Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
511/16.6PKLSB.L1-9
Relator: FILIPA COSTA LOURENÇO
Descritores: HOMICÍDIO QUALIFICADO
CIRCUNSTÂNCIAS QUALIFICATIVAS
FUNDAMENTAÇÃO DA DECISÃO
FUNDAMENTAÇÃO DEFICIENTE
MEDIDA DA PENA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/09/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIMENTO PARCIAL
Sumário: I- Para efeitos da determinação da medida concreta da pena a aplicar ao arguido, dentro da moldura abstracta, importa ter presente a culpa do agente e as exigências de prevenção de futuros crimes, atendendo também a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor do agente ou contra ele - art.71º nºs 1 e 2 do C.P.;

II- Quando o Tribunal “ a quo”, se limita a enumerar estas circunstâncias, vertidas em factos, alguns deles até de natureza conclusiva ou imperscrutável, mas não as classifica como atenuantes ou agravantes, não transparece o seu percurso lógico-dedutivo, nem a sua clara opção pela dosimetria concreta das penas parcelares, não ficando evidentemente esclarecida ao destinatário da mesma, nem a qualquer outro aquela opção, tornando o acórdão opaco;

III- Era, pois, imprescindível que o tribunal, ao proceder à determinação da medida concreta da pena, tivesse esclarecido a forma como analisou os parâmetros dos critérios contidos na lei e as razões específicas em que assentou a medida da pena, indicando o percurso lógico que seguiu, concretamente quanto às circunstâncias atenuantes, quer agravantes, pois só a fundamentação, permite a sindicância da legalidade do acto, por uma parte, e serve para convencer os interessados e os cidadãos em geral acerca da sua correcção e justiça;

IV- Consequentemente, o acórdão terá de ser considerado nulo, por estar em clara violação com o disposto nos artigos cuja omissão acarreta a nulidade da sentença, passível de arguição e de conhecimento oficioso em sede de recurso, nos termos do art.379º, nºs 1, al. a) e c) e nº 2 do CPP, devendo os fundamentos da medida concreta da pena serem expressamente referidos no acórdão nos termos do nº 3 do art.71º do CP;

V- Também na determinação da pena única / cúmulo Jurídico, a exigência de fundamentação não se basta com a utilização de fórmulas tabelares ou conclusivas, como a utilizada no acórdão :”Ora, ponderada a gravidade dos factos, na sua globalidade, entende-se que se mostra adequada à culpa e às exigências de prevenção geral e especial de socialização do mesmo, a pena única de 14 (catorze) anos e 8 (oito) meses de prisão.”;

VI- Conforme jurisprudência há muito consolidada pelo STJ, na fixação da pena única aditiva das penas correspondentes aos crimes concorrentes, o tribunal procede a uma reavaliação dos factos em conjunto com a personalidade do arguido (art. 77º, nº1 do CP), o que exige uma especial fundamentação na sentença/acórdão, também desta pena, a fixar “em função das exigências gerais de culpa e de prevenção”;

VII- A ausência de fundamentação integra, também aqui, a nulidade de sentença.

Ao considerar impor-se um dever especial de fundamentação na elaboração da pena conjunta, não pode esta ficar-se pelo emprego de fórmulas genéricas, tabelares ou conclusivas, sem reporte a uma efectiva ponderação abrangente da situação global e relacionação das condutas apuradas com a personalidade do agente, seu autor, sob pena de inquinação da decisão com o vício de nulidade, nos termos dos arts. 374.º, n.º 2 e 379.º, n.º 1, als. a), e c), do CPP.

(sumário elaborado pela relatora)

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral:

ACORDAM EM CONFERÊNCIA, NA 9ª SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA

SUMÁRIO:

RELATÓRIO

F..., nascida a 30 de Novembro de 1973, , foi acusada, pela prática, em autoria material, na forma consumada e em concurso efectivo, de 1 (um) crime de homicídio qualificado, previsto e punível pelos artigos 131 e 132, n.ºs 1 e 2, alíneas b) e h) do Código Penal e de 1 (um) crime de violência doméstica, previsto e punível pelo artigo 152, n.º 1, alínea a) e n.º 2 do Código Penal. 

A arguida através de sentença proferida no processo 511/16.6PKLSB.L1, da comarca de Lisboa –Lisboa-Instância Central-1ª Secção Criminal-J5, foi alvo das seguintes condenações:

- a) condenar a arguida F... pela prática, como autora material, na forma consumada em concurso real, de 1 (um) crime de violência doméstica previsto e punido nos termos do disposto no artigo 152, n.º 1, alínea a) e n.º 2 do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 2 (dois) meses de prisão;

b) condenar a arguida F... pela prática, em autoria material, na forma consumada e em concurso real, de 1 (um) crime de homicídio qualificado previsto e punido nos termos dos artigos 131 e 132, n.ºs 1 e 2, alínea b) do Código Penal, na pena de 14 (catorze) anos de prisão, absolvendo-a da qualificativa prevista na alínea h) do n.º 2 do artigo 132 do Código Penal, pela qual vinha acusada;

e) condenar a arguida F... em cúmulo jurídico na pena única de 14 (catorze) anos e 8 (oito) meses de prisão;

(…)

A arguida encontra-se na presente data sujeita à medida de coacção de OPHVE.

               Não se conformando com a sentença proferida, veio a arguida, devidamente identificada nos autos interpor recurso daquela sentença a folhas 765 até 781, apresentando entre o mais as seguintes conclusões:

1- Dos autos não resultam provados os crimes em agenda. Bem pelo contrário, resulta provado que a arguida não cometeu o crime de violência doméstica e resulta evidenciado que a arguida terá actuado, no facto qualificado como homicídio, em legítima defesa.

2- Na verdade, há dois factos dados como provados que servem de baliza a todo o processo que aqui se traz e que, no fundo, não podem ser abandonados pelo jurisprudente, como foi feito, com todo o respeito, pelo tribunal a quo.

3- PONTO 4 da matéria provada - A arguida e o ofendido L... discutiam e batiam-se mutuamente, sendo na maior parte das vezes por razões de ciúme mútuo e por questões monetárias.

4- PONTO 16 da matéria provada - De regresso a casa, por volta das 06 horas do dia 23 de Março de 2016, e já no interior da residência começaram a discutir por questões relacionadas com falta de dinheiro e por ciúmes, discussão travada em tom de voz elevado e enquanto a arguida andava de um lado para o outro atrás do ofendido L..., este repetia várias vezes: "mas o que é que eu te fiz?"

5- Como se apreende de uma leitura atenta da matéria de facto provada no presente, não ressalta nenhum evidente (nem, em abono da verdade, menos evidente) que demonstre a exigência qualitativa de resultado - vitima mais ou menos permanente.

6- A necessidade, a exigência, de um resultado para que se consuma o crime de Violência doméstica, ao contrário da decisão recorrida, não só não se verifica no presente processo, como não se verificou na realidade dos factos - o que resultou da prova testemunhal.

7- Ao decidir como decidiu, nesta questão, o acórdão recorrido violou o art. 152.°, nºs.1, alínea a), e 2, do C.P., devendo, por isso, ser substituído por douto Acórdão que revogue a incriminação da arguida.

8- A arguida defendeu, desde a primeira hora, que actuou em legítima defesa, considerando dois factores: que sofria agressões permanentes e que, não menos importante, no dia e hora aqui em análise foi vítima de uma tentativa de homicídio, ou de agressão, por parte de seu marido, através da tal faca que trespassa este processo e que é por diversas vezes referida no acórdão recorrida e que, por isso, se defendeu.

9- Mas não podemos deixar de manifestar um desconforto - que é o mínimo que se pode dizer - perante um acórdão que condena uma mulher, Mãe extremosa de quatro filhos, que sofreu as agruras de uma vida complexa e violenta, sem que lhe seja dado o benefício da dúvida.

10- O benefício da dúvida deve prevalecer e essa especifica dúvida deve beneficiar a arguida.

11- Pelo que os factos, todos, que estão provados no presente, as fotografias do local, as declarações da arguida referidas no acórdão e todas as outras declarações, também referidas no acórdão recorrido, levam a que se considere a aplicação, ao presente, da legítima defesa, referida no art. 32.º do C.P. - máxime, o art. 33.° do C.P., na modalidade de excesso de legítima defesa.

12- Assim ao decidir como decidiu, nesta questão, o acórdão recorrida violou os arts. 32.°, 33.º, 131.° e 132.º, n.ºs 1 e 2, alínea b), do C.P., devendo, por isso, ser substituída por douto Acórdão que revogue a incriminação da arguida.

13- Atento todo o exposto, a vida da arguida, as suas condicionantes e, especialmente, as circunstâncias específicas em que o crime se terá perpetrado, não se verifica à qualificação do mesmo, caso não se considere a legítima defesa, o que se admite, sem conceder, por imperativo de pleno patrocínio.

14- Bem pelo contrário, o crime em agenda, caso se considere assim, terá sido praticado num momento de especial vulnerabilidade da arguida, que, movida pelo momento, pelas circunstâncias, terá actuado daquela maneira - e não de outra, por infortúnio.

15- Pelo que, sem mais considerandos, a decisão recorrida viola os artigos 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2, alínea b), do Código Penal, devendo, por isso, ser substituída por douto Acórdão que revogue a incriminação da arguida nos termos aplicados.

16- Na determinação da pena concreta a aplicar, deve o tribunal atender a todas as circunstâncias, que não fazendo parte do crime, depuseram a favor do arguida ou contra ela (art. 72.º, n.º 2 do C.P.).

17- Ao decidir como supra se expendeu, o tribunal a quo violou os arts. 70.º e 71.º do C.P.

18- O acórdão recorrido interpretou, assim, erradamente o disposto no art. 72.º do C.P. pois não valorou as circunstâncias concretas que militam a favor do arguida.

19- Todavia, um outro aspecto não pode deixar de merecer a atenção do recorrente: a falta de sensibilidade judicativa que, também em sede de determinação da pena, foi timbre do tribunal recorrido,

20- Na ponderação da pena a aplicar, deve o julgador atender a uma sanção que deva ser aplicada ao prevaricador - sendo certo que "em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa (cfr. art. 40.º, n.º 2, do C.P. - por forma a prevenir que este venha a pautar a sua conduta extravasando o juridicamente permitido, devendo, por isso mesmo, servir a pena objectivos de ressocialização.).

21- Assim, ao atender apenas a necessidades de prevenção especial que, conforme resulta dos autos e do texto do próprio acórdão não existem, o tribunal a quo violou o disposto nos arts. 70.º e 71.º do C.P.

22- Nestes termos, o acórdão recorrido viola os artigos 32º, 33.°, 70.°, 71.º, 152.°, nºs. 1, alínea a), e 2, 131.º e 132.º, n.ºs. 1 e 2, alínea b), do C.P., devendo ser substituído por douto Acórdão que revogue a incriminação da arguida.

Termos em que deve ser proferido douto e final Acórdão que revogue o acórdão em conformidade com o referido.

O recurso foi admitido a folhas 782.

O MºPº junto da primeira instância, respondeu a folhas 835 até 876, á motivação/conclusões do recurso apresentado pela arguida, e concluindo e após extensas considerações que:

-Nesta conformidade, o douto Acórdão recorrido não violou qualquer norma jurídica, e deve ser mantido e, em consequência, deve ser negado provimento ao presente recurso, assim se fazendo,

JUSTIÇA!

                  Remetidos os autos para o Tribunal da Relação de Lisboa, o Digno Procurador Geral Adjunto em douto parecer, pugna que o acórdão recorrido não merece qualquer censura, não devendo merecer provimento o recurso interposto pela arguida.

Foi cumprido o artº 417º nº 2 do C.P.P., tendo a arguida silenciado.

Efectuado o exame preliminar, determinou-se que o presente recurso fosse julgado em conferência.

Colhidos os vistos legais foram os autos à conferência, por dever ser o recurso aí julgado, de harmonia com o preceituado no artigo 419.º, n.º 3, alínea c) do mesmo diploma, cumprindo agora apreciar e decidir.

Poderes de cognição do tribunal ad quem e delimitação do objecto do recurso.

FUNDAMENTAÇÃO

De acordo com o disposto no artigo 412° do Código de Processo Penal e com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19 de Outubro de 1995, o objecto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extraiu da respectiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.

As possibilidades de conhecimento oficioso, por parte deste Tribunal da Relação, decorrem da necessidade de indagação da verificação de algum dos vícios da decisão recorrida, previstos no n.º 2 do artigo 410º do Código de Processo Penal, ou de alguma das causas de nulidade dessa decisão, consagradas no n.º 1 do artigo 379° do mesmo diploma legal.

    Por outro lado, e como é sobejamente conhecido, o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões da respectiva motivação (art. 412.º, n.º 1 do CPP).

O objecto do recurso interposto pela arguida o qual é delimitado pelo teor das suas conclusões, suscita o conhecimento das seguintes questões (só de direito, uma vez que não é impugnada a matéria de facto contida no Acórdão nos termos do artº 412º do CPP): 

1.A arguida não praticou o crime de violência doméstica, tendo sido violado o artº 152º nº 1 al. a) e nº 2 do C.P.;

2-A arguida não praticou o crime de homicídio qualificado devendo entender-se que levam a que se considere a aplicação, ao presente, da legítima defesa, referida no art. 32.º do C.P. - máxime, o art. 33.° do C.P., na modalidade de excesso de legítima defesa.

 Assim ao decidir como decidiu, nesta questão (crime de homicídio qualificado), o acórdão recorrido violou os arts. 32.°, 33.º, 131.° e 132.º, n.ºs 1 e 2, alínea b), do C.P., devendo, por isso, ser substituída por douto Acórdão que revogue a incriminação da arguida;

2A- E tudo supra em 1 e 2, face ao que se provou sob os nºs  4 e 16 dos factos provados;

3-O acórdão recorrido, ao não valorar concretamente as circunstâncias concretas que militam a favor do arguida, violou o disposto nos artigos, 40º, 70º, 71º e 72º do CP, pois atendeu apenas a necessidades de prevenção especial;

4-Ter sido excessiva a dosimetria da pena única aplicada pelo Tribunal recorrido que revelou falta de sensibilidade;

             Vejamos então:

A sentença sob censura tem o seguinte teor, nos segmentos que ora nos interessam:

(…)

ACÓRDÃO

(…)

III – Fundamentação de facto:

A matéria de facto provada é a seguinte:

                1. A arguida F... e o ofendido L..., de 42 (quarenta e dois) anos de idade, contraíram casamento em 16 de Março de 2010, tendo fixado residência desde então, na Rua … em Lisboa.

               2. Do agregado familiar faziam parte dois filhos de um casamento anterior da arguida, R… e C…, nascidos em 06 de Janeiro de 1997 e 10 de Novembro de 2000, respectivamente,

e,

               3. fruto do seu casamento com o ofendido L..., os menores D… e E…, nascidos a 24 de Janeiro de 2011 e 23 de Agosto de 2012, respectivamente.  

               4. A arguida e o ofendido L... discutiam e batiam-se mutuamente, sendo na maior parte das vezes por razões de ciúme mútuo e por questões monetárias.

               5. Nenhum dos membros do casal exercia actividade laboral remunerada, vivendo de subsídios sociais – rendimento social de inserção (no valor de duzentos e dezasseis euros) e dos abonos dos filhos (no valor de duzentos e oito euros) –, de alguns donativos em dinheiro de familiares e de amigos, nomeadamente dos pais da arguida que pagavam a renda da casa (no valor de cento e quarenta e três euros mensais), lhes compravam alimentos e lhes davam dinheiro.

               6. Quer a arguida, quer o ofendido L... mantinham hábitos relacionados com o consumo excessivo e dependente de bebidas alcoólicas, sendo muitas das discussões potenciadas pelo efeito do álcool.

                7. Na sequência dessas discussões que levavam a cabo no interior da casa de morada de família e às vezes em espaço público, a arguida batia no corpo do ofendido L..., com chapadas na cara e empurrões.

                8. Nessas ocasiões, o ofendido L... ia para casa da sua mãe, G…, onde chegava a permanecer uma semana e onde a arguida o ia buscar.

               9. No dia 19 de Março de 2016, cerca das 04 horas, a arguida dirigiu-se a casa da mãe do ofendido L... onde este se encontrava a dormir há cerca de uma semana, para o levar de volta para a casa de morada de família.

                10. No período compreendido entre 01 e 23 de Março de 2016, em data não concretamente apurada, a arguida, na sequência de uma discussão mantida com o ofendido L..., no café do bairro onde viviam, e à frente de outras pessoas empurrou-o, causando-lhe dor e provocando-lhe um sentimento de vergonha.

               11. Ao actuar da forma descrita, a arguida sabia que estava a maltratar física e psicologicamente o seu marido e a violar os deveres de respeito e solidariedade que sabia lhe incumbirem, querendo agir daquela forma.

               12. A arguida agiu deliberada, livre e conscientemente, com o propósito concretizado de molestar o ofendido L... no seu corpo e na sua saúde, o que conseguiu.

               13. Bem sabia a arguida que as suas condutas eram proibidas e punidas por Lei penal.

*

                14. No dia 22 de Março de 2016, cerca das 18 horas e 30 minutos, a arguida e o ofendido L... saíram de casa para irem jantar num restaurante com uns amigos, tendo no decurso desse jantar ingerido bebidas alcoólicas e conversado sobre a situação profissional daquele, que se encontrava desempregado.

               15. Após o jantar foram ainda a vários bares onde ingeriram mais bebidas alcoólicas.

                16. De regresso a casa, por volta das 06 horas do dia 23 de Março de 2016, e já no interior da residência começaram a discutir por questões relacionadas com falta de dinheiro e por ciúmes, discussão travada em tom de voz elevado e enquanto a arguida andava de um lado para outro atrás do ofendido L... este repetia várias vezes: "mas o que é que eu te fiz?"

               17. Após, a arguida agarrou uma faca de cabo em madeira, com uma lâmina de 10,5 cm (dez vírgula cinco centímetros) que se encontrava na cozinha, sobre o lava-louça e empunhando-a, desferiu uma facada na base esquerda do pescoço do ofendido L..., na região supra clavicular esquerda, levando a que o mesmo começasse a desfalecer de imediato, devido à extensa hemorragia, situação que conduziu à sua morte.

                18. A actuação da arguida provocou no ofendido L... as lesões que se encontram descritas nos exames de hábito externo e interno do relatório de autópsia médico-legal de fls. 378 a 383:

- no pescoço, uma ferida corto-perfurante, transfixiva, ao nível da porção distal do esternocleidomastóideo esquerdo, subjacente à ferida corto-perfurante na região supraclavicular esquerda, fusiforme, oblíqua para baixo e para fora, medindo 1 cm (um centímetros) de comprimento, apresentando na porção lateral escoriação terminal que mede 1 cm (um centímetro) de comprimento orientada para baixo, com infiltração hemorrágica perifocal;

                - nos vasos e nervos, ferida corto-perfurante, transfixiva, ao nível da carótida e jugular esquerdas com infiltração hemorrágica perifocal;

               - na artéria aorta ferida corto-perfurante da aorta ao nível da crassa, com infiltração hemorrágica perifocal.

