Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
31/09.5GCVLP.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA MANUELA PAUPÉRIO
Descritores: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
BEM JURÍDICO PROTEGIDO
Nº do Documento: RP2013010931/09.5GCVLP.P1
Data do Acordão: 01/09/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O bem jurídico tutelado pelo art. 152.º do CP, é plural e complexo, visando, essencialmente, a defesa da integridade pessoal (física e psíquica) e a proteção da dignidade humana no âmbito de uma particular relação interpessoal.
II – Este tipo legal de crime previne e pune condutas perpetradas por quem afirme e atue, dos mais diversos modos, um domínio ou uma subjugação sobre a pessoa da vítima, sobre a sua vida ou (e) sobre a sua honra ou (e) sobre a sua liberdade e a reconduz a uma vivência de medo, de tensão e de subjugação.
III - O crime de violência doméstica não pode ser cometido em reciprocidade.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 31/09.5GCVLP.P1

Acordam, em conferência, na Primeira Secção do Tribunal da Relação do Porto

I)- Relatório

No processo comum singular, com o número acima referido, da Secção única do Tribunal de Valpaços, foram julgados e condenados o arguido B…, pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152º nº 1 alínea a) e 2 do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 4 (quatro) meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período e a arguida, ora recorrente C… em autoria material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152º nº 1 alínea a) e 2 do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 4 (quatro) meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, nos termos do artigo 53º do Código Penal e à condição de (1) proceder ao pagamento ao demandante, no prazo de 6 (seis) meses, da indemnização em que vai condenada, nos termos do artigo 51º nº 1 alínea a) do Código Penal;
Foi ainda julgado totalmente procedente, por totalmente provado, o pedido de indemnização civil formulado pelo demandante B… e, em consequência, condenada a demandada C… a pagar-lhe a quantia de 2.000,00 € (dois mil euros), a título de indemnização pelos danos de natureza não patrimonial sofridos, acrescida de juros de mora, à taxa legal sofre a requerida quantia desde a presente decisão e até efetivo e integral pagamento.

Não se conformando com a decisão proferida vem a arguida C… interpor recurso, alegando o que consta de folhas 418 a 425 e que condensa nas conclusões seguintes:
1. A recorrente não tem antecedentes criminais, é economicamente débil, visto ter apoio judiciário e o relatório social pedido à Reinserção Social, exaustivo e completo, isso deve demonstrar,
2. Os alegados insultos e proferidos contra o ex-marido, são quase costumeiros em discussões do género em Trás-os-Montes, não podem ser levados á letra” e foram ditos debaixo dum ambiente familiar terrível, duradouro, em que ambos foram ‘ obrigados a coabitar forçosamente” durante vários anos na mesma casa e debaixo do mesmo tecto... um autêntico barril de pólvora... para nós, e para o cidadão comum. Ainda hoje totalmente incompreensível...
3. O facto alegadamente provado, de a recorrente lhe ter dado ao ex- marido, no calor de alguma discussão, é insignificante, pois não se consta que provocasse grande dano ou sofrimento, e NEM UMA VASSOURA E UM MEIO IDONEO DE AGRESSÃO, mas antes um mero utensílio de limpeza
4. Já se revelaram de muita mais agressividade e intensidade de dolo e dano, além dos insultos feitos à ex-esposa, AS FACADAS, que foram desferidas, contra a recorrente e contra o seu filho, dentro de casa pelo seu ex-marido B…, dado este provado em Tribunal, pela recorrente e pelo próprio filho D…
5. Não obstante, e a nosso ver inexplicavelmente, salvo mais douto entendimento, o Tribunal aplicou ao, neste caso, agressor B…, a mesma moldura pena, embora a arma do crime fosse uma FACA (arma branca) e até lhe fosse retirada e levada pela própria GNR, julgando-se estar á ordem do Tribunal Judicial de Valpaços
6. Mais perplexidade na causa, o facto de ainda ser atribuído ao ex-marido B…, uma valiosa indemnização de 2.000,00 (dois mil Euros), com pagamento limite dentro de escassos meses, satisfazendo na totalidade o montante pedido, no Pedido de Indemnização do seu advogado.
7. Refira-se que a recorrente C…, para conseguir manter-se e continuar a habitar a casa onde vive ela e o filho, - seu único reduto - na aldeia de …, no concelho de Valpaços por recente despacho judicial deste Tribunal já encontra completamente sobrecarregada e “ afogada”, pois terá que arranjar mais 25.000,00 Euros, com pagamento limite, dentro de escassos meses como pagamento ao mesmo referido B…, da parte da casa que lhe pertencia
8. Estas e as demais e fortes razões de sobra, antes articuladas, mostram bem, salvo mais douto entendimento, a HUMANIDADE, ESPÍRITO E JUSTIÇA E SENSATEZ, que se revela crucial, de modo a DIMINUIR SUBSTANCIALMENTE A MEDIDA DA PENA APLICADA ATENUAR OS SEUS EFEITOS DESVASTADORES (art. 72° n° 2 a) do CP), tendo sempre presente que a RECORRENTE, por toda esta situação constante de sofrimento continuado, CONTRAIU UMA PROFUNDA DEPRESSÃO, SEM CURA PREVISÍVEL ASSEGURADA... mas continua corajosamente a trabalhar. VARRENDO AS RUAS DE …, para acudir à subsistência e do seu filho. “

A este recurso não respondeu o Ministério Público junto da primeira instância apenas o fez o co-arguido e demandante civil B…, nos termos que constam de fls. 428 a 430 dos autos, pugnando pela manutenção da decisão proferida.
Nesta Relação o Senhor Procurador Geral Adjunto emitiu douto parecer nos termos que constam de folhas 441 a 449 dos autos concluindo pela absolvição da arguida do crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152º número 1 alínea a) e 2 do Código Penal e nos termos gizados no Parecer seja declarada extinto o procedimento criminal quanto aos três crimes de injúria, da previsão do artigo 181º do Código Penal que a fatualidade provada configura; tendo em vista os dois crimes de ofensas à integridade física simples, previsto e punido pelo artigo 143º número 1 do Código Penal, que os factos provados integram, seja o processo devolvido à 1º instância para que, reaberta a audiência, seja dado, ali cumprimento ao estatuído no artigo 358º números 1 e 3 do Código de Processo Penal e realizadas as diligências tidas por pertinentes, com vista à prolação de nova sentença.
