Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães | |||
Processo: |
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Relator: | FLORBELA SEBASTIÃO E SILVA | ||
Descritores: | DECISÃO ADMINISTRATIVA FALTA DE FACTOS RELATIVOS AO ELEMENTO SUBJETIVO DA CONTRAORDENAÇÃO SENTENÇA PENAL NULIDADE | ||
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Nº do Documento: | RG | ||
Data do Acordão: | 05/29/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | PROCEDENTE | ||
Indicações Eventuais: | SECÇÃO PENAL | ||
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Sumário: | I. É com a decisão administrativa que se delimitam os factos imputados à acoimada e, portanto, é com essa decisão que se estabelece o objecto submetido a julgamento. II. Ao Tribunal a quo não é lícito adicionar factos não contemplados na decisão administrativa, ou seja, não contemplado no universo de factos em discussão submetidos a julgamento, por tal violar o princípio da vinculação temática também aplicável em sede contra-ordenacional. III. Nem mesmo com recurso ao mecanismo previsto nos artºs 358º e 359º do CPP – aplicável ex vi o artº 41º do RGCO – é lícito ao Tribunal adicionar factos tendentes a demonstrar os elementos subjectivos do tipo contra-ordenacioanl em causa e que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor. IV. A falta destes factos na decisão administrativa torna-a nula nos termos do artº 283º nº 3 al. b) do Código de Processo Penal, aplicável ex vi o artº 41º RGCO, não podendo o Tribunal a quo devolver à respectiva autoridade administrativa o respectivo processo contra-ordenacional para correcção, devendo, antes, proceder à absolvição da acoimada. V. A sentença judicial que, tentando colmatar a falta dos elementos subjectivos da decisão administrativa elenca na sua matéria facto esses elementos é nula nos termos do artº 379º nº 1 al. b) do CPP. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores da Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães: I. A) No âmbito de processo de Recurso de Contraordenação, com intervenção do Tribunal Singular que corre termos pelo Juízo Local Criminal ..., do Tribunal Judicial da Comarca ..., sob o nº 485/22...., após prolação de acórdão por nós em 05-12-2022, com a refª ...09, através do qual declaramos a nulidade da sentença recorrida e mandamos baixar os autos à 1ª instância para sanação, foi proferida nova sentença em 30-01-2023, com a refª ...74, relativamente à acoimada M..., Lda., através da qual a mesma foi (novamente) condenada nos seguintes termos (transcrição): “DECISÃO: Em face do exposto, decide-se julgar totalmente improcedente o presente recurso de impugnação, mantendo-se, nos seus precisos termos, a decisão administrativa proferida pelo IMT. Custas a cargo da arguida/recorrente, fixando-se a taxa de justiça no mínimo legal – cfr. arts. 92.º n.º 1, 93.º, n.º 3, do D-L n.º 433/82 e art. 513.º n.º 1 do Código Processo Penal. Registe e notifique. Transitada, comunique a presente decisão ao IMT.” B) A decisão administrativa, proveniente da Entidade Administrativa IMT, e na qual se baseou a sentença judicial ora sujeita a recurso tem o seguinte teor: “Considerando o acima exposto, propõe-se que a aqui ora arguida seja condenada: Pela prática da contra-ordenação prevista no artigo 31º nº 1 do Decreto-Lei 257/2007 de 16 de Julho, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei nº 137/2008 de 21/07, alterado e republicado pelo Decreto-Lei nº 136/2009 de 05-06. Tudo visto e ponderado, em cumprimento da informação ...20, para aplicação da tabela aí anexa, decide-se aplicar à arguida a coima de € 1100 (mil e cem euros).” II. Novamente inconformada, veio a acoimada interpor recurso em 13-02-2023 com a refª ...58 através do qual oferece as seguintes conclusões: “1ª A sentença recorrida padece de insuficiência ou deficiente fundamentação. Falta-lhe densidade e suficiente motivação crítica. Pelo exposto, ocorreu nulidade da mesma - cfr. art.374º/2, art.379º/1-a) e b) CPP. 2ª No recurso de impugnação judicial então apresentado, a arguida, em sede das suas conclusões, suscitou três pontos pelas quais a decisão administrativa não devia manter-se, e que foram: 1ª A autoridade administrativa, ora recorrida, ao prescindir da audição da testemunha AA, então arrolada, e não apresentando fundamentação suficiente e precisa para o efeito, violou o art.120º/2, al. d) CPP, ex vi do art. 41º do DL. nº433/82. Eis-nos pois perante uma nulidade insanável que afecta a presente decisão administrativa, quer como decisão propriamente dita quer como acusação para efeitos do que dispõe o art.62º do DL. nº433/82, de 27 de Outubro. Nulidade que aqui expressamente se argui – cfr. art.120º/1 CPP; Sem prescindir, 2ª A presente decisão administrativa é omissa relativa à descrição do elemento subjectivo da contra-ordenação imputada. Ficamos sem saber se estamos perante um imputação a título de dolo ou a título de negligência. 