               19. As lesões traumáticas corto-contundentes a nível da pele, na região supraclavicular esquerda, do músculo esternocleidomastóideo esquerdo, da carótida e jugular esquerdas, da aorta torácica produzidas pela faca, instrumento corto-contundente, apresentam um trajecto daquele instrumento no corpo do ofendido L... orientado de cima para baixo, discretamente de trás para a frente e discretamente da esquerda para a direita.

               20. As lesões traumáticas cervicais e torácicas, provocadas pela faca examinada a fls. 8, 305 a 309, 322 e 323, instrumento de natureza corto-perfurante, foram a causa directa, necessária e adequada da morte violenta do ofendido L..., de etiologia médico-legal homicida.

               21. Ao agir da forma supra descrita, desferindo aquele golpe com a faca, a arguida agiu de forma livre, deliberada e conscientemente, com o propósito de tirar a vida ao ofendido L..., seu marido, o que quis e conseguiu.

               22. Ao actuar da forma descrita a arguida pretendeu tirar a vida ao ofendido L..., seu marido, utilizando para o efeito meio idóneo à produção de tal resultado - utilização de uma faca - e quis atingi-lo no pescoço, zona do corpo que a arguida sabia que alojava vasos e artérias, órgãos vitais à vida, como a carótida, a jugular e a aorta e que ao atingi-lo com uma faca provocaria necessariamente a morte do ofendido L..., morte que representou, que quis e conseguiu.

23. Bem sabia que a sua conduta era proibida e punida pela Lei penal.

               24. Mais agiu a arguida, de forma livre, deliberada e conscientemente bem sabendo que ao longo do tempo de matrimónio com o ofendido L... manteve discussões com o mesmo, movida por ciúmes, batendo-lhe com frequência e provocando-lhe lesões físicas e dores, ao invés de salvaguardar o bem-estar familiar com o mesmo, o que quis, representou e conseguiu alcançar.

               25. Agiu livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por Lei.

*

Mais resultou provado que:

               26. Do certificado do registo criminal da arguida F... consta:

a) a condenação no processo com o NUIPC 861/08.5PKLSB, proferida pela extinta 3ª Secção do 3º Juízo Criminal de Lisboa, datada de 11 de Junho de 2012, transitada em julgado em 04 de Setembro de 2012, na pena única de 150 (cento e cinquenta) dias de multa, à razão diária de € 5 (cinco euros), pela prática, em 02 de Agosto de 2008, de 1 (um) crime de ameaça, previsto e punido pelo artigo 153, n.º 1 do Código Penal (pena parcelar de noventa dias) e de 1 (um) crime de injúria, previsto e punível pelo artigo 181, n.º 1 do Código Penal (pena parcelar de noventa dias).

b) a condenação no processo com o NUIPC 122/15.3S9LSB, proferida pelo J3 da Secção de Pequena Criminalidade, da Instância Local de Lisboa da Comarca de Lisboa, datada de 28 de Abril de 2015, transitada em julgado em 04 de Junho de 2015, na pena única de 60 (sessenta) dias de multa, à razão diária de € 5 (cinco euros), pela prática, em 12 de Abril de 2015, de 1 (um) crime de condução de veículo sem habilitação legal, previsto e punido pelo artigo 3º, n.ºs 1 e 2 do Decreto-Lei n.º 2/98, de 03 de Janeiro, por referência aos artigos 121 a 123 do Código da Estrada (pena parcelar de quarenta dias) e de 1 (um) crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punível pelos artigo 292, n.º 1 e 69, n.º 1, alínea a), ambos do Código Penal (pena parcelar de quarenta dias) e na pena acessória de 3 (três) meses de proibição de conduzir veículos a motor.

Por despacho judicial de 26 de Janeiro de 2016, foi declarada extinta a pena acessória pelo cumprimento.

c) a condenação no processo com o NUIPC 136/15.3S9LSB, proferida pelo J5 da Secção de Pequena Criminalidade da Instância Local de Lisboa, da Comarca de Lisboa, datada de 14 de Abril de 2016, transitada em julgado em 04 de Maio de 2016, na pena de 100 (cem) dias de multa, à razão diária de € 5 (cinco euros), pela prática, em 24 de Abril de 2015, de 1 (um) crime de condução de veículo sem habilitação legal, previsto e punido pelo artigo 3º do Decreto-Lei n.º 2/98, de 03 de Janeiro, por referência aos artigos 121 a 123 do Código da Estrada.

*

               27. Do “Relatório de avaliação de risco de violência doméstica” elaborado em 20 de Junho de 2016, no âmbito dos presentes autos, em que foi avaliada a arguida resulta:

               “F… é a filha mais nova da relação entre os seus progenitores e refere que terá nascido em Lisboa «sempre na mesma casa (…) onde eu nasci era onde eu vivia agora (…) na Penha de França.»

(…)

               Quanto ao seu progenitor menciona que terá sido bancário «o meu pai passava mais a vida a trabalhar do que em casa (…) sempre foi um homem do trabalho, nunca foi um pai que desse assim muito carinho» (sic). Relativamente à progenitora indica que terá sido costureira, descrevendo-a como sendo «meiguinha (…) uma santa (…) sou muito ligada à minha mão» (sic).

               Relativamente às dinâmicas familiares, refere que terá assistido a violência por parte do seu progenitor para com a sua progenitora «[quanto a discussões] algumas (…) [acerca de comportamentos violentos] às vezes (…) [questionada se seria violência física ou psicológica] as duas» (sic). Quanto à violência exercida para com os descendentes afirma «a minha mãe se me deu duas chapadas foi muito (…) o meu pai sempre foi muito nervoso (…) ralhava (…) não podia mexer um dedo» (sic). Questionada acerca das regras impostas no agregado familiar, durante a sua infância, refere «havia. Não podia ligar a televisão sem pedir (…) direitinha à mesa e levantava se pedia (…) não tinha permissão para sair (…) não via televisão» (sic).

               Ao descrever a situação atual, a avaliada afirma «tenho uma família de ouro, apesar de todos os momentos maus. Momentos que todas as famílias têm» (sic).

                Questionada se terá tido apoio financeiro de familiares, refere «pedia às vezes sim, à minha irmã (…) às vezes pagava outras vezes não» (sic). Atualmente o progenitor da avaliada estará a cobrir as despesas relativas ao seu defensor «monetariamente, tá a pagar-me o advogado» (sic).

                (…)

                 Questionada acerca de problemas de saúde físicos, relata que terá problemas de visão, alegadamente, resultantes das agressões que terá sofrido por parte do seu ex-cônjuge «agora tinha muitos porque não tinha dinheiro para ir ao médico (…) queria ver a minha vista (…) eu nem ler consigo (…) não vejo nada deste lado [apontando para o olho esquerdo] (…) por tanta porrada que levei deste lado (…) ficava-me a doer a cabeça (…) devia lá 15 [quinze] euros no Centro de Saúde (…) como não tinha 15 [quinze] euros não fui» (sic). Adicionalmente menciona «tenho uma hérnia no hiato, no estômago (…) uma hérnia discal (…) nunca mais tomei a medicação (…) asma, arritmia (…) [em relação à medicação para o problema da asma] só a bomba porque os outros medicamentos não consigo comprar (…) [relativamente à arritmia] sentia o meu coração parar por 1 [um] segundo (…) tinha arritmia nervosa (…) receitou-me [o médico] na altura meio Xanax à noite (…) tinha uma consulta de cefaleias mas não cheguei a ir» (sic.)

                (…)

                Questionada acerca do consumo de álcool, refere «álcool bebia (…) no tempo da Seleção, o Sporting, jantares (…) nessa altura nem bebia muito (…) nunca tive um mau vinho (…) eu tava muito tempo sem beber (…) eu queria era cantar, dançar (…) sabia-me bem tar ali com os amigos (…) à sexta ou se alguém fazia anos durante a semana» (sic). Quanto a uma possível interferência dos consumos na sua vida, afirma «nenhuma (…) eu nunca perdi o Norte dos meus filhos» (sic).

                Quando ao consumo de drogas, afirma «nunca consumi drogas (…) sempre tive muito medo destas coisas» (sic).

                (…)

               A avaliada afirma que, ainda, terá frequentado o 8º ano de escolaridade, durante a noite, tendo simultaneamente iniciado o seu percurso profissional «fui trabalhar para uma gráfica ajudar a fazer os acabamentos (…) a minha irmã também trabalhava lá (…) depois estudava à noite, entrava às 19h e saía às 23h (…) ainda andei no 8º ano e depois desisti a meio» (sic). Quanto ao tempo que terá permanecido neste emprego, refere «ser esporádico (…) 1 [um] ano» (sic).

               Refere que terá frequentado um curso de cabeleireira, tendo trabalhado algum tempo nesta área «tinha carteira (…) trabalhei em cabeleireiros, mas como aprendiz» (sic). Menciona que, como cabeleireira, terá trabalhado no Terminal do Rossio «como ajudante de cabeleireira (…) andava a fazer de manhã [referindo-se ao curso] e ia trabalhar à tarde» (sic).

                (…)

               A avaliada afirma que não terá desenvolvido nenhuma actividade profissional, devido ao nascimento do primeiro filho, sendo que terá trabalhado num infantário, após o filho ter 4 (quatro) anos «depois fiquei grávida tive uma temporada sem trabalhar porque o meu marido não queria»

               (…) referindo que não terá exercido nenhuma atividade laboral, a partir dos 28 anos de idade.

                (…)

                F... refere que terá conhecido L... em 2009, «conheci o L... lá no café ao pé de mim. Ainda ele consumia drogas (…) depois acho que se começou a tratar (…) sim conheci o L... quando ainda era casada (…) conheci na altura que ele tomava metadona, mas consumia ao mesmo tempo (…) na altura em que o conheci nem gostei dele, era barraqueiro, tinha sinais que consumia (…) percebi logo que havia qualquer coisa que não batia certo (…) eu era amiga da mulher dele. Começamos a gostar um do outro (…) ele saiu de casa e foi viver comigo (…) porque eu gostava dele, a gente dava-se bem um com o outro e foi uma coisa que aconteceu (…) mais-valia não ter feito mas pronto (…) quando a gente foi morar juntos ele já não consumia» (sic).

               Ao descrever o relacionamento que manteve com L... relata «tínhamos tanta coisa em comum (…) brincávamos muito um com o outro (…) tínhamos o gosto pelas motas» (sic).

                (…)

               No que concerne à sintomatologia psicopatológica apresentada por F..., observa-se uma elevação nas dimensões de somatização, sensibilidade interpessoal e depressão, Esta sintomatologia manifesta ser particularmente intensa e perturbadora, sendo que a privação da liberdade poderá ter contribuído para o incremento da referida sintomatologia psicopatológica.

                Relativamente à personalidade de F..., apesar de não se verificar a presença de traços de personalidade psicopáticos, observam-se défices na dimensão do comportamento antissocial. Mais especificamente, a apresentação de um estilo de vida parasita, um défice no controlo comportamental, impulsividade, irresponsabilidade e versatilidade criminal.

                No que respeita a crenças acerca das práticas educativas, verifica-se que a avaliada tende a legitimar a punição física das crianças pela autoridade parental e, no contexto conjugal, pela atribuição a causas externas.

               A avaliada apresenta um nível moderado de risco de violência futura, sustentado através dos seguintes fatores de risco: Existência de violência contra conhecidos, conflitos extremos no relacionamento conjugal, história de desemprego frequente, problemas relacionados com o consumo de álcool, ter sido testemunha de violência familiar na infância, desajuste precoce, personalidade caracterizada pela impulsividade, falta de insight, presença de violência física perpetrada por F... contra L... recente intensificação da violência, atitudes que atenuam e minimizam a história de violência conjugal, probabilidade moderada de fracasso de planos a longo prazo, probabilidade elevada de exposição a fatores stressores e pouca capacidade de gestão do stress. Quanto a outros fatores que potenciam o risco, destaca-se a presença dos filhos da avaliada no momento do crime.

                De acordo com a sintomatologia psicológica apresentada por F..., bem como, a alegada história de consumo de álcool por parte da arguida, considera-se pertinente uma avaliação clínica estruturada, bem como, um acompanhamento ao nível psicológico e/ou psiquiátrico. (…).”

*

                28. Do “Relatório social para determinação da sanção”, datado de 28 de Outubro de 2016, resulta:

               “O seu processo de desenvolvimento decorreu num quando familiar disfuncional, decorrente dos comportamentos agressivos (a nível psicológico e físico) do pai, figura rígida e autoritária.

                (…)

               A arguida realizou um percurso escolar irregular por motivos de saúde, tendo sido sujeita a quatro cirurgias plásticas devido a sequelas de um acidente de viação ocorrido na primeira infância. Neste contexto, após algumas reprovações, desistiu de estudar aos 16 anos, para trabalhar num cabeleireiro, tendo apenas concluído o 7º ano de escolaridade. Ainda frequentou durante dois anos um curso profissional que lhe conferiu a carteira de «ajudante praticante», no entanto, tal não contribuiu para que obtivesse progressão ao nível escolar. Com excepção de uma experiência laboral pontual num infantário, desde há cerca de 20 anos que a arguida se encontra inactiva profissionalmente.

               Aos 22 anos, após um conflito com o progenitor, decide sair de casa e casar com o pai dos seus dois filhos mais velhos, actualmente com 19 e 16 anos. Esta relação cedo se mostrou disfuncional, pautada por comportamentos agressivos severos por parte do companheiro.

               (…) mais tarde, iniciou uma relação conjugal com a vítima do presente processo, formalizada em casamento pouco tempo depois, e que resultou no nascimento dos dois filhos mais novos, actualmente com 5 e 4 anos.

                (…)

                À data dos factos, F... residia com a vítima e os quatro filhos numa habitação arrendada pelo progenitor, na zona de Lisboa. Encontrando-se ambos inactivos profissionalmente, a subsistência era garantida através de apoios sociais (RSI – Rendimento Social de Inserção – e prestações familiares dos filhos, no valor de cerca de € 300,00), que aliavam às pensões de alimentos dos filhos mais velhos da arguida (cerca de € 200,00) e ao apoio da família de origem daquela, que garantia as despesas relacionadas com a habitação.

               A arguida não exercia qualquer actividade estruturada, dividindo-se o seu quotidiano entre os cuidados prestados aos filhos e as sociabilidades na sua zona de residência. Segundo as fontes, o casal mantinha uma relação disfuncional, com frequentes episódios de violência doméstica, despoletados por sentimentos de ciúmes mútuos e dificuldades financeiras, potenciadas por consumos excessivos de álcool.

              A família era acompanhada pela CPCJ desde o episódio em que a arguida foi interceptada a conduzir sem habilitação legal e sob o efeito de álcool. De acordo com a Dra. Ana Matos, as problemáticas identificadas prendiam-se com a ausência de motivação e de hábitos de trabalho do casal, que isolavam os menores em casa, não promovendo a sua socialização ou integração num equipamento pré-escolar. Segundo a arguida, o companheiro padecia de uma problemática grave de consumos de álcool e estupefacientes, que tentavam esconder com receio de lhes serem retirados os filhos. Para além disso, revela que deixava os filhos em casa com os irmãos mais velhos, numa tentativa de os proteger dos meios criminógenos que frequentava.

               Na sequência da aplicação da medida de coacção de confinamento habitacional, a arguida, juntamente com os quatro filhos, foi acolhida pelos pais, que lhe têm prestado todo o suporte necessário à sua subsistência.

                Segundo o progenitor, a situação económica tem vindo a deteriorar-se, dado que os rendimentos das reformas do casal, que totalizam cerca de € 1000,00, se mostram insuficientes para as despesas do agregado, que ainda integra um sobrinho da arguida. Para equilibrar a situação, foi aplicada recentemente uma medida de apoio financeiro aos filhos menores da arguida, tendo passado o agregado a beneficiar de um subsídio de cerca de € 450,00.

                (…)

               A dinâmica familiar foi descrita como sendo tensa, decorrente do facto da progenitora padecer de doença oncológica, aliado ao do progenitor se manter uma figura austera e rígida, exercendo pressão psicológica e de controlo sobre todos os elementos do agregado. Ainda assim, a arguida mostra-se ambivalente relativamente à figura do pai, reconhecendo que ao longo do seu percurso de vida aquele se mostrou sempre disponível para a apoiar.”

*

               29. A arguida, instantes depois do referido em 17. dos factos provados, comunicou quer ao seu filho R…, quer às autoridades policiais que o ofendido havia cometido suicídio, versão esta que convenceu o seu filho a sustentar.

                30. A disponibilidade monetária referida em 5. dos factos provados era gerida pela arguida, pessoa a quem o ofendido pedia e subtraia dinheiro para fazer face aos custos das adições ao álcool e tabaco.

               31. O ofendido tinha 1,63 m (um metro e sessenta e três centímetros) de altura e a arguida tem 1,72 m (um metro e setenta e dois centímetros) de altura, com as compleições físicas retratadas nos autos.      

*

                Matéria de facto não provada:

1. O referido em 4. dos factos provados ocorria desde o início da convivência matrimonial.

2. A arguida batia no corpo de L... com apertões nos braços e nas costas.

3. No mês de Fevereiro de 2016, em data não concretamente apurada, cerca das 04 horas, a arguida dirigiu-se a casa da mãe do ofendido.               

4. Após terem começado a discutir, a arguida partiu o vidro da porta da casa e de seguida deu um murro ao ofendido L... atingindo-o num dos olhos, tendo-lhe causado um hematoma e dor.

5. Aquando do referido em 10. dos factos provados, a arguida deu palmadas e apertões nos braços e nas costas do ofendido.

6. O ofendido L... não recebeu tratamento nem assistência médica mas sofreu dores físicas.

7. Na cozinha, local para onde se dirigiram e onde continuaram a discutir, a arguida desferiu ao ofendido L... empurrões e chapadas na cara.   

***

                O Tribunal funda a sua convicção:

                Quanto aos factos provados em:

1. Na cópia da certidão do assento de casamento a fls. 108 e nas declarações prestadas pela arguida.

                2. Na cópia da certidão dos assentos de nascimento a fls. 155 e 158 e nas declarações prestadas pela arguida.

                3. Na cópia da certidão dos assentos de nascimento a fls. 164 e 161 e nas declarações prestadas pela arguida.

               4. Nas declarações prestadas pela arguida, resulta que nem sempre o relacionamento entre a arguida e o ofendido foi conflituoso.

               Não obstante o ofendido sempre ter ingerido bebidas alcoólicas de forma abusiva, e nunca haver querido trabalhar, só a partir do ano de 2014 tais temas passaram a motivar discussões e agressões.

               Ora, indagada sobre a sua mudança de perspectiva, a arguida respondeu que sempre gostou do ofendido e que tais características passaram a ser encaradas como defeitos, ainda que sempre tenha havido a crença na sua mudança.

                Mas tão ou mais importante do que isto: se os dois temas ou razões de discussão eram a ingestão excessiva de bebidas alcoólicas pelo ofendido e a ausência de hábitos de trabalho, tal leva-nos a concluir que quem disponha de motivo para as discussões era a arguida, ou seja, era esta quem se queixava dos apontados “defeitos” que assinalava ao ofendido e motivavam as discussões.