Caso se entenda confirmar a sentença impugnada – seja no que se refere à decisão sobre a matéria de facto seja quanto à qualificação jurídica dos mesmos como crime de violência doméstica, da previsão do artigo 152º número 1 alínea a) e número 2 do Código Penal, - entende que será de suprimir a condição económica a que se encontra sujeita a suspensão da execução da pena.

Cumprido o disposto no artigo 417º nº 2, do C.P. Penal, nada veio a ser acrescentado nos autos.

Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos a conferência.

II- Fundamentação:
O tribunal considerou provados e não provados os factos seguintes: (transcrição)
“No dia 16 de Maio de 2009, pelas 22h50, C…, encontrava-se na sua residência, sita na Rua …, nº., …, nesta cidade, onde habita juntamente com o seu ex-marido, o arguido B… e o filho de ambos, D… de 20 anos de idade.
O arguido e a sua ex-mulher C…, iniciaram uma discussão, de repente, o arguido munido de uma faca de cozinha atingiu a C…, no braço direito, entretanto, o filho D…, surgiu no local, aproximando-se dos pais, a fim de tentar por termo ao conflito, tendo o arguido atingido também o D…, com a faca de cozinha que segurava.
Da conduta do arguido resultou ao ofendido D…, no braço esquerdo, ferida linear suturada com três pontos, medindo três centímetros no espaço inter digital do 1º e 2º dedo da região dorsal da mão. Ferida linear superficial na parte distal do bordo externo do falange dista do 3º dedo, medindo um centímetro.
Lesões terão resultado de traumatismo de natureza cortante, as quais demandaram 10 dias para a cura, sem afectação da capacidade de trabalho geral e profissional.
A conduta do arguido provocou ainda a C…, pequena ferida no membro superior, linear superficial, na base palmar do 1º dedo da mão esquerda, de direcção transversal, medindo um centímetro.
As quais, resultaram de traumatismo de natureza cortante e demandaram oito dias para a cura, sem afectação da capacidade geral e profissional.
No dia 16 de Janeiro de 2010, cerca das 12 horas, na residência sita na Rua …, nº ., em …, nesta cidade, a arguida C…, quando B… lavava a louça na cozinha, aproximou-se deste e atingiu-o nas costa com uma vassoura de que estava munida e dirigiu-lhe as expressões” Filho da puta, corno, lavaduras, o teu filho tem nojo de ti porque cheiras mal”.
Nesse mesmo dia, 16.01.2010, pelas 23h30, o arguido, quando a sua ex-mulher C…, se encontrava deitada na cama, na casa onde residem, em …, nesta cidade, dirigiu-se a esta e apodou-a de “ Puta, ladra, choqueira e porca”, esta levantou-se e foi para a cozinha, local onde o arguido a tentou atingir com um prato na cabeça.
De seguida, o arguido ainda tentou novamente atingir C… com um pau, num pátio onde esta se encontrava, só não o tendo feito, em virtude do filho de ambos, de nome D…, ter impedido.
No dia 18 de Janeiro de 2010, cerca das 08h45, a arguida dirigiu a B… as expressões “Filho da puta, corno e lavaduras”.
No dia 03 de Junho de 2010, pelas 13H30, B… estava deitado na cama da casa onde reside, com a arguida C…, sua ex-mulher, esta entrou no quarto e atingiu o mesmo com murros na cara e pontapés no corpo, apodando-o de “ Chulo”.
Situação esta que terminou com a intervenção do filho D….
O arguido B… agiu com o propósito concretizado de maltratar C… e D…, sua ex-mulher e seu filho, atingindo-os nos seus corpos, saúde física e mental, querendo causar-lhes lesões, dores, incómodos e perturbação psicológica, humilhação e ofender C… na sua honra e consideração e provocando-lhe medo, por sentir que o arguido a possa atingir ou atentar contra a sua vida, o que representou.
Com a conduta descrita a arguida C…, quis atingir física e psicologicamente B…, provocando-lhe abalo físico e psíquico e ofende-lo na sua honra e consideração.
Agiram os arguidos livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas eram e são proibidas e punidas por lei.
Condições sócio-económicas e antecedentes criminais
Os arguidos estão divorciados.
O arguido B… vive sozinho, de uma pensão de reforma de 300,00€.
Vive com a ajuda de um irmão.
Nada consta no seu certificado de registo criminal.
A arguida C… vive com o filho D….
Recebe 500,00€ da Câmara Municipal … pela actividade de limpeza das ruas.
Nada consta no seu certificado de registo criminal.
Do pedido de indemnização civil
O arguido viveu debaixo de uma pressão psicológica.
O arguido sofre física e psiquicamente.
Sofreu dores dos murros e pontapés que a demandada C… lhe deu em Janeiro de 2010.
O arguido sente-se envergonhado, triste e revoltado perante os seus concidadãos.
Andou sobressaltado e não comeu nem dormiu descansado.
*
B. Factos não provados:
Inexistem factos não provados, com relevo para a decisão da causa, não se consideram provados os seguintes factos:
*
Fundamentou a sua convicção pela forma seguinte (transcrição):
O Tribunal formou a sua convicção sobre a factualidade acima apurada com base no conjunto da prova produzida em audiência de julgamento e criticamente analisada, do modo que se passa a expor.
Assim, o Tribunal conjugou as declarações de ambos os arguidos, naturalmente que tentando omitir os factos de que estão acusados, mas parecendo sérios e concretizados os episódios que relataram em que foram vítimas.
Desde logo, o arguido B… explicou que, no dia 16 de Janeiro de 2010, cerca das 12 horas, na residência de ambos, sita na Rua …, nº ., em …, a arguida C…, quando lavava a louça na cozinha, aproximou-se deste e atingiu-o nas costas com uma vassoura de que estava munida e dirigiu-lhe as expressões “Filho da puta, corno, lavaduras, o teu filho tem nojo de ti porque cheiras mal”. Mais referiu que no dia 18 de Janeiro de 2010, cerca das 08h45, a arguida dirigiu–lhe as seguintes expressões “ Filho da puta, corno e lavaduras”.
