Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | MARIA JOSÉ MOURO | ||
Descritores: | ACÇÃO INIBITÓRIA CLÁUSULA CONTRATUAL GERAL ACTO DE COMÉRCIO TELECOMUNICAÇÕES JUROS COMERCIAIS CLÁUSULAS NULAS | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 06/21/2012 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | IMPROCEDENTE | ||
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Sumário: | I - Na acção inibitória o controlo das cláusulas contratuais gerais é levado a cabo independentemente da sua inclusão em contratos singulares, efectuando-se abstractamente e não em concreto e segundo os padrões em jogo, e não isoladamente ou em função do caso concreto. II – Quando o art. 464.º, n.º 1, do Código Comercial refere a compra de bens de consumo está a delimitar negativamente um tipo, havendo que considerar também como actos de comércio os actos de comércio subjectivos, os contratos dos comerciantes abrangidos por força da 2ª parte do art. 2 daquele Código, além de que a delimitação apenas diz respeito á compra de bens de consumo, que não à venda dos mesmos bens. III – Atento o disposto no art. 99 do Código Comercial, quando o acto seja cindível e seja comercial – objectiva ou subjectivamente - para uma das partes e não para a outra, o regime aplicável é o comercial; o acto de comércio misto é regido unitariamente como um só acto de comércio, embora com a excepção de não se lhe aplicarem as regras que só forem aplicáveis às partes por cujo respeito o acto é mercantil. IV – O regime previsto no § 3 do art. 102 do Código Comercial é aplicável aos créditos emergentes de contratos celebrados por quaisquer empresários singulares ou colectivos, desde que possuam uma concreta conexão com o exercício da actividade empresarial. V - O dl 32/2003, de 17/2, não excluiu a possibilidade de estipulação de juros a contabilizar nos termos do artº 102º § 3 do Código Comercial entre uma empresa e um consumidor, quando se verifique mora no pagamento de quantias em dívida. (Sumário da Relatora) | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam na Secção Cível (2ª Secção) do Tribunal da Relação de Lisboa: * I - O Ministério Público intentou acção declarativa sob a forma sumária, contra «“A” – Soluções Empresariais de Telecomunicações e Sistemas, S.A.». Alegou o A., em resumo: A cláusula 12.4 do clausulado “Condições Gerais de Prestação do Serviço Telefónico acessível ao público num local fixo”, clausulado já impresso e previamente elaborado que a R. apresenta aos interessados que com ela queiram contratar aquele serviço, impõe aos contratantes aderentes, no caso de atraso no pagamento, o pagamento de juros comerciais à taxa aplicável. Tal cláusula integra-se num contrato respeitante a serviço público essencial – o serviço de comunicações electrónicas previsto no art. 1º, nº 2, al. d), da Lei nº23/96 – sujeitando ao pagamento de juros comerciais o cliente que seja consumidor; o art. 2º, nº 2 al. a), do dl nº 32/2003 de 17 de Fevereiro limitou o campo de aplicação do art. 102 do CCom ao excluir do regime especial dos juros de mora pelos atrasos nos pagamentos os contratos celebrados com os consumidores. Concluiu o A. que a cláusula em causa é nula atento o disposto no art. 15º do D.L. nº 446/85. Pediu o A. que seja declarada nula a cláusula 12.4 do clausulado “Condições Gerais de Prestação do Serviço Telefónico acessível ao público num local fixo”, condenando-se a R. a abster-se de a utilizar em contratos que de futuro venha a celebrar e especificando-se na sentença o âmbito de tal proibição; mais pediu que a R. seja condenada a dar publicidade a tal condenação e a comprovar nos autos essa publicidade. A R. contestou dizendo, essencialmente, que o conceito de cliente, no âmbito do referido contrato, abrange apenas as pessoas colectivas ou equiparadas que o destinam a uso profissional, pelo que não há dúvidas de que tais contratos se referem a actos de comércio, além de que a R. é uma entidade empresarial que celebra tais contratos no exercício da sua típica actividade económica de prestação de serviços de comunicações electrónicas, enquadrável no art. 230 do CCom; defendeu que o dl 32/2003 não é aplicável à situação em apreço e que a noção de consumidor não se reconduz ao caso dos autos. Concluiu pela improcedência da acção. O processo prosseguiu e, a final, foi proferida decisão que julgou a acção improcedente e absolveu a R. do pedido. Da sentença apelou o A., concluindo nos seguintes termos a respectiva alegação de recurso: 1- O conceito de consumidor não é inequívoco na nossa ordem jurídica, uma vez que a sua definição emerge, de formas distintas, em vários diplomas legais. 