               Curiosamente os temas assinalados pela arguida como geradores das discussões não correspondem aos enunciados na acusação – ciúme mútuo e questões monetárias – e, além disso, sempre seriam comuns aos dois membros do casal, pois também a arguida revela consumo excessivo de bebidas alcoólicas e não tem hábitos de trabalho regular há cerca de 20 (vinte) anos – cfr. relatórios de fls. 386 a 402 verso e 664 a 668 e depoimento da testemunha P… – irmã da arguida.

               No depoimento da testemunha E…, ex-vizinha da arguida e do ofendido, conhecendo aquela há 40 (quarenta) anos e este há 7 (sete) anos.

               Recorda-se do casal como conflituoso, em que a arguida andava sempre a gritar com o ofendido, afirmando que não havia dinheiro e que ele tinha de ir buscar dinheiro – isso acontecia quase todos os dias.

               Tem presente uma ocasião que teve lugar cerca de 3 (três) meses antes do falecimento do ofendido, em que a arguida agrediu o ofendido nas escadas – foi ver e assistiu aquela a dar pontapés e murros ao ofendido com este já deitado no chão, sem reacção.

               Naquela madrugada (do falecimento do ofendido), pelas 06 horas e 30 minutos, apercebeu-se da chegada do casal, da discussão, sendo que a arguida gritava: “o que é isso caralho?” e o ofendido dizia: “o que é que eu te fiz.”

                Pouco depois ouviu a arguida dizer: “ai tanto sangue (…) que isto não pára”, depois gritava com o filho, mandando-o calar-se, acrescentando depois: “já está a parar (…) está tudo negro.”

                O casal habitualmente deixava os filhos sozinhos em casa e iam para os “copos”, regressando a casa a cantar.

               Questionada sobre alguma inimizade com a arguida, a testemunha reconhece haver tido um litígio com a mesma, a respeito da barulheira que a mesma fazia, o que determinou, um dia, a chamada da polícia pelas 02 horas.

               Contudo este facto não retirou credibilidade e objectividade ao depoimento, até porque os pormenores e conteúdos do quanto ouviu a arguida e ofendido dizer encaixam na dinâmica dos acontecimentos daquela madrugada.

               Acrescente-se ainda que a testemunha, de modo espontâneo, descreveu a forma como tinha visualizado as agressões supra referidas, através de um reflexo na janela, o que abstractamente podendo suscitar dúvidas quanto à capacidade de percepção dos acontecimentos, não as levanta concretamente, porquanto se revelou coerente, lógico em conjugação com o quanto ouviu. E mais, acaso quisesse prestar um depoimento que, sem isenção, prejudicasse a arguida, poderia tê-lo feito de uma forma menos complexa, limitando-se a dizer que viu (porquanto vizinha do prédio), sem ter de explicar que viu através de um reflexo na janela.

                Corroborando as declarações e depoimento supra, temos o depoimento da testemunha R…, filho da arguida, que igualmente situa o início das discussões entre o casal há 2 (dois) anos, ou seja, no ano de 2014.

                Recorda que o ofendido fumava muito e que algumas das discussões eram por causa do tabaco, pois, como não havia dinheiro para tudo e havia o vício, o ofendido tirava dinheiro e quando não tinha o que queria tornava-se agressivo – o que fundamenta também o facto provado 30..

                Afirma ter assistido a agressões do ofendido à pessoa da arguida (apertava-lhe o pescoço – questão “pertinentemente” introduzida pela testemunha sem saber concretizar qualquer outra forma de agressão) e nega ter visto agressões da arguida ao ofendido.

               Era frequente a utilização de expressões ofensivas, tais como: “vai para o caralho” ou “vai à merda”.

               No dia do falecimento do ofendido a testemunha estava em casa, ao computador, com os auscultadores postos, quando ouviu a mãe chamá-lo, dizendo que houve um “acidente”, tinha desferido um golpe no ofendido para se defender e acertou-lhe no pescoço.

               Porém, a instâncias do Tribunal, a testemunha recorda que a versão inicialmente reportada pela arguida foi no sentido de ter sido um suicídio do ofendido. Crê que tal aconteceu por a arguida estar com medo do que lhe podia acontecer.

               Claramente o depoimento desta testemunha foi parcial, centrando na pessoa do ofendido os motivos das discussões e neste a pessoa do agressor, vitimizando a pessoa da arguida – sua mãe.

                Do depoimento da testemunha Ca… – alegada amiga do casal nos últimos dois anos (período que coincide com a deterioração do relacionamento) – resulta que a mesma assistiu a momentos que descreve “menos bons”, o que só por si permite concluir que há uma descrição fáctica pouco precisa, com escolha de palavras alegadamente adequadas à versão que procurou trazer a julgamento.

               A credibilidade do depoimento desta testemunha foi ainda posto em causa por inverosímil na descrição das alegadas agressões do ofendido à pessoa da arguida, porquanto fisicamente descreve uma posição de “guarda” típica do boxe – braços dobrados, com punhos a proteger a cara e os braços a protegerem o tórax –, como forma da arguida se proteger das agressões do ofendido que se traduziriam em apertar-lhe os braços e dar-lhe pontapés nas pernas.

               Ora, quem sofre pontapés nas pernas e vê os braços serem apertados pelas mãos do agressor não precisa / nem consegue proteger-se de tais golpes fazendo uma “guarda” típica do boxe.

               Também não é credível que tenha visto o ofendido apertar o pescoço da arguida e se tenha limitado a assistir, sem intervir, quando é a própria que a propósito dos factos 8. e 9. infra, esteve disposta a acompanhar a arguida até casa da mãe do ofendido a fim de trazê-lo de volta. Notoriamente facto vexatório da pessoa do ofendido. 

                Igualmente pouco coerente e verosímil é o depoimento da testemunha P… – irmã da arguida – cuja principal preocupação foi descrever negativamente a pessoa do ofendido (afirmando que o mesmo tinha um “aspecto que não era socialmente aceitável”, com “comportamento possessivo e manipulador”, com “agressividade física e na voz”.

               Para concretizar alegadas agressões físicas do ofendido na pessoa da arguida, refere ter visto nódoas negras – provocadas pelos nós dos dedos – no braço esquerdo da arguida. Questionado pelo Tribunal se os braços da arguida têm alguma particularidade, a testemunha não a concretizou, visivelmente surpreendida com a pergunta e desconhecedora da resposta e da realidade – o braço esquerdo da arguida está tatuado do pulso ao ombro – o que era notoriamente desconhecido pela testemunha, deitando por terra o seu depoimento.

                Mas mais ainda, a testemunha afirmou que os hábitos de ingestão de bebidas alcoólicas pela arguida são socialmente aceites, revelando uma de duas: ou desconhecer os antecedentes criminais da arguida, ou considerar que a ingestão de bebidas alcoólicas e subsequente condução de veículos automóveis, em violação de norma incriminadora, é socialmente aceitável.

               Afirmou peremptoriamente não gostar do ofendido, qualificando-a como uma pessoa manhosa, sempre a fumar, sem trabalhar, sempre a beber álcool, sem ajudar os pais da arguida e testemunha. Ou seja, não via no ofendido uma única qualidade, sendo incapaz de utilizar o mesmo padrão crítico em relação à pessoa da arguida, pessoa que também ingeria bebidas alcoólicas e não tinha hábitos de trabalho.  

               5. Nas declarações prestadas pela arguida, que concretizou os valores do rendimento social de inserção, prestação de alimentos dos filhos e valor da renda.

               6. Nas declarações prestadas pela arguida, que nega hábitos de consumo excessivo de bebidas alcoólicas – apenas consumindo socialmente, nunca havendo perdido a responsabilidade por causa da ingestão de álcool –, imputando tais hábitos apenas ao ofendido, acrescentando que o mesmo se tornava uma pessoa instável e agressiva caso não ingerisse bebidas alcoólicas ou não fumasse.

               Tais “dependências” determinavam que o ofendido andasse sempre a pedir-lhe dinheiro.

                A respeito deste facto importa também atender ao quanto se fez consignar supra a respeito do depoimento da testemunha E…..

               Do depoimento da testemunha G... (mãe do ofendido) resulta a descrição dos hábitos do ofendido – quer como ex-toxicodependente, quer como alcoólico. Depoimento que é corroborado com outros elementos de prova.

               Do depoimento da testemunha A... (ex-companheira do ofendido) e amiga do casal, resulta que a mesma assistia a discussões entre a arguida e o ofendido, as quais começavam do nada, com um “copito” a mais.

               Era frequente que as discussões fossem em torno de dinheiro, quando ambos estavam alcoolizados.

               Esta testemunha descrevia o ofendido como uma pessoa pacífica, sem registo de agressões, afirma mesmo que “era uma paz de alma”.

*

               Este foi um depoimento seguramente isento, objectivo e coerente, prestado por quem conheceu intimamente a pessoa do ofendido, os seus defeitos e virtudes, porquanto havia sido ex-companheira do mesmo. Nem por isso descreve uma pessoa capaz de viver um relacionamento violento, agressivo, bem pelo contrário, descreve-o como uma paz de alma, alguém que, como resultou provado, se refugiava em casa da progenitora quando a relação conjugal se deteriorava, sendo a pessoa da arguida quem, sem o mínimo de receio, temor ou subjugação ia buscá-lo.

               7. Nas declarações prestadas pela arguida que nega peremptoriamente que as agressões fossem diárias e pública, mais declarando que apenas deu uma chapada ao ofendido, no dia 23 de Março de 2016.

               Do depoimento da testemunha G... ainda resulta que efectivamente o casal, no início do relacionamento, dava-se bem, porém, seguiram-se ocasiões em que o ofendido foi para casa da testemunha, batia à porta de madrugada e pedia-lhe cigarros. Numa destas ocasiões, a arguida foi a casa da testemunha buscar o ofendido, deu-lhe quatro estalos e disse-lhe: “seu bandido, não sabes onde é a tua casa, irresponsável.”

               A testemunha não tem dúvidas que o seu filho era maltratado, que não queria ir para casa, mas pensa que por medo da arguida nem reagia.

               Do depoimento da testemunha A...foi possível ao Tribunal formar convicção a respeito de um empurrão da arguida à pessoa do ofendido.

               8. Nas declarações prestadas pela arguida que afirmou que tais idas para casa da mãe apenas ocorriam porque ela (arguida) não lhe dava atenção. Razão esta muito pouco crível, pois seguramente não era afastado da arguida que ganharia mais atenção da mesma.

                Neste mesmo sentido depôs a testemunha G..., porém, reduzindo o período de uma semana para 3 (três) dias.

               9. Nas declarações prestadas pela arguida que situou a ocorrência dos factos no dia que resultou provado.

               10. Nas declarações prestadas pela arguida resulta o reconhecimento de apenas uma única agressão física – chapada – desferida pela arguida na pessoa do ofendido.

               O facto resulta ainda provado do depoimento da testemunha A..., que recorda de um empurrão desferido pela arguida na pessoa do ofendido nos últimos tempos, o que acresce às declarações da arguida e permite concluir pela dor e vergonha sentidas pelo ofendido. A este respeito importa ainda não descurar o conteúdo do depoimento da testemunha G....

                11. a 13., 21. a 25. Por presunção judicial, por aplicação das regras de experiência comum aos factos conhecidos que são os supra descritos e, bem assim, do facto de a arguida ser uma pessoa imputável dotada de lucidez e inteligência, como se pode verificar, de forma imediata e evidente, pelas declarações que prestou quer às perguntas de resposta obrigatória sobre a sua identidade, quer sobre a matéria de facto sub judice.

               14. Nas declarações prestadas pela arguida que relata o facto de haverem saído para jantar com um amigo – Nuno – sendo que o jantar correu normalmente, e que no final da refeição o ofendido e o N… foram jogar matraquilhos. Nesta ocasião a arguida bebeu um copo de vinho com gasosa e aqueles duas cervejas.

               Foram ainda a outro bar, onde o ofendido bebeu imperiais.

               Foi durante estes jantar e serão que o Nuno perguntou ao ofendido quando mudava de vida – frequentando um curso de soldador. Foi então que o ofendido ficou alterado, queixando-se que nem conseguia beber descansado uma imperial.

               Neste último bar, o ofendido e Nuno beberam mais duas cervejas e a arguida dois cafés.

                Cerca das 04 horas foram-se embora do bar.

               No trajecto para casa, o ofendido chamou a arguida de “puta”, “vaca”, dizendo-lhe: “não prestas para nada”, acreditando a arguida que o tenha feito por ciúmes do N….

               A testemunha C... foi uma das pessoas que esteve presente no jantar. Recorda que durante a refeição ingeriram 2 (dois) jarros de litro de vinho, distribuído por 4 (quatro) pessoas.

               Ao final do jantar nenhum dos presentes estava “quentinho”, ou seja, influenciado por bebidas alcoólicas.

                Nega ter havido qualquer discussão durante o jantar.

               Nesta parte, o depoimento da testemunha revelou-se absolutamente isento, objectivo e desinteressado, já que apenas descritivo e não avaliativo de um episódio em que não se registou qualquer conflito, como corroborado pelo depoimento da testemunha infra.

                Foi ainda considerado, a este propósito o depoimento da testemunha N…, prestado em sede de inquérito perante autoridade policial, constante de fls. 417 a 419, o qual foi lido em audiência de julgamento, colhido o acordo dos intervenientes processuais, nos termos do disposto no artigo 356, n.º 2, alínea b) e n.º 5, do Código Penal, e se dá aqui por integralmente reproduzido, sem contudo deixar de destacar-se:

               “Questionado se o L… e a F… se encontravam alcoolizados quando regressaram a casa, o depoente afirma que apesar de terem ingerido bebidas alcoólicas encontravam-se ambos conscientes.

               Afirma que as conversas durante a noite versaram mais uma vez sobre a situação profissional do L…, mormente com o depoente a incentivá-lo para este ir trabalhar para Inglaterra onde existe actualmente trabalho.

                Que enquanto esteve na companhia do casal estes nunca discutiram, nem se apercebeu que o L… ou a F... tivesse qualquer comportamento violento.

                (…)

               Salienta que nenhum dos elementos do casal lhe confidenciaram a ocorrência de qualquer ato de violência entre ambos, sendo que qualquer um o poderia fazer uma vez que era uma pessoa muito próxima de ambos.

               Que nunca presenciou qualquer agressão física entre ambos.

                (…)

                Esclarece que por vezes a F... lhe referia que o L... era uma pessoa ciumenta, contudo nunca se referiu concretamente ao depoente.

                Quanto ao L... lembra que o mesmo lhe chegou a contar que ultimamente discutiam muitas vezes e que a F... manifestava vontade de terminar o casamento, não concretizando mais uma vez qualquer episódio de violência entre ambos.

               Em suma, notava que ambos andavam muito instáveis, com falta de dinheiro, por vezes alcoolizados e com hábitos de sair à noite.”

               15. Remete-se para as declarações referidas em 14. dos factos provados.

                16. Nas declarações prestadas pela arguida resulta que a mesma ao chegar a casa pousou a mala e foi ao quarto esconder o dinheiro e a carteira.

                Por haver negado dar tabaco ao ofendido, este afirmou: “só dás tabaco aos teus amigos” ao que ela questionou: “o que é eu te fiz, porque é que estás assim?”

               Instantes depois, o ofendido deu-lhe uma chapada no lado esquerdo da face e a arguida respondeu à mesma desferindo uma chapada no ofendido.

               Tal descrição permitiu ao Tribunal dar ainda por provado o facto provado 30.            

               17. Nas declarações prestadas pela arguida resultou ainda que o ofendido pegou numa faca e apontou-a ao ombro esquerdo da arguida, pressionando-a, ao desviar-se do golpe, apercebeu-se que o cabo partiu, bateu-lhe na perna e caiu ao chão. Foi então que a arguida se baixou, pegou no cabo partido e atirou-o ao lixo.

               Acto contínuo, o ofendido fez o gesto de quem ia apertar-lhe o pescoço (facto que já havia ocorrido anteriormente), sendo que a arguida agarrou numa faca que se encontrava no lava-loiça e, sem dar conta disso, acertou-lhe.

                O ofendido parou, recuou, ela (arguida) pousou a faca no lava-loiça, o ofendido continuava a recuar, encostou-se à parede da cozinha, começou a desfalecer e a arguida, para evitar que o mesmo caísse batendo com a cabeça no chão, agarrou-o.

               Apercebendo-se do sangue, chamou pelo seu filho, a fim de o mesmo ligar para o INEM, seguindo as instruções que foram sendo dadas por telefone, designadamente, pegou num pano de cozinha para estancar o sangue.

               Neste contexto, abanou o ofendido, esperando uma reacção, grito por ele e disse: “L... não me faças isto” sem contudo obter resposta daquele. Com a chegada do INEM afastou-se.

                A arguida explica o sucedido com o facto de querer meter medo ao ofendido, para ele a largar. Tinha medo que ele lhe quisesse fazer mal. Tudo isto apesar do seu filho R... de 19 (dezanove) anos, estar na sala, acordado, ao computador.

               Na ocasião a informação que a arguida transmitiu quer ao seu filho R... quer às autoridades que chegaram ao local, foi que tinha sido o ofendido quem se havia lesado / procurado matar.

               Procurando perceber a dinâmica dos factos, o Tribunal solicitou esclarecimentos à arguida, tendo a mesma esclarecido que provocou a lesão com a faca fazendo uso da sua mão direita, atingindo o ombro/pescoço do ofendido sobre o seu lado esquerdo.

               Refere que a “facada” se deu frontalmente, o que não tem adesão face às lesões provocadas e visíveis. Nem mesmo a diferença de estatura física entre o ofendido (com um metro e sessenta e três centímetros) e a arguida (um metro e setenta e dois centímetros) justifica tal dinâmica.

               Noutras ocasiões de agressão do ofendido à pessoa da arguida esta refere ter sido ajudada por terceiros que a vinham ajudar – caso dos seus filhos R... e D... e da sua amiga Ca….

               A arguida afirmou ainda que estava cansada do relacionamento e que pretendia o divórcio, porém, esta afirmação não merece credibilidade, porquanto é a própria arguida quem, poucos dias antes do falecimento do ofendido o vai buscar a casa da sua mãe (do ofendido).

               A arguida alegou ainda, na explicação da dinâmica dos factos que tem reduzida capacidade de visão, em virtude de anteriores episódios de violência doméstica de que veio a sofrer às mãos do seu primeiro marido. Acrescentou: não vê para o chão, ao andar tem dificuldades em olhar para o chão – sente vertigens.

               Porém, esta alegação, conforme ficou demonstrado em audiência de julgamento, não é minimamente impeditiva da arguida ler texto (legenda de fotografias), ver pormenores de fotografias constantes dos autos, sendo que quando em pé, analisou elementos do processo que lhe eram exibidos a partir da contenção dos senhores arguidos em sala de audiência. Ou seja, visualizou elementos processuais que se encontram à distância de um braço dos seus órgãos visuais.