3ª Por sua vez, dado que a arguida é uma pessoa colectiva, falta na decisão a alusão à actuação do seu legal representante por conta, no interesse e em representação desta. Pelo exposto, e no bem fundado de qualquer das conclusões acabadas de referir, a decisão administrativa padece de nulidade insanável nos termos conjugados do disposto no art.32º e art.41º/1 do Dec. Lei nº433/82, de 27 de Outubro, do diposto no art.14º do Código Penal, do disposto no art.119º/1, art.283º/3, al. b) e art.122º/1 todos do Cód. Processo Penal. Deverá a arguida ser absolvida. 3ª O Tribunal a quo elencando tais pontos como questões a decidir, pronuncia-se, dizendo, tais questões são insubsistentes. A sentença recorrida apoderando-se e fazendo seus os argumentos expendidos na decisão administrativa impugnada, mantêm-a nos precisos termos. Vejamos. - da invocada nulidade insanável, decorrente da não inquirição da prova testemunhal indicada pela arguida na fase administrativa. Não venha dizer-se – como o faz agora a sentença recorrida - que a autoridade administrativa fundamentou a sua decisão quanto à circunstância de não proceder à inquirição da testemunha arrolada, e que essa fundamentação consta da passagem seguinte da decisão administrativa (a sentença fala em “como refere a própria recorrida” quando certamente queria dizer “… a própria recorrida”): “Porém, em ponto 5. da decisão ora impugnada lê-se: “Pelo que analisando a defesa apresentada, considera-se que não é de dar razão à arguida, uma vez que não logrou pôr em causa os factos constantes do auto de notícia, nada alegando, capaz de afastar a culpa e ilicitude da sua conduta, considerando-se provados os factos que lhe são imputados, nomeadamente o facto de realizar o transporte de uma mercadoria, como excesso de carga de 780 kg, correspondente a 22% sobre o peso bruto autorizado para aquele veículo”. Tudo porque – diz-se também na referida decisão -, “… a arguida se limita a invocar generalidades relativamente ao equipamento e forma de operação de pesagem, não logrando todavia pôr em causa os factos constantes nos documentos anteriores, manifestam-se como elementos bastantes e suficientes para que esta entidade administrativa possa concluir …”. Ora, face ao assim dito, não se vê que o mesmo corresponda a uma fundamentação suficiente para se dispensar a inquirição da testemunha arrolada. Em primeiro lugar, porque a arguida, logo na fase administrativa aquando do direito de defesa - pontos 2., 3., 4. e 5. do seu requerimento de defesa -, impugnou a factualidade concreta do auto de notícia, que não meras generalidades, requerendo logo aí que a testemunha BB fosse inquirida sobre tais pontos/factos concretos. Por fim, e ainda a este título, lê-se na douta sentença recorrida: “Note-se que, podendo fazê-lo, a recorrente não pretendeu produzir prova em sede de recurso de contraordenação, não se opondo à decisão por mero despacho. Daqui retiramos que a própria não considera essencial para a produção de qualquer prova suplementar à produzida na fase administrativa”. Primeiro, tal conclusão assenta numa presunção (dum facto conhecido afirmar um desconhecido), que não tem a mínima consagração legal. Depois, isso da faculdade de arguida não se opor a que a decisão possa ser tirada por mero despacho, não equivale a renunciar a eventuais direitos de defesa ou a renunciar a nulidades que anteriormente foram arguidas na fase administrativa (como foi esta arguição de nulidade traduzida na não inquirição da testemunha em causa). Neste conspecto, ocorreu erro de julgamento. Foi violado o art.120º/2, al. d) CPP, ex vi do art. 41º do DL. nº433/82, de 27 de Outubro. 4ª Por sua vez a decisão administrativa impugnada omite factos descritores do elemento subjectivo. A este título entendeu (continua a entender) o Tribunal a quo que não existem fórmulas sacramentais. E relacionada com esta temática da falta de descrição do elemento subjectivo, o Tribunal “ a quo” dá como assente/provado, em sede de “Fundamentação da Matéria de Facto”, seu ponto 6. o seguinte: “ A arguida, por intermédio dos seus representantes, agiu de forma livre, voluntária e consciente e ao agir de modo a prever o resultado como consequência possível da sua conduta, não se abstendo, porém, de a empreender, e conformando-se com a produção desse mesmo resultado, actuou com dolo, ainda que eventual”. (Afinal, há ou não formulas sacramentais para descrever o elemento subjectivo dos ilícitos contraordenacionais …). Simplesmente, o que assim se escreveu naquele ponto 6., é matéria totalmente nova, não se percebendo esse acrescento que o Tribunal “a quo” entendeu dar-lhe, já que o mesmo na consta da decisão da autoridade administrativa. Tal como nesta decisão não consta (nem na sentença recorrida consta, nem podia constar), qualquer referência à consciência da ilicitude através da “fórmula sacramental” expressa na frase “a acoimada sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei”. Aliás, como a propósito e de forma brilhante se refere a fls.19, 23, 24, 25, 26, 27, o douto Acórdão que mandou baixar os autos). Entendemos assim que a sentença recorrida continua a não analisar nem a fundamentar este elemento subjectivo da contraordenação em apreço. Sendo nula. 5ª Uma vez que a arguida é uma pessoa colectiva era necessário que a decisão administrativa fizesse alusão à actuação do seu legal representante. Ou seja, a decisão administrativa não contém factualidade relativa à actuação do legal representante da pessoa colectiva/arguida, no sentido de que aquele por conta e no interesse desta, de forma livre, voluntária e consciente e com conhecimento da prática de conduta proibida e punida por lei. E também este ponto soçobrou perante o Tribunal de julgamento. A este propósito não pode dar-se por provado o ponto 5. da “Fundamentação da Matéria de Facto”. Onde consta esse facto da decisão administrativa? (Isto mesmo se diz no douto Acórdão já anteriormente proferido). 