2- Em face da diversidade de conceitos legais, entende-se que a definição de consumidor não radica na distinção pessoa singular/pessoa coletiva, mas antes na contratação para fins não profissionais. 3- Os consumidores não estão sujeitos à taxa de juro comercial, quer por aplicação do Código Comercial, quer por aplicação do Decreto-Lei n.º 32/2003, de 17 de fevereiro. 4- O artigo 464.º, n.º 1, do Código Comercial exclui a compra e venda de bens de consumo. 5- Por outro lado, a ressalva contida no artigo 99.º do Código Comercial permite concluir que os consumidores, no nosso ordenamento jurídico, nunca estiveram sujeitos ao pagamento de juros comerciais. 6- O concurso da regulamentação das relações de consumo em determinados sectores mistos, derroga a aplicação do artigo 99.º do Código Comercial. 7- O artigo 2.°, n.º 2, alínea a) do Decreto-Lei n.º 32/2003, de 17 de fevereiro, limitou o campo de aplicação do artigo 102.° do Código Comercial, ao excluir do regime especial dos juros de mora pelos atrasos nos pagamentos os contratos celebrados com os consumidores. 8- No caso dos autos, a Ré logrou demonstrar, em sede de audiência de julgamento, que apenas contrata os serviços indicados no clausulado em apreço a pessoas coletivas para fins profissionais. 9- A prova de tal facto (fins profissionais) foi efetuada mediante a inquirição de testemunhas, tendo o Tribunal recorrido fundado a sua convicção única e exclusivamente na prova testemunhal e não no teor do contrato em apreço. 10- Porém, a fiscalização da legalidade das cláusulas contratuais gerais é feita em abstrato e deve cingir-se única e exclusivamente ao conteúdo do contrato tal como se encontra redigido, não podendo ser produzida prova testemunhal que venha adicionar condições ao clausulado previamente elaborado, restringindo a sua aplicação, nos termos dos artigos 393.º e 394.º, ambos do Código Civil. 11- A matéria de facto em análise deve ser considerada como não escrita, não podendo ser dada como provada para fundamentar a decisão recorrida. 12- Acresce que a expressão “contratação para fins profissionais” é uma expressão conclusiva, a qual contém, em si, um conceito legal que carece de concretização, o que não foi feito pela Ré na contestação. 13- As respostas sobre matéria de direito ou conclusiva e carecendo de concretização padecem dos vícios de obscuridade e deficiência, como é o caso, nos termos dos artigos 655.º e 712.º a contrario, ambos do Código de Processo Civil. 14- A matéria dada como provada no ponto 8 da matéria assente deve igualmente ser considerada não escrita, com fundamento e nos termos do artigo 646.º, n.º 4, do Código de Processo Civil. A R. contra alegou nos termos de fls. 92 e seguintes. * II - O Tribunal de 1ª instância julgou provados os seguintes factos: 1) A Ré encontra-se matriculada sob o n.º ..., na Conservatória do Registo Comercial de Lisboa. 2) A Ré tem por objecto social a “Prestação de serviços de telecomunicações e o estabelecimento, gestão e exploração de redes de telecomunicações, bem como o desenvolvimento, consultoria e actividades no âmbito das tecnologias de informação e respectivos conteúdos”. 3) No exercício de tal actividade, a Ré procede à celebração de contratos de prestação de serviço telefónico acessível ao público num local fixo. 4) Para tanto, a Ré apresenta aos interessados que com ela pretendem contratar formulários de subscrição de serviço telefónico acessível ao público num local fixo e um clausulado já impresso e previamente elaborado, análogo ao que se junta, intitulado “Condições Gerais de Prestação do Serviço Telefónico acessível ao público num local fixo da “A”-Soluções Empresariais de Telecomunicações e Sistemas, S.A”. 5) O clausulado já impresso e previamente elaborado intitulado “Condições Gerais de Prestação do Serviço Telefónico acessível ao público num local fixo da “A” Soluções Empresariais de Telecomunicações e Sistemas, S.A” não contém quaisquer espaços em branco para serem preenchidos pelos contratantes/aderentes que em concreto se apresentem a contratar com a Ré. 6) É o seguinte o texto da cláusula 12.4 das referidas condições gerais, sob a epígrafe “Modo e Prazo de Pagamento”: “Sobre os valores em débito não liquidados pontualmente incidem juros de mora à taxa legal em vigor, nos termos do art.102º § 3 do Código Comercial.” 