Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
458/22.7T8ALM.L1-7
Relator: ALEXANDRA DE CASTRO ROCHA
Descritores: ARRENDAMENTO
ARRENDAMENTO HABITACIONAL
RESOLUÇÃO
NÃO USO DO LOCADO
INDEMNIZAÇÃO AO SENHORIO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/21/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: I – Para que se considere cumprido o ónus a que alude o art. 640.º n.º1 c) do Código de Processo Civil, não basta que o recorrente indique que, relativamente a determinados factos provados, deveria ser proferida decisão diversa: terá de indicar se pretende que os segmentos que identifica passem para a matéria não provada, ou se deverá, nos factos provados, ser-lhes dada uma redacção diversa (e qual é a redacção pretendida).
II – Conforme resulta da redacção do art. 1083.º n.º1 e 2 d) e e) do Código Civil, não é qualquer falta de uso do prédio ou cessão não autorizada do gozo do mesmo a terceiros que constitui fundamento de resolução do contrato de arrendamento. É necessário que o incumprimento da sua obrigação, pelo arrendatário, atinja uma tal gravidade que torne inexigível ao locador a manutenção do contrato.
III – Para que exista obrigação de indemnização, é necessário que o comportamento imputado ao lesante seja causa adequada dos danos sofridos, ou seja, é mister que, de acordo com a teoria da causalidade adequada, o facto concreto praticado seja, em geral e abstracto, adequado a e apropriado para provocar o dano (formulação positiva daquela teoria) e que para a produção do dano não tenham contribuído, decisivamente, circunstâncias anormais, extraordinárias ou anómalas, que intercederam no caso concreto (formulação negativa da mesma teoria).
IV – O montante da indemnização pelo atraso na restituição do locado encontra-se pré-fixado no art. 1045.º n.º1 e 2 do Código Civil, não sendo admissível o estabelecimento de indemnização superior, baseada no valor locativo actual do imóvel.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

RELATÓRIO:
F, G, H, I e J intentaram a presente acção declarativa, com processo comum, contra X, pedindo que seja declarada a resolução do contrato de arrendamento identificado na petição inicial e que, em consequência, seja decretado o respectivo despejo, «condenando-se a R. a restituir aos AA. o local arrendado totalmente devoluto de pessoas e bens, assim como efectuar um pagamento correspondente a 635,00 mensais desde a data da propositura da presente acção até à entrega do imóvel».
Para tanto, alegam serem proprietários de determinado prédio urbano, do qual a R. é arrendatária, sendo certo que esta há alguns anos que não reside no  locado, antes o vindo a subarrendar a jovens estrangeiras. Pretendem, ainda, que, ao pagar uma renda de € 184,87 e ao subarrendá-lo por um valor muito superior, a R. obtém lucro dessa actividade, inviabilizando que os AA. o coloquem no mercado e beneficiem de uma renda que, de acordo com as leis do mercado, corresponde a, pelo menos,  € 625,00 mensais.
A R. contestou, impugnando os factos invocados pelos AA. e alegando que efectivamente reside no locado, sendo certo que tem estado a acompanhar um tio que se encontra doente, permanecendo na casa deste durante o dia e uma ou outra noite em que o tio necessite de maiores cuidados.
Dispensada a realização de audiência prévia, foi tabelarmente saneado o processo, após o que foi identificado o objecto do litígio [«a) Aquilatar se deverá ser declarado resolvido o contrato de arrendamento celebrado entre as partes e cujo objecto é o prédio sito na Rua … Costa da Caparica, descrito na 2.ª Conservatória do Registo Predial de Almada sob a descrição nº … da freguesia de Costa da Caparica e inscrito na matriz predial urbana artigo n.º…da freguesia da Costa da Caparica, por falta de residência no locado por parte da Ré; b) Em caso afirmativo, aferir se a Ré X deverá ser condenada a restituir o locado livre de pessoas e bens;
c) Aferir se a Ré deverá ser condenada a pagar aos Autores a quantia correspondente a € 625,00 (seiscentos e vinte e cinco euros) mensais desde a data da propositura da presente acção até à efetiva entrega da fracção em causa»] e foram enunciados os temas da prova [«i. Aferir se a Ré deixou de habitar o locado, e, na afirmativa, desde quando; ii. Apurar se a Ré cedeu totalmente o uso e fruição da fracção por si arrendada aos Autores, a uma ou mais pessoas, sem o conhecimento ou autorização dos Senhorios, mediante a contrapartida de pagamento de um valor mensal; iii. Averiguar acerca do valor da renda no mercado imobiliário, para a fracção em apreço, mormente se corresponde ou não a pelo menos € 625,00 (seiscentos e vinte e cinco euros)»].
Procedeu-se a audiência final e, após, foi proferida sentença, que concluiu com o seguinte dispositivo:
«Em face do exposto, julga-se a presente ação procedente por provada e, consequência:
a) Declara-se resolvido o contrato de arrendamento celebrado entre os Autores F, G, H, I e J, e a Ré X, relativo à fração autónoma, letra designado por 3º andar, identificado na caderneta predial como: “Andar ou divisão com utilização independente: …” e que integra o prédio urbano sito na Rua … Costa da Caparica, descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial sob a descrição nº … da freguesia de Costa da Caparica e inscrito na matriz predial urbana artigo nº …da freguesia da Costa da Caparica.
b) Condena-se a Ré a entregar imediatamente aos Autores o locado livre e desocupado.
c) Condena-se a Ré ao pagamento do valor de €625,00 mensais desde a data da propositura da ação até à entrega do imóvel (valor este que até operar a resolução decretada em a), inclui o montante de €184,87, fixado a título de renda do locado).
*
Custas pela Ré - (cfr. artigo 527º, nº1 e nº 2 do Código de Processo Civil)».
Não se conformando esta decisão, dela apelou a R., formulando, no final das suas alegações, as seguintes conclusões:
« I - Quanto a aferir se a Ré deixou de habitar o locado, e, na afirmativa, desde quando;
A. Por falta de correspondência com a verdade (erroneamente apurada pelo tribunal a quo), foram incorrectamente provados os factos seguintes: 4, 6, 8, 10, 11, 14, 15, 16, 17, 20, 21, 22, 23, 24.
B. A Ré reside no locado desde março de 1972 e paga, atualmente, 197,70€ de renda mensal.
C. O prédio dos autos não tem elevador
D. Até ao fim do 3º trimestre de 2021, o estado de saúde da Ré estava controlado e era ela que cuidava do tio M.
E. Porém, as dores neuropáticas bilaterais e síndrome de dor crónica agravaram-se e a Ré foi alvo de internamento hospitalar seguido de recuperação longa e difícil.
F. Essa recuperação tem sido feita em casa do seu tio M, por reunir as condições adequadas.
G. A Filha da Ré, Z que reside com a mãe no locado, passou a ser cuidadora, quer do tio quer da mãe, sobretudo a partir da data em que esta esteve internada na CUF
H. Os documentos clínicos juntos a fls 34 verso e 72 a 73 dos autos, atestam com clareza o agravamento dos actuais problemas de saúde da Ré.
I. A Ré foi, até à data, operada 2 vezes à coluna
J. Quando a sua situação neurológica se agrava, não consegue andar nem subir escadas e fica acamada.
K. Quando fica melhor ajudam-na a subir as escadas e ela vai para sua casa no locado objecto dos autos.
L. A Ré aguarda que a chamem para fazer uma terceira operação, na esperança de poder recuperar a sua rotina normal e viver permanentemente na sua casa no locado objecto dos autos.
M. Nenhuma testemunha entrou na casa da Ré
N. Nenhuma testemunha pode afirmar que a Ré não vive no locado.
O. Nenhuma das testemunhas dos AA declarou ter entrado em casa da Ré, sita na … Costa da Caparica, ou ter convivido com a mesma, ou com as pessoas que eventualmente ela recebia em sua casa.
P. A Ré não deixou de habitar o locado, estando em recuperação e a aguardar a terceira cirurgia à coluna em casa do seu tio M, como foi afirmado pela sua filha e cuidadora Z e também pelo seu próprio tio.
II - Quanto a apurar se a Ré cedeu totalmente o uso e fruição da fração por si arrendada aos Autores, a uma ou mais pessoas, sem o conhecimento ou autorização dos Senhorios, mediante a contrapartida de pagamento de um valor mensal;
Q. Em 1 de Outubro de 2021, partiu-se um vidro na casa da Ré no 3º andar esquerdo norte, tendo os vidros caído no terraço do 1º andar, onde reside Y;
R. Z… informou a senhoria J da ocorrência.
S. J…, senhoria e Autora, bateu à porta da casa da Ré no 3º … e declarou que quem lhe abriu a porta foi uma estrangeira, com quem J alega ter trocado algumas palavras, concretamente que esta pagaria 250,00€.
T. J…, tentou aliciar a dita J… dizendo-lhe “que se a ajudasse “no processo” poderia, mais tarde, fazer-lhe um contrato legal”. J… disse também: Trocámos contactos, porque eu disse que tínhamos que mandar alguém para arranjar o vidro que estava partido. “…
U. J… requisitou o serviço da GNR para identificar uma “moradora” num prédio do qual alegou ser proprietária. (cópia de fls 54 e verso e 55 do C P nº16 284L; auto de ocorrência) o que alegadamente sucedeu às 19h15m do dia 4 de Outubro de 2021.
V. A GNR no dia 4 de Outubro de 2021, identificou N…, alemã, nascida em 30/9/1996 e refere que lhe perguntou se pagava alguma coisa e ela terá dito esta pagava 250,00€.)
W. N… é alemã, não se sabe bem o que respondeu, ou o que lhe foi perguntado. Não foi possível ouvir o contraditório, nada foi traduzido.
X. Nesse período (1 a 4 de outubro) Z estava a cuidar da sua mãe, por isso não estava no locado.
Y. Como referiu a testemunha X, a sua amiga N tinha estado a dormir e ficou muito assustada com a entrada da J pela porta dentro.
Z. A declarante J, entre 1 e 4 de Outubro de 2021, não contactou a arrendatária sobre a questão do vidro partido.
AA. Optou por contacta-la por carta, mas para a ameaçar de despejo caso não assinasse o documento 1 junto aos autos com a contestação em 6 de Outubro de 2021.
BB. Tudo quanto a declarante disse, foi de encontro às suas pretensões, mas não existe qualquer prova nos autos alem das suas declarações /suposições/presunções de que os factos tenham ocorrido como relatou.
CC. J declarou ainda que em 2023, ou seja 2 anos depois do episódio do vidro, falou com uma pessoa chamada N nos dia 1 e 4 de Outubro de 2021, a declarante vai novamente ao apartamento da arrendatária e quem lhe abriu a porta foi alguém chamado O.
DD. Entre a primeira ida ao locado e a colocação do vidro J declarou Min 16.42 da inquirição - não estabeleceu nenhum contacto com D. X, inquilina”.
EE. A Ré apelante nunca alugou ou subarrendou quartos, no locado.
FF. E consequentemente não teve que pedir autorização nenhuma aos AA para o efeito.