Acrescentou que, no dia 03 de Junho de 2010, pelas 13h30, B… estava deitado na cama da casa onde reside, com a arguida C…, sua ex-mulher, esta entrou no quarto e atingiu o mesmo com murros na cara e pontapés no corpo, apodando-o de “ Chulo”, situação esta que terminou com a intervenção do filho D….
Por fim, de forma séria e notória, referiu que viveu sempre num mau ambiente provocado pela arguida C…, a qual o insultava e o afrontava permanentemente.
A arguida C… concretizou, coincidindo tal versão com a apresentada pela testemunha D…, filho de ambos, que, no dia 16 de Maio de 2009, pelas 22h50, encontrava-se na sua residência, sita na Rua …, nº., …, onde habitava juntamente com o seu ex-marido, o arguido B… e o filho de ambos, D… de 20 anos de idade e iniciou uma discussão sendo que o arguido munido de uma faca de cozinha atingiu a arguida C…, no braço direito. Entretanto, o filho D…, surgiu no local, aproximando-se dos pais, a fim de tentar por termo ao conflito, tendo o arguido atingido também o D.., com a faca de cozinha que segurava. Tal situação foi contextualizada de forma séria e compatível comas regras da experiência comum pelo arguido B…, designadamente referindo que se tentava esquivar a eventuais agressões da arguida C… e do seu filho que se lançaram sobre si.
Deu-se como provado que a conduta do arguido resultou ao ofendido D…, no braço esquerdo, ferida linear suturada com três pontos, medindo três centímetros no espaço inter digital do 1º e 2º dedo da região dorsal da mão e ferida linear superficial na parte distal do bordo externo do falange dista do 3º dedo, medindo um centímetro, lesões que demandaram 10 dias para a cura, sem afectação da capacidade de trabalho geral e profissional, nos termos do relatório médico-legal de fls. 10 a 12, apreciado em conjugação com os demais factos dados por provados.
De igual sorte, deu-se como provado, de acordo com o relatório médico-legal de fls. 14-16 e as declarações e depoimento da testemunha D…, que a conduta do arguido provocou ainda a C…, pequena ferida no membro superior, linear superficial, na base palmar do 1º dedo da mão esquerda, de direcção transversal, medindo um centímetro, as quais demandaram oito dias para a cura, sem afectação da capacidade geral e profissional,
Mais se considerou o depoimento de D…, o qual se afigurou isento e imparcial, referindo que ambos os arguidos têm responsabilidade e a mesma é igual, pois ambos se insultavam e ameaçavam. Concretizou que nesse mesmo dia, 16.01.2010, pelas 23h30, o arguido, quando a sua mãe C…, se encontrava deitada na cama, na casa onde residem, em …, nesta cidade, dirigiu-se a esta e apodou-a de “ Puta, ladra, choqueira e porca”, esta levantou-se e foi para a cozinha, local onde o arguido a tentou atingir com um prato na cabeça. De seguida, o arguido ainda tentou novamente atingir C… com um pau, num pátio onde esta se encontrava, só não o tendo feito, em virtude de se ter colocado a meio.
Também referiu ser verdade que a arguida C… sua mãe, se dirigiu ao pai, aqui arguido B… e o atingiu-o nas costas com uma vassoura de que estava munida e dirigiu-lhe as expressões “Filho da puta, corno, lavaduras, o teu filho tem nojo de ti porque cheiras mal”. Mais referiu que no dia 18 de Janeiro de 2010, cerca das 08h45, a arguida dirigiu-lhe as seguintes expressões “ Filho da puta, corno e lavaduras”.
Confirmou também que, no dia 03 de Junho de 2010, pelas 13h30, B… estava deitado na cama da casa onde reside, com a arguida C…, sua ex-mulher, esta entrou no quarto e atingiu o mesmo com murros na cara e pontapés no corpo, apodando-o de “Chulo”, situação esta que terminou com sua intervenção.
Esta testemunha contextualizou o ambiente em casa, como sendo mau, em virtude de ambos os arguidos quererem ficar com a casa de habitação.
E… de forma igualmente séria e credível referiu que viu um dia, por volta das 23h00, o D… com um pau, no exterior da habitação dos arguidos, e a gesticular ao que lhe disse para ter cuidado que era seu pai.
F… acompanhava a testemunha E… conseguiu circunstanciar o episódio como tendo ocorrido há cerca de 2 anos, por volta de Janeiro, ouvindo a arguida a dirigir-se ao arguido em voz alta. “Não posso olhar mais para a cara deste filho da puta”. Mais referiu que o D…, filho de ambos os arguidos, tinha um cabo de aço que dissera que era para bater ao pai quando fosse necessário, o que faz dar como provado o facto enunciado em 11), em conjugação com as declarações do arguido B….
G…, irmão do arguido, vivendo muito de perto toda a situação, uma vez que era com ele que o arguido desabafava, conseguiu, de forma exemplar explicar que o irmão é uma pessoa triste e que sofre muito por ser maltratado, nunca tendo tido bom ambiente em casa, estando sob uma pressão psicológica que o fazia sofrer física e psiquicamente, sofrendo dores dos murros e pontapés que a demandada C… lhe deu em Janeiro de 2010, envergonhado, triste e revoltado perante os seus concidadãos, andando sobressaltado e não comendo nem dormindo descansado. Mais referiu que ele próprio não dormia descansado pois estava sempre na expectativa de receber um telefonema do irmão a pedir ajuda.
Tal situação foi igualmente relatada por H… que, sendo amigo do arguido há muitos anos, nota que está “acabado”, triste e amargurado com toda a situação, tendo-lhe relatado episódios que se passavam e que o faziam angustiar e viver em constante sobressalto.
Da análise crítica destes dois depoimentos resultaram provados os factos enunciados de 24) a 28), no que ao pedido de indemnização civil diz respeito.
Note-se que este tipo de crime ocorre sobretudo no recato do lar, onde é extremamente raro existir outras testemunhas que não os próprios familiares (agressor, vítima e filhos quando não o sejam também), facto pelo qual há-de ser dada, nestes processos, uma especial atenção aos relatos produzidos quer por quem é vítima como por aqueles que percepcionam os factos, não obstante a relação familiar, profissional ou de mera vizinhança que os une. Desde que, obviamente, sejam prestados de forma credível e isenta, como foi o caso.