7) É o seguinte o texto da cláusula 1.2 das referidas condições gerais, sob a epígrafe “Objecto”: “O conceito de CLIENTE, no âmbito do presente contrato, abrange apenas as pessoas colectivas ou equiparadas.” 8) A Ré apenas contrata e presta o Serviço Telefónico acessível ao público num local fixo a pessoas colectivas ou equiparadas, que utilizam tais serviços para fins profissionais. * III - O percurso seguido pela sentença recorrida foi o seguinte: o serviço fornecido pela R. insere-se no rol de serviços públicos essenciais, serviços que são prestados a utentes que tanto podem ser pessoas singulares como colectivas; face ao art. 3-g) da lei 5/2004 de 10-2, e ao art. 2, nº1 da lei 24/96, de 31-7, não são tidos como consumidores as pessoas colectivas, não lhes sendo extensível qualquer norma de protecção que vise impedir a aplicação da taxa de juro prevista no Código Comercial; como a R. apenas contrata e presta o serviço a que se reportam os autos a pessoas colectivas ou equiparadas que os utilizam para serviços profissionais, a cláusula referente aos juros não viola os princípios da confiança ou da boa fé. Definindo as conclusões de recurso o objecto deste, conforme decorre do art. 684, nº 3, do CPC, as questões que essencialmente se nos colocam, atentas as conclusões apresentadas pelo apelante – acima reproduzidas – face à sentença recorrida são as seguintes: se o ponto 8) dos Factos Provados deve ser dado como não escrito, a ele não se podendo recorrer, uma vez que se fundamentou na prova testemunhal produzida, bem como por a expressão «contratação para fins profissionais» ser uma expressão conclusiva; se, no contexto dos autos, a definição de consumidor não radica na distinção pessoa singular/pessoa colectiva, mas antes na contratação para fins não profissionais; se os consumidores não estão sujeitos à taxa de juro comercial, quer por aplicação do Código Comercial quer por aplicação do dl 32/2003, de 17-2. * IV – 1 - Comecemos – por uma questão de ordem lógica – pelo que respeita à subsistência do ponto 8) dos Factos Provados. O teor do mesmo é o seguinte: «A Ré apenas contrata e presta o Serviço Telefónico acessível ao público num local fixo a pessoas colectivas ou equiparadas, que utilizam tais serviços para fins profissionais». Não oferece dúvidas que tal facto se fundamentou na prova testemunhal produzida em audiência: na «Motivação», a fls. 68, diz-se claramente que o tribunal fundou a sua convicção, «relativamente ao facto 8), no depoimento das testemunhas apresentadas pela ré …» O A. argumenta no sentido de a fiscalização da legalidade das cláusulas contratuais gerais ser feita em abstracto, «não podendo ser produzida prova testemunhal que venha adicionar condições ao clausulado previamente elaborado, restringindo a sua aplicação, nos termos dos artigos 393.º e 394.º ambos do Código Civil». Vejamos. Dispõe o nº 1 do art. 394 do CC que é «inadmissível a prova por testemunhas, se tiver por objecto quaisquer convenções contrárias ou adicionais ao conteúdo de documento autêntico ou dos documentos particulares mencionados nos artigos 373º a 379º, quer as convenções sejam anteriores à formação do documento ou contemporâneas dele, quer sejam posteriores». O objectivo será o de afastar os perigos que a admissibilidade da prova testemunhal é susceptível de originar, de afastar os riscos inerentes à falibilidade da prova testemunhal, destruindo com base numa prova insegura a melhor fé que um documento merece. Os documentos particulares mencionados nos arts. 373 a 379 são os documentos particulares cuja autoria se encontre reconhecida nos termos daquelas disposições legais. Sucede que o Tribunal de 1ª instância não julgou provado que um determinado contrato escrito foi celebrado e que esse contrato integrava uma determinada cláusula que não constava do seu texto e o aditava ou contrariava, cláusula que foi dada como provada com recurso à prova testemunhal: os documentos juntos aos autos não correspondem a contratos celebrados – e assinados – pela R. e por uma contraparte. O que está em consonância com a circunstância de estarmos perante uma acção inibitória referente a «cláusulas contratuais gerais, elaboradas para utilização futura», «independentemente da sua inclusão efectiva em contratos singulares». O Tribunal de 1ª instância deu como provado que a R. apresenta aos interessados que com ela pretendem contratar determinados formulários de subscrição de serviço telefónico acessível ao público; assim, não estaremos propriamente perante documento particular mencionado nos arts. 373 a 379 do CC. Por outro lado, o Tribunal de 1ª instância