da exibição de um cartão amarelo, concretamente se omnicompreendeu que “o exercício por parte do comissário jogador de violência física sobre o árbitro … está fora do âmbito da comissão, pelo que, in casu, fica excluida a respon-sabilidade do comitente” (ponto VI do Sumário daquele ARC) porque “… violência física para o pressionar em dado sentido ou até – o que se diz para caracterizar uma hipótese extrema – para tirar desforço de alguma decisão com a qual não se concorde” constitui um “… comportamento [que] está, manifestamente, fora do âmbito da comissão acima referida, não correspondendo a instruções recebidas nem lhe sendo uma consequência previsível do exercício da função que lhe é inerente” (corpo daquele ARC) [46], numa formulação de cariz hipotético dir-se-á inexistir responsabilidade objectiva da Agremiação por facto tipicamente ilícito e culpável directa e necessariamente danoso causalmente do desempenho funcional ou profissional de jogador daquela quando a prática de tal facto não é objecto de risco de adequada previsibilidade directa e imediata pelo comitente mercê da actividade cujo desempenho este concretamente contratou.”.
No referido Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 17 de abril de 2013,  encontramos a seguinte síntese justificativa da competência do foro criminal para a apreciação da situação daqueles autos: “Donde decorre que a causa de pedir do PIC objecto, posto que deduzível, em processo penal é única e exclusivamente o facto tipicamente ilícito e culpável integrado por todos os seus elementos objectivos e subjectivos constitutivos de um tipo legal previsto e punido como crime concomitantemente consubstancidor de um facto tipicamente ilícito civil extra contratual ou extra obrigacional culposo e causalmente danoso responsabilizante criminal e civilmente do agente singular ou dos comparticipantes que sejam autor/es ou seu/s cúmplices e responsabilizante apenas civilmente de outra/s pessoa/s então com uma responsabilidade meramente civil (…)”.
Nesse Ac. da Relação do Porto de 17 de abril de 2013 conheceu-se da responsabilidade civil dos proprietários de estabelecimento comercial de prestação de serviços administrativos de contabilidade que contrataram a arguida dos autos, tendo-se concluído que os comportamentos desta, consubstanciados na prática de uma “catadupa” de crimes de abuso de confiança, burla e falsificação de documentos, não permitiam concluir pela demonstração de uma atuação “… no exercício da função que lhe foi confiada”, nos termos do artigo 500º, nº 2, in fine do Código Civil, “posto que não foram, nem podiam ter sido objecto possível de juízo de F... e mulher G... de risco por adequada previsibilidade directa e imediata da possibilidade da ocorrência de tão vasta actividade criminosa alheia a um normal desempenho da actividade dos serviços que concretamente contrataram com B...”.
Aqui chegados, desçamos ao caso concreto.
A demandante BB deduziu o pedido de indemnização contra o arguido AA e contra a sociedade Talentos Rápidos – Táxis, Lda., alegando os factos vertidos na acusação deduzida contra aquele, invocando a circunstância de os mesmos terem ocorrido em contexto em que o mesmo estava a conduzir o táxi como “funcionário da empresa Talentos Rápidos – Táxis Lda.”, invocando a verificação de uma relação de comissão entre os dois demandados, com subordinação do arguido à sociedade demandada, numa situação que visava a prossecução de uma atividade por conta e no interesse do comitente.
A demandada Talentos Rápidos – Táxis, Lda. apresentou contestação em que invocou a exceção de ilegitimidade passiva e impugnou os factos alegados pela demandante, concluindo pela improcedência do pedido contra si dirigido. Nos termos alegados nessa contestação, a improcedência decorreria da circunstância de a demandada jamais ter dado qualquer instrução ao demandado, sendo a relação existente entre os demandados a de um contrato de prestação de serviços mediante o qual a demandada entregava o táxi ao demandado para que este gerisse, como bem entendesse, a exploração do veículo, sendo que o motorista arguido não era seu trabalhador, jamais tendo sido admitido ao serviço da demandada, sendo dela totalmente independente.
Sendo o objeto da lide cível enxertada conformado pelos referidos articulados e seus fundamentos, não podemos deixar de concluir que a causa de pedir subjacente à responsabilização da demandada Talentos Rápidos – Táxis, Lda. é integrada pelo facto típico, ilícito e culposo imputado ao demandado e arguido AA, sendo essa a fonte dos danos cuja reparação se pretende acionar (danos esses que, do mesmo modo, integram a causa de pedir) – estamos, pois, no domínio da responsabilidade civil extracontratual que visa a indemnização de perdas e danos emergentes do facto que constitui o crime em causa na lide criminal.