Assim, a credibilidade que o Tribunal deu aos depoimentos prestados foi resultado da aplicação da espontaneidade, coerência e verosimilhança oferecidas, tendo sido apreciada no seu conjunto a prova produzida, por referência aos princípios que estruturam a formação da convicção do julgador.
No que respeita às condições sociais, económicas e familiares dos arguidos, consideraram-se as suas próprias declarações, as quais se afiguraram sérias e desinteressadas, neste aspecto, em conjugação com os relatórios sociais elaborado pela DGRS e juntos aos autos.
A inexistência de antecedentes criminais do arguido mostra-se comprovada com base no teor dos CRCs junto aos autos, a fls. 358-359.

III) Apreciando e decidindo:
No caso vertente pese embora a recorrente refira interpor recurso da matéria de facto assente e do direito aplicado, o certo é que apenas recorre de direito. Com feito não coloca em causa a matéria provada respeitante aos impropérios que dirigiu ao seu ex-cônjuge, vindo antes dizer que as palavras e expressões usadas são costumeiras na zona onde residem. Alega ainda que eles foram proferidos no calor da uma discussão. Também não coloca em causa que tenha sido dado como provado que a arguida desferiu com uma vassoura uma pancada no seu ex-cônjuge, apenas afirma que a vassoura não é meio idóneo de agressão. A recorrente contrapõe a este seu comportamento o do ex-cônjuge para a sua pessoa, concluindo que este é bastante mais censurável.
Ou seja, não são os factos provados que questiona, antes a consequência jurídica que deles foi retirada.
E, para atalhar razões, desde já dizemos que, as palavras e expressões que a arguida dirigiu ao seu ex-cônjuge e que constam dos factos provadas, (mesmo que sejam costumeiras na zona em que ambos (arguida e seu ex-cônjuge) residem, expressões como: «filho da puta» «corno», «chulo» são apodos que perante o seu inequívoco significado são objetivamente atentórios da honra e consideração devidas a qualquer pessoa e, portanto, também ao seu ex-cônjuge e, mesmo que ditos no calor de uma discussão, a arguida sabia que desta forma atentava como atentou contra a honra e consideração que lhe eram devidas, resultado esse que previu e quis. Como também quis ofender, como ofendeu, o corpo do seu ex-cônjuge quando, com uma vassoura, o atingiu nas costas, inexistindo qualquer inadequação do meio quanto ao fim pretendido.
Cremos não ser este, porém, o cerne do recurso, ainda que, quer as motivações apresentadas, quer as conclusões que as sintetiza, evidenciem mais emoção que objetividade jurídica.
São, contudo, percetíveis os fundamentos do recurso, a saber; a não concordância com a condenação sofrida pelo crime de violência doméstica, que entende não ter praticado e que os factos provados não suportam.
Vejamos: a realidade que a sentença recorrida evidencia, e que a audição da prova gravada, de modo ainda mais impreciso demonstra, é uma situação de patente conflito entre duas pessoas que, tendo sido casados durante vários anos (tendo filhos em conjunto) depois se divorciam, ficando ambos forçados a conviver na mesmo casa, num ambiente de tensão e de conflitualidade.
Este conflito revela-se nos seguintes factos assentes:
No dia 16 de Maio de 2009 o arguido B… e a arguida C…, no interior da sua residência iniciam, uma discussão – vindo aquele a atingir, com uma faca que tinha na mão, o filho de ambos que se intrometeu tentando por termo à discussão (factos 1 a 6);
No dia 16 de Janeiro de 2010, estando o arguido a lavar a louça a arguida dirigiu-se-lhe, atingiu-o nas costas com a vassoura e dirige-lhe as expressões «filho da puta, corno, lavaduras, o teu filho tem nojo de ti porque cheiras mal» (facto 7);
Nesse mesmo dia mas pelas 23:30 o arguido dirige à arguida as expressões seguintes: «puta, ladra, choqueira e porca» e tenta agredi-la (factos 8 a 10)
No dia 18 de Janeiro de 2010 a arguida dirigiu ao seu ex-cônjuge «filho da puta e lavaduras»
No dia 3 de Junho de 2010 a arguida entrou no quarto em que estava o arguido, atingiu-o com murros e pontapés e chama-lhe «chulo».
Ciente da reciprocidade dos comportamentos ilícitos de ambos os arguidos, a sentença proferida, pretendendo ser salomónica, condenou os dois pelo crime de violência doméstica, e em igual pena de prisão (2 anos e 4 meses) suspensa na sua execução.
Logo aqui nos debatemos com uma perplexidade. Será que pode haver crime de violência doméstica cometido por ambos os cônjuges reciprocamente?
Esta questão não tem subjacente qualquer dúvida acerca de poder qualquer um dos cônjuges – homem ou mulher – ser vítima deste tipo de crime. À primeira vista até pode parecer que sim, que nada obsta a essa reciprocidade.
Mas atentemos, com mais cuidado, no que se encontra consagrado no artigo 152º do Código Pena que sob a epígrafe de violência doméstica estatui:
1 — Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais:
a) Ao cônjuge ou ex-cônjuge;
b) A pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação;
c) A progenitor de descendente comum em 1.º grau; ou
d) A pessoa particularmente indefesa, em razão de idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que com ele coabite;
é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.
2 — No caso previsto no número anterior, se o agente praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima é punido com pena de prisão de dois a cinco anos.
3 — Se dos factos previstos no n.º 1 resultar:
a) Ofensa à integridade física grave, o agente é punido com pena de prisão de dois a oito anos;
b) A morte, o agente é punido com pena de prisão de três a dez anos.
4 — Nos casos previstos nos números anteriores, podem ser aplicadas ao arguido as penas acessórias de proibição de contacto com a vítima e de proibição de uso e porte de armas, pelo período de seis meses a cinco anos, e de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica.
5 — A pena acessória de proibição de contacto com a vítima pode incluir o afastamento da residência ou do local de trabalho desta e o seu cumprimento pode ser fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância.
6 — Quem for condenado por crime previsto neste artigo pode, atenta a concreta gravidade do facto e a sua conexão com a função exercida pelo agente, ser inibido do exercício do poder paternal, da tutela ou da curatela por um período de um a dez anos.”