não deu como provado – com base na prova testemunhal - que aqueles formulários possuem cláusula adicional ou contrária às que resultam do exemplar junto aos autos. O que deu como provado foi algo de diferente: quem são as pessoas com as quais a R. acorda aquele serviço, quais têm sido as suas contrapartes naqueles contratos. Entende-se, pois, que não foi infringido o disposto nos arts. 393 e 394 do CC. * IV – 2 - Defende o A. que a expressão “contratação para fins profissionais” é uma expressão conclusiva, a qual contém, em si, um conceito legal que carece de concretização. É sabido que deverão ser excluídas da condensação - e do elenco dos factos provados - as alegações com conteúdo técnico-jurídico ou conclusivas, bem como aquelas que se traduzam em verdadeiras questões de direito. Existem, porém, expressões que a par de um cariz normativo ou conclusivo detêm uma significação corrente e que, por isso, podem ser consideradas (desde que não se reconduzam precisamente àquilo que no processo está a ser discutido, ao objecto do processo). As dificuldades de delimitação são frequentes, no que concerne aos juízos de valor que tanto integram normas jurídicas como se poderão, por vezes, situar no plano dos factos. A propósito dizia-nos Anselmo de Castro ([1]) que são «factos não só os acontecimentos externos, como os internos ou psíquicos, e tanto os factos reais como os simplesmente hipotéticos», mas são de «equiparar aos factos, os juízos que contenham subsunção a um conceito jurídico geralmente conhecido; por outras palavras, os que, contendo a enunciação do facto pelos próprios caracteres gerais da lei, sejam de uso corrente na linguagem comum, como "pagar", "emprestar", "vender", "arrendar", "dar em penhor", etc». Antunes Varela ([2]) considerava que os factos, no campo do direito processual, abrangem, principalmente embora não exclusivamente, as ocorrências concretas da vida real. Nos juízos de facto (juízos de valor sobre a matéria de facto) haverá que distinguir entre aqueles cuja emissão se há-de apoiar em simples critérios do bom pai de família, do homem comum, e aqueles que na sua formulação apelam essencialmente para a sensibilidade ou intuição do jurista, para a formação especializada do julgador. Enquanto os primeiros estão fundamentalmente ligados à matéria de facto, os segundos estão mais presos ao sentido da norma aplicável ou aos critérios de valorização da lei. Acrescentando: nem «os juízos valorativos de facto, nem as questões de direito, devem ser incluídos no questionário, porque o questionário é uma peça essencialmente virada para a prova testemunhal ... e a testemunha deve ser chamada a depor, não sobre as suas apreciações mas sobre as suas percepções. Se, porém, algum dos juízos de valor sobre os factos (ou seja, sobre a matéria de facto), for indevidamente incluído no questionário, a resposta do colectivo a esses quesitos não deve ser tida por não escrita, por aplicação do disposto no nº 4 do art. 646 do Cod. Proc. Civil, visto não se tratar de verdadeira questão de direito». No ponto 8) dos factos provados refere-se que as pessoas com quem a R. contrata «utilizam tais serviços para fins profissionais». «Fins profissionais» é uma expressão que encerra em si mesma uma conclusão, um juízo [de valor sobre os factos] mas que tem um significado corrente na linguagem comum, percepcionável pelo cidadão que não disponha de qualquer apetrechamento técnico-jurídico; essa acepção usual na linguagem comum já existia anteriormente ao nº 1 do art. 2 da lei 24/96, de 31-7 (Lei de Defesa do Consumidor) dispor que se considera «consumidor todo aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma actividade económica que vise a obtenção de benefícios». Neste contexto entende-se que é de manter o ponto 8) dos factos provados nos seus precisos termos. * IV – 3 - Dispõe o art. 25º do dl 446/85, de 25-10, que «as cláusulas contratuais gerais, elaboradas para utilização futura, quando contrariem o disposto nos artigos 15º, 16º, 18º, 19º, 21º e 22º, podem ser proibidas por decisão judicial, independentemente da sua inclusão efectiva em contratos singulares». Estamos, neste caso, perante uma acção com um fim preventivo, num processo abstracto de controlo, «destinado a erradicar do tráfico jurídico condições gerais iníquas, independentemente da sua inclusão efectiva em contratos singulares»; o objecto de tutela da acção inibitória não é o cliente singular do utilizador, mas antes o «tráfico jurídico em si próprio, que se pretende ver expurgado de cláusulas