O facto de a causa de pedir (porque complexa) ser também integrada pela relação de comissão não descaracteriza o tipo de responsabilidade civil acionado.
Parafraseando o Acórdão do STJ de 28 de maio de 2015, diremos que no caso dos autos os factos geradores da responsabilidade civil são os mesmos que justificam a responsabilidade criminal – um dos alegados responsáveis civis é, porém um sujeito jurídico diferente do responsável criminal. Na economia da lide cível enxertada, o responsável criminal (arguido), agiu em nome de um responsável meramente civil – na versão factual vertida no pedido surge como trabalhador a agir no interesse e por conta da entidade empregadora (podendo coexistir uma responsabilidade solidária). A demanda é trazida perante o tribunal criminal para reparação dos danos causados pelo crime, sendo invocada pela demandante uma relação de subordinação do arguido condutor do táxi à respectiva entidade empregadora sob cuja direcção e em cujo interesse actuava, visando-se que esta responda enquanto comitente, nos termos do art.º 500º, nº 1, do CC.
Bem vistas as coisas, no caso dos autos, estamos em face de uma causa de pedir que permite a dedução do pedido de indemnização civil em processo penal – ela assenta única e exclusivamente no facto tipicamente ilícito e culposo, integrado por todos os seus elementos objectivos e subjectivos, constitutivos de um tipo legal previsto e punido como crime, facto esse que concomitantemente é consubstanciador de um facto tipicamente ilícito civil, extra contratual, culposo e causalmente danoso, responsabilizante criminal e civilmente do agente singular e, por outro lado, responsabilizante apenas civilmente de outra pessoa, esta com uma responsabilidade meramente civil – a sociedade que alegadamente incumbiu o arguido da exploração do táxi (comitente).
A causa de pedir do pedido objecto dos presentes autos, ao contrário do que concluiu o Tribunal a quo, não é o contrato celebrado entre a demandante e os demandados. Tal como refere a demandante, o seu pedido não é dirigido a obter o cumprimento de obrigação não cumprida pontualmente, ou o cumprimento da obrigação de prestar, ou o cumprimento da obrigação de indemnizar por reconstituição natural ou por compensação pecuniária sucedânea daquele (responsabilidade contratual ou obrigacional por violação de uma disposição contratual).
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Aqui chegados, importa concluir pela procedência do recurso na parte em que peticiona a revogação da decisão que declarou a incompetência absoluta do Tribunal para apreciar o pedido de indemnização deduzido por BB contra a demandada Talentos Rápidos – Táxis, Lda..
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Cabe indagar das consequências que devem decorrer de tal revogação, afirmando-se, desde já, que as mesmas não podem corresponder à prolação por este Tribunal ad quem de uma decisão condenatória da demandada no pedido, como pretende a recorrente.
Vejamos.
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Por ter erradamente concluído que se estava perante o accionamento de responsabilidade contratual e porque a apreciação desta é excluída do domínio do processo criminal, o Tribunal a quo declarou-se incompetente e, por isso, não conheceu da demanda apresentada por BB contra Talentos Rápidos – Táxis, Lda.
Como vimos, tal demanda importa a apreciação de responsabilidade civil extracontratual que visa a indemnização de perdas e danos emergentes do facto que constitui o crime em causa na lide criminal, impondo o princípio da adesão a sua apreciação no processo penal. O Tribunal a quo não podia deixar de apreciar a questão.
Deste modo somos conduzidos à nulidade da decisão recorrida por omissão de pronúncia.
O vício de omissão de pronúncia consubstancia-se numa ausência, numa lacuna, quer quanto a factos, quer quanto a consequências jurídicas - isto é, verificar-se-á quando se constatar que o tribunal não procedeu ao apuramento de factos, com relevo para a decisão da causa que, de forma evidente, poderia ter apurado e/ou não investigou, na totalidade, a matéria de facto, podendo fazê-lo ou se absteve de ponderar e decidir uma questão que lhe foi suscitada ou cujo conhecimento oficioso a lei determina.
Numa primeira abordagem, poderemos dizer que para se verificar a nulidade da sentença por omissão de pronúncia, é necessário que o tribunal deixe de se pronunciar sobre questões pertinentes para o objeto do processo, tal como delimitado pela acusação e pela contestação, bem como, nos casos em que existam, pelos articulados relativos ao pedido de indemnização civil.
Na verdade, a omissão de pronúncia significa, na essência, ausência de posição ou de decisão do tribunal em caso ou sobre matérias em que a lei imponha que o juiz tome posição expressa sobre questões que lhe sejam submetidas: as questões que o juiz deve apreciar são todas aquelas que os sujeitos processuais interessados submetam à apreciação do tribunal, e as que sejam de conhecimento oficioso, isto é, de que o tribunal deva conhecer independentemente de alegação e do conteúdo concreto da questão controvertida, quer digam respeito à relação material, quer à relação processual.