6ª Por fim, verifica-se que a sentença recorrida fixa, mantendo, os 1.100,00€ de coima aplicada pela autoridade admnistrativa. De facto, a este propósito, a sentença limita-se a dizer : “Não tendo sido posta em causa a determinação da medida da coima que foi aplicada à arguida deve também nesta parte manter-se a decisão administrativa em apreço”. Porém, a decisão administrativa é omissa quanto aos factos que permitissem definir a situação económica da acoimada, de modo a permitir se a coima fixada respeita ou não essa situação económica. Essa omissão transbordou para a sentença recorrida que nem sequer soube clarificar o eventual interesse económico retirado pela recorrente. E sem uma análise, mínima que fosse, acerca do grau de culpa e ilicitude como pôde o Tribunal concordar com a coima aplicada? Nesta parte a sentença recorrida padece do vício plasmado no art. 410º nº al. a) do Código de Processo Penal por lhe faltar factos essenciais para a determinação da medida da coima como já vimos. Termos em que deverá a arguida ser absolvida. Todavia, Vossas Excelências farão Justiça.” III. O recurso foi admitido por despacho de 23-02-2023, com a refª ...69, tendo sido fixado efeito suspensivo. IV. Respondeu o MºPº em 12-03-2023, com a refª ...94 pugnando pela improcedência do recurso, tendo oferecido as seguintes conclusões: “1. A arguida arrolou prova testemunhal, o seu motorista e o operador de unidade. Relativamente à inquirição de testemunhas, cabe à autoridade Administrativa decidir acerca da inquirição, tendo por base a relevância ou não da sua inquirição para a descoberta da verdade. 2. Assim, entendeu a Autoridade Administrativa que a audição da testemunha em causa não era relevante para a descoberta da verdade, uma vez que os autos já continham elementos suficientes para proferir a decisão final. 3. Sendo que, tal omissão não colide com as garantias de defesa da arguida. 4. A realização de tal diligência não se afigura essencial para a descoberta da verdade e não configura um ato obrigatório a praticar em sede de inquérito, pelo que não configura a prática de qualquer nulidade insanável. 5. A decisão da Autoridade Administrativa não padece de qualquer nulidade quanto à indicação do elemento subjetivo do tipo, tendo indicado corretamente a atuação, ao nível do dolo, com que o agente, a sociedade arguida, atuou. 6. A decisão da Autoridade Administrativa contém todos os elementos de facto e de direito, conforme estipula, aliás, o art. 58.º do RGCO. 7. Efetivamente, a decisão da Autoridade Administrativa explicita perfeitamente os factos em que se baseia, mormente, ao nível da conduta subjetiva, dos elementos do tipo subjetivo em causa. 8. A decisão administrativa não padece de qualquer vício ou nulidade que lhe possa ser de assacar, porquanto da mesma resulta suficientemente descrita a factualidade integradora dos fundamentos de facto e de direito do ilícito contraordenacional em causa. 9. É suficiente a fundamentação que justifique as razões pelas quais é aplicada esta ou aquela sanção à arguida de modo a que esta, lendo a decisão, se possa aperceber, de acordo com os critérios da normalidade de entendimento, das razões pelas quais é condenada e, consequentemente, impugnar os factos. 10. O elemento subjetivo na modalidade de culpa negligente resulta da violação do dever respetivo, pois que decorre da natureza da infração levada a cabo pela arguida que esta tem o dever de conhecer e respeitar as normas jurídicas em causa e que, se não o fizer, incorre em culpa negligente, por violação do dever de cuidado a que está adstrita. 11. Como tal, a alegada fundamentação e concretização factual constante da decisão administrativa era/é suficiente para que a arguida tenha exercido todos os seus direitos de defesa. 