Na formulação deste tipo legal criminalizam-se comportamentos que configurem maus tratos, conceito lato e abrangente, que pode ser integrado quer por agressões físicas ou psíquicas, incluindo-se neles os castigos corporais, privações de liberdade e ofensas sexuais.
Se atentarmos na génese do preceito (inicialmente configurado como crime de maus tratos) e na evolução que, ao longo do tempo, ele foi sofrendo, concluiu-se que começa por ser pensado para acorrer sobretudo a situações de violência de género - de violência sobre mulheres –. A intenção do legislador era a de, por essa via, protege o elemento mais fraco, mais dependente, mais vulnerável do casal. Claramente revelador a epígrafe do 152º do Código Penal, na versão do D/L 48/95 “Maus tratos ou sobrecarga de menores, de incapazes ou do cônjuge”. Pela própria inserção da proteção do cônjuge no mesmo tipo legal onde se fala da criminalização de condutas tidas sobre menor, incapaz, ou pessoa diminuída em razão da idade, doença ou deficiência, percebe-se que o legislador está a pensar na proteção do elemento que, na relação conjugal, se encontra mais desprotegido e vulnerável e este era a mulher.
Desproteção e vulnerabilidade que advinham do modo como, ao longo de muito tempo, as mulheres foram vistas e (des)consideradas na sociedade e ao papel que nela lhes cabia desempenhar.
Numa muito breve resenha histórica, nas nossas ordenações Afonsinas permitia-se ao homem castigar de modo “moderado” a mulher, sujeitá-la a cárcere privado e matá-la em caso de adultério.
O Código Civil de 1867 impunha, à mulher, o dever de obediência ao marido a quem competia dirigi-la (artigo 1185º). A subalternidade da mulher relativamente ao seu marido mantiveram-se nas normas constantes do Código Civil de 1966 e só foram alteradas pela reforma de 1977.
O Código Penal então vigente, congruentemente, não previa qualquer ilícito no tocante a eventuais condutas de maus tratos conjugais, ao invés, previa um diferente enquadramento jurídico-penal entre o adultério do marido ou da mulher (artigos 401º e 404º) e legitimava o exercício do poder do marido ao permitir-lhe o acesso à sua correspondência (artigo 61º §1º).
Só após a Revolução de 1975 as mulheres conseguiram ver reconhecida a igualdade de tratamento social, p. ex. acabando com a proibição do seu acesso a determinadas profissões e alterar o paradigma das relações familiares, reclamando a consagração de relações de paridade neste domínio. Assim, o Decreto Lei nº 496/77 de 25 de Novembro, que entrou em vigor em 1 de Abril de 1978, introduziu no Código Civil profundas modificações com o objetivo, entre outros, de reconhecer à mulher casada a plena igualdade com o marido, como aplicação do princípio mais geral de não discriminação em função do sexo.
Contudo, apenas em 1982, com a publicação do “ Novo Código Penal” se previu e puniu, pela primeira vez em Portugal o crime de maus tratos conjugais - artigo 153º -, sob a epígrafe “ crime de maus tratos ou sobrecarga de menores e de subordinados ou entre cônjuges” aqui ainda circunscritos aos maus tratos físicos. Este crime tinha natureza pública e era punido com pena de 6 meses a 3 anos de prisão e multa até 100 dias.
Este normativo veio a ser alvo de várias alterações:
Pela Lei 48/95 de 15 de Março, passando agora a contemplar no comportamento punível também os maus tratos psíquicos e alargou a incriminação a quem vivesse em condições análogas às dos cônjuges. Alterou a moldura penal para prisão de 1 a 5 anos e conferiu-lhe natureza particular, fazendo-o depender de queixa.
Depois a Lei 65/98 de 2 de Setembro que mantendo, na essencialidade, o tipo legal, veio torná-lo quase público, uma vez que dava ao Ministério Público a possibilidade de iniciar o procedimento criminal sempre que entendesse que o interesse da vítima o reclamava mas fazendo depender o prosseguimento do processo da não oposição por parte daquela.
Posteriormente, a Lei 7/00 de 27 de Maio alarga a incriminação ao progenitor do descendente comum, atribuiu ao crime natureza pública e acrescenta à pena principal uma pena acessória – proibição de contactos - podendo mesmo haver afastamento da residência.
Por último o preceito que acima se transcreveu resulta da alteração introduzida pela Lei 59/2007 de 04/09, no qual se alarga o âmbito da incriminação a novas realidades familiares e de conjugalidade que socialmente se foram estabilizando, revelando o legislador estar atento às novas configurações de «famílias» socialmente existentes.
Neste preceito passa a consagrar-se expressamente, o que a jurisprudência e a doutrina já vinham entendendo; que não é necessária a reiteração para integrar o conceito de «maus tratos».
De relevo também a consagração expressa do crime de violência doméstica, passando os maus tratos e a violação das regras de segurança a constar de dois outros normativos legais (artigos 152ºA e 152ºB).
Como decorre do que acabamos de dizer se o preceito surgiu no dealbar da luta das mulheres e era a decorrência lógica do princípio da igualdade que Constituição da República Portuguesa de 1976 consagrara no seu artigo 13º:
«1- Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei.
2. Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica ou condição social.», com o devir social ele foi sendo aplicado a outras realidades e hoje ninguém questiona que, nas relações familiares, já não pode ser vista sempre a mulher como o elo mais fraco, nem o mais vulnerável, até porque existem relações de conjugalidade que as excluem.
A diversidade de condutas que podem integrar este crime e a variedade relações interpessoais que, no mesmo, se encontram elencadas, dificultam a limitação do concreto bem jurídico que com nele se visa proteger.
Inserido este preceito legal no capítulo III “ Dos crimes contra a integridade física”, no âmbito dos crimes contra as pessoas, sabemos bem que o bem jurídico que com ele se visa proteger não é apenas a integridade física, pois o próprio artigo alude a que é punido quem «infligir maus tratos» físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais. Pode configurar-se como maus tratos psicológicos, as ofensas verbais ou os insultos, mas também a indiferença constante, a desconsideração pessoal, o vexame, sendo que, todas estas acções ou omissões, têm de ser particularmente graves, quer porque constantes ou reiteradas, traduzindo um padrão comportamental, quer porque particularmente intensas ou desvaliosas, prescindo-se então dessa reiteração.