tidas como iníquas» ([3]). A acção inibitória destina-se a assegurar não um sucedâneo para um direito ou interesse violado, mas o gozo do próprio direito. Caracteriza-se por estar voltada para o futuro, destinando-se, no caso das cláusulas abusivas, «a obter a condenação na abstenção do uso ou da recomendação de cláusulas contratuais gerais» (art. 26 do dl 446/85) – não tem por fim reintegrar ou reparar o direito violado, visando antes evitar que o acto contrário à lei venha a ocorrer, continue ou se repita ([4]). O controlo das cláusulas – o designado controlo abstracto – é levado a cabo independentemente da sua inclusão em contratos singulares, «efectua-se abstractamente e não em concreto e segundo os padrões em jogo, e não isoladamente ou em função do caso concreto» ([5]). Ora, é por isso mesmo, por se tratar de um controlo abstracto, que se nos afigura duvidosa a relevância do facto provado sob o ponto 8) - «A Ré apenas contrata e presta o Serviço Telefónico acessível ao público num local fixo a pessoas colectivas ou equiparadas, que utilizam tais serviços para fins profissionais». Muito embora – até agora – a R. apenas haja contratado com aquelas pessoas para utilização em tais fins, não nos interessa quais sejam os casos concretos ocorridos. O texto do clausulado não menciona os aludidos fins e o controle que se pretende realizar através desta acção é em abstracto, independentemente do que até agora efectivamente sucedeu. * IV – 4 – A perspectiva do A. é a de que integrando-se a cláusula 12.4 num contrato respeitante a um serviço público essencial, atento o tipo de contrato em que está inserida e a sua amplitude, aquela cláusula constrange ao pagamento de juros comerciais o cliente que seja consumidor, quando o art. 2, nº 2-a) do dl 32/2003, de 17-2, limitou o campo de aplicação do art. 102 do CCom ao excluir do regime especial dos juros de mora pelos atrasos nos pagamentos os contratos celebrados com os consumidores. Assim, a R. colocaria em causa o adequado equilíbrio contratual de interesses, sendo a cláusula em questão nula, face ao preceituado no art. 15 do dl 446/85. Vejamos. Nos termos do art. 15 da LCCG são proibidas as cláusulas contratuais gerais contrárias à boa fé. Como salientavam Almeida Costa e Menezes Cordeiro ([6]) reporta-se o preceito «à boa fé objectiva, ou seja, a uma cláusula geral, que exprime um princípio normativo. Portanto, não se fornece ao julgador uma regra apta a aplicação imediata, mas apenas uma proposta ou plano de disciplina, exigindo a sua mediação concretizadora. Deixa-se aberta, deste modo, a possibilidade de atingir todas as situações carecidas de uma intervenção postulada por exigências fundamentais de justiça». O serviço de telefone é um serviço público essencial, abrangido pela protecção dada ao utente pela lei 23/96, de 26-7, considerando-se utente – para os fins previstos naquela lei - «a pessoa singular ou colectiva a quem o prestador do serviço se obriga a prestá-lo». Nos termos do nº 1 do art. 2 da lei 24/96, de 31-7 (Lei de Defesa do Consumidor) «considera-se consumidor todo aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma actividade económica que vise a obtenção de benefícios». Já a lei 5/2004, de 10-2 (Lei das Comunicações Electrónicas) define como consumidor «a pessoa singular que utiliza ou solicita um serviço de comunicações electrónicas acessível ao público para fins não profissionais»; diferentemente o utilizador será «a pessoa singular ou colectiva que utiliza ou solicita um serviço de comunicações electrónicas acessível ao público» (alíneas g) e ii) do art. 3). Deste modo, a par de uma definição ampla de utente (o utilizador dos serviços, seja ele pessoa singular ou colectiva e sejam esses serviços destinados a uso profissional ou não profissional) temos uma definição genérica de consumidor que nos é dada pela Lei de Defesa do Consumidor (todo aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma actividade económica que vise a obtenção de benefícios) e uma definição específica de consumidor para efeito das relações regulamentadas pela Lei das Comunicações Electrónicas (a pessoa singular que utiliza ou solicita um serviço de comunicações electrónicas acessível ao público para fins não profissionais), lei essa que contém, paralelamente, uma definição de utilizador (a pessoa singular ou colectiva que utiliza ou solicita um serviço de comunicações electrónicas acessível ao público) próxima daquela primeiramente referida de utente. Neste contexto e numa primeira abordagem pareceria que