12. A contraordenação foi imputada à sociedade, pelo que não cumpre fazer alusão à atuação do legal representante da mesma. Face a tudo quanto se deixou exposto, a decisão proferida apreciou corretamente as suprarreferidas questões, pelo que deverá ser integralmente mantida. Porém, Vossas Excelências farão, como sempre, JUSTIÇA.” V. Foi aberta vista nos termos do disposto no artº 416º nº 1 do CPP, tendo o Exmº Sr. Procurador-Geral Adjunto proferido douto parecer em 25-03-2023 com a refª ...41, no qual pugna pela procedência parcial do recurso interposto, por entender que o processo deve ser devolvido à autoridade administrativa para colmatar a falta de factos tendentes a demonstrar o elemento subjectivo do tipo contra-ordenacional imputado. VI. Notificada nos termos do artº 417º nº 2 do CPP nenhuma resposta foi oferecida pela recorrente ao douto parecer. VII. Foram colhidos os vistos e realizada a conferência. VII: Analisando e decidindo. O objecto do recurso, e portanto da nossa análise, está delimitado pelas conclusões do recurso, atento o disposto nos artºs 402º, 403º e 412º todos do CPP devendo, contudo, o Tribunal ainda conhecer oficiosamente das nulidades previstas no artº 379º do CPP que possam obstar ao conhecimento do mérito do recurso.[1] Nos termos do disposto no artº 75º do Regime Geral das Contraordenações – RGCO – aprovado pelo DL nº 433/82 de 27-10[2], o recurso ao Tribunal da Relação apenas poder versar matéria de direito. No entanto, há que notar que o recurso da decisão de 1ª instância que sobe à Relação “seguirá a tramitação do recurso em processo penal (…)” cfr. artº 74º nº 4 do RGCO, pelo que não pode ser afastada a aplicação do artº 410º do CPP que “consagra doutrinalmente o recurso de revista ampliada o que significa que, quando tiver havido renúncia ao recurso em matéria de facto, nas Relações e no Supremo Tribunal de Justiça o Tribunal «ad quem» não tem que se restringir à tradicionalmente denominada questão de direito mas antes pode alargar o seu conhecimento a questões documentadas no texto da decisão proferida pelo Tribunal «a quo» que contendam com a apreciação do facto. Consubstanciando-se tal recurso de revista ampliada na possibilidade que é dada ao tribunal de recurso de conhecer a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada quando a decisão de mérito não encontre na matéria de facto provada uma base tal que suporte um raciocínio lógico substantivo; de verificar uma contradição insanável da fundamentação sempre que através de um raciocínio lógico conclua que da fundamentação resulta precisamente a decisão contrária, ou que a decisão não fica suficientemente esclarecida dada a contradição entre os fundamentos aduzidos; de concluir por um erro notório na apreciação da prova sempre que para a generalidade das pessoas seja evidente uma conclusão contrária à exposta pelo tribunal” – cfr. anotação ao artº 75º por António de Oliveira Mendes e José dos Santos Cabral, da obra “Notas ao Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas”, Almedina, p. 203. A acoimada/recorrente entende que: a) a sentença recorrida padece da nulidade prevista no artº 379º nº 1 al. a) do CPP, em conjugação com o nº 2 do artº 374º do CPP, por insuficiente e deficiente fundamentação; b) a decisão administrativa é nula: - por não ter justificado de forma adequada a razão pela qual não procedeu à inquirição da testemunha arrolada pela acoimada; - por não conter todos os factos referentes ao elemento subjectivo não podendo o Tribunal a quo suprimir essa falta; - por não conter referência, nem factos que permitissem a condenação do legal representante. c) a sentença recorrida padece do vício previsto na al. a) do nº 2 do artº 410º do CPP por não conter factos que lhe permitissem fixar o valor da coima. Pese embora o louvável esforço despendido pelo Tribunal a quo para corrigir os vícios por nós apontados no nosso primeiro acórdão, continua-se a constatar a existência de uma nulidade, mais concretamente a prevista no artº 379º nº 1 al. b) do CPP, novamente invocada pela recorrente, mas em todo o caso de conhecimento oficioso, que carece de tratamento jurídico prévio pois o seu desfecho é determinante para a resolução deste recurso. Essa nulidade foi por nós identificada no nosso primeiro acórdão nos seguintes termos: “De facto, a recorrente, logo como fundamento do seu recurso da decisão administrativa para a 1ª instância, invocou a falta de factos suficientes para permitir a imputação da contra-ordenação, pela qual veio a ser acoimada, a nível subjectivo. E, se olharmos a decisão administrativa constata-se que ela é omissa quanto ao facto de que a recorrente sabia e conhecia que o seu comportamento era proibido e punido por lei. Ora, pese embora um processo de contra-ordenação não seja um processo crime e a decisão administrativa não seja uma acusação penal, a imputação de uma contra-ordenação segue a mesma lógica no sentido de ter de constar da decisão administrativa todos os factos necessários à imputação da contra-ordenação, quer em termos de preenchimento objectivo da norma legal, quer em termos subjectivos (dolo ou negligência e conhecimento da ilicitude). Pois que, nos termos do disposto no artº 1 do RGCO: “Constitui contra-ordenação todo o facto ilícito e censurável que preencha um tipo legal no qual se comine uma coima.” E, nos termos do disposto no artº 2º do RGCO, subordinado á epígrafe “princípio da legalidade”: “Só será punido como contra-ordenação o facto descrito e declarado passível de coima por lei anterior ao momento da sua prática.” Ora, conforme muito bem explanado em Acórdão desta mesma Relação de Guimarães de 19-06-2017, por punho do Exmº Sr. Desembargador Relator