               Note-se que a alegada reduzida visibilidade do seu olho esquerdo não a impediu de ter percepção da alegada aproximação da faca que o ofendido dirigiu ao seu ombro esquerdo, da sua ruptura, da queda do seu cabo, de ver o mesmo no chão, baixar-se, apanhar o cabo, arremessa-lo ao lixo e voltar a levantar-se, aperceber que o ofendido estendia as mãos em direcção ao seu pescoço, lograr visualizar uma segunda faca no lava-loiça, lançar-lhe mão e antes de ser agredida com o estrangulamento, desferir a facada no corpo do ofendido.

                Note-se que isto tudo foi possível não obstante a arguida se encontrar influenciada pela ingestão de bebidas alcoólicas. Teve perfeita percepção da dinâmica dos factos, da localização das facas, dos gestos do ofendido, dos alegados perigos à sua integridade física e vida, e das potenciais consequências jurisdicionais para o seu comportamento, ao ponto de ter a clarividência para rapidamente formular uma estória de suicídio.

               Por tudo isto, resultou à saciedade demonstrada a capacidade de percepção e de visão por parte da arguida, não obstante a alegada agressão que descreve da iniciativa do ofendido ter origem sobre o seu lado esquerdo (alegado campo de visão atingido), sendo que esta mesma alegada agressão foi prontamente avaliada e determinou uma reacção pronta da arguida.  

               18. Do relatório de autópsia médico-legal de fls. 378 a 383.

                Do depoimento da testemunha N…, inspector da Polícia Judiciária, que se encontrava em funções na secção de homicídios (prevenção), em Março de 2016, quando de manhã se deslocou ao local da presença de um cadáver – ofendido – por alegado suicídio.

               À chegada ao local – apartamento na Rua A–, que se encontrava policiado pela Polícia de Segurança Pública, constatou a presença de um cadáver, à entrada da cozinha, com uma ferida corto-perfurante na região supraclavicular esquerda.

               O hematoma existente no joelho do ofendido apurou-se dever-se a uma prótese.

                O cadáver já estava frio ao toque, ainda sem rigidez, com livores cadavéricos nas costas.

                No local encontrou duas facas – uma faca lisa com cabo de madeira sobre a bancada e outra faca serrilhada partida no interior do lava-loiça. As facas e roupas foram apreendidas.

               Viram e registaram ainda o ombro e joelho/perna da arguida, não se vislumbrando qualquer lesão.

               Foi ainda interveniente na reconstituição dos factos, exclusivamente realizado de acordo com o quanto foi descrito pela arguida – e que consta de fls. 47 e seguintes – folhas estas exibidas à testemunha, para além de fls. 15, 16 e 324 referente às facas.

               A pedido do Tribunal, esclareceu que tudo quanto foi descrito pela arguida como dinâmica dos factos ocorridos naquela madrugada foram vertidos no auto de reconstituição. Expressamente referiu que se não é registado um acto – o ofendido a apertar o pescoço da arguida – é porque a arguida não o relatou.

                Do depoimento da testemunha P…, inspector da Polícia Judiciária que procedeu à inspecção ao local, constatando a presença de um cadáver.

               Procedeu à apreensão de facas, sendo que uma delas se encontrava partida – sendo que a lâmina e o cabo plástico se encontravam no lava-loiça. Havia ainda uma segunda faca na bancada.

               Confrontado com o teor de fls. 15, 16, 47 e seguintes e 308 – referiu-se à existência de uma impressão digital na lâmina da faca de cabo de madeira.

               A respeito das lesões, esclarece que a forma de penetração da lâmina no corpo do ofendido não é compatível com um golpe paralelo ao chão, mas sim num movimento descendente, ou seja, uma estocada vertical de cima para baixo, pois só assim a perfuração supraclavicular teria lugar nos termos em que teve. Esta descrição é, aliás, a única compatível com o provado em 19., pois a intercepção das carótida e jugular esquerdas conjuntamente com a aorta só é possível, através de um único golpe, se realizada desta forma, atenta a localização anatómica das mesmas no corpo humano

               19. Do relatório de autópsia médico-legal de fls. 378 a 383.

               20. Das fotografias e exames de fls. 8, 305 a 309, 322 e 323 e relatório de autópsia médico-legal de fls. 378 a 383.

                26. Do certificado do registo criminal de fls. 653 a 658.

               27. Do “Relatório de avaliação de risco de violência doméstica” de fls. 386 a 402 verso.

               28. Do “Relatório social para determinação da sanção” de fls. 664 a 668.

               29. Das declarações da arguida e depoimento da testemunha R...  que assim o reconheceram.

               30. Das declarações da arguida – cfr. último § de fls. 13 do presente acórdão – e depoimento da testemunha R... Silva – cfr. § 6 de fls. 15 do presente acórdão – que o afirmaram, justificando-se a preocupação da arguida em esconder a carteira ao chegar a casa.

                A insatisfação das solicitações do ofendido levou ainda a que o mesmo pedisse tabaco e dinheiro directamente à sua progenitora, conforme a testemunha G... depôs em audiência de julgamento.

               31. Das declarações da arguida e consulta de cópia do cartão do cidadão constante dos autos.

***

Quanto aos factos não provados:

1. Da prova produzida em sentido diverso e descrita a propósito da convicção do Tribunal a propósito do facto provado em 4.

                2. Da ausência de prova neste sentido, considerando que a tal respeito resultou provado apenas o referido no facto provado em 7.

                3. Da ausência de prova neste sentido, concretizando-se a data dos acontecimentos em 19 de Março de 2016, conforme decorre do facto provado em 9.       

                4. Das declarações prestadas pela arguida, os factos não ocorreram da forma constante da acusação, foi o ofendido quem partiu o vidro, porquanto irritado com a arguida que lhe negou dar tabaco.

               Do depoimento da testemunha G... resulta a descrição de uma ocasião em que ouviu um trambolhão nas escadas, sendo que o ofendido terá batido com a cabeça na porta de vidro do prédio, ficou todo negro e ficou com cortes na cara.

                Porém, ainda que se provasse o teor do depoimento desta testemunha, o facto 10. da acusação não resultaria provado, porquanto não há provas de qualquer nexo entre a queda e lesões do ofendido e qualquer comportamento da arguida.

               O depoimento da testemunha A...também não permite dar por provado tal facto.

               5. Aquando do referido em 11. dos factos provados, a arguida deu palmadas e apertões nos braços e nas costas do ofendido.

               6. Declarações prestadas pela arguida que nega a agressão e consequentemente as suas consequências, mais acrescentando que o ofendido foi agredido em duas ocasiões, ambas por terceiros, uma em Março de 2015 e outra em finais do ano de 2015, sendo que nenhuma outra prova foi produzida a este respeito.

                7. Remete-se para as declarações referidas a propósito do quanto resultou do facto provado 16..

***

               O depoimento da testemunha F… revelou-se absolutamente desfasado com a realidade presente, tendo perdido o contacto com a arguida há cerca de 20 (vinte) anos e desde então apenas sabe da mesma pontualmente e sem precisão.

               De igual modo, a testemunha S… revela-se incipiente, limitando-se a desconhecer comportamentos agressivos entre o ofendido e a arguida, assistindo apenas a discussões, em contexto de embriaguez, que tornava desagradável a situação.

               A defesa, com o depoimento da testemunha A… procurou “desconstrui.r” uma imagem negativa da arguida, atribuindo-lhe qualidades humanas de solidariedade e entreajuda, a respeito de um episódio de ataque de um canídeo à filha da testemunha, o que traduz na “cobrança de um favor” («ajudei a tua filha, agora ajudas-me»).

                Do depoimento da testemunha J… resulta que conhecia o ofendido, não lhe atribuindo qualidades de trabalhador, antes apelidando-o de “calão”, característica esta de que se lamentava a arguida. Nenhuma conflituosidade assistiu entre a arguida e o ofendido.

*

               Evidentemente ainda se tomou em consideração a prova elencada no requerimento probatório subsequente à acusação de fls. 461, designadamente o relatório de inspecção de inspecção judiciária de fls. 3 a 14, auto de apreensão de fls. 15 e 16, participação do OPC local de fls. 22 a 24, verificação de óbito de fls. 25, auto de reconstituição de fls. 47 a 66, relatórios periciais de fls. 305 a 309, 311 a 331, 336 e 337.

*

               A convicção do Tribunal formou-se com base na análise crítica da prova antes descrita, tendo em conta o valor científico do relatório pericial e ainda as regras de experiência comum e da normalidade das coisas, sobretudo face à tipologia habitual dos casos como o dos autos.

Dito, no momento pertinente, o que se disse quanto à valoração da prova efectuada pelo Colectivo, importa, porém, concretizar as regras probatórias que sustentaram tal análise e concluir.

A apreciação da prova, ao nível do julgamento de facto, faz-se segundo as regras da experiência e a livre convicção do Juiz, nos termos do disposto no artigo 127 do Código de Processo Penal. No entanto, não se confunde esta, de modo algum, com apreciação arbitrária de prova nem com a mera impressão gerada no espírito do julgador pelos diversos meios de prova.

É dentro dos tais pressupostos valorativos da obediência a critérios da experiência comum e da lógica do homem médio, suposto pela ordem jurídica, que o julgador se deve colocar ao apreciar livremente a prova, reflectindo sobre os factos, utilizando a sua capacidade de raciocínio, a sua compreensão das coisas, o seu saber de experiência feito.

É a partir desses factores que se estabelece, realmente, uma tarefa (ainda que árdua) que se desempenha de acordo com o dever de prosseguir a verdade material.

Em conformidade com o disposto no n.º 2 do artigo 374 do Código de Processo Penal, é nosso dever, para além da enumeração dos factos provados e não provados e a indicação das provas que serviram para formar a nossa convicção, fazer uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto que fundamentaram a decisão sobre esta matéria, impondo-se ao tribunal, sob pena de incorrer em nulidade (cfr. alínea a) do artigo 379 do Código de Processo Penal), o dever de explicar porque decidiu de um modo e não de outro.

Os elementos que em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos que constituem o substrato racional que conduzem à formação da convicção do tribunal em determinado sentido e não noutro, devem ser revelados aos destinatários da decisão que são, não apenas os sujeitos processuais mas também a própria sociedade, o conjunto dos cidadãos.

O Tribunal tem de esclarecer porque é que valorou de determinada forma e não de outra os diversos meios de prova carreados para a audiência de julgamento.

Só assim se permite aos sujeitos processuais e ao Tribunal Superior o exame do processo lógico ou racional que lhe subjaz, pela via de recurso, conforme impõe, inequivocamente, o artigo 410 do Código de Processo Penal.

Deve, assim, a decisão sobre a matéria de facto assegurar pelo conteúdo um respeito efectivo pelo Princípio da Legalidade, pela independência e imparcialidade dos juízes.

Foi à luz deste exacto sentido e alcance da Lei, que se procedeu à apreciação das provas constantes dos autos e examinadas em audiência, afinal, as únicas que podem valer para a formação da convicção do tribunal, nos precisos termos do n.º 1 do artigo 355 do Código de Processo Penal.

***

IV – Fundamentação de Direito:

Descritos que foram os factos apurados, importa agora passar a fazer o seu enquadramento jurídico-penal, em ordem a apreciar da procedência da acusação deduzida contra a arguida F....

*

Do crime de violência doméstica:

À arguida é imputada a prática, em autoria material, na forma consumada e em concurso real, de um crime de violência doméstica, previsto e punível pelo artigo 152, n.º 1, alínea a) e n.ºs 2 do Código Penal.

Este preceito legal dispõe:

“Violência doméstica

1 - Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais:

a) Ao cônjuge ou ex-cônjuge;               

b) A pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação;

c) A progenitor de descendente comum em 1.º grau; ou

d) A pessoa particularmente indefesa, nomeadamente em razão da idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que com ele coabite;

é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.

2 - No caso previsto no número anterior, se o agente praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima é punido com pena de prisão de dois a cinco anos.

(…)”

*

O crime de violência doméstica foi tipificado de modo autónomo na reforma penal de 2007. O legislador, demarcando-se de concepções anteriores, transpôs para a norma incriminadora a consciencialização ético-moral que se assiste ao nível global.

A violência doméstica foi considerada em 1995, na Declaração e Plataforma de Acção em Pequim, da ONU como uma “(…) grave violação dos direitos humanos (…) um obstáculo à concretização dos objectivos de igualdade, desenvolvimento e paz, e viola, dificulta ou anula o gozo dos direitos humanos e liberdades fundamentais (…) ” – cfr.  http://www.cite.gov.pt/asstscite/downloads/universais/Beijing_Declaration_and_Platform_for_Action.pdf.  

Assim, na “Exposição de Motivos” da Proposta de Lei n.º 98/X - cfr. Diário da Assembleia da República, II Série – A, n.º 10, de 18 de Outubro de 2006), que esteve na origem da Lei n.º 59/2007, de 04 de Setembro - diploma que alterou o Código Penal, pode ler-se: “Ainda em sede de crimes contra a integridade física, os maus tratos, a violência doméstica e a infracção de regras de segurança passam a ser tipificados em preceitos distintos, em homenagem às variações de bem jurídico protegido. Na descrição típica da violência doméstica e dos maus tratos, recorre-se, em alternativa, às ideias de reiteração e intensidade, para esclarecer que não é imprescindível uma continuação criminosa. No crime de violência doméstica, é ampliado o âmbito subjectivo do crime passando a incluir as situações de violência doméstica que envolvam ex-cônjuges e pessoas de outro ou do mesmo sexo que mantenham ou tenham mantido uma relação análoga à dos cônjuges. Introduz-se uma agravação do limite mínimo da pena, no caso de o facto ser praticado contra menores ou na presença de menores ou no domicílio da vítima, ainda que comum ao agente.”

O bem jurídico protegido pela norma, contrariamente ao que pode resultar da sua integração sistemática, no capítulo “Dos crimes contra a integridade física”, não se reconduz apenas à saúde, seja ela física, psíquica e mental. Conclusão diversa fica aquém da dimensão pretendida pelo legislador, até porque decorre da própria redacção da norma que consagra limitações à liberdade e ofensas sexuais e, até mesmo, reserva da vida privada e a honra.

A integridade pessoal é um bem jurídico autónomo, pluriofensivo, previsto no artigo 25 da Constituição da República Portuguesa, e consubstancia um direito organicamente ligado à defesa da pessoa enquanto tal, intimamente ligado à dignidade da pessoa em que se funda o Estado Português. O princípio da dignidade da pessoa humana constitui a base de todos os direitos constitucionalmente consagrados.

A incriminação prevista no artigo 152 do Código Penal visa, assim, punir condutas violentas quer no plano físico, psíquico, moral, verbal ou sexual, quer a liberdade s.s., que têm por sujeito passivo as pessoas identificadas na norma, que se apresentam como especialmente vulneráveis ou subordinadas, em razão de uma dada relação familiar ou equiparada.

Estas condutas manifestam-se como um exercício ilegítimo de poder ou domínio sobre a vida, a integridade física e sexual, a liberdade e a honra, do outro, caracterizado as mais das vezes por um estado de tensão, de medo, ou de sujeição da vítima, por vezes percepcionada como mera objecto e não pleno sujeito de Direito.

Neste contexto, o Estado Português tem-se empenhado em desenvolver medidas de combate a este tipo de violência, promovendo uma cultura de cidadania e não de violência, quer a nível penal e processual penal. Pune, agora, de forma diversificada os comportamentos típicos e desenvolveu mecanismos de protecção das vítimas do crime, designadamente com a criação de estruturas de apoio às vítimas - cfr. Plano Nacional Contra a Violência Doméstica de 2011-2013.

*

Feita esta análise a respeito do tipo criminal em apreço, no caso concreto, impõe-se, antes do mais formular as seguintes questões: estaremos perante uma situação de “violência doméstica” recíproca? E porque se coloca esta questão?

Comecemos por responder a esta segunda pergunta: tem sido sustentado pela jurisprudência dos Tribunais Superiores que: “O crime de violência doméstica não pode ser cometido em reciprocidade.” – cfr. Acórdão do Venerando Tribunal da Relação do Porto, datado de 09 de Janeiro de 2013, proferido no processo com o n.º 31/09.5GCVLP.P1, publicado em http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/7668ac958eaa774680257b02004cb0f0?OpenDocument,

Resulta do texto deste acórdão a explicação que se transcreve:

“O tipo legal constante do artigo 152º do Código Penal, que cobre ações típicas semelhantes àquelas que se acham já prevenidas noutros tipos legais (artigos 143º - ofensas à integridade física, 183º injúrias, 163º coação sexual), não pode ser visto como reconduzindo-se à punição de um qualquer somatório de comportamentos deste tipo ocorridos entre pessoas que, a ligá-las, tenham, ou tenham tido, uma qualquer relação de proximidade familiar ou afetiva; o seu fundamento deve ser encontrado na proteção de quem, no âmbito de uma concreta relação interpessoal - conjugal ou não – vê a sua integridade pessoal, liberdade e segurança ameaçadas com tais condutas.

Pese embora a maior parte dos casos de crimes de violência doméstica, ocorram no âmbito da vivência conjugal – formal ou de facto – a atual redação do preceito, ao alargar o âmbito da incriminação ao ex-cônjuge e ao prescindir mesmo da coabitação, coloca agora mais o enfoque na situação relacional existente entre agressor e vítima.

Assim este tipo legal previne e pune condutas perpetradas por quem afirme e atue, dos mais diversos modos, um domínio, uma subjugação, sobre a pessoa da vítima, sobre a sua vida ou (e) sobre a sua honra ou (e) sobre a sua liberdade e que a reconduz a uma vivência de medo, de tensão, de subjugação.

Este é, segundo cremos, o verdadeiro traço distintivo deste crime relativamente aos demais onde igualmente se protege a integridade física, a honra ou a liberdade sexual.

O bem jurídico tutelado pela incriminação, assim caraterizado, é plural e complexo, visando essencialmente a defesa da integridade pessoal (física e psicológica) e a proteção da dignidade humana no âmbito de uma particular relação interpessoal.

Desta mesma forma ele se encontra caraterizado por André Lamas Leite,[1], quando refere que o mesmo tem como fim o “(…) asseguramento das condições de livre desenvolvimento da personalidade de um indivíduo no âmbito de uma relação interpessoal próxima de tipo familiar ou análogo (…)” sendo este bem jurídico multímodo “(…) uma concretização do direito fundamental (artigo 25º da C.R.P.) mas também do direito ao livre desenvolvimento da personalidade (artigo 26º da C.R.P.), nas dimensões não recobertas pelo artigo 25º da Lei Fundamental, ambos emanações diretas do princípio da dignidade da pessoa humana.