GG. J referiu que muito mais tarde teve uma conversa telefónica com a Ré com o seguinte teor: ” Foi uma conversa pelo telefone em …. Já não me lembro, qual é que foi a parte inicial da conversa e disse : olhe isto que está a fazer é uma situação ilegal. O melhor em vez de irmos para Tribunal e tudo, é a senhora entregar o apartamento e ela disse (mas é que eu não posso subir até ao 3º andar) e eu disse: tudo bem, mas o apartamento não é seu. A senhora não pode subir até ao 3º andar, tem que nos entregar o apartamento. Ela disse: ah, não, eu às vezes vou lá. Pronto. Depois tivemos uma discussão um bocado …(imperceptível). As nossas conversas terminaram aí. Depois houve a situação do gás, em que eu supostamente tinha que informar a inquilina.
HH. A Apelante apresentou queixa crime contra J por invasão de domicilio, (Ministério Público – Procuradoria da República da Comarca de Lisboa -DIAP 3ª Secção -Processo nº …) tal como consta na contestação apresentada pela ora Apelante na presente acção, e sobre a qual recaiu um despacho de arquivamento e citamos: “Por não ter sido possível recolher indícios seguros e suficientes da pratica, pela arguida, dos factos denunciados e susceptíveis de integrar a prática do crime de violação de domicílio”…. como aliás consta do texto da sentença recorrida.
II. A decisão de arquivamento do Tribunal sobre esta queixa foi essencialmente a de que não tinha havido invasão de domicílio, porque a porta foi aberta voluntariamente.
JJ. O Ministério Público não apurou rigorosamente mais nada.
KK. Concretamente não foi ouvida a testemunha N, apesar de todos os esforços e informações fornecidas pela denunciante aqui Apelante ao Ministério Público, especificamente a morada de N na Alemanha … e endereço de e-mail ...@gmail.com para que aquela testemunha confirmasse a perturbação da vida privada ( artº 190’º do C.Penal) e devassa da vida privada ( artº 192º do C.Penal) perpetrada pela referida declarante J, no domicilio da Apelante.
LL. A cópia da informação elaborada pela GNR junta pela Autora aos autos que se encontra a fls 54 do processo nº … diz que os referidos agentes identificaram apenas uma pessoa - N.
MM. O Tribunal a quo considerou, como meio de prova credível para condenar a Ré, o expediente da GNR a que alude o processo atrás referido, quando identificou N em 4 de Outubro de 2021 e onde esta supostamente terá dito que pagava 250,00€, sendo certo que não se sabe a quem é que tal pagamento, a existir, seria feito, visto que à Ré e à sua filha Z, não foi com toda a certeza.
NN. É esse facto que consta do despacho de arquivamento.
OO. J… inquirida sobre se na altura em que bateu à porta, falou e viu uma rapariga que lhe disse que havia mais 2 pessoas a viver lá em casa. Viu alguma dessas pessoas respondeu, Min 19.08 da inquirição, nesse momento não.
PP. Na verdade, resulta do teor das declarações prestadas por J que esta viu e falou com duas pessoas em dias distintos com dois anos de intervalo, em 2021 e 2023, no apartamento onde a Ré reside com a sua filha.
QQ. O depoimento de S… não é credível. e, consequentemente não é valido, porquanto, não identifica ninguém;
RR. S… não sabe quem era a “pessoa de cabelo castanho” e não, como diz o Tribunal a quo: “e que afirmou que chegou a ver uma senhora, que disse ser a filha da Ré X,” deslocar-se ao apartamento / locado e ser-lhe entregue dinheiro pelos jovens e que estes lhe chegaram a dizer que pagavam uma renda entre €250,00 e €300,00 por mês, cada um”…, “em nota”s, …, “que viu entregar em mão à senhora de cabelo castanho”.
SS. S… nunca poderia afirmar que tinha visto “notas” nem quantas notas e muito menos o valor em causa. Trata-se de uma fabulação ensaiada sem qualquer suporte credível.
TT. S… não sabe sequer em que dia, hora, época do ano terá visto o que diz ter visto;
UU. E, sem conceder, mas por mera hipótese académica, mesmo que S… tivesse visto notas, teria que dizer quais e quantas;
VV.Esta testemunha teria que saber quem era o receptor e o pagador e por último quem estava a pagar, o que estava a pagar, e porquê.
WW. diz também esta testemunha, em síntese que “vive no lado direito, é só descer 8 escadas e é a casa que estamos a falar; vê entrar e sair pessoas, jovens que disseram à mulher dele que pagavam 250,00€; e nunca viu a D. X acompanhar esses jovens nem a viu a conviver com eles ou a viver em conjunto”.
XX. S… não conhece a D. X e nunca entrou na casa dela.
YY. O depoimento desta testemunha que recaiu sobre suposições, ideias vagas, pessoas imaginárias não identificadas, mas não factos concretos, não deveria ter merecido qualquer credibilidade pelo Tribunal a quo.
ZZ. Ao invés, devia isso sim ter sido considerado credível o depoimento da testemunha Z ( min 11.23.33), filha da Apelante com quem reside e, actualmente, cuidadora do tio M e da mãe.
AAA. Nos dias 1 e 4 de Outubro de 2021 (episódio do vidro partido) não estava lá em casa, porque estava a tratar do tio e estava a tratar da mãe que tinha saído do hospital que estava doente tinha sido operada, estando a convalescer em casa do tio na Rua ….
BBB. Z, disse não que conhecia a D. J, apenas os antigos donos, até a N lhe ter dito que que ficara muito assustada, pois tinha acabado de acordar, quando J entrou lá em casa, a dizer que era a dona da casa.
CCC. Z esclareceu que:_ a N estava lá em casa a passar uns dias. Eu também estive a viver no estrangeiro, tenho imensos amigos estrangeiros. Estive na Dinamarca um ano e tal, estive na Alemanha…voltei para cá para ser operada à tiroide.
DDD. Z disse que recebe as suas amigas e uma vez um amigo, estrangeiros em casa da mãe, onde vive, quando aqueles vêm a Portugal. Min 14.56 da sua inquirição_“Estive a trabalhar fora e conheci muitas pessoas estrangeiras no voluntariado. Pessoas de várias nacionalidades que hoje em dia são grandes amigos meus.“Saí do voluntariado há 6 ou 7 anos.“Quando vêm a Portugal, ficam na minha casa. Eu própria digo: quando vieres cá, liga-me e ficas na minha casa, na casa da minha mãe.”… Se quiserem lá ir agora, está lá uma amiga minha há cerca de 2/3 semanas”……”Chama-se Q..”.
EEE. Foi junto aos autos pelos AA, documento onde a GNR identificou N… com quem a Z fez voluntariado há 6 anos, e onde consta que a mesma nasceu em 30/09/1996, ou seja, tem actualmente 28 anos; tinha 25 no dia 1/10/2021, quando Z a conheceu.
FFF. Concluindo-se que N tinha muito mais do que 18 anos quando fez voluntariado com Z.
GGG. Z não tem filhos e não conhece ninguém chamado P.
HHH. Z declarou peremptoriamente que nunca recebeu dinheiro dos seus amigos nem de ninguém.
III. Z declarou “,Eu tenho um quarto em casa e a minha mãe tem outro”,… A N quando cá esteve dormiu na sala.
JJJ. Z declarou que a mãe habita a casa no 3º da Rua …, sempre que consegue subir as escadas , visto que tem fases em que está melhor e consegue andar: “a minha mãe habita a casa. A minha mãe só não está no 3º andar quando não consegue subir as escadas. A minha mãe tem fases em que está um bocadinho melhor. Há outras alturas em que não consegue andar. Fica acamada”.
KKK. Z fala sobre factos que a própria conhece e vive ou viveu.
LLL. E não em ouvi dizer, ou presumo, como se pode verificar do conteúdo das declarações de parte de J quando refere “Eles, elas, disseram-me, etc,” tudo sem qualquer conteúdo, identificação, quer no tempo quer no espaço.
MMM. O único facto concreto que se extrai das declarações de J foi o de ter “falado” com a Nnos dias 1 e 4 de Outubro de 2021, e com a O… num dia indeterminado, 2 anos depois, em 2023.
NNN. As testemunhas arroladas pela os AA disseram que viram pessoas a entrar e sair da casa da Ré, ou nas escadas. Ora, nunca entraram em casa da Re/Apelante. Sem conceder, não podem afirmar que essas tais pessoas não identificadas tinham dormido ou comido na casa da Apelante fosse a que título fosse-
OOO. A única testemunha credível foi o Dr. T que sobre a questão: Quem é que vê entrar nessa casa? Quem habita o 3º andar? T (min 05.00 da inquirição)- respondeu: “ Eu não posso dizer quem é que habita a casa da D. X. Não estou lá dentro, eu só estou a dizer que não vejo a D. X no 3º andar”
PPP. E estar numa casa num determinado momento, não significa que a habite.
QQQ. A testemunha dos AA Y, apenas refere sobre estes factos que às vezes vê pessoas as estenderem os fatos de surf no 3º andar. Aliás, quando perguntada sobre quem é que costumava ver entrar naquele apartamento, respondeu (min 03.20 da inquirição) “Eu não via entrar no apartamento.
RRR. Essas testemunhas, não podem afirmar que as tais pessoas não identificadas tinham pago o que quer que seja a ninguém, muito menos à Ré.
SSS. Também não se pode enquadrar “nas regras de experiência comum” a versão dos factos relatada por …, quanto ao recebimento de qualquer quantia por alguém que ele não sabe quem era pois imputar o alegado recebimento dessa quantia que não se sabe qual era e a que título e paga por quem a quem, é desvirtuar o conceito de prova e facto, abrindo a porta a toda e qualquer declaração, mesmo sem qualquer sentido como foi o caso.
TTT. Ninguém, nem a pessoa menos avisada, receberia dinheiro em mão, em notas, num vão de escada pelos indicados motivos! Isso é pura ficção.
UUU. Tal ficção não colhe como um facto provado.
VVV. O Tribunal considerou,” acerca de U que o seu depoimento se revelou coerente, credível e descomprometido”. Porém à pergunta feita a A sua convicção é que a D. X terá passado o apartamento para a filha e que a seguir terá lá grupos de estrangeiros? Este respondeu “Sim”.
WWW. Esta testemunha, diz que não vê a Ré entrar e sair de casa. E que vê entrar grupos de “estudantes” ou jovens de férias; que às vezes tocam à sua campainha; que não está em casa durante o dia; só aos fins de semana; nunca durante a semana; que às vezes estava no apartamento mais do que uma rapariga.
XXX. O depoimento de U, foi orientado para as respostas, não foi conclusivo, foi contraditório e acima de tudo limitou-se a emitir opiniões pessoais e não a depor sobre factos, pois , mais uma vez, esta testemunha nunca esteve em casa da Ré/ Apelante, não podia afirmar quem vivia e/ou estava no apartamento dos autos, ou seja,” não se revelou coerente, credível e descomprometido”, devendo ser desconsiderado.