Jorge Bispo, e que, apesar de referente ao processo-crime tem óbvias repercussões no processo contra-ordenacional:[3] “I) A alegação de que a arguida sabia que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal não é inócua e desnecessária, não passando de um protocolo ou fórmula pré-determinada acolhida pela prática judiciária, sem qualquer valor funcional. Ao contrário, a alegação da consciência da ilicitude, seja com a utilização daquela fórmula ou através da descrição mais objetiva desse facto da vida interior, corresponde à necessidade de descrever um dos elementos do tipo subjetivo, traduzido no dolo da culpa, o qual, segundo as modernas conceções dogmáticas da teoria do crime, defendidas entre nós por Figueiredo Dias, constitui uma categoria autónoma, relativamente ao dolo do tipo, ao passo que na conceção tradicional não se distinguia entre os elementos do tipo e os elementos do tipo de culpa. II) Na acusação deduzida nos autos, a assistente limita-se a alegar, em termos de factos relativos ao preenchimento dos elementos subjetivos, que ao dirigir-lhe as palavras filha da puta e pretendia a arguida atingir a assistente na sua honra e consideração social, o que conseguiu. Esta articulação contém factos que integram o elemento volitivo do dolo (direto) e do elemento intelectual do dolo. Já em relação aos elementos integrantes da consciência da ilicitude (elemento emocional), habitualmente traduzido na expressão de que o arguido atuou sabendo que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal, ou por qualquer outra que comporte o respetivo conteúdo, a acusação omite toda e qualquer referência. III) Concluindo-se, assim, que a acusação particular deduzida nos autos não contém a descrição dos factos integrantes da totalidade dos elementos subjetivos do tipo, necessária à verificação do crime imputado à arguida, e que, por outro lado, tais elementos em falta não poderão vir a ser aditados em julgamento, não restava outra solução ao Juiz a quo senão considerá-la como manifestamente infundada, por os factos nela descritos não constituírem crime, e, como tal, rejeitá-la ao abrigo do disposto nos artºs 283º, nº 3, b) e 311º, nºs 2, a), e nº 3, d) do CPP.” – sublinhado nosso No caso em apreço, o “terceiro” facto vertido na sentença recorrida pelo Tribunal a quo não constava da decisão administrativa sendo que a acoimada apresentava como defesa precisamente a situação da decisão administrativa não conter factos referentes ao elemento subjectivo da contra-ordenação. Além disso, quando se olha a fundamentação oferecida pela respectiva autoridade administrativa acerca da imputação da contra-ordenação à acoimada o que se retira é que a autoridade administrativa ora diz que a acoimada agiu com dolo eventual – sem especificar factos tendentes a demonstrar esse dolo (alegando apenas que é facto notório que os veículos não podem circular na via pública com excesso de peso) – ora conclui que a acoimada não agiu com a diligência com que deveria ter agido, o que leva à conclusão de que a contra-ordenação é imputada a título de negligência. Vejamos. A decisão administrativa, numa clara confusão entre os conceitos de dolo eventual e negligência diz o seguinte: “9. E, afirmado que está o preenchimento do tipo contra-ordenacional em termos objectivos, deve dizer-se que também do ponto de vista subjectivo, a infracção é da responsabilidade do(a) arguido(a), considerando-se assim como provados os factos constantes no auto de contraordenação contra si levantado, sendo de imputar ao(à) mesmo(a) a contraordenação pela qual vem acusado(a), de realizar um transporte de mercadorias com excesso de peso, circunstância que consubstancia infracção prevista e punida pelo artigo 31 n. 1 do Decreto-Lei nº 257/2007, alterado e republicado pelo Decreto-Lei nº 136/2009 de 05/06, com coima de €500 a € 1500. (…) 13. No que se refere à culpa do agente, esta não só é elemento constitutivo da prática da contraordenação, segundo o artigo 1º do Decreto-Lei nº 433/82 de 27/10, é ainda fator determinante da medida concreta da coima. Assim, uma vez que é do conhecimento público que os veículos não podem circular na via pública com excesso de carga, a arguida actuou com dolo, ainda que eventual. Impunha-se à arguida, na pessoa do seu motorista, tomar todas as medidas necessárias e usar de toda a diligência para evitar que o seu veículo circulasse com excesso de carga, pois impõe-se que zele no sentido de que não sejam cometidas ilegalidades no transporte de carga, nomeadamente controlar e fiscalizar o seu peso. Em face da percentagem que trazia em excesso é de acreditar que a arguida representou como possível a ilicitude da sua conduta e se conformou com este resultado.” Ou seja, de uma simples leitura, se constata que a autoridade administrativa não faz a mais pálida ideia da diferença entre dolo eventual e negligência (consciente neste caso), pois que, embora termine com a indicação de que a recorrente representasse como possível a ilicitude da sua conduta e com ela se conformasse (o que seria o dolo eventual), também refere que a