O tipo legal constante do artigo 152º do Código Penal, que cobre ações típicas semelhantes àquelas que se acham já prevenidas noutros tipos legais (artigos 143º - ofensas à integridade física, 183º injúrias, 163º coação sexual), não pode ser visto como reconduzindo-se à punição de um qualquer somatório de comportamentos deste tipo ocorridos entre pessoas que, a ligá-las, tenham, ou tenham tido, uma qualquer relação de proximidade familiar ou afetiva; o seu fundamento deve ser encontrado na proteção de quem, no âmbito de uma concreta relação interpessoal - conjugal ou não – vê a sua integridade pessoal, liberdade e segurança ameaçadas com tais condutas.
Pese embora a maior parte dos casos de crimes de violência doméstica, ocorram no âmbito da vivência conjugal – formal ou de facto – a atual redação do preceito, ao alargar o âmbito da incriminação ao ex-cônjuge e ao prescindir mesmo da coabitação, coloca agora mais o enfoque na situação relacional existente entre agressor e vítima.
Assim este tipo legal previne e pune condutas perpetradas por quem afirme e atue, dos mais diversos modos, um domínio, uma subjugação, sobre a pessoa da vítima, sobre a sua vida ou (e) sobre a sua honra ou (e) sobre a sua liberdade e que a reconduz a uma vivência de medo, de tensão, de subjugação.
Este é, segundo cremos, o verdadeiro traço distintivo deste crime relativamente aos demais onde igualmente se protege a integridade física, a honra ou a liberdade sexual.
O bem jurídico tutelado pela incriminação, assim caraterizado, é plural e complexo, visando essencialmente a defesa da integridade pessoal (física e psicológica) e a proteção da dignidade humana no âmbito de uma particular relação interpessoal.
Desta mesma forma ele se encontra caraterizado por André Lamas Leite,[1], quando refere que o mesmo tem como fim o “(…) asseguramento das condições de livre desenvolvimento da personalidade de um indivíduo no âmbito de uma relação interpessoal próxima de tipo familiar ou análogo (…)” sendo este bem jurídico multímodo “(…) uma concretização do direito fundamental (artigo 25º da C.R.P.) mas também do direito ao livre desenvolvimento da personalidade (artigo 26º da C.R.P.), nas dimensões não recobertas pelo artigo 25º da Lei Fundamental, ambos emanações diretas do princípio da dignidade da pessoa humana.
(…) A degradação, centrada na pessoa do ofendido, desses valores jurídico constitucionais deve ser a pergunta operatória no distinguo entre o crime de violência doméstica e todos os outros que, por via do designado concurso legal, com ele se relacionam
Entre muitos outros, cremos particularmente feliz a síntese contida no sumário do Acórdão desta Relação do seguinte teor: “No ilícito de violência doméstica é objetivo da lei assegurar uma ‘tutela especial e reforçada’ da vítima perante situações de violência desenvolvida no seio da vida familiar ou doméstica que, pelo seu caráter violento ou pela sua configuração global de desrespeito pela pessoa da vítima ou de desejo de prevalência de dominação sobre a mesma, evidenciem um estado de degradação, enfraquecimento ou aviltamento da dignidade pessoal quanto de perigo ou de ameaça de prejuízo sério para a saúde e para o bem-estar físico e psíquico da vítima. (sublinhado nosso)
Daqui sobressai o que cremos essencial para a caraterização do crime de violência doméstica, que se evidencia da sua génese e evolução; a existência de uma vítima e de um vitimador, este numa posição de evidente dominação e prevalência sobre a pessoa daquela.
Aqui chegados para aportarmos à resposta à nossa perplexidade inicial e à conclusão de que assim caraterizado, o crime de violência doméstica não pode ser cometido com reciprocidade.
Evidentemente que pode haver casos em que um dos agentes cometa o crime de violência doméstica e o outro cometa qualquer outro crime – de ofensas corporais, de ameaças, de injúrias – desde que estes sejam praticados em condições que afastem o funcionamento de qualquer causa de exclusão da ilicitude ou da culpa.
Ou podemos depararmo-nos com situações, como a que estamos a apreciar, em que duas pessoas ligadas por particulares relações interpessoais, discutem, se insultam e agridem, reações resultantes de uma concreta e determinada situação vivencial de tensão e conflito, sendo os seus comportamentos equivalentes do ponto de vista da censurabilidade, não se alcançando qualquer posição de domínio de um sobre o outro, não se identificando, nem distinguindo um como vítima e o outro como agressor.
As situações provadas que constam da decisão recorrida não têm um padrão de frequência nem intensidade desvaliosa, para se poderem enquadrar num modelo de comportamento que se inscreva na previsão do tipo legal de violência doméstica.
Assim, pelas razões que se aduziram, para se concluir, que os factos assentes, perpetrados pela arguida, aqui recorrente, não se enquadram na previsão do artigo 152º do Código Penal. Antes, as palavras e expressões que dirigiu ao seu ex cônjuge nos dias 16, 18 de Janeiro e 3 de Junho de 2010, por serem, como já acima se disse, objetiva e subjetivamente atentatórias da sua honra e consideração, o que a arguida sabia, querendo, portanto, com elas ofendê-lo, inserem-se antes na previsão do artigo 181º do Código Penal, preenchendo o cometimento de três crimes de injúrias.
Porém, conforme se encontra consagrado no artigo 188º do mesmo diploma legal, o procedimento criminal por este tipo de crime depende de acusação particular, que inexiste, no caso. Assim sendo, por falta deste pressuposto processual, declara-se, nesta parte, extinto o procedimento criminal.
Resultou ainda provado que a arguida, no dia 16 de Janeiro de 2010, vibrou, com uma vassoura, uma pancada nas costas do seu ex-cônjuge e que, no dia 3 de Junho de 2010 no quarto em que aquele se encontrava, o atingiu com murros e pontapés, condutas que configuram sem qualquer dúvida ofensas à integridade física.