Em suma,
YYY. Nenhuma das testemunhas dos AA declarou ter entrado em casa da Ré, ter convivido com a mesma, ou com as pessoas que eventualmente ela recebia em sua casa, concretamente os inquilinos inquiridos, nem mesmo a declarante J, podem afirmar que a Ré ( devendo aqui ser incluída a sua filha Z, por viver com esta) “não come, não dorme, não prepara as suas refeições, nem recebe os seus amigos no imóvel dos autos”, porquanto, repete-se: nenhuma das testemunhas dos AA declarou ter entrado em casa da Ré, ter convivido com a mesma, ou com as pessoas que eventualmente ela recebia em sua casa.
ZZZ. Sem conceder, sempre se dirá que não é normal que os vizinhos (que não convivem uns com os outros) saibam quem entra e quem sai das casas de cada um, ou quem lá come e dorme.
AAAA. Donde, testemunhar o contrário apenas pode significar, uma de três coisas, lapsos, presunções ou mentiras.
BBBB. A Apelante está a aguardar vaga para ser operada à coluna pela terceira vez, tendo expectativas de poder fazer a sua vida normal e voltar e permanecer de vez na sua casa no 3º andar …da Rua ….
CCCC. Concluindo, não resulta da prova produzida, nada mais do que reciprocidade e amizade entre Z e as suas amigas estrangeiras com quem fez voluntariado, no caso dos autos N em 2021 e O em 2023, que ficam em casa umas das outras quando se deslocam, em lazer, aos respectivos países de origem das mesmas.
DDDD. Assim salvo melhor e douta opinião, não consta do NRAU nem de nenhuma outra disposição legal que um/a arrendatário/a tenha que pedir autorização aos respectivos senhorios para receber amigos em casa!
EEEE. A Ré nunca teve motivos para pedir qualquer autorização para subarrendar, porque nunca subarrendou.
FFFF. E como se alega supra e provou em audiência de julgamento a Ré nunca cedeu nem total nem parcialmente o uso e fruição da fração por si arrendada aos Autores, a uma ou mais pessoas, sem o conhecimento ou autorização dos Senhorios, mediante a contrapartida de pagamento de um valor mensal.
III – Quanto a averiguar acerca do valor da renda no mercado imobiliário, para a fração em apreço, mormente se corresponde ou não a, pelo menos, €625,00 (seiscentos e vinte e cinco euros).
GGGG. A Ré Apelante é arrendatária desde 27 de Março de 1972, apresentou, sempre que solicitado pelos AA, o seu RABC, sempre pagou a renda devida, que nesta data e desde que foi notificada pelos AA para o efeito em Novembro de 2023, é de 197,70€ (min 12.32 das declarações de parte de J).
HHHH. A Ré nunca teve motivos para pedir qualquer autorização para subarrendar, porque nunca subarrendou.
IIII. Os aumentos legais previstos no NRAU têm sido promovidos pelos AA e a Ré tem pago pontual e integralmente a renda legalmente estipulada.
JJJJ. No caso em apreço é legalmente inadmissível atenta a prova produzida, a condenação da Ré no pagamento de qualquer valor seja a que título for além da renda devida de 197,70€/mensais.
KKKK. Os AA tentaram pela via da resolução ilícita do contrato de arrendamento celebrado com a Ré, contornar a lei aumentando-lhe a renda e imponho-lhe um despejo a uma pessoa com mais de 65 anos, doente, fragilizada, com o objectivo único de aumentar os seus rendimentos.
LLLL. Em suma, também este pedido dos AA deve ser julgado improcedente por não provado e em consequência a Ré X, manter-se no locado juntamente com a sua filha e cuidadora Z.
Termos em que:
Deverá ser dado provimento ao presente recurso, concretamente:
a) Deve improceder o pedido de resolução do contrato de arrendamento com fundamento no não uso do locado pela arrendatária por mais de um ano, atenta a doença temporária de que a Ré padece e considera ter possibilidade cura, logo que seja operada pela terceira vez à coluna, o que aguarda, como se alegou e provou com os documentos juntos aos autos;
b) Deve improceder o pedido de resolução do contrato de arrendamento com fundamento na cessão total ou parcial temporária ou permanente e onerosa ou gratuita do gozo do prédio, quando ilícita, inválida ou ineficaz perante o senhorio, por inexistência da mesma e manifesta falta de prova;
c) Deve improceder o pedido de pagamento pela Apelante do valor de 625,00€ mensais desde a data da propositura da acção até à entrega do imóvel, mais concretamente a diferença entre o valor pago actualmente que deve ser corrigido para 197,70€ e o valor de 625,00€, por manifesta falta de prova de que a Apelante tenha arrendado ou cedido, total ou parcialmente o locado ou, tenha recebido fosse a que título fosse, qualquer quantia proveniente de qualquer pessoa que tenha visitado a sua filha com quem vive no apartamento dos autos.
revogando-se a Douta Sentença recorrida de fls__.
VI – Normas violadas
- Arts. 1083º, 1 Código Civil;
- Arts. 1083º nº2 als d) e e) Código Civil;
– Art. 1093º nº 2 Código Civil.
Assim se espera por ser de Justiça».
Os AA. contra-alegaram, pugnando pela improcedência da apelação.
QUESTÕES A DECIDIR
Conforme resulta dos arts. 635.º n.º4 e 639.º n.º1 do Código de Processo Civil, o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, as quais desempenham um papel análogo ao do pedido na petição inicial. Ou seja, este Tribunal apenas poderá conhecer da pretensão e das questões [de facto e de direito] formuladas pela recorrente nas conclusões, sem prejuízo da livre qualificação jurídica dos factos ou da apreciação das questões de conhecimento oficioso (garantido que seja o contraditório e desde que o processo contenha os elementos a tanto necessários – arts. 3.º n.º3 e 5.º n.º3 do Código de Processo Civil). Note-se que «as questões que integram o objecto do recurso e que devem ser objecto de apreciação por parte do tribunal ad quem não se confundem com meras considerações, argumentos, motivos ou juízos de valor. Ao tribunal ad quem cumpre apreciar as questões suscitadas, sob pena de omissão de pronúncia, mas não tem o dever de responder, ponto por ponto a cada argumento que seja apresentado para sua sustentação. Argumentos não são questões e é a estes que essencialmente se deve dirigir a actividade judicativa». Por outro lado, não pode o tribunal de recurso conhecer de questões novas que sejam suscitadas apenas nas alegações / conclusões do recurso – estas apenas podem incidir sobre questões que tenham sido anteriormente apreciadas, salvo os já referidos casos de questões de conhecimento oficioso [cfr. António Santos Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, Almedina, 2022 – 7.ª ed., págs. 134 a 142].
Nessa conformidade, são as seguintes as questões que cumpre apreciar:
- a impugnação da decisão de facto;
- a verificação dos pressupostos da resolução do contrato de arrendamento;
- a verificação dos pressupostos da obrigação de indemnização a cargo da R..
FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A sentença sob recurso considerou como provados os seguintes factos:
«1) Encontra-se registado a favor dos Autores o prédio urbano sito na Rua … Costa da Caparica, descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial de Almada sob a descrição nº … da freguesia de Costa da Caparica e inscrito na matriz predial urbana artigo nº… da freguesia da Costa da Caparica.
2) Em 27 de março de 1972 foi celebrado um denominado acordo de “arrendamento” com D… referente ao andar com utilização independente, destinado à habitação, designado por 3º andar …, identificado na caderneta predial como: “Andar ou divisão com utilização independente: 3º …”.
3) Após a morte de D, o denominado “contrato de arrendamento” transmitiu-se para o seu cônjuge e atual Ré X.
4) A Ré paga a quantia de €184,87 Euros (Cento e oitenta e quatro Euros e oitenta e sete cêntimos) como contrapartida pelo gozo do imóvel referido em 2).
5) No final do mês de setembro de 2021, os Autores foram contactados por Y, inquilina da habitação correspondente ao 1º andar … do prédio referido em 1), a informá-los que tinham caído vidros na sua varanda e que provinham do apartamento descrito em 2).
6) Na sequência do contacto descrito em 5), a Autora J dirigiu-se ao prédio e tocou à campainha do apartamento 3ºandar …, para perceber que vidro se tinha partido e providenciar o seu arranjo.
7) Quem atendeu a Autora J foi uma rapariga nova, que falava alemão, e que lhe disse que vivia com outras amigas estrangeiras no apartamento.
8) A pessoa rapariga estrangeira descrita em 7), disse ainda à Autora J que a Ré Xnão vivia no apartamento descrito em 2), e que ela e as amigas estavam ali no apartamento porque alugavam quartos.
9) Na sequenciado descrito em 7) e 8), a Autora J solicitou à GNR da Costa da Caparica que a acompanhasse ao local para identificar os ocupantes do apartamento.
10) No dia 4 de Outubro de 2021, às 19h35, o Guarda C e o Cabo E, da GNR da Costa da Caparica, dirigiram-se ao local e identificaram as jovens estrangeiras que se encontravam a habitar o local.
11) As jovens referidas em 10) informaram que arrendavam os quartos por quantias de aproximadamente €250,00 cada.
12) Na sequência do descrito em 7) a 11), a Ré X apresentou queixa crime contra a J, que deu origem ao NUIPC: … e que correu termos na 3.ª secção do DIAP de Almada.
13) Os Autores, na sequência do descrito em 6) e 7), pediram a W, Mestre de Obras a quem costumam recorrer, para se dirigir ao apartamento, para arranjar o vidro.
14) Na sequência de deslocações ao imóvel referido em 2), com vista à reparação do vidro partido, W confirmou aos Autores que o apartamento era habitado por jovens estrangeiros.
15) Na sequência do descrito em 14) os Autores contactaram com outros inquilinos do prédio que lhes confirmaram que naquele apartamento não habita a Ré X e que já há muito tempo não a vêm no prédio
16) Foi ainda dito aos Autores pelos inquilinos contactados que quem habita no apartamento são pessoas estrangeiras, que inclusivamente por vezes tocam a outras campainhas para lhes ser aberta a porta do prédio.
17) Os Autores aperceberam-se que a Ré desde há alguns anos, quantos não sabem, deixou de residir com caráter de permanência e habitualidade no imóvel descrito em 2).
18) Os Autores enviaram no dia 6 de outubro de 2021 à Ré X uma carta, cujo assunto era “revogação do contrato de arrendamento respeitante ao locado sito na Rua … 3º …, Costa da Caparica”, ao qual estava anexa uma declaração para ser assinada pela Ré.
19) Os Autores devolveram as rendas que, entretanto, a Ré pagara atempadamente, pelo que a Ré repetiu os depósitos na conta … da Caixa Geral de Depósitos, a favor dos Autores, indicando G e Outros, remetendo para os Autores carta e comprovativos dos depósitos das rendas de outubro, novembro e dezembro de 2021.
20) A Ré X não come, não dorme, não prepara as suas refeições, nem recebe os seus amigos no imóvel descrito em 2).
21) A Ré X reside com caráter de permanência e habitualidade em casa de um tio, na Rua … Costa da Caparica.
22) A Ré X tem a sua vida doméstica organizada, come, dorme e recebe correspondência na morada indicada em 21).
23) O gozo e fruição do apartamento da Rua … 3º andar …, passou a ser cedido pela Ré Xa a pessoas estrangeiras, com caráter de permanência e habitualidade, mediante uma contrapartida económica.