recorrente não foi diligente, nem zelosa nos seus deveres de garantir que o transporte em apreço não excedesse o peso legalmente admissível (o que traduz um comportamento negligente). E esta confusão está patente nas conclusões de recurso do MºPº de 1ª instância que diz, na conclusão 10ª que: “O elemento subjetivo na modalidade de culpa negligente resulta da violação do dever respetivo, pois que decorre da natureza da infração levada a cabo pela arguida que esta tem o dever de conhecer e respeitar as normas jurídicas em causa e que, se não o fizer, incorre em culpa negligente, por violação do dever de cuidado a que está adstrita.” Ou seja, para o MºPº a quo a recorrente terá agido com mera negligência pois que não respeitou o dever de cuidado a que está adstrita. (…) Ora, no caso em apreço, a autoridade administrativa, sem elencar factos tendentes a demonstrar o elemento subjectivo da contra-ordenação, ora diz que a acoimada agiu como dolo eventual, ora acaba por dizer que se trata de uma negligência. Em que é que ficamos afinal? E o Tribunal a quo, que tinha obrigação de se pronunciar acerca desta situação, nomeadamente, se a decisão administrativa é efectivamente nula conforme alegado pela recorrente, decide, por moto próprio colmatar esta falha grave e fixar ad hoc um facto – o vertido em último lugar referente à consciência da ilicitude – com vista a imputar a contra-ordenação a título de dolo eventual. Sem dar cumprimento ao disposto nos artºs 358º e 359º do CPP ou sequer sem se debruçar previamente sobre a eventual impossibilidade de, com recurso aos mecanismos dos artºs 358º e 359º do CPP, se poder colmatar a falta de factos tendentes a demonstrar o elemento subjectivo da contra-ordenação, como muita jurisprudência abundantemente revela. O Tribunal a quo tinha de ter tomado posição, porque foi alegado pela acoimada na sua impugnação judicial, sobre a falta de factos tendentes a demonstrar o preenchimento do elemento subjectivo da contra-ordenação. Ao invés, tenta corrigir uma falha da própria decisão administrativa sem observar minimamente as regras processuais aplicáveis. Violando, assim, o mais elementar direito de defesa da acoimada, pois que insere numa decisão judicial um facto não alegado pela autoridade administrativa e para o qual até foi alertado pela acoimada. Não, há, assim, a mais pálida dúvida de que a sentença ora recorrida também padece da nulidade prevista na al. b) do nº 1 do artº 379º do CPP.” Ora, na nova sentença ora sob escrutínio, os factos dados por provados são os seguintes: “Com interesse para a decisão da causa (não se considerando os factos conclusivos, desprovidos de interesse para a decisão da causa, ou atinentes à matéria de direito) resultam os seguintes factos provados: A) 1. No dia 14 de Outubro de 2021, pelas 14h57m, na Avenida ..., em ..., o motorista da arguida M..., Lda., com NIPC ... e sede na Rua ..., em ..., circulava com o veículo ligeiro de mercadorias com a matrícula ..-..- QZ, efectuando o transporte de um reboque de trator agrícola. 2. Nas circunstâncias de modo e lugar constantes dos autos, o mencionado veículo foi submetido a pesagem pelas balanças devidamente aferidas, aprovadas, e certificadas no que concerne à sua verificação metrológica, conforme certificado de verificação periódica n.º ...50 até 31.12.2021 e acusou o peso total de 20580 kg. 3. O referido veículo tem um peso total de 4280 kg, correspondente ao peso registado de 4340kg, deduzido o erro máximo admissível. 4. Verificou-se assim um excesso de 780kg, correspondente a 22% do peso bruto autorizado para o referido veículo. 5. A arguida era a proprietária do veículo identificado nos autos, que na ocasião era conduzido por seu funcionário, por conta e no interesse da arguida. 6. A arguida, por intermédio dos seus representantes, agiu de forma livre, voluntária e consciente e ao agir de modo a prever o resultado como consequência possível da sua conduta, não se abstendo, porém, de a empreender, e conformando-se com a produção desse mesmo resultado, actuou com dolo, ainda que eventual. Inexistem factos não provados, com relevo para a boa decisão da causa.” E, em relação à invocada nulidade da decisão administrativa efectuada por parte da acoimada no tocante à falta de factos tendentes a provar o elemento subjectivo do tipo contra-ordenacional, diz o Tribunal a quo, na sua nova sentença, o seguinte: “A arguida invoca, ainda, a nulidade por falta de descrição na decisão administrativa do elemento subjectivo. Ora, é consabido que inexistem formulas sacramentais para a descrição factual dos elementos objectivos e subjectivos dos ilícitos, no caso de origem contraordenacional. Vem imputada à recorrente a prática da contraordenação a título de dolo eventual. Age com dolo directo quem prevê e pretende intencionalmente a realização do facto. Existe dolo necessário quando o agente sabe que, como consequência de uma conduta que resolve empreender, realizará um facto que preenche um tipo legal de ilícito, não se abstendo, apesar disso, de empreender tal conduta. No dolo eventual cabem os casos em que o agente previu o resultado como consequência possível da sua conduta e, apesar disso, leva a cabo tal conduta, conformando-se com o respectivo resultado (cfr. artigo 14.