(…) A degradação, centrada na pessoa do ofendido, desses valores jurídico constitucionais deve ser a pergunta operatória no distinguo entre o crime de violência doméstica e todos os outros que, por via do designado concurso legal, com ele se relacionam”

Entre muitos outros, cremos particularmente feliz a síntese contida no sumário do Acórdão desta Relação do seguinte teor: “No ilícito de violência doméstica é objetivo da lei assegurar uma ‘tutela especial e reforçada’ da vítima perante situações de violência desenvolvida no seio da vida familiar ou doméstica que, pelo seu caráter violento ou pela sua configuração global de desrespeito pela pessoa da vítima ou de desejo de prevalência de dominação sobre a mesma, evidenciem um estado de degradação, enfraquecimento ou aviltamento da dignidade pessoal quanto de perigo ou de ameaça de prejuízo sério para a saúde e para o bem-estar físico e psíquico da vítima. (sublinhado nosso).

Daqui sobressai o que cremos essencial para a caraterização do crime de violência doméstica, que se evidencia da sua génese e evolução; a existência de uma vítima e de um vitimador, este numa posição de evidente dominação e prevalência sobre a pessoa daquela.

Aqui chegados para aportarmos à resposta à nossa perplexidade inicial e à conclusão de que assim caraterizado, o crime de violência doméstica não pode ser cometido com reciprocidade.

Evidentemente que pode haver casos em que um dos agentes cometa o crime de violência doméstica e o outro cometa qualquer outro crime – de ofensas corporais, de ameaças, de injúrias – desde que estes sejam praticados em condições que afastem o funcionamento de qualquer causa de exclusão da ilicitude ou da culpa.

Ou podemos depararmo-nos com situações, como a que estamos a apreciar, em que duas pessoas ligadas por particulares relações interpessoais, discutem, se insultam e agridem, reações resultantes de uma concreta e determinada situação vivencial de tensão e conflito, sendo os seus comportamentos equivalentes do ponto de vista da censurabilidade, não se alcançando qualquer posição de domínio de um sobre o outro, não se identificando, nem distinguindo um como vítima e o outro como agressor.

As situações provadas que constam da decisão recorrida não têm um padrão de frequência nem intensidade desvaliosa, para se poderem enquadrar num modelo de comportamento que se inscreva na previsão do tipo legal de violência doméstica.

Assim, pelas razões que se aduziram, para se concluir, que os factos assentes, perpetrados pela arguida, aqui recorrente, não se enquadram na previsão do artigo 152º do Código Penal.”

Mas esta resposta não tem uma amplitude tal que permita responder à primeira questão: in casu estaremos perante “violência doméstica” recíproca?

Cremos bem que a resposta não pode deixar de ser negativa.

O objecto do processo acha-se definido por um lado pela factualidade vertida no despacho de acusação e, por outro, pela contestação (que oferece o merecimento dos autos). De uma e outra peça processual não resulta sequer invocada ou alegada matéria de facto suficiente para se equacionar uma prática subsumível ao tipo legal de violência doméstica imputável ao ofendido sobre a pessoa da arguida (independentemente da impossibilidade de responsabilização daquele por razões óbvias – o seu decesso), e também a mesma não resultou provada do julgamento.

Como é evidente, não basta afirmar-se que a arguida e o ofendido discutiam e batiam-se mutuamente, ou que as discussões era potenciadas pelo consumo excessivo de bebidas alcoólicas, para subsumirem-se tais factos à norma incriminadora do artigo 152 do Código Penal, sendo apenas isso que o Tribunal “dispõe” em relação ao ofendido.

Reforçando esta mesma conclusão, o Tribunal dispôs dos depoimentos das testemunhas Elisabete Mendes, G... e A..., que descrevem um ofendido como alguém que não reagia a agressões físicas perpetradas pela arguida, uma pessoa pacífica, uma “paz de alma”.

Significa isto que não resultou provada uma violência doméstica recíproca, e muito menos é possível configurar sequer teoricamente uma dominação/subjugação recíprocas.

Mas já assim não acontece em relação à conduta imputável à arguida relativamente ao ofendido. Resultou provado que a arguida – pessoa casada com o ofendido – discutia com este e batia-lhe, na maioria das situações por razões de ciúmes e questões monetárias.

Certo é que as questões monetárias – ausência de rendimentos do trabalho – era imputável a ambos – arguida e ofendido – já que nenhum deles exercia actividade laboral remunerada há longo período de tempo.

E o elemento potenciador deste clima de discussão e agressão – a ingestão de bebidas alcoólicas – era repartido por ambos, porquanto resultou também provado que os dois mantinham hábitos relacionados com o consumo excessivo e dependente de bebidas alcoólicas, associados a modos de vida de convívio nocturno. Aliás, este modo de vida despreocupado e de boa disposição resulta do quanto consta do § 4 de fls. 7 do presente acórdão: “(…) eu queria era cantar, dançar (…)”

Nestes contexto e circunstancialismo resultou provado que a arguida, quer no interior da casa de morada de família, quer em espaço público e na presença de terceiros atingiu o corpo do ofendido com chapadas e empurrões – cfr. declarações da própria arguida que reconhece ter-lhe desferido uma chapada no interior da casa, e depoimentos das testemunhas G... e A....

Evidentemente que tais agressões, objectivamente, integram o tipo da violência doméstica, sendo que o facto de serem praticadas em espaço público e na presença de terceiros as tornam embaraçosas e confrangedoras para a pessoa da vítima.

Resultando assim também numa violência num plano emocional e psicológico.

Note-se que a constante discussão sobre questões de natureza monetária, a pressão da arguida sobre o ofendido a respeito da sua inactividade laboral de longa duração, sendo motivo de conversa e de pressão é algo que a própria arguida exteriorizou como sendo um “defeito” do ofendido – que fazia questão de confrontar –, sem que à mesma possa ser reconhecida idoneidade ou legitimidade morais, atendendo à sua inactividade laboral há cerca de duas décadas.

E tão importante quanto tudo isto e revelador da dominação da arguida e subjugação do ofendido está o facto da mesma, por mais do que uma vez nos últimos dois anos, dirigir-se a casa da sua sogra – mãe do ofendido – com o propósito de trazê-lo para casa, sempre que o mesmo junto da sua progenitora se refugiava, ou procurava abrigo ou afastamento do ambiente que vivenciava em casa morada de família – casa esta arrendada aos progenitores da arguida.

A arguida não se coibiu de fazê-lo – não se diga que por amor, pois a mesma expressou intenção de pôr termo ao relacionamento –, humilhando o ofendido na presença da sua mãe. 

Para além deste facto ilustrativo da dominação, temos por certo que era também a arguida quem geria as quantias monetárias disponíveis pelo agregado familiar, porquanto a renda da habitação era paga pelos progenitores da mesma, era ainda a mesma a beneficiária do rendimento de inserção social e da prestação de alimentos relativa aos seus dois filhos mais velhos.

Tal determinou, como resultou provado, que fosse o ofendido quem se dirigia à arguida a solicitar-lhe a entrega de dinheiro e tabaco e quem lhe subtraísse dinheiro para o efeito, facto instrumental da dominação/subjugação da arguida face ao ofendido.

Também indiciador e instrumental desta mesma dominação/subjugação temos o facto de a arguida ter uma compleição física superior à do ofendido, impondo a sua presença, ao ponto deste proferir a expressão: “mas o que é que eu te fiz?” momentos antes do seu decesso.

A personalidade manipuladora da arguida resultou ainda demonstrada pelo facto provado 29.  

Não obstante o Tribunal não poder dispor do depoimento da vítima – o ofendido L... – por razões óbvias, é possível pela reunião de uma série de factos indiciários e instrumentais concluir, por um lado, pela dominação/subjugação da arguida face ao ofendido e, por outro, pelas ofensas objectivamente concretizadas por aquela sobre este.

Posto isto, não restam dúvidas que a arguida, por diversas vezes e durante um período aproximado de 2 (dois) anos, ou seja, de forma reiterada como prevê o normativo em análise, muito embora tal reiteração já não constitua elemento objectivo fundamental do tipo, ofendeu os bens jurídicos protegidos.

Num contexto de instabilidade relacional – caracterizada, principalmente, por dificuldades económicas e ingestão excessiva de bebidas alcoólicas –, na habitação fixada pelo casal –, em ocasiões sociais e de quotidiano, a arguida assumia uma conduta verbalmente agressiva, física, psicológica e emocionalmente ofensiva do bem-estar do ofendido.

No caso sub judice ficou ainda demonstrado o tipo subjectivo, porquanto a arguida, ao actuar como descrito, previu e quis molestar física, emocional e psiquicamente o ofendido, o que fez, bem sabendo que não agia com o respeito a que estava obrigada, ciente da especial relação que entre ela arguida e o ofendido havia sido estabelecida há cerca de 6 (seis) anos.

Mais ainda, a arguida sabia que tais condutas lhe estavam vedadas por Lei e tendo capacidade de determinação segundo as legais prescrições ainda assim não se inibiu de as realizar.

Mostra-se, pois, inequivocamente preenchida a conduta prevista pelo artigo 152, n.º 1, alínea a) e punível pelo n.º 2 do Código Penal, devendo, por isso, a arguida F... ser condenada pela prática de um crime de violência doméstica.

*

Do crime de homicídio qualificado:

À arguida F... é ainda imputada a prática, em autoria material, na forma consumada e em concurso real de 1 (um) crime de homicídio qualificado, previsto e punível pelos artigos 131 e 132, n.ºs 1 e 2, alíneas b) e h) do Código Penal. Atenda-se, então, ao preceituado nestes preceitos legais.

Dispõe o artigo 131 do Código Penal:

“Quem matar outra pessoa é punido com pena de prisão de 8 a 16 anos”

e, por sua vez, dispõe o artigo 132, n.º 1 e n.º 2, alíneas b) e h) do Código Penal, sob a epígrafe “Homicídio qualificado” que:

               “1. Se a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade, o agente é punido com pena de prisão de doze a vinte e cinco anos.

               2. É susceptível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a que se refere o número anterior, entre outras, a circunstância de o agente:

                (…)

                b) Praticar o facto contra cônjuge, ex-cônjuge, pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação, ou contra progenitor de descendente comum em 1º grau;

                (…)

h) Praticar o facto juntamente com, pelo menos, mais duas pessoas ou utilizar meio particularmente perigoso ou que se traduza na prática de crime de perigo comum;

*

Ora, resultou provado que no dia 23 de Março de 2016, pelas 06 horas, no interior da residência do casal, a arguida e o ofendido começaram a discutir por questões relacionadas com falta de dinheiro e por ciúmes, discussão travada em tom de voz elevado e enquanto a arguida andava de um lado para outro atrás do ofendido L... este repetia várias vezes: "mas o que é que eu te fiz?"

               Após, a arguida agarrou uma faca de cabo em madeira, com uma lâmina de 10,5 cm (dez vírgula cinco centímetros) que se encontrava na cozinha, sobre o lava-louça e empunhando-a, desferiu uma facada na base esquerda do pescoço do ofendido L..., na região supra clavicular esquerda, levando a que o mesmo começasse a desfalecer de imediato, devido à extensa hemorragia, situação que conduziu à sua morte.

               Estão, por conseguinte preenchidos os elementos objectivos do tipo base – homicídio.

*

               Quanto ao elemento subjectivo do tipo base, não subsistem quaisquer dúvidas que a arguida quis efectivamente pôr termo à vida do ofendido, desferindo-lhe um único golpe numa região absoluta e conhecidamente sensível do organismo humano – base do pescoço – retirando-lhe a vida em poucos instantes, verificando-se, por conseguinte o dolo directo, previsto no n.º 1 do artigo 14 do Código Penal.

               Note-se que esta mesma modalidade de dolo sai reforçada pela dinâmica com que a lâmina entra no corpo da vítima – num sentido descendente, típico de estucada, que perfura a base do pescoço na vertical, não revelando qualquer outra intenção, designadamente de afastar, assustar, intimidar, repelir ou simplesmente de atingir a integridade física do ofendido.

*

               Porém, à arguida vem imputada a prática de crime de homicídio qualificado, porquanto verificou-se, in casu, uma ou mais circunstâncias que permitem a imputação da forma agravada do homicídio, dada a especial censurabilidade ou perversidade da conduta.

                O Código Penal utiliza, a respeito do crime de homicídio, a técnica dos exemplos-padrão, abandonando assim a outra técnica de qualificação que consiste numa modificação casuística dos tipos, como existia no Código Penal anterior.

Com esta técnica dos exemplos-padrão, no artigo 132 do Código Penal combina-se um tipo de culpa constituído por uma cláusula geral com um catálogo meramente exemplificativo de circunstâncias agravantes de funcionamento não automático, sendo que a presença ou ausência de quaisquer das circunstâncias elencadas no n.º 2 do artigo 132, relativas ao facto ou ao agente, exprimindo um aumento da ilicitude e ou da culpa, “(…) apenas constitui um indício da existência ou inexistência da especial censurabilidade ou perversidade do agente que fundamenta ou não a aplicação da moldura penal agravada do homicídio qualificado” – Teresa Serra, Homicídio Qualificado tipo de culpa e medida da pena, Coimbra: Almedina, 1990, p. 60.

Tais circunstâncias qualificativas do normativo mencionado não são elementos do tipo, mas sim da culpa e, por isso não são de funcionamento automático – cfr. Acórdãos do Colendo Supremo Tribunal de Justiça, de 20 de Novembro de 2000, proferido no processo n.º 2188/2000, pela 5ª Secção, de 10 de Janeiro de 2001, proferido no processo n.º 3221/2000, pela 3ª Secção, de 15 de Dezembro de 2005, proferido no processo n.º 05P2978, in www.dgsi.pt

O crime de homicídio qualificado previsto e punível pelo artigo 132 do Código Penal é um crime que repercute uma imagem global do facto agravada, um plus de culpa do agente, quando comparado com o homicídio simples, pelo concurso de circunstâncias apelidadas de exemplos-padrão, respeitantes à culpa, de verificação não automática, conotando o facto com um condicionalismo de tal modo grave, reflectindo uma atitude profundamente divorciada do agente em relação a uma determinação normal de acordo com os valores comunitariamente reinantes – cfr. Teresa Serra, opus cit., p. 63 –, que a pena estabelecida para o homicídio simples não responderia aos sentimentos colectivos dominantes, ao seu sentido de Justiça, e aos fins das penas.

E aparecem como susceptíveis de revelar essa especial censurabilidade ou perversidade, “(…) entre outras (…)”, as circunstâncias previstas no n.º 2 do artigo 132 do Código Penal.

*

Impõe-se, então, a questão: será que, no caso concreto, a morte do ofendido L... foi produzida em circunstâncias que revelam especial censurabilidade ou perversidade?

Para dar resposta a esta pergunta, teremos de analisar o relacionamento da arguida com o ofendido num passado próximo ao dos acontecimentos que levaram à morte deste. Desde já se adianta que, de acordo com a materialidade provada, a arguida actuou com evidente intenção de matar o ofendido, o que logrou conseguir, demonstrando manifesto desprezo e desrespeito pela vida humana. A actuação em contexto de discussão, motivado, mais uma vez, por escassez de recursos económicos (a ambos imputável), com emprego de uma arma branca (na acepção legal acolhida pelo Código Penal), numa abordagem surpresa, imprevisível, que apanha o ofendido indefeso, desprevenido, sem capacidade de reacção ou de recuperação física é reflexo disso mesmo.

Analisando o caso concreto, resultou provado que a arguida actuou movida pelo desgaste do relacionamento, que cada vez mais lhe pesada, sem contudo adoptar as diligências legais necessárias a fazer cessar o matrimónio – divórcio – ou seja, sem ser por óbito de um dos membros do casal.

A actuação da arguida, permite-nos concluir estarmos perante personalidade desconforme ao Direito, que procurou subtrair-se às responsabilidades dos seus actos – aventando uma tese de suicídio –, não tendo pejo em lançar mão à violência e desprezando o valor supremo da vida alheia.

A conduta da arguida, diga-se é – sem exagero – fortemente censurável e deverá ser qualificada como integrante do crime de homicídio qualificado, previsto e punível pelos artigos 131 e 132, n.ºs 1 e 2, alínea a) do Código Penal – relação de cônjuges entre a arguida e o ofendido. Atenda-se ainda e sempre à zona corporal atingida, ao meio empregue, à abordagem facilitadora e de domínio sobre a dinâmica dos factos, a desprotecção da vítima.

A segunda qualificativa – prevista na alínea h) do n.º 2 do artigo 132 do Código Penal – não resultou provada, não se podendo considerar que o meio utilizado – faca de cozinha – seja um meio particularmente perigoso ou que se traduza na prática de um crime de perigo comum.

Estão, assim, reunidos todos os elementos, quer objectivos quer subjectivos, que tipificam este ilícito criminal imputado à arguida, inexistindo causa de exclusão da ilicitude ou da sua culpa, pelo que se impõe a sua condenação, como é de Justiça.

*

Da escolha e determinação da medida das penas

O crime de violência doméstica previsto pelo artigo 152, n.º 1, alínea a) e n.º 2 do Código Penal é punido com pena de prisão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos.

O crime de homicídio qualificado previsto pelos artigos 131 e 132, n.ºs 1 e 2, alínea b), ambos do Código Penal é punido com pena de 12 (doze) a 25 (vinte e cinco) anos. 

                Os critérios constantes dos artigos 40, 70 e 71, todos do Código Penal consagram o entendimento de que toda a pena tem como suporte axiológico normativo uma culpa concreta e que o julgador se encontra limitado pelo respeito da dignidade da pessoa humana, pelas exigências de prevenção geral e especial.

Os factores concretos a ter em conta na determinação da medida da pena são, de acordo com a sistematização do n.º 2 do artigo 71 do Código Penal, fundamentalmente, os que estão relacionados com a execução do facto (alíneas a), b), e c)), os relativos à personalidade do agente (alíneas d) e f)) e, por último, os factores relativos à conduta do agente anterior e posterior ao facto.

In casu, ter-se-á em atenção:

Quanto ao crime de violência doméstica:

a ilicitude do facto que é reduzida a mediana, considerando:

a pluralidade ofensiva da actuação da arguida que atingiu plúrimas dimensões do bem-estar do ofendido, designadamente, física – com empurrões e chapadas –, emocional e psicológica – com as discussões frequentes, a responsabilização pela incapacidade económica, o ir buscar o ofendido a casa da sua mãe e as actuações públicas;

a duração das acções que duraram cerca de 2 (dois) anos;

a pessoa da vítima e o contexto habitacional;

a forte intensidade do dolo – na modalidade de dolo directo – cfr. n.º 1 do artigo 14 do Código Penal;

o comportamento anterior da arguida, com diversas condenações penais, por uma pluralidade de crimes de diferentes naturezas – que resulta claro do último § de fls. 8 do presente acórdão. “Mais especificamente, a apresentação de um estilo de vida parasita, um défice no controlo comportamental, impulsividade, irresponsabilidade e versatilidade criminal”; e

as condições sócio-económicas da arguida.

A tudo isto acrescem as exigências de prevenção geral, porquanto, se trata de infracção que exige uma resposta institucional intensa e eficaz, sobretudo de carácter preventivo.

"Prevenção geral, porém, não como prevenção geral negativa, de intimidação do delinquente e de outros potenciais criminosos, mas como prevenção positiva ou de integração, isto é, de reforço da consciência jurídica comunitária e do seu sentimento de segurança face à violação da norma ocorrida: em suma, na expressão de Jakobs, como estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias na validade e vigência da norma infringida" - cfr. Figueiredo Dias, Direito Penal Português, Editorial Notícias, 1993, pp. 72 e 73.