face ao disposto na Lei das Comunicações Electrónicas, no âmbito das “Condições Gerais de Prestação do Serviço Telefónico acessível ao público num local fixo da “A”-Soluções Empresariais de Telecomunicações e Sistemas, S.A”, abrangendo o conceito de cliente “apenas as pessoas colectivas ou equiparadas” ali não estariam incluídos os consumidores que, para aquela lei, corresponderão, apenas, a pessoas singulares… A discussão sobre se para o efeito se deveria operar – ou não – com o fim profissional ou não profissional, tendo em conta a definição resultante da Lei de Defesa do Consumidor afigura-se despicienda face ao que seguidamente referiremos. * IV – 5 – O apelante, nas suas alegações de recurso, defende que mesmo não entrando em linha de conta com o dl 32/2003, de 17/2, por aplicação das disposições do Código Comercial, os consumidores não estão sujeitos à taxa de juros comercial. O âmbito material do tipo da compra e venda mercantil é delimitado positivamente pelo art. 463 do CCom e negativamente pelo art. 464 do mesmo Código, aludindo-se neste último a que não são consideradas comerciais as «compras de quaisquer coisas móveis destinadas ao uso ou consumo do comprador». Sucede, porém, consoante decorre do art. 2 do CCom, que a par dos actos de comércio objectivos – os que estão especialmente previstos como actos de comércio – temos os actos de comércio subjectivos - «todos os actos e responsabilidades do comerciante que pertençam a um género que tenha, pelo menos, uma espécie comercial, e que tenham sido praticados ou assumidos no exercício do seu comércio, presumindo-se, salvo prova em contrário, que efectivamente o foram …» ([7]). Diz-nos o apelante que «o artigo 464.º, n.º 1, do Código Comercial exclui a compra e venda de bens de consumo». Ora, como vimos, trata-se da delimitação negativa de um tipo e não mais do que isso, havendo, de qualquer modo, que considerar também como actos de comércio os actos de comércio subjectivos, os contratos dos comerciantes abrangidos por força da 2ª parte do art. 2 do CCom. Além de que a delimitação apenas diz respeito á compra de bens de consumo, que não à venda dos mesmos bens. Como salienta Menezes Cordeiro ([8]) o «Direito Comercial separa a compra e venda, distinguindo as duas operações: a compra em si, pela qual o sujeito adquire o direito, pagando o preço e a venda, pela qual ele arrecada um preço, abrindo mão do direito. Trata-se de técnica possibilitada pela existência dos chamados “actos mercantis unilaterais”: os que o são apenas por referência a uma das partes – artigo 99º». O art. 99 estatui, a propósito dos actos de comércio mistos, que embora o acto seja mercantil só com relação a uma das partes será regulado pelas disposições da lei comercial quanto a todos os contratantes salvas as que só forem aplicáveis àquele ou àqueles por cujo respeito o acto é mercantil. Deste modo, quando o acto seja cindível e seja comercial – objectiva ou subjectivamente - para uma das partes e não para a outra, o regime aplicável é o comercial. Assim, o acto de comércio misto é regido unitariamente como um só acto de comércio, embora com a excepção de não se lhe aplicarem as regras que só forem aplicáveis às partes por cujo respeito o acto é mercantil, ou seja, não se aplicam preceitos cuja aplicação está reservada a comerciantes – esse é o sentido da ressalva constante do art. 99 do CCom. Neste contexto, não se concorda com o apelante quando afirma que, face ao Código Comercial, os consumidores não estão sujeitos à taxa de juro comercial. O § 3º do art. 102 do C.Com. estabelece que «os juros moratórios legais e os estabelecidos sem determinação de taxa ou quantitativo, relativamente aos créditos de que sejam titulares empresas comerciais, singulares ou colectivas, são os fixados em portaria conjunta dos Ministros das Finanças e da Justiça. É para este parágrafo que remete directamente a cláusula contratual a que nos reportamos. A lei faz referência expressa a créditos de que sejam titulares «empresas comerciais». O dl 32/2003, de 17-2 – que deu nova redacção aos § 2 e 3 do art. 102 do Código Comercial e lhe acrescentou um § 4) no seu art. 3-b) - definiu como «empresa» «qualquer organização que desenvolva uma actividade económica ou profissional autónoma, mesmo que exercida por pessoa singular». Anteriormente a este diploma, visto não existir uma definição legal de «empresa comercial» suscitaram-se dúvidas sobre o âmbito de aplicação do preceituado no art. 102 do Código Comercial, quanto à expressão «empresa