A lei prevê, no seu artigo 145º números 1 alínea a) e 2 por referência ao preceituado no nº 2 do artigo 132º ambos do Código Penal, como ofensa à integridade física qualificada, a que for praticada contra o ex cônjuge. Mas consabidamente esta qualificativa não é de funcionamento automático, dependendo sempre da prova de que a ofensa foi produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade do agente, ou seja, temos de ter a prova de que as ofensas foram praticadas por forma que revelem uma maior culpa do agente ou uma ilicitude mais acentuada, sendo apenas “suscétivel” de o relevar quando são cometidas contra algumas das pessoas que constam elencadas na alínea b) do citado artigo 132º do Código Penal.
De tudo o que acima dissemos já, decorre necessariamente a conclusão de que não foram, estas ofensas à integridade física, cometidas em circunstâncias reveladoras dessa culpa mais acentuadas ou dessa mais intensa ilicitude, pelo que, os factos praticados pela arguida, integram outrossim, o cometimento de dois crimes de ofensas à integridade física, previsto e punido, cada um deles, pelo disposto no artigo 143º do Código Penal.
Aqui chegados, o único ponto de divergência relativamente ao que consta do Parecer do Digno Procurador-Geral Adjunto, respeita à solução processual a adotar face à conclusão a que aportamos.
Sendo diverso o tipo legal no qual se enquadra a conduta da arguida, será que deve o processo baixar à primeira instância para aí ser dado cumprimento ao preceituado no artigo 358º do Código de Processo Penal?
Cremos que não. Com efeito a arguida defendeu-se já de todos os factos que agora aqui se conhecem.
Neste sentido a douta decisão proferida pelo Supremo Tribunal de Justiça em Acórdão publicado no DR, 1.ª série – número 146 de 30 de Julho de 2008[3]: “(…) E com a publicação da Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, através de aditamento de um número ao artigo 424.º (n.º 3), alargou a possibilidade de a alteração da qualificação jurídica poder ser feita no tribunal de recurso (bem como de a alteração poder incidir sobre os factos descritos na decisão em recurso, desde que não substancial), alteração que, obviamente, no caso de ser desconhecida do arguido, terá de lhe ser comunicada para o mesmo, querendo, sobre ela se pronunciar. Certo é que este alargamento já era jurisprudencialmente admitido, consabido que este Supremo Tribunal através do Acórdão n.º 4/95 fixou jurisprudência obrigatória no sentido de que o tribunal superior pode em recurso alterar oficiosamente a qualificação jurídico -penal efectuada pelo tribunal recorrido, mesmo que para crime mais grave, sem prejuízo, porém, da proibição da reformatio in pejus. Com tudo isto, porém, não resulta pacífico o entendimento sobre a obrigatoriedade de comunicação ao arguido da alteração da qualificação jurídica e concessão ao mesmo de prazo para a defesa. Com efeito, para além da ressalva contida no n.º 2 do artigo 358.º, segundo a qual a alteração não carece de ser comunicada ao arguido, o que bem se percebe, visto que a mesma é resultado de alegação por si produzida, vem-se entendendo que outros casos ocorrem em que é inútil prevenir o arguido da alteração da qualificação jurídica, razão pela qual se considera não dever ter lugar a comunicação. Vejamos. O instituto da alteração dos factos descritos na acusação ou na pronúncia visa assegurar as garantias de defesa ao arguido. O que a lei pretende é que aquele não venha a ser julgado e condenado por factos diferentes daqueles por que foi acusado ou pronunciado, por factos que lhe não foram dados a conhecer oportunamente, ou seja, venha a ser censurado jurídico -criminalmente com violação do princípio do acusatório, sem que haja tido a possibilidade de adequadamente se defender. Ao alargar o âmbito de aplicação do instituto à alteração da qualificação jurídica dos factos o legislador visou, também, assegurar as garantias de defesa do arguido, de acordo, aliás, com a Constituição da República, que impõe sejam asseguradas todas as garantias de defesa ao arguido — n.º 1 do artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa - consabido que a defesa do arguido não se basta com o conhecimento dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, sendo necessário àquela o conhecimento das disposições legais com base nas quais o arguido irá ser julgado. Assim e atenta a ratio do instituto, vem -se entendendo que só nos casos e situações em que as garantias de defesa do arguido — artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da República — o exijam (possam estar em causa), está o tribunal obrigado a comunicar ao arguido a alteração da qualificação jurídica e a conceder -lhe prazo para preparação da defesa. Por isso, se considera que a alteração resultante da imputação de um crime simples ou «menos agravado», quando da acusação ou da pronúncia resultava a atribuição do mesmo crime, mas em forma qualificada ou mais grave, por afastamento do elemento qualificador ou agravador inicialmente imputado, não deve ser comunicada, visto que o arguido ao defender -se do crime qualificado ou mais grave se defendeu, necessariamente, do crime simples ou «menos agravado», ou seja, defendeu-se em relação a todos os elementos de facto e normativos pelos quais vai ser julgado. O mesmo sucede quando a alteração resulta na imputação de um crime menos grave que o da acusação ou da pronúncia em consequência de redução da matéria facto na sentença, quando esta redução não constituir, obviamente, uma alteração essencial do sentido da ilicitude típica do comportamento do arguido, ou seja, quando não consubstanciar uma alteração substancial dos factos da acusação.”.
Este entendimento que, com a devida vénia, igualmente sufragamos, permite-nos a conclusão de que tendo tido, a arguida, a possibilidade de se defender dos concretos factos que agora aqui se consideram para efeito da sua condenação e ainda porque eles configuram, relativamente ao crime pelo qual a arguida vinha condenada um minima de malis, a condenação, nesta instância de recurso, pelos dois crimes de ofensas à integridade física, previsto e punido, cada um deles, pelo já referido artigo 143º do Código Penal, não posterga as garantias de defesa da arguida/recorrente.
Assim sendo, importa agora determinar a pena concreta a aplicar-lhe por cada um dos crimes, dentro da moldura penal prevista para aquele ilícito de prisão até 3 anos ou com pena de multa até 360 dias (cfr. artigo 47º nº 1 do Código Penal).
Antes de mais, tendo em vista os desideratos constantes do artigo 40º do Código Penal, atendendo a que o crime é punível, em alternativa, com pena de prisão ou multa, atento o estatuído no artigo 70º do Código Penal, decide-se optar pela pena de multa, por se entender que ela realizará de modo adequado e suficiente as finalidades da punição. Com efeito, a arguida é primária. Os crimes cometidos foram-no num contexto vivencial muito particular.