A concretização dos dias de prisão far-se-á em função da culpa do agente e das exigências de prevenção: "como limite que é, a medida da culpa serve para determinar um máximo de pena que não poderá em caso algum ser ultrapassado, (...) não para fornecer em última instância a medida da pena: esta dependerá, dentro do limite consentido pela culpa, de considerações de prevenção" - cfr. Figueiredo Dias, Direito Penal Português, Editorial Notícias, 1993, p. 238).

               Considerando o comportamento anterior aos factos, a incipiente integração social e ausência de integração laboral da arguida, a cessação permanente da relação entre a arguida e o ofendido, no que respeita às necessidades de prevenção especial, importa criar na pessoa da arguida a consciência que estes factos jamais deverão voltar a ocorrer.

               Nestes termos e ponderando, em conjunto, os critérios enunciados, entende-se adequado condenar a arguida numa pena concreta, como justa e adequada, de 2 (dois) anos e 2 (dois) meses de prisão, pela prática de um crime de violência doméstica, previsto e punível pelo artigo 152, n.º 1, alínea a) e n.º 2, do Código Penal.

*

Quanto ao crime de homicídio qualificado:

a ilicitude do facto que é mediana a elevada, considerando:

a unidade da conduta – único golpe;

os circunstancialismo e contexto de discussão doméstica entre a arguida e o ofendido, a surpresa, imprevisibilidade da agressão que encontra o ofendido indefeso, sem reacção e capacidade de recuperação;

o nível de agressividade;

a pessoa da vítima e o contexto habitacional;

a forte intensidade do dolo – na modalidade de dolo directo – cfr. n.º 1 do artigo 14 do Código Penal;

o comportamento anterior da arguida, com diversas condenações penais, por uma pluralidade de crimes de diferentes naturezas (aqui se reproduzindo o acima referido); e

as condições sócio-económicas da arguida.

Aqui dá-se por reproduzido o que atrás se mencionou a propósito da prevenção geral, da concretização dos dias de prisão, da incipiente integração social e ausência de integração laboral, no que respeita às necessidades de prevenção especial, importa criar na pessoa da arguida a consciência que estes factos jamais deverão voltar a ocorrer.

               Nestes termos e ponderando, em conjunto, os critérios enunciados, entende-se adequado condenar a arguida numa pena concreta, como justa e adequada, de 14 (catorze) anos de prisão, pela prática de um crime de homicídio qualificado, previsto e punível pelos artigos 131 e 132, n.ºs 1 e n.º 2, alínea b), do Código Penal.

*

Do cúmulo jurídico:

Procedendo ao cúmulo jurídico das penas de prisão aplicadas à arguida:

O n.º 1 do artigo 30 do Código Penal ao dispor, sob a epígrafe: “Concurso de crimes”, que:

               “O número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente.”

trata da pluralidade de infracções e não da sua punição.

               Do ponto de vista da sua punição, o concurso de crimes pode conduzir ao concurso de penas (que dá lugar a uma pena única, resultante de um cúmulo de penas parcelares) ou à sucessão de penas (em que as diversas penas permanecem autónomas).

               De acordo com o disposto no n.º 1 do artigo 77 do Código Penal:

               “Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.”

Pelo exposto, temos de concluir estar perante um concurso efectivo de infracções, porquanto a arguida cometeu 2 (dois) crimes.

Assim, para que a arguida seja condenada em pena única, terá de estabelecer-se a pena do concurso, que, segundo a norma legal referida, terá como limite superior a soma das penas concretamente aplicadas, e como limite mínimo a mais elevada das penas aplicadas.

Deste modo, a pena de prisão terá o seu limite inferior em 14 (catorze) anos e o seu limite superior em 16 (dezasseis) anos e 2 (dois) meses.

Resulta da referida norma legal que o sistema da pena única, através do cúmulo jurídico, impõe a reapreciação dos factos e da personalidade da arguida em conjunto.

Ora, ponderada a gravidade dos factos, na sua globalidade, entende-se que se mostra adequada à culpa e às exigências de prevenção geral e especial de socialização do mesmo, a pena única de 14 (catorze) anos e 8 (oito) meses de prisão.

*

Da condenação no pagamento da taxa de justiça e das custas:

Devendo ser condenada criminalmente, é devida taxa de justiça pela arguida F... a que acrescerá a sua condenação nas custas respectivas – cfr. artigo 513 e 514 do Código de Processo Penal.

*

                Da recolha de amostra de ADN:

                Considerando a pena única aplicada de 14 (catorze) anos e 8 (oito) meses de prisão, determinar-se-á, ao abrigo do disposto no n.º 2 do artigo 8º da Lei n.º 5/2008, de 12 de Fevereiro, a recolha de amostra de ADN à arguida F..., com os propósitos referidos no n.º 2 do artigo 18 do mesmo diploma legal, determinando-se que se oficie ao L.P.C. da Polícia Judiciária para o efeito.

*

Da perda de objectos, de coisas e de direitos relacionados com o facto:

De acordo com o disposto no n.º 1 do artigo 109 do Código Penal, são “(…) declarados perdidos a favor do Estado os objectos que tiverem servido ou estiverem destinados a servir para a prática de um facto ilícito típico, ou que por este tiverem sido produzidos, quando, pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, puserem em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas, ou oferecerem sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos.”

Encontram-se nesta situação as armas brancas apreendidas à arguida, as quais declarar-se-   -ão perdidas a favor do Estado e a autoridade policial promoverá o seu destino, nos termos do artigo 78 da Lei n.º 5/2006.

***

V – Decisão:

Pelo exposto, acordam os juízes que constituem o Tribunal Colectivo em julgar a acusação parcialmente procedente e provada e, em consequência decidem:

a) condenar a arguida F... pela prática, como autora material, na forma consumada em concurso real, de 1 (um) crime de violência doméstica previsto e punido nos termos do disposto no artigo 152, n.º 1, alínea a) e n.º 2 do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 2 (dois) meses de prisão;

b) condenar a arguida F... pela prática, em autoria material, na forma consumada e em concurso real, de 1 (um) crime de homicídio qualificado previsto e punido nos termos dos artigos 131 e 132, n.ºs 1 e 2, alínea b) do Código Penal, na pena de 14 (catorze) anos de prisão, absolvendo-a da qualificativa prevista na alínea h) do n.º 2 do artigo 132 do Código Penal, pela qual vinha acusada;

e) condenar a arguida F... em cúmulo jurídico na pena única de 14 (catorze) anos e 8 (oito) meses de prisão;

d) condenar a arguida F... ao pagamento de taxa de justiça que se fixa em 4 (quatro) U.C. e nas custas processuais criminais – cfr. artigos 513 e 514, ambos do Código Penal e n.º 5 do artigo 8º do Regulamento das Custas Processuais;

e) declarar perdidas a favor do Estado as armas brancas apreendidas à arguida F..., competindo à autoridade policial promover ao seu destino, nos termos do artigo 78 da Lei n.º 5/2006;

f) determinar, ao abrigo do disposto no n.º 2 do artigo 8º da Lei n.º 5/2008, de 12 de Fevereiro, a recolha de amostra de ADN a arguida F..., com os propósitos referidos no n.º 2 do artigo 18 do mesmo diploma legal, determinando-se que se oficie ao L.P.C. da Polícia Judiciária para o efeito.

*

Cessará, após o trânsito em julgado do presente acórdão, a medida de coacção a que a arguida F... se encontra sujeita, por força do disposto na alínea e) do n.º 1 do artigo 214 do Código de Processo Penal, aguardando a arguida, até lá, os ulteriores termos do processo sujeita à medida de obrigação de permanência na habitação, com vigilância electrónica, uma vez que, com a presente condenação ficaram reforçados os pressupostos, de facto e de Direito, que determinaram a sua sujeição a esta medida de coacção.

Na contagem do tempo de prisão deverá ser descontado o tempo de prisão preventiva já sofrido pela arguida, nos termos do disposto no artigo 80 do Código Penal, deixando-se consignado que a arguida se encontra privado da liberdade à ordem destes autos desde 21 de Novembro de 2013.               

*

Notifique.

 (…)

Conhecendo, dir-se-á:

Considerando-se obviamente, o recurso interposto pela arguida, é patente que não foi manifestamente impugnada a matéria de facto que foi dada como assente na sentença recorrida, pelo que a mesma se tem por definitivamente imutável.

  Já acima se delimitou o âmbito do conhecimento do recurso interposto pela arguida perante este Tribunal, o qual se circunscreve ou delimita única e exclusivamente a questões de direito.

1. Deverá então ser ou não a arguida condenada pela prática de um crime de violência doméstica, p.p. pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea a), e nº2 do Código Penal, pugnando a recorrente que não.

                Cumpre assim apreciar e decidir:

Dispõe o artº 152º do CP

Artigo 152.º

Violência doméstica

1 - Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais:

a) Ao cônjuge ou ex-cônjuge;

b) A pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação;

c) A progenitor de descendente comum em 1.º grau; ou

d) A pessoa particularmente indefesa, nomeadamente em razão da idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que com ele coabite;

é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.

2 - No caso previsto no número anterior, se o agente praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima é punido com pena de prisão de dois a cinco anos.

3 - Se dos factos previstos no n.º 1 resultar:

a) Ofensa à integridade física grave, o agente é punido com pena de prisão de dois a oito anos;

b) A morte, o agente é punido com pena de prisão de três a dez anos.

4 - Nos casos previstos nos números anteriores, podem ser aplicadas ao arguido as penas acessórias de proibição de contacto com a vítima e de proibição de uso e porte de armas, pelo período de seis meses a cinco anos, e de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica.

5 - A pena acessória de proibição de contacto com a vítima deve incluir o afastamento da residência ou do local de trabalho desta e o seu cumprimento deve ser fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância.

6 - Quem for condenado por crime previsto neste artigo pode, atenta a concreta gravidade do facto e a sua conexão com a função exercida pelo agente, ser inibido do exercício do poder paternal, da tutela ou da curatela por um período de um a dez anos.

  Contém as alterações dos seguintes diplomas:

   - Lei n.º 65/98, de 02/09

   - Lei n.º 7/2000, de 27/05

   - Lei n.º 59/2007, de 04/09

   - Lei n.º 19/2013, de 21/02

  Consultar versões anteriores deste artigo:

   -1ª versão: DL n.º 48/95, de 15/03

   -2ª versão: Lei n.º 65/98, de 02/09

   -3ª versão: Lei n.º 7/2000, de 27/05

   -4ª versão: Lei n.º 59/2007, de 04/09

Vejamos então:

O crime de violência doméstica, p. e p. no art. 152.º, do Código Penal, após a autonomização operada pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, visa, acima de tudo, proteger a dignidade humana, tutelando, não só, a integridade física da pessoa individual, mas também a integridade psíquica, protegendo a saúde do agente passivo, tomada no seu sentido mais amplo de ambiente propício a um salutar e digno modo de vida. Se o crime de violência doméstica é punido mais gravemente que os ilícitos de ofensas a integridade física, ameaças, coacção, sequestro, difamação e injúrias, etc., e se é distinto o bem jurídico tutelado pela respectiva norma incriminadora, então, para a densificação do conceito de maus tratos, físicos e psíquicos, não pode servir toda e qualquer ofensa (cf. Acórdão da Relação de Lisboa, de 15-01-2013, processo 1 3 54/1 0.6TDLSB.L 1-5,in  www.dgsi.pt. ).

O que importa e é decisivo, para efeitos de avaliar se uma conduta é subsumível ao tipo de violência doméstica é atentar no seu carácter violento ou na sua configuração global de desrespeito pela dignidade da pessoa da vítima, ou de desejo de prevalência, dominação e controlo sobre a mesma.

No conceito de maus tratos psíquicos está contemplado um leque variado de condutas, que se podem manifestar mediante humilhações, provocações, ameaças, tanto de natureza física ou verbal, insultos, críticas e comentários destrutivos, achincalhantes ou vexatórios, restrições arbitrárias a entrada e saída da habitação ou de partes da habitação comum, etc.

No caso dos autos temos que se provou o seguinte:

1. A arguida F... e o ofendido L..., de 42 (quarenta e dois) anos de idade, contraíram casamento em 16 de Março de 2010, tendo fixado residência desde então, na Rua A, em Lisboa.

2. Do agregado familiar faziam parte dois filhos de um casamento anterior da arguida (…), nascidos em 06 de Janeiro de 1997 e 10 de Novembro de 2000, respectivamente,

e,

3. fruto do seu casamento com o ofendido L..., os menores (…), nascidos a 24 de Janeiro de 2011 e 23 de Agosto de 2012, respectivamente.                

4. A arguida e o ofendido L... discutiam e batiam-se mutuamente, sendo na maior parte das vezes por razões de ciúme mútuo e por questões monetárias.

5. Nenhum dos membros do casal exercia actividade laboral remunerada, vivendo de subsídios sociais – rendimento social de inserção (no valor de duzentos e dezasseis euros) e dos abonos dos filhos (no valor de duzentos e oito euros) –, de alguns donativos em dinheiro de familiares e de amigos, nomeadamente dos pais da arguida que pagavam a renda da casa (no valor de cento e quarenta e três euros mensais), lhes compravam alimentos e lhes davam dinheiro.

6. Quer a arguida, quer o ofendido L... mantinham hábitos relacionados com o consumo excessivo e dependente de bebidas alcoólicas, sendo muitas das discussões potenciadas pelo efeito do álcool.

7. Na sequência dessas discussões que levavam a cabo no interior da casa de morada de família e às vezes em espaço público, a arguida batia no corpo do ofendido L..., com chapadas na cara e empurrões.

8. Nessas ocasiões, o ofendido L... ia para casa da sua mãe, G..., onde chegava a permanecer uma semana e onde a arguida o ia buscar.

9. No dia 19 de Março de 2016, cerca das 04 horas, a arguida dirigiu-se a casa da mãe do ofendido L... onde este se encontrava a dormir há cerca de uma semana, para o levar de volta para a casa de morada de família.

10. No período compreendido entre 01 e 23 de Março de 2016, em data não concretamente apurada, a arguida, na sequência de uma discussão mantida com o ofendido L..., no café do bairro onde viviam, e à frente de outras pessoas empurrou-o, causando-lhe dor e provocando-lhe um sentimento de vergonha.

11. Ao actuar da forma descrita, a arguida sabia que estava a maltratar física e psicologicamente o seu marido e a violar os deveres de respeito e solidariedade que sabia lhe incumbirem, querendo agir daquela forma.

12. A arguida agiu deliberada, livre e conscientemente, com o propósito concretizado de molestar o ofendido L... no seu corpo e na sua saúde, o que conseguiu.

13. Bem sabia a arguida que as suas condutas eram proibidas e punidas por Lei penal.

Resultou também, e repete-se provado, vide factos 7 a 13, que está patente na factualidade provada, aquele “quid, aquele plus” de desvalor que fundamenta propriamente a especificidade do crime de violência doméstica.

Estes factos, que consistem em agressões da arguida a seu marido, quer na sua residência, quer em locais públicos, que levavam até que este fosse para casa de sua mãe, evidenciam, da forma necessária exigida pela lei, uma especial humilhação, ou degradação da dignidade da pessoa humana (sendo vitima naturalmente o então marido da arguida) no âmbito desta particular relação interpessoal, ou seja, estamos perante condutas que têm a virtualidade de objectivamente, ultrapassar e superar o amesquinhamento, o vexame e a humilhação inerentes por exemplo aos crimes de injúria ou difamação (pois note-se que tal comportamento não era reciproco neste particular), p. e p. pelos artigos 180.° e 181.° do Código Penal, com aquela especial predominância.

No que mais ainda se provou, e de resto, estamos parcialmente perante comportamentos recíprocos de igual natureza ,e sem consequências relevantes, ( vide ponto 4 dos factos provados) ao que acresce que a frequência das ocorrências, porque recíprocas, apesar de serem agressivas, não permitem concluir pela existência de um tratamento predominante de um para com o outro que fosse cruel ou de maus tratos psíquicos ou físicos,  ou de que efectivamente a arguida ou a vitima tivessem sofrido  algum tratamento incompatível com a sua dignidade, tanto mais que, neste ponto não decorre de forma alguma que um deles subjugasse o outro, com tais actuações, pelo que não colhem os argumentos apresentados pela recorrente.

Porém, no demais, face à factualidade provada, é à conduta da arguida que, de forma inquestionável é susceptível de integrar, quanto a tais factos, a materialidade do crime pelo qual foi condenada, um crime p.p. pelo artº 152 nº 1, al. a) e nº 2 do Código Penal.

Entre o crime de violência doméstica e os crimes acima enumerados existe uma relação de especialidade, sendo que a razão de ser que subjaz à punição mais agravada do primeiro reside na relação que liga o agente à vítima, que cria naquele uma particular obrigação de não infligir maus tratos ao familiar.

Ora jurisprudencialmente existe também um entendimento consentâneo, de que a «pedra de toque» da distinção entre o tipo criminal de violência doméstica e os tipos de crime que especificamente tutelam os bens pessoais neles visados concretizam-se pela apreciação de que a/s conduta/s imputada/s constitua, ou não, um atentado à dignidade pessoal aí protegida, ou seja, o bem jurídico protegido no tipo legal de crime de violência doméstica reside na dignidade da pessoa humana, incluindo-se nele todos os comportamentos que lesem essa dignidade de forma relevante e / ou humilhante, subjugando a vitima com o devir de condutas criminosas que preencham os requisitos legais do artº 152º do CPP, no seio de uma relação especial existente entre o agressor e a vitima, a que a norma alude e idóneas a afectar o seu bem estar psicológico, situação que, convenhamos, se verificou de forma evidente, no caso dos autos.

Assim e na senda deste entendimento perfilhado, vide entre muitos outros, os Ac. TRE de 3-07-2012 , bem como o Ac. TRE de 8-01-2013: 1. O crime de violência doméstica - crime específico impróprio ou impuro e de perigo abstracto pode criar uma relação de concurso aparente de normas com outros tipos penais, designadamente as ofensas corporais simples (artigo 143.º, nº 1 do Código Penal), as injúrias (artigo 181.º), a difamação (artigo 180.º, nº 1), a coacção (artigo 154.º), o sequestro simples (artigo 158.º, nº 1), a devassa da vida privada [artigo 192.º, nº 1. al. b)], as gravações e fotografias ilícitas [artigo 199.º, nº 2, al b)].

 O bem jurídico tutelado pelo tipo é complexo, incluindo a saúde física, psíquica e emocional, a liberdade de determinação pessoal e sexual da vítima de actos violentos e a sua dignidade quando inserida numa relação ou por causa dela.

Também o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 27.02.2008, Proc. 1702/2008-3, em www.dgsi.pt, refere que os maus-tratos psíquicos compreendem, a par das estratégias e condutas de controlo, o abuso verbal e emocional que perturbe a “normal convivência e as condições em que possa ter lugar o pleno desenvolvimento da personalidade dos membros do agregado familiar”.