comercial». Entendeu-se ser preferível dar-lhe um sentido amplo, abrangendo não só todos os comerciantes, como também todas as empresas públicas e as cooperativas que exerçam uma actividade comercial organizada em moldes empresariais ([9]). Engrácia Antunes ([10]) refere a propósito do § 3 do art. 102 que em seu entender, o regime em apreço é aplicável aos créditos emergentes de contratos celebrados por quaisquer empresários singulares ou colectivos, ponto é que tais contratos possuam uma concreta conexão com o exercício da actividade empresarial, deixando de fora apenas aqueles outros que a esta actividade sejam alheios ou impertinentes. No caso que nos ocupa, estaremos perante créditos de que uma empresa comercial seria credora, resultantes da actividade dessa empresa. Nada impediria, pois, a consideração da taxa prevista no § 3 do art. 102, atentas as disposições do CCom. * IV – 6 – Defende, todavia, o apelante que «o artigo 2.°, n.º 2, alínea a) do Decreto-Lei n.º 32/2003, de 17 de fevereiro, limitou o campo de aplicação do artigo 102.° do Código Comercial, ao excluir do regime especial dos juros de mora pelos atrasos nos pagamentos os contratos celebrados com os consumidores». O dl 32/2003, de 17-2, de Fevereiro procedeu à transposição para o direito interno da Directiva nº 2000/35/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29-7, que estabeleceu regras tendentes a reagir contra os atrasos nos pagamentos nas transacções comerciais; é o que resulta claramente do seu art. 1 onde se diz que o «presente diploma transpõe para a ordem jurídica interna a Directiva n.º2000/35/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29 de Junho, a qual estabelece medidas de luta contra os atrasos de pagamento nas transacções comerciais». O legislador comunitário actuou tendo em vista a viabilidade económica das empresas, o incentivo das exportações, a criação de uma disciplina homogénea e, em geral, a protecção dos credores ([11]). Dos considerandos da referida Directiva consta que “a presente directiva limita-se aos pagamentos efectuados para remunerar transacções comerciais e não regulamenta as transacções com os consumidores, os juros relativos a outros pagamentos, como por exemplo os pagamentos efectuados nos termos da legislação em matéria de cheques ou de letras de câmbio, ou os pagamentos efectuados a título de indemnização por perdas de danos, incluindo os efectuados por companhias de seguro.” Na sequência, o dl 32/2003, ao transpor as regras da Directiva, afastou expressamente a aplicação do regime nele constante aos contratos celebrados com consumidores (art. 2, nº 2-a) ao mesmo tempo que, para efeito da sua aplicação, definia transacção comercial (art. 3-a) como «qualquer transacção entre empresas ou entre empresas e entidades públicas, qualquer que seja a respectiva natureza, forma ou designação, que dê origem ao fornecimento de mercadorias ou à prestação de serviços contra uma remuneração». A essas transacções o regime nele definido seria aplicável – nos termos do nº 1 do art. 2 o «presente diploma aplica-se a todos os pagamentos efectuados como remunerações de transacções comerciais». Sucede que uma das medidas de desincentivo aos atrasos nos pagamentos das transacções comerciais foi a alteração da redacção do art. 102 do CCom. que aquele diploma operou. O regime previsto no dl 32/2003, não é aplicável aos contratos celebrados entre uma empresa e um consumidor. Mas com este decreto-lei passou a ser proibida a estipulação de juros comerciais quanto a actos unilateralmente comerciais? Aderindo ao entendimento que foi seguido nos acórdãos desta Relação de 5-5-2011 e de 8-5-2012, bem como no da Relação de Coimbra de 19-10-2010 ([12]), julgamos que não. O dl 32/2003 não se propôs alterar o regime dos actos unilaterais de comércio ou afastar a aplicabilidade da taxa de juro comercial a esses mesmos actos. Efectivamente, embora alterando o art. 102 do CCom nenhuma alteração foi introduzida no art. 99 do mesmo Código, continuando a existir os actos unilateralmente comerciais, actos que devem ter a disciplina própria dos actos de comércio, salvo quando a lei comercial o excepcionar. Como se escreve no acórdão de 8-5-2012 ([13]): «Continuando a lei comercial a prever actos unilateralmente comerciais, isto é, actos que só têm natureza comercial para uma das partes (a “empresa”), o seu regime continua a ser o dos actos de comércio, como previsto na lei comercial, por força do disposto no artº 99º do Código Comercial. Diga-se, de resto, que não se vê no espírito