24) A Ré não informou nem obteve autorização dos Autores para proceder conforme descrito em 23).
25) A Ré X usufrui do benefício previsto na lei para inquilinos de idade superior a 65 anos e com RABC inferior 5 retribuições, do que resulta uma renda reduzida no valor descrito em 4).
26) A renda normal fixada segundo as leis do mercado para um apartamento com as características e localização do imóvel descrito em 2) é de, pelo menos, €625,00 (Seiscentos e vinte e cinco Euros) mensais.
27) A renda mensal do 2º andar Rua …, apartamento igual ao descrito em 2), é de €625,00.
28) A Ré é uma pessoa doente, com uma incapacidade decorrente de dores neuropáticas bilaterias intensas e síndroma de dor crónica, estando medicada com antidepressivos e ansiolíticos.
Mais se provou:
29) Na sequência da apreciação da prova recolhida e carreada para os autos, o NUIPC ,,, referido em 12), que correu termos na 3.ª secção do DIAP de Almada, foi arquivado por falta de “indícios seguros e suficientes da prática, pela arguida, dos factos denunciados e suscetíveis de integrar a prática do crime de violação de domicílio”».
A decisão recorrida considerou não provados os seguintes factos:
«a) W, na sequência do descrito em 14), acrescentou que nos últimos tempos sempre que ia ao prédio via estrangeiros naquele apartamento.
b) A Ré não recebe a sua correspondência na morada indicada em 2).
c) A Ré tem estado a acompanhar um tio que se encontra doente na morada indicada em 19), ali permanecendo durante o dia e uma ou outra noite que o tio necessite de maiores cuidados.
d) A Ré come e dorme no imóvel descrito em 2).
e) A pessoa estrangeira referida em 7) e 8) era uma amiga da filha da Ré que estava de férias em Portugal, estando a Ré a retribuir acolhimento idêntico que fora dado à sua filha nos meses em que esteve na Alemanha em casa da dita ocupante.
f) Nos dias que se seguiram ao descrito em 7), a Ré foi diversas vezes contactada pela Autora J, por telefone, ordenando-lhe que saísse imediatamente do locado.
g) O quadro clinico da Ré descrito em 28), agrava-se com a alteração do seu estado nervoso.
h) Na sequência do descrito em f), a Ré ficou acamada, sem conseguir reagir a qualquer ameaça da Autora, que não parava de a importunar».
MÉRITO DO RECURSO
Da impugnação da matéria de facto:
Nos termos do art. 662.º n.º1 do Código de Processo Civil, a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
Como refere António Santos Abrantes Geraldes (Recursos em Processo Civil, 7.ª ed., págs. 333 e ss.), «sem embargo da correcção, mesmo a título oficioso, de determinadas patologias que afectam a decisão da matéria de facto (v.g. contradição) e também sem prejuízo do ónus de impugnação que recai sobre o recorrente e que está concretizado nos termos previstos no art. 640.º, quando esteja em causa a impugnação de determinados factos cuja prova tenha sido sustentada em meios de prova submetidos a livre apreciação, a Relação deve alterar a decisão da matéria de facto sempre que, no seu juízo autónomo, os elementos de prova que se mostrem acessíveis determinem uma solução diversa, designadamente em resultado da reponderação dos documentos, depoimentos e relatórios periciais, complementados ou não pelas regras de experiência». A modificação deverá, ainda, ocorrer sempre que «o tribunal recorrido tenha desrespeitado a força plena de certo meio de prova» ou «quando for apresentado pelo recorrente documento superveniente que imponha decisão diversa».
Conforme resulta dos arts. 341.º do Código Civil e 607.º n.º5 do Código de Processo Civil, tendo as provas por função «a demonstração da realidade dos factos», «o juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto», embora a livre apreciação não abranja «os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, nem aqueles que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes».
Assim, desde que para a prova não exista norma legal que exija formalidade especial ou prova documental, e desde que não se trate de matéria provada plenamente, seja por documento, confissão ou acordo das partes, as provas produzidas estão sujeitas ao princípio da livre apreciação pelo tribunal.
Claro que livre apreciação não equivale a arbitrariedade, e é por isso que o n.º4, do mesmo art. 607.º, exige que o juiz analise criticamente a prova e indique todos os elementos que foram decisivos, assim objectivando [e tornando sindicável] a sua convicção.
Nesse sentido, para que um facto se considere provado, tem-se vindo a exigir que a prova produzida preencha o chamado standard da prova (nível mínimo de corroboração de uma hipótese para que esta possa ser aceite como verdadeira) que vigora em processo civil, que é o da probabilidade prevalecente[1]. Ou seja, consideradas as regras do ónus da prova (art. 342.º do Código Civil), é necessário que, a partir das provas produzidas, a versão constante destes pontos da sentença mereça uma confirmação lógica maior do que a versão contrária. Se assim não for, tais factos têm de considerar-se não provados (cfr. art. 414.º do Código de Processo Civil).
Acresce que, como se refere no Ac. RP de 21/6/2021 (proc. 2479/18, disponível em http://www.dgsi.pt), «mantendo-se em vigor, em sede de Recurso, os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova, e guiando-se o julgamento humano por padrões de probabilidade e nunca de certeza absoluta, o uso, pelo Tribunal da Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1.ª instância sobre a matéria de facto só deve ser efectuado quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados. Assim, a alteração da matéria de facto só deve ser efectuada pelo Tribunal da Relação, quando este Tribunal, depois de proceder à audição efectiva da prova gravada, conclua, com a necessária segurança, no sentido de que os depoimentos prestados em audiência final, conjugados com a restante prova produzida, apontam em direcção diversa, e delimitaram uma conclusão diferente daquela que vingou na primeira Instância».
Particularmente no caso da prova testemunhal e por declarações de parte (e desde que não estejamos perante factos de prova vinculada), é de salientar que, havendo vários depoimentos / declarações contraditórios entre si, as regras da sua apreciação não são matemáticas, ou seja, um facto não é considerado provado ou não provado consoante exista um maior ou menor número de pessoas a afirmá-lo ou a contrariá-lo. Ainda que apenas uma pessoa afirme um facto, enquanto todas as outras o negam, e ainda que várias pessoas afirmem um facto, enquanto apenas uma o nega, esse facto pode ser considerado provado / não provado, conforme a apreciação que seja feita dos depoimentos / declarações, com base na sua credibilidade, coerência, isenção, razão de ciência, distanciamento, conjugação com outros meios de prova (v.g., documental) e conjugação com as regras da experiência. Aliás, ainda que todas as pessoas ouvidas afirmem determinado facto, o mesmo pode ser considerado não provado - basta que os depoimentos / declarações não sejam credíveis (porque, por exemplo, as pessoas têm interesse na decisão da causa e não se mostraram objectivas na sua narração, o seu conhecimento não é directo, os depoimentos / declarações foram contraditórios ou foram de tal forma coincidentes que se afiguram «ensaiados», não é possível que aquelas pessoas, nas circunstâncias concretas, tivessem conhecimento daqueles factos…). E não se pode olvidar que o tribunal de primeira instância se encontra em posição privilegiada para levar a cabo tal tarefa de apreciação, ponderação e discernimento, uma vez que contacta directa e presencialmente (ou, mesmo que à distância, com imagem) com as pessoas ouvidas e, portanto, pode aperceber-se dos aspectos relevantes da linguagem não verbal – expressões faciais, postura, gestos, hesitações. Significa isto que, salvo casos de flagrante erro de avaliação por parte do tribunal de primeira instância (v.g., uma testemunha em que o tribunal se baseou claramente está a efabular, o seu depoimento é contrariado por prova documental ou pericial fiável, os factos que narrou não podiam – de acordo com as regras da experiência ou outras – ter acontecido daquela forma, aquilo que disse não foi o que o tribunal entendeu…), não há que alterar a matéria de facto fixada na sentença. Dito de outra forma, em caso que não seja de prova legal, deve confiar-se na avaliação efectuada em primeira instância, a não ser que a prova produzida implique, necessariamente, decisão diversa.
Note-se, também, que «quando a apreciação da impugnação deduzida contra a decisão de facto da 1.ª instância seja, de todo, irrelevante para a solução jurídica do pleito, ainda que a tal impugnação satisfaça os requisitos formais prescritos no art. 640.º n.º1 do Código de Processo Civil, não se justifica que a Relação tome conhecimento dela, à luz do disposto no art. 608.º n.º2 do Código de Processo Civil» (cfr. Ac. STJ de 23/1/2020, proc. 4172/16, disponível em https://jurisprudencia.csm.org.pt)[2]. Caso contrário, estaríamos a praticar um acto inútil, proibido à luz do art. 130.º, do mesmo diploma.
Finalmente, para que o tribunal de recurso aprecie a impugnação da matéria de facto, é ainda necessário que o recorrente, na sua alegação e na formulação das conclusões, respeite determinados requisitos.
Com efeito, nos termos do art. 640.º do Código de Processo Civil:
«1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3 - O disposto nos n.ºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º».
Assim, naquilo que para aqui releva, são os seguintes os ónus do recorrente que pretenda impugnar a decisão sobre a matéria de facto[3]:
a) Indicar na motivação e, em síntese, nas conclusões, os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Especificar, na motivação, os meios de prova que, no seu entender, determinam uma decisão diversa;
c) Indicar, com exactidão, na motivação, as passagens da gravação relevantes e proceder, se assim o entender, à transcrição dos excertos que considere oportunos;
d) Deixar expressa, na motivação, a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, tendo em conta a apreciação crítica dos meios de prova produzidos[4].
Em consonância, o recurso deverá ser rejeitado se houver[5]:
1. Falta de conclusões sobre a impugnação da decisão da matéria de facto [arts. 635.º n.º4 e 641.º n.º2 b) do Código de Processo Civil];
2. Falta de especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados [art. 640.º n.º1 a)];
3. Falta de especificação, na motivação, dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados;
4. Falta de indicação exacta, na motivação, das passagens da gravação em que o recorrente se funda;
5. Falta de posição expressa, na motivação, sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação.
Isto posto, temos que, nas conclusões, os factos que a recorrente indica encontrarem-se incorrectamente julgados são os constantes dos pontos 4, 6, 8, 10, 11, 14, 15, 16, 17, 20, 21, 22, 23 e 24, pelo que apenas esses (e não outros constantes da motivação, mas não das conclusões) poderão ser levados em consideração (cfr. art. 635.º n.º4 do Código de Processo Civil).
Assim:
A) Quanto ao ponto 4: [«A Ré paga a quantia de €184,87 Euros (Cento e oitenta e quatro Euros e oitenta e sete cêntimos) como contrapartida pelo gozo do imóvel referido em 2)»].
Entende a recorrente que deveria ser considerado provado que a renda é, actualmente, de € 197,70, por tal resultar das declarações de parte da A. J.
Ocorre que o que foi alegado no art. 4.º da petição inicial é que o valor da renda paga é de € 184,87, sendo certo que tal facto foi expressamente admitido pela R. no art. 2.º da contestação. Trata-se, portanto, de facto assente por acordo que, nessa medida, não estava sequer sujeito a prova, não fazendo sequer parte dos temas da prova e que, integrando a causa de pedir invocada pelos AA., constitui facto essencial, não admitindo prova em contrário - cfr. arts. 410.º e 574.º n.º2 do Código de Processo Civil.