Verificada a omissão de pronúncia sobre factos alegados nos articulados relativos ao pedido de indemnização civil, quanto à suscitada questão de ilegitimidade passiva da demandada e, improcedendo esta questão, quanto ao mérito da demanda contra a Talentos Rápidos – Táxis, Lda., estamos perante causa de nulidade do acórdão recorrido, nos termos do disposto no artigo 379º, nº 1, al. c), do Código de Processo Penal.
Efetivamente, por via da declaração de incompetência, deixou o Tribunal a quo de se pronunciar sobre factos e questões relativos à obrigação de indemnização, com fundamento na responsabilidade do comitente.
Essa dimensão não foi perspectivada pela decisão recorrida, constituindo, por isso, omissão de pronúncia - o acórdão recorrido é nulo nos termos do nº 1 al. c) do artº 379º do CPP porque omitiu pronúncia sobre questão que era obrigado a decidir.
Dispõe o artigo 379º, nº 2, do Código de Processo Penal:[11]
“2. As nulidades da sentença devem ser arguidas ou conhecidas em recurso, devendo o tribunal supri-las, aplicando-se, com as necessárias adaptações o disposto no nº 4 do artigo 414º.”.
Do teor da norma não pode deixar de resultar que o tribunal de recurso, independentemente de arguição das nulidades da sentença, está obrigado a conhecê-las - nesse sentido, cfr. Oliveira Mendes, in Código de Processo Penal Comentado, Almedina, 2014, p. 1183, que escreve:
“A letra da lei é unívoca: «as nulidades da sentença devem ser… conhecidas em recurso». Como se refere no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27 de Outubro de 2010, proferido no Processo nº 70/07.0JBLSB.L1.S1, as nulidades da sentença, conquanto não sejam insanáveis, uma vez que não incluídas nas nulidades previstas no artigo 119º do CPP, são cognoscíveis em recurso, mesmo que não arguidas, visto que as nulidades da sentença enumeradas no artigo 379º, nº 1, têm regime próprio e diferenciado do regime geral das nulidades dos restantes actos processuais”.
A alteração introduzida no nº 2 do artigo 379º do Código de Processo Penal pela Lei nº 20/2013, de 21.02., impõe ao tribunal de recurso o dever de suprir as nulidades da sentença recorrida. Porém, tal suprimento não deverá ser efectuado pelo tribunal de recurso quando a nulidade só possa ser suprida pelo tribunal recorrido.
É precisamente o que sucede no caso dos autos.
A nulidade do acórdão não afeta os atos processuais a ele anteriores e, designadamente, toda a actividade probatória que foi desenvolvida em audiência de julgamento.
Na audiência de julgamento realizada em primeira instância foram produzidas todas as provas indicadas nos autos, inclusivamente a prova referente ao pedido de indemnização civil. Tais provas foram produzidas perante o Tribunal a quo, beneficiário da imediação, com todas as vantagens que decorrem para a melhor apreciação dessa prova. Tendo o colectivo, em questão prévia, entendido ser o Tribunal incompetente para conhecer do pedido de indemnização deduzido contra a demandada sociedade, não foram enunciados na decisão final os factos provados e não provados referentes a tal questão, não tendo, por consequência, sido exarada motivação da decisão de facto no que a tal questão se reportava.
Não obstante a circunstância de a prova se achar registada (o que, sublinhamos, não significa a possibilidade de fornecer imediação a quem aceda às gravações), não pode este Tribunal ad quem substituir-se ao tribunal de primeira instância no julgamento de facto dessa matéria – isso redundaria na supressão de um grau de jurisdição e constituiria interpretação do artigo 379º, nº 2, do Código de Processo Penal manifestamente inconstitucional, por violação do disposto nos artigos 20º e 32º da Constituição da República Portuguesa.
A propósito dos limites da possibilidade de suprimento de nulidades pelo tribunal de recurso, podem ler-se, entre outros, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 21 de outubro de 2021[12], de 7 de outubro de 2021[13] e de 30 de maio de 2018[14].
Não sendo possível o suprimento da nulidade por este Tribunal ad quem, impõe-se que o processo volte ao Tribunal ad quo para esse efeito, em respeito ao mandamento constitucional decorrente do direito fundamental ao recurso (a uma via de recurso).