 A expressão «maus tratos», fazendo apelo á «imagem global do facto», pressupõe, no pólo objectivo, uma agressão ou ofensa que revele um mínimo de violência sobre a pessoa inserida em relação; subjectivamente uma motivação para a agressão, ofensa, achincalhamento, menosprezo; o reflexo negativo e sensível na dignidade da vítima, por via de uma ofensa na sua saúde física, psíquica ou emocional, ou na sua liberdade de autodeterminação pessoal ou sexual. Ac. TRP de 10-07-2013: No crime de violência doméstica está em causa a protecção da pessoa individual, da sua dignidade humana, podendo dizer-se, com Taipa de Carvalho, que «o bem jurídico protegido é a saúde - bem jurídico complexo, que abrange a saúde física, psíquica e mental, e bem jurídico este que pode ser afectado por toda a multiplicidade de comportamentos».

 Trata-se de crime específico (pressupõe uma determinada relação entre os sujeitos activo e passivo), cuja prática pode ser ou não reiterada no tempo (tudo depende das circunstâncias do caso concreto). O tipo objectivo de ilícito, no caso em apreço, preenche-se com a acção de infligir «Maus-tratos físicos» (que se traduzem em ofensas á integridade física, incluindo simples) ou «Maus-tratos psíquicos» (que podem consistir, como diz Taipa de Carvalho, em «humilhações, provocações, molestações, ameaças, mesmo que não configuradoras em si do crime de ameaça») (…). Por sua vez, o tipo subjectivo de ilícito exige o dolo (nesta particular situação, trata-se de crime de mera actividade - está em causa o infligir de «maus-tratos psíquicos» - bastando o dolo de perigo de afectação da saúde, aqui o bem estar psíquico e a dignidade humana do sujeito passivo).

O Ac. TRG de 2-11-2015 : I) O tipo legal do artº 152º, do CP previne e pune condutas perpetradas por quem afirme e actue, dos mais diversos modos, um domínio, uma subjugação, sobre a pessoa da vítima, sobre a sua vida ou (e) sobre a sua honra ou (e) sobre a sua liberdade e que a reconduz a uma vivência de medo, de tensão, de subjugação.II) Este é, o verdadeiro traço distintivo deste crime relativamente aos demais onde igualmente se protege a integridade física, a honra ou a liberdade sexual.

Também o Ac. do T.R.E. de 30-06-2015, in www.dgsi.pt, refere assertivamente que “a imagem global do facto e a apreensão/percepção de todo o episódio de vida em apreciação relevam na delimitação da fronteira entre condutas que têm dignidade punitiva à luz do tipo de crime de violência doméstica e aquelas que não devem relevar para o direito penal, aqui. Condição necessária para a intervenção penal é sempre a ofensa efectiva de um bem jurídico (digno de protecção penal). A ratio do tipo “violência doméstica” não reside na protecção da família, mas na protecção da pessoa individual na família, na tutela da sua dignidade, protegendo-a de um abuso de poder na relação afectiva.

Em suma, para a realização do crime torna-se necessário que o agente reitere o comportamento ofensivo, em determinado período de tempo, admitindo-se, porém, que um singular comportamento bastará para integrar o crime quando assuma uma dimensão manifestamente ofensiva da dignidade pessoal do cônjuge.

O bem jurídico, enquanto materialização directa da tutela da dignidade da pessoa humana, implica que a norma incriminadora apenas preveja as condutas efectivamente maltratantes, ou seja, que coloquem em causa a dignidade da pessoa humana, conduzindo à degradação pelos maus-tratos/ caso dos autos (Cfr. Plácido Conde Fernandes, “Violência Doméstica, Novo quadro penal e processual penal”, Revista do CEJ, n.º 8, 1.º semestre de 2008, p. 305, apud acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 06.02.2012, proc. 79/10.7TAVVD, em www.dgsi.pt).

Ocorrendo os factos provados num quadro de relacionamento conjugal deteriorado, com uma evidente posição de dominância da arguida sobre o  então seu marido, que levavam até que este se refugiasse durante algum tempo, após as agressões perpetradas pela arguida, para casa da sua mãe, indo depois a arguida ali busca-lo e levando-o novamente para casa, tais condutas são merecedoras de censura penal, e encontram uma evidente tutela penal, a à luz do artigo 152º do Código Penal, crime pelo qual a arguida foi, e bem, condenada”.

  Ora as condições de punibilidade/ elementos objectivos para a condenação da arguida pela prática de um crime de violência doméstica, verificam –se em concreto no caso dos autos, pelo nenhum reparo haverá de fazer, neste segmento ao acórdão sob escrutínio.

Verifica-se aqui, de facto, aquele “plus” de uma subjugação, da arguida sobre a pessoa da vítima/ o seu entretanto falecido marido, sobre a sua vida ou (e) sobre a sua honra ou (e) sobre a sua liberdade e que o reconduziu sem dúvida a uma vivência de medo, de tensão e de subjugação daquele perante a arguida.

Os factos provados traduzem, claramente um desejo de prevalência e de dominação da arguida sobre o seu marido, até potenciado pela sua maior pujança física e até, digamos anímica, que resulta do acervo dos factos provados.

Resta tão-só aduzir que fazendo uma leitura atenta dos factos provados que na óptica da arguida, obviavam a tal condenação contidos nos números 4 e 16 , vide  :

               4. A arguida e o ofendido L... discutiam e batiam-se mutuamente, sendo na maior parte das vezes por razões de ciúme mútuo e por questões monetárias.

                16. De regresso a casa, por volta das 06 horas do dia 23 de Março de 2016, e já no interior da residência começaram a discutir por questões relacionadas com falta de dinheiro e por ciúmes, discussão travada em tom de voz elevado e enquanto a arguida andava de um lado para outro atrás do ofendido L... este repetia várias vezes: "mas o que é que eu te fiz?"

Que da sua leitura, as conclusões que a arguida deles retira, em nada abonam a favor da sua tese, parcialmente pelos motivos acima já explanados.

Assim considerando-se o atrás exposto improcede neste segmento recurso apresentado pela arguida o que se declara.

2-A arguida não praticou o crime de homicídio qualificado devendo entender-se que levam a que se considere a aplicação, ao presente, da legítima defesa, referida no art. 32.º do C.P. - máxime, o art. 33.° do C.P., na modalidade de excesso de legítima defesa.

 Assim ao decidir como decidiu, nesta questão (crime de homicídio qualificado), o acórdão recorrido violou os arts. 32.°, 33.º, 131.° e 132.º, n.ºs 1 e 2, alínea b), do C.P., devendo, por isso, ser substituída por douto Acórdão que revogue a incriminação da arguida;

2A- E tudo supra, face ao que se provou sob os nºs  4 e 16 dos factos provados;

Apreciemos então estas questões:

Alega a arguida que não praticou o crime de homicídio qualificado, devendo entender-se, ou considerar-se a aplicação ao caso da legitima defesa referida no artº 32º do CP, ou o artº 33º do CP, na modalidade de excesso de legitima defesa, devendo assim revogar-se a incriminação da arguida e face ao que se provou nos números  4 e 16 dos factos provados.

Assim:

Sob o titulo II, o Capitulo III do Código Penal

Causas que excluem a ilicitude e a culpa,

Estabelecem os artº 32 e 33º do Código penal

Artº 32º

Legítima defesa

Constitui legítima defesa o facto praticado como meio necessário para repelir a agressão actual e ilícita de interesses juridicamente protegidos do agente ou de terceiro.

  Artigo 33.º

Excesso de legítima defesa

1 - Se houver excesso dos meios empregados em legítima defesa, o facto é ilícito mas a pena pode ser especialmente atenuada.

2 - O agente não é punido se o excesso resultar de perturbação, medo ou susto, não censuráveis.

Como já se salientou, a arguida não recorreu da matéria de facto nos termos do artº 412º do CPP, pelo que se tem a mesma por assente, inexistindo qualquer factor que levasse a que legalmente aquela devesse, e pudesse ser modificada.

Ora quanto ao crime de homicídio qualificado p.p. pelos artigos 131º, 132º nº 2 b) do CP, temos que resultaram provados os seguintes factos (o seu núcleo duro): 

             14. No dia 22 de Março de 2016, cerca das 18 horas e 30 minutos, a arguida e o ofendido L... saíram de casa para irem jantar num restaurante com uns amigos, tendo no decurso desse jantar ingerido bebidas alcoólicas e conversado sobre a situação profissional daquele, que se encontrava desempregado.

               15. Após o jantar foram ainda a vários bares onde ingeriram mais bebidas alcoólicas.

                16. De regresso a casa, por volta das 06 horas do dia 23 de Março de 2016, e já no interior da residência começaram a discutir por questões relacionadas com falta de dinheiro e por ciúmes, discussão travada em tom de voz elevado e enquanto a arguida andava de um lado para outro atrás do ofendido L... este repetia várias vezes: "mas o que é que eu te fiz?"

               17. Após, a arguida agarrou uma faca de cabo em madeira, com uma lâmina de 10,5 cm (dez vírgula cinco centímetros) que se encontrava na cozinha, sobre o lava-louça e empunhando-a, desferiu uma facada na base esquerda do pescoço do ofendido L..., na região supra clavicular esquerda, levando a que o mesmo começasse a desfalecer de imediato, devido à extensa hemorragia, situação que conduziu à sua morte.

                18. A actuação da arguida provocou no ofendido L... as lesões que se encontram descritas nos exames de hábito externo e interno do relatório de autópsia médico-legal de fls. 378 a 383:

- no pescoço, uma ferida corto-perfurante, transfixiva, ao nível da porção distal do esternocleidomastóideo esquerdo, subjacente à ferida corto-perfurante na região supraclavicular esquerda, fusiforme, oblíqua para baixo e para fora, medindo 1 cm (um centímetros) de comprimento, apresentando na porção lateral escoriação terminal que mede 1 cm (um centímetro) de comprimento orientada para baixo, com infiltração hemorrágica perifocal;

                - nos vasos e nervos, ferida corto-perfurante, transfixiva, ao nível da carótida e jugular esquerdas com infiltração hemorrágica perifocal;

               - na artéria aorta ferida corto-perfurante da aorta ao nível da crassa, com infiltração hemorrágica perifocal.

19. As lesões traumáticas corto-contundentes a nível da pele, na região supraclavicular esquerda, do músculo esternocleidomastóideo esquerdo, da carótida e jugular esquerdas, da aorta torácica produzidas pela faca, instrumento corto-contundente, apresentam um trajecto daquele instrumento no corpo do ofendido L... orientado de cima para baixo, discretamente de trás para a frente e discretamente da esquerda para a direita.

20. As lesões traumáticas cervicais e torácicas, provocadas pela faca examinada a fls. 8, 305 a 309, 322 e 323, instrumento de natureza corto-perfurante, foram a causa directa, necessária e adequada da morte violenta do ofendido L..., de etiologia médico-legal homicida.

21. Ao agir da forma supra descrita, desferindo aquele golpe com a faca, a arguida agiu de forma livre, deliberada e conscientemente, com o propósito de tirar a vida ao ofendido L..., seu marido, o que quis e conseguiu.

22. Ao actuar da forma descrita a arguida pretendeu tirar a vida ao ofendido L..., seu marido, utilizando para o efeito meio idóneo à produção de tal resultado - utilização de uma faca - e quis atingi-lo no pescoço, zona do corpo que a arguida sabia que alojava vasos e artérias, órgãos vitais à vida, como a carótida, a jugular e a aorta e que ao atingi-lo com uma faca provocaria necessariamente a morte do ofendido L..., morte que representou, que quis e conseguiu.

23. Bem sabia que a sua conduta era proibida e punida pela Lei penal.

24. Mais agiu a arguida, de forma livre, deliberada e conscientemente bem sabendo que ao longo do tempo de matrimónio com o ofendido L... manteve discussões com o mesmo, movida por ciúmes, batendo-lhe com frequência e provocando-lhe lesões físicas e dores, ao invés de salvaguardar o bem-estar familiar com o mesmo, o que quis, representou e conseguiu alcançar.

               25. Agiu livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por Lei.

 Ora e seguindo de perto o Ac. TRP de 11-12-2013 :

I. A exclusão da ilicitude da conduta por legítima defesa [art. 32º do C Penal] exige a presença de cinco requisitos objectivos e um elemento subjectivo, a saber, (i) a agressão de interesses juridicamente protegidos do agente ou de terceiro, (ii) a actualidade da agressão, (iii) a ilicitude da agressão, (iv) a necessidade da defesa, (v) a necessidade do meio e (vi) o conhecimento da situação de legítima defesa - os três primeiros requisitos objectivos referem-se á situação em que o agente actua e os dois últimos á acção de defesa.

II. Haverá excesso de legítima defesa quando, pressuposta uma situação de legítima defesa, se utiliza um meio desnecessário para impedir ou repelir a agressão.

III. Tendo-se como definitivamente assente que «o arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, com o propósito concretizado de molestar fisicamente o ofendido» fica desse modo excluído o intuito defensivo, demonstrando-se, ao invés, o agressivo, pelo que em tal caso, já não se pode falar em legítima defesa nem em legítima defesa putativa (que se traduz na errónea suposição de que se verificam, no caso concreto, os pressupostos da defesa: a existência de uma agressão actual e ilícita).

IV. A perturbação, medo ou susto, não censuráveis, referidos no º 2 do art. 33º do CPenal, respeitam ao excesso dos meios empregados em legítima defesa, isto é, aos requisitos da legítima defesa, melhor dizendo, da legitimidade da defesa: necessidade dos meios utilizados para repelir a agressão. Uma coisa é o erro sobre a existência de uma agressão actual e ilícita com base no qual o agente desencadeia a defesa (legítima defesa putativa) e outra distinta é a irracionalidade, imoderação ou falta de temperança nos meios empregues na defesa, resultante de um estado afectivo (perturbação ou medo) com que o agente actua.”

Também o AC do STJ de 26.11.1990, in www.dgsi.pt , é muito claro ao estatuir que:

I-São requisitos da legitima defesa: a) existência de uma agressão a quaisquer interesses, pessoais ou patrimoniais, do dependente ou de terceiro, que deve ser actual, no sentido de estar em desenvolvimento ou eminente, e ilícita, no sentido de o seu autor não ter o direito de o fazer; b) circunscrever-se a defesa ao uso dos meios necessários para fazer cessar a agressão; c) "Animus defendendi", ou seja, o intuito de defesa por parte do dependente.

II - A legitima defesa exclui a ilicitude do acto praticado, enquanto o acto praticado com excesso de legitima defesa se situa ao nível da culpa.

III - O excesso de legitima defesa pressupõe a verificação de todo o condicionalismo da legitima defesa, reportando-se ao excesso dos meios empregados que, sendo determinados por pertubação, medo ou susto não censuraveis, pode isentar o agente da pena por falta de culpa.

( vide também os Ac do STJ de  26.06.2001 e de 22.01.2014 ambos, in www.dgsi.pt )

Assim, e face ao que atrás se deixou expresso transparece com elevada nitidez que neste caso não se verificam nenhum dos requisitos objectivos e subjectivo  necessários, para que ocorra ou pudesse ocorrer e logo assim ser considerada ( neste particular a conduta da arguida vertida nos factos descritos supra), a legitima defesa ou o excesso dela, na actuação plasmada da arguida nos factos provados, de facto, o excesso de legítima defesa pressupõe a existência prévia dos pressupostos da legítima defesa, embora excedendo o agente a respectiva conduta de defesa, pela sua desproporcionalidade ou inadequação de meios, na situação concreta, coisa que não se verifica manifestamente no caso dos autos.

Estes são muito claros e evidenciam, ao invés do pretendido pela recorrente, uma atitude manifestamente agressiva e violenta por parte desta, relativamente ao seu marido, tendo esta de forma deliberada retirado a vida deste, através do desferimento de uma única facada na zona do pescoço, sem que nada o fizesse prever e no seguimento de uma discussão, veja-se novamente o que se provou neste especial segmento para que dúvidas não subsistam e não havendo muito mais a acrescentar, por despiciendo;

“16-De regresso a casa, por volta das 06 horas do dia 23 de Março de 2016, e já no interior da residência começaram a discutir por questões relacionadas com falta de dinheiro e por ciúmes, discussão travada em tom de voz elevado e enquanto a arguida andava de um lado para outro atrás do ofendido L... este repetia várias vezes: "mas o que é que eu te fiz?"

17. Após, a arguida agarrou uma faca de cabo em madeira, com uma lâmina de 10,5 cm (dez vírgula cinco centímetros) que se encontrava na cozinha, sobre o lava-louça e empunhando-a, desferiu uma facada na base esquerda do pescoço do ofendido L..., na região supra clavicular esquerda, levando a que o mesmo começasse a desfalecer de imediato, devido à extensa hemorragia, situação que conduziu à sua morte.”

Assim se conclui que não estão, obviamente e “in casu “ presentes nenhum dos requisitos quer do artº 32º, quer do 33º do Código Penal, pelo que nunca se poderia concluir face à panóplia de factos provados, pela exclusão da ilicitude/ ou da culpa da conduta da arguida, fazendo apelo à legitima defesa ou ao excesso dela, por motivos óbvios e já supra descritos e que resultam claramente dos factos provados, resultando até ao invés que foi a conduta da arguida verdadeiramente a impulsionadora (note-se que era esta que na discussão andava de um lado para o outro atrás da vitima, repetindo esta (vitima) “ o que é que eu te fiz”, sendo que acto continuo a arguida pegando na faca descrita nos autos qu se encontrava na cozinha da residência de ambos na altura, desferiu no seu marido uma facada na base esquerda do pescoço, levando que o mesmo desfalecesse de imediato face à extensa hemorragia, situação que conduziu à sua morte, querendo esta tirar a vida à vitima, o que conseguiu e estando assim preenchidos os elementos também subjectivos do crime de homicídio qualificado pelo qual a arguida foi condenada, p.p. pelo artigos 131º 132º nº2 al. b) do CP )“ in solo” da factualidade ocorrida e que levaram infelizmente à morte da vitima, às suas mãos e de forma muito violenta.

Improcede assim este segmento do recurso, o que se declara.

3-O acórdão recorrido, ao não valorar concretamente as circunstâncias concretas que militam a favor do arguida, violou o disposto nos artigos, 40º, 70º, 71º e 72º do CP, pois atendeu apenas a necessidades de prevenção especial; e,4-Ter sido excessiva a dosimetria da pena única aplicada pelo Tribunal recorrido que revelou falta de sensibilidade;

 Apreciemos então:

Como resulta do preâmbulo respectivo, o Código Penal traça um sistema punitivo que parte do pensamento fundamental de que as penas devem ser aplicadas com um sentido pedagógico e ressocializador.

Para efeitos da determinação da medida concreta da pena a aplicar ao arguido, dentro da moldura abstracta, importa ter presente a culpa do agente e as exigências de prevenção de futuros crimes, atendendo também a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor do agente ou contra ele - arts.71º nºs 1 e 2 do C.P.