Deve, assim, permanecer intacto o ponto 4 dos factos provados - o que se decide.
B) Quanto aos pontos 6 ,15, 16 e 17: [«Na sequência do contacto descrito em 5), a Autora J dirigiu-se ao prédio e tocou à campainha do apartamento 3ºandar esq. Norte, para perceber que vidro se tinha partido e providenciar o seu arranjo»; «Na sequência do descrito em 14) os Autores contactaram com outros inquilinos do prédio que lhes confirmaram que naquele apartamento não habita a Ré X e que já há muito tempo não a vêem no prédio»; «Foi ainda dito aos Autores pelos inquilinos contactados que quem habita no apartamento são pessoas estrangeiras, que inclusivamente por vezes tocam a outras campainhas para lhes ser aberta a porta do prédio»; «Os Autores aperceberam-se que a Ré desde há alguns anos, quantos não sabem, deixou de residir com caráter de permanência e habitualidade no imóvel descrito em 2)»:
A recorrente indica, na motivação, que tais factos não poderiam ter sido dados como provados, mas não indica o resultado concretamente pretendido - se pretende que os mesmos deveriam ter sido integralmente considerados não provados ou parcialmente provados e, neste caso, em que medida. Ou seja, não propõe qualquer redacção alternativa para aqueles pontos, limitando-se a dizer que deveria ser proferida decisão diversa: não refere se pretende que os segmentos que identifica passem para a matéria não provada, ou se deverá, nos factos provados, ser-lhes dada uma redacção diversa (e qual essa redacção).
Ora, como se refere no Ac. STJ de 15/9/2022, «Os ónus ínsitos nas als. a) e c) do n.º 1 do artigo 640º do CPC, cuja falta impõe a imediata rejeição do recurso sem necessidade de prévio convite ao recorrente, (…) têm por função delimitar o objecto do recurso e fundamentar a impugnação da decisão da matéria de facto. (…) Assim, sob pena de rejeição da impugnação da matéria de facto, o recorrente tem de delimitar o objecto da impugnação de forma rigorosa, indicando os concretos pontos da matéria de facto que considera incorrectamente julgados, bem assim indicar, de forma clara e precisa, que decisão, em alternativa, entende dever ser proferida sobre esses concretos pontos de facto, para que o tribunal de recurso se possa pronunciar sobre o efectivo objecto do recurso (é que a resposta pretendida deve constar de forma inequívoca[6] na motivação e preferentemente também nas conclusões, já que são estas que delimitam o objecto do recurso)».
Como vimos, a recorrente não cumpriu aquele ónus, não sendo possível determinar qual o resultado que pretende com a impugnação, pelo que se rejeita o recurso da decisão sobre a matéria de facto, quanto aos pontos 6, 15, 16 e 17 dos factos dados como provados na sentença, improcedendo a apelação, nessa medida.
C) Quanto aos pontos 8 e 11 [«A pessoa rapariga estrangeira descrita em 7), disse ainda à Autora J que a Ré X não vivia no apartamento descrito em 2), e que ela e as amigas estavam ali no apartamento porque alugavam quartos»; «As jovens referidas em 10) informaram que arrendavam os quartos por quantias de aproximadamente €250,00 cada»]:
A recorrente pretende que os mesmos sejam dados como não provados, atenta a prova documental junta e os depoimentos das testemunhas S e Z.
Ocorre que estes enunciados são irrelevantes para a decisão. O que tem de ser afirmado nos factos provados ou não provados é se a R. vivia no local e se cedia onerosamente a utilização desse apartamento a terceiros. O que as pessoas declararam ou informaram a esse respeito não constitui matéria relevante, mas um mero meio de prova. Nessa medida, é inócuo se tais declarações constam, ou não, dos factos provados, porque as mesmas não relevam para a apreciação jurídica da causa, conforme melhor veremos infra.
Assim sendo, por inútil, não se apreciará a impugnação da decisão de facto, nesta vertente.
D) Quanto ao ponto 10 [«No dia 4 de Outubro de 2021, às 19h35, o Guarda C e o Cabo E, da GNR da Costa da Caparica, dirigiram-se ao local e identificaram as jovens estrangeiras que se encontravam a habitar o local»]:
A recorrente pretende, atenta a prova documental junta, que seja dado como provado que foi identificada apenas uma jovem e não várias.
O tribunal a quo, a este propósito, discorreu da seguinte forma:
«No que tange à factualidade vertida em 6) a 11), atentou-se nas declarações de parte da Autora J, que integralmente a descreveu. Referiu a Autora que a jovem que lhe abriu a porta e disse estar a residir no locado com mais dois estrangeiros tinha nacionalidade alemã e chamava-se N, afirmando que a mesma lhe disse que pagavam, cada um, a quantia de €250,00 a titulo de renda. A factualidade descrita em 9) a 11) encontra ainda respaldo na informação da GNR – Posto Territorial da Costa de Caparica, datada de 21/12/2021, constante de fls 75 e 76 dos autos. No que tange ao facto 11), atentou-se ainda no depoimento prestado de forma coerente e credível pela testemunha W, que disse residir no prédio há seis anos (também no 3.º piso, …), e que afirmou que chegou a ver uma senhora, que disse ser a filha da Ré X, deslocar-se ao apartamento / locado e ser-lhe entregue dinheiro pelos jovens e que estes lhe chegaram a dizer que pagavam uma renda entre €250,00 e €300,00 por mês, cada um. Em face da factualidade provada ora em apreciação, o depoimento da testemunha Z, que disse ser filha da Ré, prestado de forma comprometida e ao arrepio de toda a prova produzida – a qual, em síntese, quis fazer crer ao Tribunal que todos os jovens estrangeiros que têm ocupado o apartamento são seus amigos e o têm feito a titulo gratuito, tendo mesmo afirmado que presentemente se encontra a residir no locado “uma sua amiga estrangeira” de nome Q -, não logrou convencer o Tribunal».
Ora, da informação elaborada pelo Guarda da GNR C, junta com o requerimento de 29/4/2024 (ref.ª CITIUS 39213504), consta que o mesmo, em 4/10/2021, pelas 19h15m, se deslocou, em serviço, acompanhado do Cabo E da mesma força de segurança, ao locado, onde identificou a Sr.ª N, de nacionalidade alemã. Por essa N foi informado que pagava aluguer do quarto, assim como a sua colega pagava aluguer, mas, não se encontrando esta última na residência, não foi possível a sua identificação. Tal informação encontra-se assinada pelo referido Guarda da Guarda Nacional Republicana, na qualidade de «órgão de polícia criminal».
Portanto, constituindo aquela informação um documento autêntico, o mesmo, nos termos do art. 371.º do Código Civil, faz prova plena dos factos praticados e percepcionados pelo Guarda subscritor. Assim, não tendo sido arguida a sua falsidade (art. 372.º, também do Código Civil), a respectiva força probatória não pode ser contrariada por prova testemunhal ou por declarações de parte. Nessa medida, deve proceder a impugnação da decisão de facto, passando o ponto 10 dos factos provados a ter a seguinte redacção:
«No dia 4 de Outubro de 2021, às 19h35, o Guarda C e o Cabo E, da GNR da Costa da Caparica, dirigiram-se ao local e identificaram uma das jovens estrangeiras que se encontravam a habitar o local».
E) Quanto ao ponto 14 [«Na sequência de deslocações ao imóvel referido em 2), com vista à reparação do vidro partido, W confirmou aos Autores que o apartamento era habitado por jovens estrangeiros»]:
Pretende a recorrente que, com base no depoimento da testemunha W, a sua redacção passe a ser: «Na sequência de deslocações ao imóvel referido em 2), com vista à reparação do vidro partido, W confirmou aos Autores que alegadamente no apartamento se encontravam dois estrangeiros».
Vale aqui o que já referimos a propósito dos pontos 8 e 11.
Também o enunciado do ponto 14 é irrelevante para a decisão. Como dissemos, o que tem de ser afirmado nos factos provados ou não provados é se a R. vivia no local e se cedia onerosamente a utilização desse apartamento a terceiros. O que as pessoas declararam ou informaram a esse respeito não constitui matéria relevante, mas um mero meio de prova. Nessa medida, é inócuo se tais declarações constam, ou não, dos factos provados, porque as mesmas não relevam para a apreciação jurídica da causa.
Assim sendo, por inútil, não se apreciará a impugnação da decisão de facto, nesta vertente.
F) Quanto aos pontos 20, 21 e 22: [«A Ré X não come, não dorme, não prepara as suas refeições, nem recebe os seus amigos no imóvel descrito em 2)»; «A Ré X reside com caráter de permanência e habitualidade em casa de um tio, na Rua …Costa da Caparica»; «A Ré X tem a sua vida doméstica organizada, come, dorme e recebe correspondência na morada indicada em 21»]:
A recorrente pretende que estes factos deverão ser dados como não provados, porque, atento o depoimento da testemunha Z, e porque se trata de uma situação temporária, uma vez que a R. aguarda a realização de operação à coluna, conforme prova documental junta aos autos, além de que nenhuma das outras «testemunhas dos AA. declarou ter entrado em casa da Ré, ter convivido com a mesma, ou com as pessoas que eventualmente ela recebia em sua casa».