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V. DECISÃO
Pelo exposto acordam os Juízes desta Relação em jugar parcialmente procedente o recurso interposto pela Demandante BB e, em consequência:
i. em revogar a decisão recorrida na parte em que declarou a incompetência absoluta do Tribunal para apreciar o pedido de indemnização deduzido por BB contra Talentos Rápidos – Táxis, Lda.;
ii. em declarar a nulidade da decisão recorrida, por omissão de pronúncia, nos termos do disposto na al. c) do nº 1 do artigo 379º do Código de Processo Penal, determinando-se a prolação de novo acórdão pelo mesmo Tribunal Coletivo, em que seja suprida a nulidade verificada, conhecendo-se da lide cível com toda a sua amplitude, designadamente no que se reporta à demanda da sociedade Talentos Rápidos – Táxis, Lda..
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Sem custas.
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D.N.
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O presente acórdão foi elaborado pelo Relator e por si integralmente revisto (art. 94º, n.º 2 do C.P.P.).
Lisboa, 7 de dezembro de 2021
Jorge Antunes  
Sandra Oliveira Pinto
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[1] Corresponde ao acórdão de fixação de jurisprudência de 17 de Junho de 1999, do Pleno das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça, publicado como “Assento nº 7/99” no Diário da República – I Série A - nº 179, de 3 de agosto de 1999,  que fixou a seguinte jurisprudência obrigatória: «Se em processo penal for deduzido pedido cível, tendo o mesmo por fundamento um facto ilícito criminal, verificando-se o caso previsto no artigo 377.o, n.o 1, do Código de Processo Penal, ou seja, a absolvição do arguido, este só poderá ser condenado em indemnização civil se o pedido se fundar em responsabilidade extracontratual ou aquiliana, com exclusão da responsabilidade civil contratual.».
[2] Cfr. o Ac. STJ de 12.01.2000 – Relator Conselheiro Leonardo Dias – acessível em www.dgsi.pt.
[3] Cfr. o Ac. STJ de 12.11.2009 – Relator Conselheiro Santos Carvalho – acessível em www.dgsi.pt.
[4] Cfr. o Ac. STJ de 27.02.2013 – Relator Conselheiro Pires da Graça – acessível em www.dgsi.pt.
[5] Cfr. o Ac. STJ de 28.05.2015 – Relatora Conselheira Helena Moniz – acessível em www.dgsi.pt.
[6] Nisso se distinguindo do regime legal previsto no artigo 800º do Código Civil que, esse sim, funciona em situações em que há uma relação contratual entre o lesado e o responsável civil, sendo o dever de indemnizar deste fundado num qualquer ato danoso de um seu dependente, representante legal ou pessoa que utilize para o cumprimento da obrigação, como se se tal ato fosse praticado pelo próprio devedor. Neste domínio, o lesado não é um terceiro, mas antes parte da relação jurídica contratual estabelecida com o representado.
[7] Por comissão deve entender-se toda a tarefa de que uma pessoa (o comissário) tenha sido incumbida por outra (o comitente), desde que: i. exista escolha do comitente; ii. o comissário aja no interesse do comitente; iii. estabelecendo-se uma relação de subordinação do primeiro ao último. A incumbência pode traduzir-se em qualquer contrato destinado a esse efeito, nominado ou não, ou emergir de uma situação jurídica mais complexa, como por exemplo de um contrato de trabalho.
[8] Cfr. Nuno Morais, in A Responsabilidade objetiva do comitente por facto do comissário, Revista Julgar, nº 6, 2008, p. 57.
[9] Cfr. o Ac TRG de 14.01.2019 – Relatora: Desembargadora Maria José dos Santos de Matos - acessível em: http://www.dgsi.pt/jtrg.nsf/86c25a698e4e7cb7802579ec004d3832/8c05a16c5cf7268f802583990035c5e3?OpenDocument
[10] Cfr. o Ac TRP de 17.04.2013 – Relator: Desembargador José Manuel da Silva Castela Rio – acessível em: http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/8e7bccf116dcec6d80257b7500485911?OpenDocument
[11] O nº 2 do artigo 379º do CPP foi introduzido pela Lei nº 58/98, de 25 de agosto. A sua redacção foi alterada pela Lei nº 20/2013, de 21 de fevereiro.
[12] Cfr. Ac. do STJ de 21.10.2021 – Relatora: Conselheira Helena Moniz – acessível em: http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/d106e9dc9803be7a80258779004259b8?OpenDocument. 
[13] Cfr. Ac. do STJ de 07.10.2021 – Relatora: Conselheira Helena Moniz – acessível em: http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/ebb79626f3155fb88025876e0035a551?OpenDocument
[14] Cfr. Ac. do STJ de 30.05.2018 – Relator: Conselheiro Raúl Borges – acessível em: http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/0d52841d92c17e4280258330002f723e?OpenDocument