º, ns.º 1, 2 e 3, respetivamente, do CP). Conforme se contata pela leitura da decisão posta em crise pela arguida/recorrente a entidade administrativa, designadamente no seu ponto 13 refere ser do conhecimento público que os veículos não podem circular com excesso de carga e que a arguida representou como possível tal excesso e com tal resultado se conformou. Quando a recorrente invoca que a decisão administrativa não diz que a mesma podia actuar de outra maneira, tal apenas seria necessário se lhe fosse imputada a prática da contraordenação a título de negligência, de acordo com o disposto nos artigos 13.º e 15.º, do CP, o que não é o caso. Pelo exposto, também neste ponto não tem a recorrente razão, o que se decide.” O Exmº Sr. Procurador-Geral Adjunto no seu douto parecer, dando conta da falta do elemento subjectivo no elenco de factos da decisão administrativa entende o seguinte: “Entendemos que a razão está com os primeiros, ou seja, com aqueles que defendem que ainda que venha a ser reconhecido que a decisão administrativa padece de nulidade (designadamente a inobservância dos requisitos do art.º 58.º, n.º 1, do RGCO), tal não deverá determinar a absolvição dos arguidos, mas sim a invalidade dos atos afetados e de todos os que deles forem dependentes, impondo-se, assim, o reenvio dos autos à entidade administrativa competente por forma a sanar os vícios existentes. Efetivamente, a nulidade aventada não consta do elenco taxativo das nulidades insanáveis do art.º 119.º do Código de Processo Penal, sendo, por isso, sanável, nos termos do n.º 2 do art.º 379.º do mesmo diploma. Ora, uma vez que a declaração de nulidade não afeta todo o processo, mas apenas os atos que dependerem do ato nulo, a nulidade em causa não pode conduzir a uma decisão de mérito, de absolvição, mas apenas a uma decisão prévia e formal de declaração de nulidade da decisão administrativa e dos atos posteriores afetados por tal nulidade, sem afetar o auto de notícia que deu origem ao processo (art.º 122.º do CPP).” Salvo o devido respeito, não podemos sufragar este entendimento. Vejamos. A nulidade em causa é a contemplada na al. b) do nº 1 do artº 379º do Código de Processo Penal que, subordinada à epígrafe “nulidade da sentença” diz o seguinte: “1 - É nula a sentença: b) Que condenar por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, fora dos casos e das condições previstos nos artigos 358.º e 359.º” Ora, nos termos do disposto no artº 62º nº1 do RGCO, cuja epígrafe é “envio dos autos ao Ministério Público”: “Recebido o recurso, e no prazo de cinco dias, deve a autoridade administrativa enviar os autos ao Ministério Público, que os tornará presentes ao juiz, valendo este acto como acusação.” Ou seja, é a decisão administrativa que vai valer como “acusação”, estando o MºPº dispensado de formular esta peça processual. Da cuidada análise, quer de todo o processado dos autos de contra-ordenação, quer da decisão administrativa, constata-se a falta de factos absolutamente fundamentais para a tipificação legal em causa, ou seja, para o preenchimento da respectiva contra-ordenação imputada à acoimada, aqui recorrente, e que, aliás, já tínhamos feito referência ao mesmo no nosso primeiro acórdão. A decisão administrativa no que tange ao elemento subjectivo do tipo contra-ordenacional em causa tem o seguinte teor (transcrição): “9. E, afirmado que está o preenchimento do tipo contra-ordenacional em termos objectivos, deve dizer-se que também do ponto de vista subjectivo, a infracção é da responsabilidade do(a) arguido(a), considerando-se assim como provados os factos constantes no auto de contraordenação contra si levantado, sendo de imputar ao(à) mesmo(a) a contraordenação pela qual vem acusado(a), de realizar um transporte de mercadorias com excesso de peso, circunstância que consubstancia infracção prevista e punida pelo artigo 31 n. 1 do Decreto-Lei nº 257/2007, alterado e republicado pelo Decreto-Lei nº 136/2009 de 05/06, com coima de €500 a € 1500. (…) 13. No que se refere à culpa do agente, esta não só é elemento constitutivo da prática da contraordenação, segundo o artigo 1º do Decreto-Lei nº 433/82 de 27/10, é ainda fator determinante da medida concreta da coima. Assim, uma vez que é do conhecimento público que os veículos não podem circular na via pública com excesso de carga, a arguida actuou com dolo, ainda que eventual. Impunha-se à arguida, na pessoa do seu motorista, tomar todas as medidas necessárias e usar de toda a diligência para evitar que o seu veículo circulasse com excesso de carga, pois impõe-se que zele no sentido de que não sejam cometidas ilegalidades no transporte de carga, nomeadamente controlar e fiscalizar o seu peso. Em face da percentagem que trazia em excesso é de acreditar que a arguida representou como possível a ilicitude da sua conduta e se conformou com este resultado.” Ora, para que a actuação da acoimada pudesse preencher