O tribunal recorrido deu estes factos como provados com os seguintes fundamentos: «No que tange à factualidade vertida em (…) 20), a mesma resulta do depoimento da testemunha U, que disse ter vivido no prédio até aos [8] [7] anos e ter voltado a ali residir em 2014 num apartamento também situado no 3.º andar (…), e cujo depoimento se revelou coerente, credível e descomprometido. Disse a testemunha conhece a Ré X, por a mesma ser uma inquilina antiga no prédio, mas que quando para ali regressou, em 2014 (portanto há cerca de dez anos) já não via a Ré X no prédio, apenas a sua filha Z. Relatou ainda a testemunha que a partir de 2019 passou a ver grupos de jovens estrangeiros a ocupar o apartamento objeto dos autos, e que inclusivamente por vezes tocavam à sua campainha para lhes abrir a porta da rua. Mais especificou que esses grupos de jovens permaneciam por temporadas, mas que iam mudando, e que faziam surf, e que os via sempre que estava no prédio: de dia, de noite, aos fins de semana e também nas suas férias. Tal factualidade foi confirmada pelo depoimento prestado pela testemunha S (que disse residir no prédio há seis anos, também no 3.º piso, …). A testemunha disse conhecer a Ré X por esta ter uma loja na Costa de Caparica, onde adquiriu malas e roupas, mas que não a conhece do prédio, afirmando de forma clara e explicita que, em seis anos, nunca viu a Ré X a viver no prédio. Mais concretizou que é reformado e está sempre por casa e que quem vê a viver no locado objeto dos autos é “malta, juventude, ingleses, alemães, grupos de jovens”, sic. Disse ainda que às vezes falava com estes jovens estrangeiros, pois deixavam as bicicletas e pranchas de surf encostadas às caixas de correio no hall do prédio e tinha que lhes chamar à atenção. Quanto à Ré X, disse ainda a testemunha, que nunca a viu entrar no apartamento, nem nunca a viu na companhia dos referidos jovens que vão residindo no locado. A testemunha T, que disse ter desde 1970 um apartamento no 1.º … do edifício, e que igualmente prestou o seu depoimento de forma serena, credível, coerente e descomprometida, corroborou a factualidade ora em apreciação. Com efeito, a testemunha relatou que utiliza o seu apartamento no período de verão e também frequentemente no inverno, e que conhece a Ré X porquanto esta era a inquilina do 3.º andar …. Todavia, afirmou sem qualquer hesitação, já não vê X no prédio e no locado, especificando que vê a Ré muitas vezes no café, perto do centro comercial e que a cumprimenta, e que a vê dirigir-se para a Rua .., onde pensa que a mesma resida. Também a testemunha Y, que disse residir no prédio desde 2015, afirmou de forma clara e sem qualquer hesitação que não se lembra de alguma vez ter visto a Ré X no prédio e que esta não vive no prédio. Relatou ainda a testemunha que em 2021, quando deu o episódio da quebra dos vidros no apartamento objeto dos autos e que caíram no seu terraço, se encontravam uns ingleses a habitar o locado, especificando que os via entrar no prédio, e que os via também à janela do apartamento a estenderem fatos de surf. Teve-se ainda em consideração as declarações de parte da Autora J, remetendo-se para a fundamentação dos factos 6) a 11), tendo ainda a mesma declarado ter sido surpreendida pela circunstância da Ré não residir no locado, ter verificado que o Hall entrada prédio se encontra cheio de pranchas de surf e ainda que em 2023 foi necessário proceder à troca do sistema de gás instalado no prédio, constatando que nessa data se encontrava uma estrangeira chamada O a viver no locado. Neste conspecto, e no que tange o depoimento da testemunha Z, a qual, em síntese, e cf. supra referido, quis fazer crer ao Tribunal que todos os jovens estrangeiros que têm ocupado o apartamento são seus amigos e o têm feito a titulo gratuito, tendo mesmo afirmado que presentemente se encontra a residir no locado “uma sua amiga estrangeira” de nome Q -, não logrou convencer o Tribunal e afastar todas as restantes evidências probatórias que colheram a convicção do Tribunal e levaram à sedimentação do facto 23). Em igual sentido, a testemunha K, que disse ser amiga da Ré X, e que prestou o seu depoimento de forma pouco clara e comprometida, confirmou que na atualidade permanece no apartamento uma jovem dinamarquesa, embora querendo fazer crer ao Tribunal, sem sucesso, que a mesma é amiga da filha da Ré e não para qualquer contrapartida monetária pelo gozo do locado. (…) Para prova da factualidade vertida em 21) e 22) atentou-se no depoimento da testemunha M, que disse ser tio da Ré, pessoa idosa (com 91 anos) e que revelou dificuldade, por tal motivo, em prestar o seu depoimento. Todavia, o mesmo disse de forma sincera e descomprometida, que a Ré X é sua sobrinha, que está doente e que consigo reside na Rua … há cerca de 6 ou 7 anos. Tal factualidade encontra ainda respaldo no depoimento da testemunha L, que disse ser casado com uma prima da Ré X e conhecê-la há cerca de 50 anos e que prestou o seu depoimento de forma inconsistente e contraditória. Com efeito, embora tenha começado por afirmar que a Ré reside no locado, logo de seguida disse que a Ré está a morar (em morada diversa) por cima do minipreço, “ou porque está a tomar conta de um tio ou porque tem problemas, tem dificuldade em andar”, sic, num prédio que tem elevador, e que a Ré, há um ano ou dois, lhe pediu ajuda para a levar a subir as escadas do prédio objeto dos autos (note-se que o locado se situa no 3.º piso e o edifício não tem elevador). No que tange a depoimento da testemunha Z, a mesma, apesar de anuir que a Ré X, na data referida em 5) não permanecia no locado mas sim na casa do tio, na morada indicada em 21), em convalescença, em virtude de ter sido submetida a uma cirurgia, aí continuando na atualidade, porquanto nessa morada existe uma cadeira para subida das escadas e a mãe ainda aguardar ser submetida a uma terceira cirurgia, afirmou, o que não nos mereceu qualquer credibilidade, que a morada da mãe é a do locado, para onde tenciona regressar um dia. Com efeito, a testemunha disse que a mãe não consegue subir escadas, que já se encontra assim há alguns anos e que há alturas em que fica acamada. Também a testemunha K, no que tange à factualidade ora em apreciação, começou por afirmar que a Ré reside na morada do locado, para logo de seguida dizer que “agora tem estado com o tio, que tem elevador, porque ela não pode subir ao 3.º andar.”, e que “faz a vida em casa do tio”, sic. A testemunha, depois de afirmar que a Ré tem problemas de saúde que a incapacitam fisicamente de subir as escadas e aceder ao locado, ainda assim, em plena contradição, quis convencer o tribunal que por vezes ajuda a Ré a subir as escadas pois esta, depois de passar o dia em casa do tio, vem por vezes para a morada do locado. Em face da prova produzida, (…) resulta provado o caráter duradouro da permanência da Ré na morada do tio (…). Para prova do segmento do facto provado 22) referente ao recebimento, pela Ré, de correspondência na Rua … Costa da Caparica, atentou-se no relatório médico emitido pela Unidade de Saúde USF Costa do Mar, constante de fls 34 verso, por ser esta a morada constante na identificação da utente, ora Ré».
Não vemos como discordar desta análise. Ouvida atentamente toda a prova produzida em sede de audiência final, constatamos que o raciocínio seguido pelo tribunal a quo é lógico, ponderado, desassombrado e certeiro. Diremos apenas, em seu complemento, que as testemunhas U, S, T e Y, além de demonstrarem terem conhecimento directo dos factos (por residirem no mesmo prédio - embora, quanto à testemunha T, apenas em certas épocas do ano), tendo-os corroborado, foram totalmente isentas, já que nenhuma delas tem interesse na decisão, sendo, portanto, merecedoras de toda a credibilidade. Também a testemunha W, trabalhador da construção civil, que disse ter ido trocar no locado um vidro que aí se partira, referiu que, quer no dia em que foi tirar as medidas ao vidro, quer no dia em que o foi colocar (dia seguinte) foi recebido por um casal de estrangeiros. Já as testemunhas L e K, sendo, respectivamente, primo e amiga da R., demonstraram uma natural tendência para a favorecer, trazendo ao tribunal uma história mais ou menos ensaiada e com algumas contradições (v.g., a testemunha L referiu que a R. mora no locado, mas acabou por dizer que, por duas ou três vezes a ajudou a ir ao locado, porque ela «precisou de ir lá», quando «estava com o tio» - ou seja, viveria com o tio; por seu turno, a testemunha K, que disse ter nascido em 1940, afirmou que às vezes ajuda a R. a subir as escadas até ao 3.º andar e outras vezes mete a R. no elevador em casa do tio - sendo que se duvida muito de que uma pessoa de 84 anos possa ajudar outra que tem dificuldades em andar a subir 3 andares…). Finalmente, a testemunha Z, filha da R., prestou um depoimento pejado de contradições e inverosimilhanças. Referiu, por exemplo, que, na altura em que se partiu um vidro da casa (o que ocorreu em 2021 - cfr. documento junto em 29/4/2024 - ref.ª CITIUS 39213504), ela e a R. não se encontravam no locado, porque a mãe estava em casa do tio, convalescente de uma operação à coluna. Só que as operações da R. à coluna ocorreram em 2010 e 2012 (portanto, cerca de 10 anos antes) - cfr. pág. 1 do relatório médico junto em 29/4/2024 (ref.ª CITIUS 39213342). Ao contrário do que a R. alegava na contestação (que passava o dia em casa do tio, a cuidar dele), disse que havia uma senhora contratada para isso. Referiu também que todos os estrangeiros que têm estado no apartamento são seus amigos, tendo-os conhecido no âmbito de voluntariado que fez há cerca de 6 / 7 anos, mas não esclareceu em que área foi esse voluntariado, nem o que é que explica que esses supostos amigos sejam todos surfistas e jovens (sendo certo que a testemunha disse ter nascido em 1973, sendo, portanto, de uma geração muito diferente). Muito curioso é igualmente que a filha da R. diga que esta muitas vezes, devido à sua doença da coluna, fica acamada em casa do tio, porque não consegue andar e não consegue subir escadas. Trata-se de uma doença aparentemente selectiva, já que só se manifesta quando a R. está na rua (e, assim, não consegue subir as escadas de volta ao locado), mas já não quando a R. se encontra no locado: ao que parece, a R. nunca fica acamada no  locado... Acresce, ainda, que, conforme resulta do documento junto com o requerimento de 29/4/2024 (ref.ª CITIUS 39213504), o Guarda da Guarda Nacional Republicana subscritor do mesmo referiu ter sido informado, pela pessoa de nacionalidade alemã que se encontrava a residir no locado, que ela e uma outra «colega» pagavam «aluguer» do quarto à inquilina da proprietária. Por outro lado, é de notar que, nos presentes autos, a R. recebeu a citação (assinando ela própria o aviso de recepção) não no locado, mas sim na Rua … Costa da Caparica, que é, precisamente, a casa do seu tio, morada que também consta do relatório médico junto como documento n.º4 da contestação. Uma última palavra para dizer que não colhe, de todo, o argumento da recorrente de que as testemunhas U, S, T e Y não podem dizer se a R. reside, ou não, no locado, porque nunca entraram no apartamento. Ora, é evidente que se as testemunhas afirmam que nunca vêem a R. no prédio (sendo certo que, não tendo este elevador, é natural que os vizinhos se encontrem nas escadas), se pode presumir que a mesma não mora aí - se ela não está no prédio, não pode aí dormir, comer ou receber amigos. Em suma: os meios de prova indicados pela recorrente não impõem, de forma nenhuma, decisão diversa da proferida pela 1.ª instância. Assim, improcedem as conclusões de recurso, nesta parte - o que se decide.
G) Quanto aos pontos 23 e 24 [«O gozo e fruição do apartamento da Rua … 3º andar .., passou a ser cedido pela X a pessoas estrangeiras, com caráter de permanência e habitualidade, mediante uma contrapartida económica»; «A Ré não informou nem obteve autorização dos Autores para proceder conforme descrito em 23)»]:
A recorrente entende que não deveriam ter sido dados como provados, mas limita-se a fazer um resumo dos depoimentos e declarações de parte, não indicando o seu início e termo, nem os transcrevendo e, portanto, não indicando, como lhe incumbia, com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso [cfr. art. 640.º n.º2 a) do Código de Processo Civil]. Como se refere no Ac. Supremo Tribunal de Justiça de 23/5/2018[8], para que aquele ónus de indicação se considere preenchido, é necessário que o recorrente indique, com precisão, o início e o termo das concretas passagens da gravação visadas, ou então que proceda à transcrição dos excertos dos depoimentos que pretende ver reapreciados. Nada disso aconteceu no que concerne aos pontos 23 e 24 dos factos provados, pelo que, nessa parte, se rejeita a impugnação da decisão de facto.