da lei algo que aponte para a não aplicação aos consumidores dos juros de mora comerciais. Como se salienta no já citado Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 19/10/2010, a finalidade da transposição da Directiva operada pelo Decreto-Lei 32/2003, de 17/2, nada teve a ver com a defesa do consumidor. Ali se deixou expresso: “Em nenhum diploma de defesa do consumidor se disciplina a questão dos juros moratórios: por definição, eles traduzem uma sanção (ou compensação ao credor) pela falta de cumprimento tempestivo. A defesa do consumidor tem cabal entendimento quando se refere a matérias como os deveres pré-contratuais, a formação do contrato, o conteúdo do contrato e os seus efeitos ou vicissitudes, como a responsabilidade do produtor ou o direito ao arrependimento. Porém, a mora é “um atraso ilicitamente provocado pelo devedor”, é “uma violação voluntária de certa norma jurídica”, onde, salvo o devido respeito, mal se entenderá um regime de protecção”. E acrescenta-se: “A razão de ser da existência de juros moratórios comerciais nada tem a ver com o devedor, mas tem tudo a ver com o credor: seja o devedor consumidor ou não o seja, a razão continua a ser a mesma, ou seja, num caso ou noutro (mas já não quando, por exemplo, se trate de actos não comerciais praticados por comerciantes), radica na necessidade de “compensar especialmente as empresas pela imobilização de capitais, pois que, para elas o dinheiro tem um custo mais elevado do que em geral, na medida em que deixam de o poder aplicar na sua actividade, da qual extraem lucros, ou têm mesmo de recorrer ao crédito bancário. Em suma, e salvo melhor entendimento, a obrigação de pagamento de juros comerciais respeita a todos os actos comerciais e continua a ser independente da natureza da pessoa do obrigado”». Concluímos, deste modo, que o dl 32/2003, de 17/2, não excluiu a possibilidade de estipulação de juros a contabilizar nos termos do artº 102º § 3 do CCom. entre uma empresa e um consumidor, quando se verifique mora no pagamento de quantias em dívida. Isto mesmo que se trate dos chamados serviços públicos essenciais, salientando-se que o que está em causa não é a supressão do serviço mas a penalização decorrente de um acto ilícito do devedor. * IV – 6 –Assim, não será contrária à boa fé a cláusula contratual geral que permita que por créditos de que sejam titulares empresas comerciais, singulares ou colectivas, sejam devidos juros nos termos do artº 102º § 3 do Código Comercial, qualquer que seja o conceito de consumidor utilizado; mesmo quando os aderentes a tal contrato sejam pessoas singulares que utilizem os serviços contratados para fins não comerciais, tal como quando os aderentes sejam pessoas colectivas, quaisquer que sejam os fins – profissionais ou não profissionais – para que utilizem os mesmos serviços. Com aquela cláusula não é colocado em risco o adequado equilíbrio contratual de interesses, como pretende o A., não sendo a mesma nula. * V – Face ao exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando a sentença recorrida. Sem custas. * Lisboa, 21 de Junho de 2012 Maria José Mouro Teresa Albuquerque Isabel Canadas ------------------------------------------------------------------------------------ [1] Em «Direito Processual Civil», vol. III, pags. 268-269. [2] No comentário ao acórdão do STJ de 8-11-84, Rev. Leg. e Jurisp. Ano 122º, pags. 209 e seguintes. [3] Almeno de Sá, «Cláusulas Contratuais Gerais e Directiva sobre Cláusulas Abusivas», 2ª edição, pags. 77-83. [4] Ver João Alves, «Algumas Notas sobre a Tramitação da Acção Inibitória de Cláusulas Contratuais Gerais», Revista do CEJ, nº 6, pags. 75 e segs.. [5] João Alves, local citado. [6] Em «Cláusulas Contratuais Gerais», 1986, pag. 39. [7] Pedro Pais de Vasconcelos, «Direito Comercial», vol. I, pags. 69-70. [8] «Manual de Direito Comercial», 2ª edição, pag. 834. [9] Brito Correia, «Direito Comercial», edição da AEFDL, vol. I, pag. 30. [10] «Direito dos Contratos Comerciais», pag. 236. [11] Ver Gravato de Morais, «A Tutela do Credor Perante o Atraso no Pagamento de Transacções Comerciais», em «Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Manuel Henrique Mesquita, II vol., pag. 264. [12] Aos quais se pode aceder respectivamente em http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/, processos 2152/10.2YXLSB.L1-6 e 2151/10.4YXLSB.L1-1 e em http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf processo 286652/08.0YIPRT.C1 [13] Em que são seguidos de perto os outros dois acórdãos referidos. |