Dos vários factores erigidos por este preceito destaca-se a culpa do agente, pedra angular de todo o direito punitivo e sobre a qual foi dito no Acórdão da Relação de Coimbra de 9/01/85 - C.L.J. Tomo 1, pág.86 - "num direito penal como o vigente, que procura adequar todas as providências penais à personalidade do agente não pode ser descurada a consideração dos motivos.

São eles que dão relevo à culpabilidade e, por conseguinte, entram no juízo complexivo relativo à personalidade moral do delinquente que deve ter-se presente para a determinação concreta da pena, a qual, para ser verdadeiramente retributiva, deve estar numa relação de proporção com a gravidade da culpa".

Na ponderação concreta das penas, tendo em atenção os critérios do art.71º do C.P., cumpre determinar a medida da pena em função das exigências de prevenção de futuros crimes, tendo como limite a culpa do arguido, sem esquecer que a finalidade última da intervenção penal é a reinserção social do delinquente.

O facto é incindível da personalidade do seu autor e a culpa ética não se encontra em oposição com os ditames da defesa da sociedade.

O arguido tem sempre uma posição de indivíduo e outra de membro de certa comunidade (cfr. Acórdão da Relação de Évora, de 21/04/87, in B.M.J. nº367, pág.591).

Como se escreve no Acórdão do S.T.J. de 8/11/95, proferido no processo nº48318 "o limite abaixo do qual a pena não pode descer é o que resulta da aplicação dos princípios de prevenção geral, segundo os quais a pena deve neutralizar o efeito negativo do crime na comunidade e fortalecer o seu sentimento de justiça e de confiança na validade das normas violadas, além de constituir um elemento dissuasor.

A medida da pena tem de corresponder às expectativas da comunidade.

Assim, a medida exacta da pena é a que resulta das regras da prevenção especial.

 É a medida necessária à reintegração do indivíduo na sociedade.

Dirige-se ao próprio condenado para o afastar da delinquência e integra-lo nos princípios dominantes na comunidade".

Tudo, acrescente-se, respeitando sempre o limite da culpa (cfr. entre outros, sobre a defesa da concepção dialéctica dos fins das penas, Claus Roxin, "Derecho Penal, Parte General", Civitas, pág.89, e também Jescheck, Tratado de Derecho Penal, Vol.I, Bosch, pág.113).

São as finalidades relativas de prevenção, geral e especial, que justificam a intervenção do sistema penal e conferem fundamento e sentido às suas reacções específicas.

A prevenção geral, enquanto prevenção positiva ou de integração, como estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias na validade e vigência da norma infringida, assume o primeiro lugar como finalidade da pena.

Por outro lado, o princípio da culpa, acolhido no nosso ordenamento jurídico-penal e cujo fundamento axiológico radica no princípio da inviolabilidade da dignidade pessoal, implica que a culpa seja condição necessária da aplicação da pena e, simultaneamente, que a medida da pena não possa ultrapassar a medida da culpa (cfr. Figueiredo Dias, Direito Penal Português, as Consequências Jurídicas Do Crime, págs.72/73).

Estes princípios encontram expressão no art.40º, nºs 1 e 2 do CP, onde se dispõe que as penas têm como finalidade a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, e não podem em caso algum ultrapassar a medida da culpa.

- O artigo 71º nº 3 do CPP, determina que na sentença são expressamente referidos os fundamentos da medida da pena.

 -O acórdão recorrido, na tese da arguida não obedece à fundamentação necessária imposta por lei, porque em suma não indicou as circunstâncias atenuantes devidas na ponderação das penas  em concreto, não as enumerando sequer.

Ora repete-se, dispõe o art.71º do CP,  que a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção (nº1); na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando nomeadamente: o grau de licitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente (nº2, al.a)); a intensidade do dolo ou da negligência (nº2, al.b)); os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram (nº2, al.c)); as condições pessoais do agente e a sua situação económica (nº2, ald)); a conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime (nº2, al.e)); a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena (nº2, al.f)); na sentença são expressamente referidos os fundamentos da medida da pena (nº3).

Esta operação implica, pois, uma apreciação conjunta de todas estas circunstâncias, sendo também relevante a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização), que naturalmente tenham resultado provadas, através da sua cristalização em factos concretos,  e relativamente às quais o Tribunal do julgamento deverá rastrear,  no sentido por ele entendido, com vista à determinação da medida concreta da pena.

E a forma como esta operação é efectuada deve transparecer claramente no acórdão sem qualquer mácula, atendendo ao dever de fundamentação de todas as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente, dever que decorre do disposto nos artigos 205º, nº1 da CRP e 97º, nº5, do CPP, sendo que relativamente à sentença estabelece a lei um especial dever de fundamentação, pormenorizado no art.374º, nº2, do CPP, e cuja omissão acarreta a nulidade da sentença, passível de arguição e de conhecimento oficioso em sede de recurso, nos termos do art.379º, nºs 1, al. a) e 2 do CPP, devendo os fundamentos da medida concreta da pena ser expressamente referidos na sentença nos termos do nº 3 do art.71º do CP, como já supra referido.

Ora é tal operação que está omissa do acórdão recorrido, como facilmente se pode constatar da sua leitura.

Desta forma e repristinando naquele, ali se escreveu relativamente ao tema “ Da escolha e determinação da medida das penas”:

“In casu, ter-se-á em atenção:

Quanto ao crime de violência doméstica:

a ilicitude do facto que é reduzida a mediana, considerando:

a pluralidade ofensiva da actuação da arguida que atingiu plúrimas dimensões do bem-estar do ofendido, designadamente, física – com empurrões e chapadas –, emocional e psicológica – com as discussões frequentes, a responsabilização pela incapacidade económica, o ir buscar o ofendido a casa da sua mãe e as actuações públicas;

a duração das acções que duraram cerca de 2 (dois) anos;

a pessoa da vítima e o contexto habitacional;

a forte intensidade do dolo – na modalidade de dolo directo – cfr. n.º 1 do artigo 14 do Código Penal;

o comportamento anterior da arguida, com diversas condenações penais, por uma pluralidade de crimes de diferentes naturezas – que resulta claro do último § de fls. 8 do presente acórdão. “Mais especificamente, a apresentação de um estilo de vida parasita, um défice no controlo comportamental, impulsividade, irresponsabilidade e versatilidade criminal”; e

as condições sócio-económicas da arguida.

A tudo isto acrescem as exigências de prevenção geral, porquanto, se trata de infracção que exige uma resposta institucional intensa e eficaz, sobretudo de carácter preventivo.

"Prevenção geral, porém, não como prevenção geral negativa, de intimidação do (…)

A concretização dos dias de prisão far-se-á em função da culpa do agente e das exigências de prevenção: "como limite que é, a medida da culpa serve para determinar um máximo de pena que não poderá em caso algum ser ultrapassado, (...) não para fornecer em última instância a medida da pena: esta dependerá, dentro do limite consentido pela culpa, de considerações de prevenção" - cfr. Figueiredo Dias, Direito Penal Português, Editorial Notícias, 1993, p. 238).

               Considerando o comportamento anterior aos factos, a incipiente integração social e ausência de integração laboral da arguida, a cessação permanente da relação entre a arguida e o ofendido, no que respeita às necessidades de prevenção especial, importa criar na pessoa da arguida a consciência que estes factos jamais deverão voltar a ocorrer.

               Nestes termos e ponderando, em conjunto, os critérios enunciados, entende-se adequado condenar a arguida numa pena concreta, como justa e adequada, de 2 (dois) anos e 2 (dois) meses de prisão, pela prática de um crime de violência doméstica, previsto e punível pelo artigo 152, n.º 1, alínea a) e n.º 2, do Código Penal.

*

Quanto ao crime de homicídio qualificado:

a ilicitude do facto que é mediana a elevada, considerando:

a unidade da conduta – único golpe;

os circunstancialismo e contexto de discussão doméstica entre a arguida e o ofendido, a surpresa, imprevisibilidade da agressão que encontra o ofendido indefeso, sem reacção e capacidade de recuperação;

o nível de agressividade;

a pessoa da vítima e o contexto habitacional;

a forte intensidade do dolo – na modalidade de dolo directo – cfr. n.º 1 do artigo 14 do Código Penal;

o comportamento anterior da arguida, com diversas condenações penais, por uma pluralidade de crimes de diferentes naturezas (aqui se reproduzindo o acima referido); e

as condições sócio-económicas da arguida.

Aqui dá-se por reproduzido o que atrás se mencionou a propósito da prevenção geral, da concretização dos dias de prisão, da incipiente integração social e ausência de integração laboral, no que respeita às necessidades de prevenção especial, importa criar na pessoa da arguida a consciência que estes factos jamais deverão voltar a ocorrer.

Nestes termos e ponderando, em conjunto, os critérios enunciados, entende-se adequado condenar a arguida numa pena concreta, como justa e adequada, de 14 (catorze) anos de prisão, pela prática de um crime de homicídio qualificado, previsto e punível pelos artigos 131 e 132, n.ºs 1 e n.º 2, alínea b), do Código Penal.”

(…)

Era, pois, imprescindível que o tribunal, ao proceder à determinação da medida concreta da pena, tivesse esclarecido a forma como analisou os parâmetros dos critérios contidos na lei e as razões específicas em que assentou a medida da pena, indicando o percurso lógico que seguiu, concretamente quanto às circunstâncias atenuantes, quer agravantes.

É que só a fundamentação dos actos “(…) permite a sindicância da legalidade do acto, por uma parte, e serve para convencer os interessados e os cidadãos em geral acerca da sua correcção e justiça, por outra parte, mas é ainda um importante meio para obrigar a autoridade decidente a ponderar os motivos de facto e de direito da sua decisão, actuando por isso como meio de autodisciplina” – cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, pág.294.

De facto e fazendo a leitura do acórdão no segmento atrás transcrito, de facto não se consegue fazer a destrinça rigorosa (e necessária), entre as circunstâncias agravantes e atenuantes que ao caso cabe, a cada crime e  relativamente à arguida, tanto mais que o acórdão encerra em si um manancial de factos provados resultantes da elaboração dos dois relatórios.

De facto que conclusão tirar quanto às asserções ali vertidas  :- “as condições sócio-económicas da arguida” e “a pessoa da vitima e o contexto habitacional”, presentes no acórdão quer quanto ao crime de  violência doméstica, quer quanto ao de homicídio qualificado  vertidas na ponderação da medida concreta da pena.

Serão estas circunstâncias agravantes ou atenuantes?

-Uma vez que aquelas não estão devidamente concretizadas (aquelas e dizemos nós, e qualquer uma das outras e também de factos apurados e ali não referidos), se bem que com algum esforço se possa fazer a classificação mas sempre de forma subjectiva e consoante o leitor, o acórdão fica opaco, invisível e insidicável portanto, naturalmente na óptica dos destinatários, que não encontram assim a “ratio” do Tribunal Julgador, para a dosimetria encontrada para as penas parcelares, e não cumprindo o disposto no artº 71º do CP.

Com isto não se quer dizer que, forçosamente têm que existir circunstâncias atenuantes, de facto,  poderá haver casos em que as mesmas são inexistentes, mas mesmo assim e em abono da clareza da fundamentação, deverá constar na decisão e expressamente, de que não existem circunstâncias atenuantes (na perspectiva do tribunal) e classificar expressamente também aquelas que são agravantes.

Repare-se que o Tribunal “ a quo” enumerou algumas circunstâncias ( vertidos em factos, alguns deles até de natureza conclusiva ou imperscrutável), mas não as classificou sequer como atenuantes ou agravantes, nem o seu percurso lógico-dedutivo ali transparece, e a sua clara opção pela dosimetria das penas não ficou evidentemente esclarecida ao destinatário da mesma, nem a qualquer outro, estando o acórdão inquinado neste segmento com o vício da nulidade, em clara violação  com o disposto nos artigos cuja omissão acarreta a nulidade da sentença, passível de arguição e de conhecimento oficioso em sede de recurso, nos termos do art.379º, nºs 1, al. a) e 2 do CPP, devendo os fundamentos da medida concreta da pena serem expressamente referidos no acórdão nos termos do nº 3 do art.71º do CP, como já supra referido.

Quanto à pena única:

Poderá assim, concluir-se também que não foi feita uma apreciação em conjunto dos factos com a personalidade do arguido, como determina o artº 77 nº 1 do C.P.P., estando também desde já diga-se inquinada com o vício precedente, e com a  consequência legal, atrás referida, a da nulidade.

No entanto despiciendo não será aduzir que nesta sede (determinação da pena única, e para o futuro), que a exigência de fundamentação não se basta com a utilização de fórmulas tabelares ou conclusivas.

Também na fundamentação da pena única o acórdão resumiu-se, à seguinte expressão:

Ora, ponderada a gravidade dos factos, na sua globalidade, entende-se que se mostra adequada à culpa e às exigências de prevenção geral e especial de socialização do mesmo, a pena única de 14 (catorze) anos e 8 (oito) meses de prisão.

Conforme jurisprudência há muito consolidada, na fixação da pena única aditiva das penas correspondentes aos crimes concorrentes, o tribunal procede a uma reavaliação dos factos em conjunto com a personalidade do arguido (art. 77º, nº1 do CP), o que exige uma especial fundamentação na sentença, também desta pena, a fixar “em função das exigências gerais de culpa e de prevenção”.

A ausência de fundamentação integra, também aqui, a nulidade de sentença prevista no art. 379º, nº2-b) do Código de Processo Penal, o que há muito tem vindo a ser afirmado pelo Supremo Tribunal de Justiça.

Veja-se, por todos, o acórdão STJ de 20.01.2010 (Rel. Sr.Juiz Conselheiro Raul Borges):

“(…) VIII - Perante concurso de crimes e de penas há que atender ao conjunto de todos os factos cometidos pelo arguido, de modo a surpreenderem-se, ou não, conexões entre os diversos comportamentos ajuizados, através duma visão ou imagem global do facto, encarado na sua dimensão e expressão global, tendo em conta o que ressalta do contexto factual narrado e atender ao fio condutor presente na repetição criminosa, procurando estabelecer uma relação desses factos com a personalidade do agente, tendo-se em conta a caracterização desta, com sua projecção nos crimes praticados, há que proceder a uma ponderação da personalidade do agente e correlação desta com os factos ajuizados, a uma análise da função e da interdependência entre os dois elementos do binómio, não sendo despicienda a consideração da natureza dos crimes em causa, da verificação ou não de identidade dos bens jurídicos violados, até porque o modelo acolhido é o de prevenção, de protecção de bens jurídicos. Todo este trabalho de análise global se justifica tendo em vista descortinar e aferir se o conjunto de factos praticados pelo condenado é a expressão de uma tendência criminosa ou se a repetição emerge antes de factores meramente ocasionais.

IX - No que concerne à determinação da pena única deve ter-se em consideração a existência de um critério especial na determinação concreta da pena do concurso, segundo o qual serão considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente, o que obriga a que do teor da sentença conste uma especial fundamentação da medida da pena do concurso.

X - A pena conjunta tenderá a ser uma pena voltada para ajustar a sanção – dentro da moldura formada a partir de concretas penas singulares – à unidade relacional de ilícito e de culpa, fundada na conexão auctoris causa própria do concurso de crimes.

XI - O STJ tem vindo a considerar impor-se um dever especial de fundamentação na elaboração da pena conjunta, não se podendo ficar a decisão cumulatória pelo emprego de fórmulas genéricas, tabelares ou conclusivas, sem reporte a uma efectiva ponderação abrangente da situação global e relacionação das condutas apuradas com a personalidade do agente, seu autor, sob pena de inquinação da decisão com o vício de nulidade, nos termos dos arts. 374.º, n.º 2 e 379.º, n.º 1, als. a), e c), do CPP.

XII - A utilização de fórmulas tabelares, como o “número”, a “natureza”, e a “gravidade”, não são uma “exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto e de direito”, mas expressões vazias de conteúdo e que nada acrescentam de útil. A decisão que se limita a utilizar essas fórmulas tabelares para proceder ao cúmulo jurídico de penas anteriores transitadas em julgado, viola o disposto no n.º 1 do art. 77.º, do CP e n.º 2 do art. 374.º, do CPP e padece da nulidade prevista no art. 379.º, n.º 1, al. a), do CPP.”

-Ao omitir aqui também o acórdão recorrido, tal avaliação, que aliás já estava obviamente inquinada pelo que atrás se deixou expresso, que seria  necessária para operar a dosimetria concreta das penas parcelares “fundamentando a sua escolha”, o tribunal omite pronúncia sobre questão que tinha que apreciar e decidir.

O que determinaria a nulidade da respectiva decisão, nos termos do art.379 do CPP, nulidade que é de conhecimento oficioso e que aqui se declararia para todos os efeitos legais.

( vide supra o AC TRG de 9.01.2017, in www.dgsi.pt)

Concluindo diremos, e face ao que atrás  se expendeu:

Declara-se nulo o acórdão recorrido, no tocante à operação da fundamentação da  medida concreta das penas parcelares, bem como da fundamentação pena única nos termos do disposto nos artigos 379 nº 1 al. a)  e c), com referência ao artigo 374º nº 2, ambos do CPP, determinando-se a feitura de novo acórdão pelo mesmo tribunal e relator que o elaborou, circunscrito à medida concreta das penas parcelares nos termos supra descritos no presente acórdão, como depois da operação da pena única através do cumulo jurídico, nos termos do artº 77º do CP, suprindo por conseguinte os vícios atrás referidos

As nulidades supra detectadas implicam, no entanto, no caso presente,  a devolução dos autos à 1ª instância, para elaboração de novo acórdão pelo mesmo Tribunal  e a fazer pelo mesmo relator, suprindo-se desta forma as nulidades que inquinam o acórdão e sob censura, não podendo proceder-se agora ao seu suprimento, já que os autos não permitem a sua sanação, face à natureza do mesmo.

Com a presente decisão fica prejudicado o conhecimento das outras questões remanescentes invocadas pela arguida no presente recurso.

                           DISPOSITIVO

Em face do exposto acordam as juízas que compõem a 9ª secção criminal do Tribunal da Relação de Lisboa, em:

1.Julgar parcialmente provido o recurso interposto pela arguida e ora recorrente, devidamente identificada nos autos, declarando-se nulo o acórdão recorrido, no tocante à operação da fundamentação da medida concreta das penas parcelares, bem como da fundamentação pena única nos termos do disposto nos artigos 379 nº 1 al. a) e c), com referência ao artigo 374º nº 2, ambos do CPP, determinando-se a feitura de novo acórdão pelo mesmo tribunal e relator que o elaborou, circunscrito à medida concreta das penas parcelares nos termos supra descritos no presente acórdão, como depois da operação da pena única através do cumulo jurídico, nos termos do artº 77º do CP, suprindo por conseguinte os vícios atrás referidos ;

2.Não é devida tributação (artº 513º nº 1/ parte final, do CPP).

Notifique e D.N.

Lisboa, 9 de Março de 2017

(Processado integralmente em computador e revisto pela relatora, artigo 94º nº 2 do Código de Processo Penal/ versos em branco;)

      Filipa Costa Lourenço

      Margarida Vieira de Almeida