Passando então à determinação do quantum da pena de multa, começando pela determinação do grau de culpa da arguida, concluiu-se que esta atuou com uma culpa não muito acentuada, considerando as circunstâncias em que os crimes foram praticados e os motivos que os determinaram, tudo nos termos que anteriormente se deixou já expresso.
A ilicitude dos factos igualmente não muito intensa.
As exigências de prevenção especial não muito acentuadas, considerando que a arguida é primária o que, tendo em conta a sua idade, assume já um significativo relevo, e que é uma pessoa social e profissionalmente integrada. Por certo não voltará a delinquir.
Maiores as exigências de prevenção geral, atendendo a que, com muita frequência, se cometem crimes deste tipo.
Assim na consideração conjunta de todas estas vertentes e no mais que consta do artigo 71º do Código Penal, para se concluir, como adequadas e justas fixar em 45 (quarenta e cinco) dias de multa, à taxa diária de 6,00€ (seis euros), ou seja a multa de 270,00€ (duzentos e setenta euros) a pena a aplicar pelo crime de ofensas à integridade física cometido no dia 16 de Janeiro de 2010 e em 60 (sessenta) dias de multa, à mesmo taxa diária de 6,00€ (seis euros), ou seja, a multa de 360,00€ (trezentos e sessenta euros) a pena a aplicar pelo mesmo crime cometido no dia 3 de Junho de 2010.
Efetuando, nos termos previsto no artigo 77º do Código Penal, cúmulo jurídico destas penas, considerando, conjuntamente, os factos praticados pela arguida e a sua personalidade – emergente dos factos provados – entende-se ajustada fixar a pena única a aplicar-lhe em 75 (setenta e cinco) dias de multa à taxa diária de 6,00€ (seis euros), ou seja a multa única de 450,00€ (quatrocentos e cinquenta euros).
A decisão agora proferida tem necessariamente de refletir-se no pedido de indemnização civil formulado pelo demandante. Na verdade ele foi arbitrado em função da condenação da demandada pelo crime de violência doméstica que, como se acabou de decidir, esta não cometeu.
Da decisão em apreço, para fundamentar a condenação no pedido de indemnização civil, consta o seguinte:
“O arguido viveu debaixo de uma pressão psicológica.
O arguido sofre física e psiquicamente.
Sofreu dores dos murros e pontapés que a demandada C… lhe deu em Janeiro de 2010.
O arguido sente-se envergonhado, triste e revoltado perante os seus concidadãos.
Andou sobressaltado e não comeu nem dormiu descansado.”
A obrigação de reparar os danos – patrimoniais e não patrimoniais (ou morais) que tenham sido causados pela prática de um crime tem a sua consagração legal no artigo 483º do C.C. aplicável por força do estatuído no artigo 129º do Código Penal. Esse preceito legal estatui que: “Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinado a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”. A responsabilidade pressupõe assim: o facto, a ilicitude, a imputação do facto ao lesante, o dano e um nexo de causalidade entre o facto e o dano.
Todos estes elementos devem resultar claramente evidenciados dos factos provados. Os factos assentes, que são causa direta e necessária da conduta levada a cabo pela arguida, apenas as provadas dores sofridas pelo demandado, em consequência das agressões de que foi vítima em Janeiro e Junho de 2010, as quais constituem um dano não patrimonial. Os demais verdadeiramente não o são, antes asserções e conclusões genéricas, dos quais não decorre de modo claro e evidente que tenham resultado direta e necessariamente da conduta delituosa da arguida.
Será então o dano moral, perfetibilizado nas dores sofridos pelo demandante, que à arguida cabe ressarcir, nos termos que se acham consagrados no artigo 496º do C.C. sendo que a fixação do montante a arbitrar a este título, deve ser fixado pelo tribunal segundo critérios de equidade, considerando não só a gravidade e extensão dos danos causados, mas igualmente as circunstâncias em que os mesmos foram produzidos.
Assim considerando o concreto circunstancialismo de recíproco confronto e agressão em que ambos – demandante e demandada – na época viveram, a pouca gravidade da conduta da arguida por relação com condutas semelhantes tidas pelo demandante relativamente à sua pessoa em outras ocasiões, temos por adequado fixar o montante devido a título de indemnização por danos não patrimoniais em 250,00€ (duzentos e cinquenta euros).

Decisão:

Pelos fundamentos acima expressos:
Acordam os Juízes desta Relação em julgar parcialmente procedente o recurso interposto e, em consequência:
-Absolver a arguida C… da autoria de um crime de violência doméstica pelo qual vinha condenada;
- Condenar a arguida pela autoria de dois crimes de ofensas à integridade física, previsto e punido, cada um deles, pelo artigo 143º do Código Penal, respetivamente, nas penas de 45 (quarenta e cinco) dias de multa, à taxa diária de 6,00 € (seis euros), ou seja a multa de 270,00€ (duzentos e setenta euros) e em 60 (sessenta) dias de multa, à mesmo taxa diária de 6,00€ (seis euros), ou seja, a multa de 360,00€ (trezentos e sessenta euros);
- Condenar a arguida C… na pena única de 75 (setenta e cinco) dias de multa à taxa diária de 6,00€ (seis euros), ou seja na multa única de 450,00€ (quatrocentos e cinquenta euros).
Sem tributação – cfr. artigo 513º número 1 do Código de Processo Penal, a contrario sensu.
- Julgar parcialmente procedente o pedido de indemnização civil formulado e, em consequência, condenar a demandada C… a pagar ao demandante B…, a título de danos não patrimoniais que aquela causou o montante de 250,00€ (duzentos e cinquenta euros).
Custas por demandante e demandada na proporção dos respetivos decaimentos.
(elaborado, redigido e confirmado pela relatora cfr. artigo 94º nº 2 do Código de Processo Penal, e usando a grafia em vigor)

Porto, 9 de janeiro de 2013
Maria Manuela Marques de Sousa Paupério
Joaquim Maria Melo de Sousa Lima
_________________
[1] Estudo publicado na Revista Julgar, nº 12, página 25 e ss
[2] Acórdão de Relação do Porto de 28/09/2011 relatado por Artur Oliveira e pesquisado em http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/
[3] Pesquisado em http://dre.pt/pdf1s