Do mérito da decisão recorrida:
Pela acção pretendiam os AA., ora recorridos, que fosse declarada a cessação, por resolução, de determinado contrato de arrendamento para habitação celebrado com a R., condenando-se, em consequência, a mesma R. a despejar e a indemnizá-los pela ocupação do imóvel, desde a data da propositura da acção, até à entrega efectiva do imóvel.
Para tanto, alegaram os AA. que se impunha declarar resolvido tal contrato, uma vez que, destinando-se o locado a habitação, a R. deixou de ali habitar e, além disso, subarrendou-o, sem autorização.
A este respeito dispõe o art. 1083.º do Código Civil que:
«1. Qualquer das partes pode resolver o contrato, nos termos gerais de direito, com base em incumprimento pela outra parte.
2. É fundamento de resolução o incumprimento que, pela sua gravidade ou consequências, torne inexigível à outra parte a manutenção do arrendamento, designadamente, quanto à resolução pelo senhorio:
(…)
d) O não uso do locado por mais de um ano, salvo nos casos previstos no n.º 2 do artigo 1072.º;
e) A cessão, total ou parcial, temporária ou permanente e onerosa ou gratuita, do gozo do prédio, quando ilícita, inválida ou ineficaz perante o senhorio».
No caso dos autos, atentos os factos alegados, estaria em causa, antes de mais, o preenchimento do disposto nos n.º1 e 2 d) daquele art. 1083.º, o qual, aliás, vinha invocado pelos AA. e constitui o reverso do dever imposto ao arrendatário no art. 1072.º n.º1, do mesmo diploma.[9]
Teriam, assim, os AA. de provar os factos constitutivos do direito que invocaram (art. 342.º n.º1 do C.C.), ou seja: a celebração do contrato e a falta de uso do locado por mais de um ano, em termos tais que lhes tornem inexigível a manutenção do contrato.
Como resulta da matéria de facto provada, encontrando-se registada a favor dos AA. determinada fracção autónoma, o uso da mesma, para habitação, foi cedido, em 27/3/1972, a D, tendo-se a posição deste vindo a transmitir-se à R., que efectua o pagamento mensal de € 184,87 como contrapartida pelo gozo do imóvel.
Está, deste modo, configurada a celebração de um contrato de arrendamento, tal como este vem definido nos arts. 1022.º  e 1023.º do C.C., sendo certo, aliás, que as partes estão de acordo quanto a tal qualificação.
Verifiquemos, agora, se se encontram preenchidos os pressupostos da aplicação do citado art. 1083.º n.º1 e 2 d), do mesmo diploma.
Da redacção desta norma, conjugada com o já citado art. 1072.º n.º1, podemos concluir que não é qualquer falta de uso do imóvel que constitui fundamento de resolução do contrato de arrendamento. É necessário, por um lado, que a falta de uso ocorra relativamente à finalidade prevista no contrato de arrendamento. Por outro lado, tal falta tem de durar  mais de um ano. Finalmente, é mister que o incumprimento da sua obrigação, pelo arrendatário, atinja uma tal gravidade que torne inexigível ao locador a manutenção do contrato. «A gravidade do incumprimento fundador do direito à resolução do contrato há-de aferir-se quer pela própria natureza da infracção — actuação/omissão substancialmente grave — quer pelas consequências ou efeitos que provoca — e que tornam tal incumprimento grave — quer ainda pela reiteração da conduta violadora das obrigações assumidas — que, por essa via, também é qualificável como grave —, tudo de tal forma que não seja razoavelmente exigível à outra parte a manutenção do arrendamento[10]».
Não basta, assim, ao senhorio provar a violação, pelo arrendatário, da sua obrigação de uso do locado (para o fim contratual) por período superior a um ano, devendo, ainda, provar que tal violação, por si ou pelas suas consequências, torna inexigível a manutenção do arrendamento. Ou seja, o senhorio tem de alegar e provar factualidade subsumível não só a uma das alíneas do n.º2 do art. 1083.º do Código Civil [in casu, a alínea d)], mas também factos integrantes do conceito geral de justa causa consagrado na cláusula geral constante da 1.ª parte daquele n.º2[11].
Isto, posto, em primeiro lugar, cumpre verificar se existiu falta de uso do locado, por mais de um ano, para o fim consignado no contrato, ou seja, para habitação.
De um ponto de vista puramente semântico, «habitar» significa «residir ou viver em; ocupar; morar em; estar em; frequentar; estar domiciliado», sendo que o sinónimo «residir» significa «ter residência; morar» e, por seu turno, «residência» é o «lugar onde se mora habitualmente, domicílio, morada»[12].
Do ponto de vista jurídico, que nos ocupa, a definição de residência deve ser aferida de acordo com a finalidade de habitação estabelecida no contrato. Com efeito, impondo o art. 1072.º do Código Civil que o arrendatário use efectivamente a coisa para o fim contratado, ou seja, no caso dos autos, para habitação, este «dever de uso corresponde à residência permanente, ou seja, o locatário terá de ter no arrendado, com habitualidade e estabilidade, o seu centro de vida[13]».
No fundo, trata-se do conceito de residência permanente já consolidado na vigência do RAU como «a casa em que o arrendatário tem o centro ou sede da sua vida familiar e social e da sua economia doméstica: a casa em que o arrendatário estável ou habitualmente dorme, toma as suas refeições, convive e recolhe a sua correspondência, o local em que tem instalada e organizada a sua vida familiar e a sua economia doméstica – o seu lar, que constitui o centro ou sede dessa organização[14]». Corresponde, aliás, tal conceito ao de domicílio previsto no art. 82.º n.º1 do Código Civil: «A pessoa tem domicílio no lugar da sua residência habitual».
In casu, consta da matéria provada que «a R. não come, não dorme, não prepara as suas refeições, nem recebe os seus amigos no imóvel» locado, sendo certo que, pelo contrário, «tem a sua vida doméstica organizada, come, dorme e recebe correspondência» em casa de um tio, na Rua … na Costa da Caparica, o que ocorre desde há alguns anos (cfr. factos provados n.º17 e 20 a 22). Portanto, a R. não tem, há mais de um ano, instalado no locado o centro ou sede da sua vida familiar e social e da sua economia doméstica.
Trata-se, ademais, de uma violação reiterada, que ocorre há alguns anos, sendo ainda certo que, além de não utilizar o imóvel para sua habitação - como impõe o contrato celebrado -, a R. ainda vem cedendo o gozo do mesmo a pessoas estrangeiras, com carácter de permanência e habitualidade, mediante uma contrapartida económica, sem que para isso tenha obtido a autorização dos AA.. Ou seja, a violação do dever de utilização do locado vem acompanhada da violação da obrigação de não proporcionar a outrem o gozo da coisa por meio de cessão onerosa da sua posição jurídica, locação ou comodato - cfr. art.1038.º f) do Código Civil. Note-se que não se trata da mera existência de hóspedes a que alude o art. 1093.º do Código Civil[15], uma vez que os hóspedes só são permitidos se os mesmos co-habitarem com o arrendatário e não se viverem sozinhos no locado. De resto, «a hospedagem supõe sempre a verificação de uma destas circunstâncias:
a) Fornecimento de habitação, com a prestação dos serviços habitualmente relacionados com este facto (v.g., cama, roupa de cama, lavagem e tratamento da roupa, podendo incluir a própria do hóspede, disponibilização de banho e serviço sanitário, tec);
b) Fornecimento de alimentos.
Em qualquer dos casos deve haver remuneração, pois a expressão final - mediante retribuição - abrange tanto uma como outra das formas previstas de hospedagem. Se a habitação não é acompanhada dos serviços relacionados com ela, não há hospedagem, mas subarrendamento[16]».
No caso dos autos, provou-se que a R. vem cedendo o gozo e fruição do apartamento a terceiros, mas não que, além da habitação, lhes disponibilize quaisquer outros serviços. Deste modo, está configurada a existência, não de hospedagem, mas de subarrendamento.
Portanto, a R. demonstra uma particular indiferença para com o dever-ser jurídico, violando, simultaneamente, duas das principais obrigações que a celebração do contrato de arrendamento faz nascer na esfera do arrendatário [uso do locado e abstenção de cessão não autorizada do seu gozo a terceiros], o que faz de forma contínua e reiterada, potenciando, ao ceder o uso do locado a pessoas estranhas e não autorizadas pelos senhorios, que permanecem no imóvel sem a sua vigilância e supervisão, a possibilidade de ocorrência de danos, ou, pelo menos, de um desgaste acrescido na fracção.
Assim, atento este quadro factual, entendemos encontrar-se preenchida não só a alínea d) do art. 1083.º n.º2 do Código Civil, como a própria cláusula geral ínsita nesta norma, pelo que assiste aos AA. o direito de resolverem o contrato de arrendamento. Atenta a resolução, encontra-se a R. obrigada a despejar e a entregar o locado aos AA. - art.1081.º n.º1 do Código Civil. Provaram, pois, os AA. os factos constitutivos do seu direito à resolução do contrato de arrendamento e à entrega do locado.
À R., por seu turno, incumbia a alegação e prova de factos excepcionais  - impeditivos, modificativos ou extintivos - daqueles direitos dos AA. (cfr. art. 342.º n.º2 do Código Civil). Compulsada a contestação, verifica-se que a R. nada alegou a esse respeito - apenas referiu que passava o dia a cuidar do tio (sem alegar que este sofra de qualquer grau de incapacidade), assim como «uma ou outra noite», mas comendo e dormindo na sua casa (cfr. arts. 8.º e 9.º daquela peça processual). Claro que, em sede de recurso, tentou trazer à colação o disposto no art. 1072.º n.º2 do Código Civil, de acordo com o qual:
« 2. O não uso pelo arrendatário é lícito:
a) Em caso de força maior ou de doença;
b) Se a ausência, não perdurando há mais de dois anos, for devida ao cumprimento de deveres militares ou profissionais do próprio, do cônjuge ou de quem viva com o arrendatário em união de facto;
 c) Se a utilização for mantida por quem, tendo direito a usar o locado, o fizesse há mais de um ano.
 d) Se a ausência se dever à prestação de apoios continuados a pessoas com deficiência com grau de incapacidade igual ou superior a 60 %, incluindo a familiares».
Para poder invocar validamente esta norma, teria a R., antes de mais, de ter admitido que não usava o imóvel arrendado - o que não fez…
E teria de ter alegado e provado que esse não uso era devido a alguma das circunstâncias previstas nas alíneas transcritas, o que também não fez [se provou que é pessoa doente, não alegou, nem provou, que a ausência do locado seja devida à doença e, muito menos, que essa doença seja transitória e compatível com o regresso ao locado[17]].
Portanto, não tendo a R. cumprido o ónus que lhe incumbia têm de proceder os mencionados pedidos de resolução do contrato de arrendamento e de despejo, com entrega do imóvel aos AA., nada existindo a censurar à decisão recorrida nessa vertente, improcedendo a apelação na mesma medida.
Finalmente, quanto à invocada obrigação de indemnização a cargo da R., entendeu a sentença proferida em 1.ª instância que, tendo a arrendatária faltado ao cumprimento do contrato, encontra-se obrigada a indemnizar os senhorios pelo prejuízo que lhes causou, correspondente à diferença entre a renda que paga (€ 184,86) e a renda que vigora no mercado (€ 625,00).
Ora, é certo que, de acordo com o art. 798.º do Código Civil, «o devedor que falta culposamente ao cumprimento da obrigação torna-se responsável pelo prejuízo que causa ao credor». Assim, para que exista responsabilidade contratual, é necessário que tenha ocorrido a prática de um facto voluntário, ilícito, culposo e danoso, existindo nexo de causalidade entre o facto e os danos. Refere o art. 799.º, do mesmo diploma: «1. Incumbe ao devedor provar que a falta de cumprimento ou o cumprimento defeituoso da obrigação não procede de culpa sua; 2. A culpa é apreciada nos termos aplicáveis à responsabilidade civil». Significa isto que «a responsabilidade pelo não cumprimento da obrigação depende da existência de culpa», podendo esta ser definida «como um comportamento reprovado por lei. A lei reprova o comportamento contrário ao cumprimento da obrigação, quando ele é devido à falta de diligência ou dolo do devedor. Quer dizer, não se atende apenas ao comportamento externo do devedor, mas também à sua conduta interna. Saber quando procedeu o devedor diligentemente, é saber as medidas que devia tomar». Mas é ao devedor que compete provar que o não cumprimento não procede de culpa sua, solução que se justifica porque «só o devedor está, por via de regra, em condições de fazer a prova das razões do seu comportamento em face do credor, bem como dos motivos que o levaram a não efectuar a prestação a que estava vinculado». A culpa do devedor «deve ser apreciada in abstracto, ou seja, como se diz no n.º2 do artigo 487.º, pela diligência de um bom pai de família»[18]. Já quanto ao nexo de causalidade, rege o art. 563.º do Código Civil, de acordo com o qual «a obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão». Assim, para que exista obrigação de indemnização, é necessário que o comportamento imputado ao lesante seja causa adequada dos danos sofridos, ou seja, é mister que, de acordo com a teoria da causalidade adequada, o facto concreto praticado seja, em geral e abstracto, adequado a e apropriado para provocar o dano (formulação positiva daquela teoria) e que para a produção do dano não tenham contribuído, decisivamente, circunstâncias anormais, extraordinárias ou anómalas, que intercederam no caso concreto (formulação negativa da mesma teoria)[19].
No caso sub judice, os comportamentos ilícitos imputados à R. são a violação das suas obrigações contratuais de uso do locado e de abstenção de cessão não autorizada do gozo do locado a terceiros [mas não a falta de entrega do locado, já que essa obrigação apenas surge, como vimos, com a resolução]. E os prejuízos invocados pelos AA. são o valor das rendas que poderiam ter obtido no mercado de arrendamento, desde a data da propositura da acção, até à da entrega do locado (€ 625,00 mensais) e que não receberam, porque a R. paga uma renda de €184,87. Ora, analisado os factos ilícitos e os danos, não se vê que aqueles sejam adequados à produção destes. Efectivamente, a consequência normal de não usar uma casa ou de ceder (sem autorização) o seu gozo a terceiros consiste num maior desgaste e deterioração do próprio imóvel, com a sua consequente desvalorização[20] - o que não se provou (e, aliás, não foi alegado). O não uso ou a cedência do gozo do imóvel a terceiros não é causa adequada / apropriada a que os AA., pudessem, durante o período em que aqueles factos ocorrem, receber um montante de renda superior. Assim, tem de improceder, in totum, o pedido de condenação da R. no pagamento de € 625,00, entre a data da entrada da acção em juízo e a data da resolução do contrato, nessa medida procedendo o recurso.
Já entre a data da resolução do contrato de arrendamento (que opera com o trânsito em julgado do presente acórdão) e a da entrega, temos que o montante da indemnização pelo atraso na restituição se encontra pré-fixado no art. 1045.º n.º1 e 2 do Código Civil, não sendo admissível a atribuição de um montante superior, baseado no valor locativo actual do imóvel [€ 625,00]. A indemnização corresponderá, sim, ao dobro do valor da renda estipulada[21] [€ 369,74], que será devido se vier a ocorrer mora da R. na restituição do locado (arts. 804.º n.º1, 805.º n.º2 a) e 1081.º n.º1 do Código Civil[22]). Nessa medida, procede também parcialmente o recurso.

DECISÃO
Pelo exposto, acorda-se em julgar parcialmente procedente a apelação e, em consequência:
1 - Manter as alíneas a) e b) da decisão recorrida;
2 - Alterar a alínea c) daquela decisão, a qual passará a ter a seguinte redacção:
«c) Condena-se a R. no pagamento aos AA. do valor de € 369,74 [trezentos e sessenta e nove euros e setenta e quatro cêntimos] mensais, desde a data do trânsito em julgado desta decisão, até à entrega do imóvel, referida em b)».
Custas, em ambas as instâncias, por AA. e R., na proporção de 1/4 para os primeiros e 3/4 para a segunda – arts. 527.º do Código de Processo Civil e 6.º nº.2, com referência à Tabela I-B, do Regulamento das Custas Processuais.

Lisboa, 21-01-2025
Alexandra de Castro Rocha
Edgar Taborda Lopes
Paulo Ramos de Faria
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[1] A este respeito pode ver-se, com grande desenvolvimento, o Ac. RL de 17/10/2017, proc. 585/13, disponível em http://www.dgsi.pt, onde se refere, além do mais, que a verdade apurada no processo não é absoluta, antes se baseando em «duas regras fundamentais:
(i)-Entre as várias hipóteses de facto deve preferir-se e considerar-se como verdadeira aquela que conte com um grau de confirmação relativamente maior face às demais;
(ii)-Deve preferir-se aquela hipótese que seja “mais provável que não”, ou seja, aquela hipótese que é mais provável que seja verdadeira do que seja falsa”.
“Este critério da probabilidade lógica prevalecente (…) não se reporta à probabilidade como frequência estatística mas sim como grau de confirmação lógica que um enunciado obtém a partir das provas disponíveis. (…) O que o standard preconiza é que, quando sobre um facto existam provas contraditórias, o julgador deve sopesar as probabilidades das diferentes versões para eleger o enunciado que pareça ser relativamente “mais provável”, tendo em conta os meios de prova disponíveis. Dito de outra forma, deve escolher-se a hipótese que receba apoio relativamente maior dos elementos de prova conjuntamente disponíveis. Todavia, pode acontecer que todas as versões dos factos tenham um nível baixo de apoio probatório e, nesse contexto, escolher a relativamente mais provável pode não ser suficiente para considerar essa versão como “verdadeira”. Pelo que para que um enunciado sobre os factos possa ser escolhido como a versão relativamente melhor é necessário que, além de ser mais provável que as demais versões, tal enunciado em si mesmo seja mais provável que a sua negação. Ou seja, é necessário que a versão positiva de um facto seja em si mesma mais provável que a versão negativa simétrica».
[2] A este respeito pode ver-se, ainda, o Ac. RC de 27/5/2014 (proc. 1024/12, disponível em http://www.dgsi.pt): «Não há lugar à reapreciação da matéria de facto quando o (s) facto (s) concreto (s) objecto da impugnação for insusceptível de, face às circunstância próprias do caso em apreciação, ter relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma actividade processual que se sabe, de antemão, ser inconsequente».
[3] Cfr. António Santos Abrantes Geraldes, ob. cit., págs. 197 -198; a este propósito pode ver-se ainda, com interesse, o Ac. STJ de 19/2/2015, proc. 299/05, disponível em http://www.dgsi.pt.
[4] Cfr. A.U.J. do Supremo Tribunal de Justiça nº12/2023.
[5] António Santos Abrantes Geraldes, ob. cit., págs. 200-201.
[6] Sublinhado nosso.
[7] A menção a «8» encontra-se omissa, mas trata-se, seguramente, de lapso, tendo sido essa a idade a que a testemunha se referiu no seu depoimento.
[8] Proc. 27/14, disponível em  https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/00a250496316735280258296004afb8d?OpenDocument . No mesmo sentido, pode ver-se o Ac. STJ de 18/6/2019, proc. 152/18, disponível em https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/99cfb936330d039e802584200033c93f?OpenDocument  .
[9] «O arrendatário deve usar efectivamente a coisa para o fim contratado, não deixando de a utilizar por mais de um ano».
[10] Cfr. Albertina Maria Gomes Pedroso, A Resolução do Contrato de Arrendamento no Novo e Novíssimo Regime do Arrendamento Urbano, in Julgar nº19, 2013, pág. 45.
[11] Ibidem, págs. 46 a 48.
[12] Cfr. Dicionário da Língua Portuguesa, Porto Editora, 5.ª Edição.
[13] Cfr. Ac. RC de 19/2/2013, disponível em https://www.colectaneadejurisprudencia.com; no mesmo sentido, Ac. RE de 16/1/2020, proc. 2079/18, disponível em http://www.jurisprudencia.pt .
[14] Cfr. Ac. do STJ de 5/3/1985, Boletim do Ministério da Justiça 345, pág. 372, citado por M. Januário C. Gomes, in Arrendamentos para Habitação, 2ª ed., pág. 244.
[15] «Art. 1093.º:
1 - Nos arrendamentos para habitação podem residir no prédio, além do arrendatário:
a) Todos os que vivam com ele em economia comum;
b) Um máximo de três hóspedes, salvo cláusula em contrário.
(…)
3 - Consideram-se hóspedes as pessoas a quem o arrendatário proporcione habitação e preste habitualmente serviços relacionados com esta, ou forneça alimentos, mediante retribuição».
[16] Cfr. José António de França Pitão e Gustavo França Pitão, Arrendamento Urbano Anotado, 2.ª ed., pág. 369.
[17] A este propósito, podem ver-se os Ac. RP de 19/5/2022, proc. 24964/19, disponível em https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/fcfd6d304b3c0e658025886e00467c53?OpenDocument e RL de 26/4/2022, proc. 509/20, disponível em https://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/096a1d9b0b8ad28280258844003be5d3?OpenDocument
[18] Cfr. Fernando Andrade Pires de Lima e João de Matos Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. I, págs. 54-55.
[19] Cfr. Ac. STJ de 17/4/2007, proc. 07A701, disponível em http://www.gde.mj.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/0293de5a35ccd5ba802572c00045b82d?OpenDocument
[20] Cfr. Ac. RL de 24/11/2015, proc. 2453/11, disponível em https://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/0475c480e9b5d94b80257f17003384cf?OpenDocument , Ac. RC de 19/2/2012, proc. 4343/10, disponível em https://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/27ecf6be4753b6bf80257b2c0039e160?OpenDocument
[21] Cfr. Ac. RL de 4/5/2006, proc. 3241/2006, disponível em https://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/-/6797CB7BE0B81C5A8025719C00422B30
[22] Cfr. Ac. STJ de 20/11/2012, proc. 1587/11, disponível em https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/0be89c6a3c9c881c80257acc003e23d3?OpenDocument