o tipo legal em apreço, teria a decisão administrativa que conter os seguintes dois factos (que não contém): - Por intermédio dos seus representantes, a arguida agiu de forma livre, voluntária e consciente e ao agir de modo a prever o resultado como consequência possível da sua conduta, não se abstendo, porém, de a empreender, conformando-se com a produção desse mesmo resultado. - A arguida sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei. Ora, o primeiro dos factos em falta foi pelo Tribunal a quo colocado ad hoc na sua matéria de facto e que, como infra veremos não o podia ter feito. O segundo facto nem da sentença recorrida consta estando omisso em ambas as decisões, quer a administrativa, quer a judicial. Ora, era absolutamente essencial estes factos constarem da decisão administrativa uma vez que, tendo o MºPº no presente caso, submetido os autos de contraordenação a julgamento qua tale a mesma serve de acusação. É certo que, nos termos do Parecer nº 5/2020 do Conselho Consultivo da Procuradoria Geral da República, de 21-05-2020, chegou-se às seguintes conclusões: “2.ª Com a apresentação dos autos ao juiz não se verifica uma conversão da decisão sancionatória impugnada numa acusação. 3.ª O que corresponde a uma acusação é o ato de apresentação dos autos do processo contraordenacional ao juiz, não existindo uma acusação em sentido formal, enquanto indicação precisa pelo Ministério Público da factualidade que conforma o objeto do processo e das infrações que são imputadas ao arguido. 4.ª A apresentação do processo contraordenacional ao juiz não se traduz, pois, na dedução de uma acusação, mas tem os mesmos efeitos desse ato em processo penal - manifesta a pretensão do Ministério Público de que o arguido seja submetido a julgamento e delimita a temática do julgamento.” – sublinhado e negrito nosso Em nosso modesto entendimento, não podemos sufragar tout court a 2ª conclusão contida no Parecer em discussão. De facto, é a decisão administrativa que vai ter de delimitar os factos imputados à acoimada sob pena de não fazer sentido que o MºPº possa ficar dispensado de fazer, por punho próprio, uma acusação e aderir ao processo de contra-ordenação. Repare-se que nos termos do artº 58º do RGCO a decisão administrativa tem de conter os seguintes elementos: “1 - A decisão que aplica a coima ou as sanções acessórias deve conter: a) A identificação dos arguidos; b) A descrição dos factos imputados, com indicação das provas obtidas; c) A indicação das normas segundo as quais se pune e a fundamentação da decisão; d) A coima e as sanções acessórias. 2 - Da decisão deve ainda constar a informação de que: a) A condenação se torna definitiva e exequível se não for judicialmente impugnada nos termos do artigo 59.º; b) Em caso de impugnação judicial, o tribunal pode decidir mediante audiência ou, caso o arguido e o Ministério Público não se oponham, mediante simples despacho. 3 - A decisão conterá ainda: a) A ordem de pagamento da coima no prazo máximo de 10 dias após o carácter definitivo ou o trânsito em julgado da decisão; b) A indicação de que em caso de impossibilidade de pagamento tempestivo deve comunicar o facto por escrito à autoridade que aplicou a coima.” É, assim, com a decisão administrativa que se delimitam os factos imputados à acoimada e, portanto, é com essa decisão que se estabelece o objecto submetido a julgamento. Tanto mais que, nos termos da al. b) do nº 2 do citado artº 58º do RGCO, submetido o recurso a julgamento em 1ª instância, pode o Tribunal a quo decidir por mero despacho, sem haver forçoso recurso a julgamento, o que significa que a decisão administrativa tem de conter todos os elementos necessários para que uma decisão por mero despacho possa ser prolatada. Ora, ciente disto, o tal Parecer também conclui que: “5.ª Mas esta não é a única opção de que dispõe o Ministério Público quando a autoridade administrativa lhe remete os autos do processo contraordenacional, não sendo aquele magistrado um mero núncio que se limita a proceder a entrega do processo no Tribunal. 6.ª A intervenção do Ministério Público na denominada fase intermédia do processo contraordenacional só pode ter um significado que seja compatível com a estrutura deste tipo de processo, designadamente na fase judicial subsequente, e com as funções do Ministério Público que lhe são cometidas pela lei. 7.ª Conforme resulta da tramitação da fase judicial do processo contraordenacional regulada no RGCO, esta tem uma estrutura acusatória, sendo atribuída a magistratura do Ministério Público, a semelhança do que sucede no processo penal, a representação dos interesses do Estado no sancionamento das práticas contraordenacionais. 8.ª Nas funções de promoção da ação contraordenacional na sua fase judicial, o Ministério Público, como órgão autónomo da administração da justiça, encontra-se incondicionalmente sujeito aos valores da descoberta da verdade e da realização da justiça, pelo que só deve solicitar o julgamento daqueles arguidos sobre os quais recaem indícios seguros de que cometeram um ilícito contraordenacional. 9.ª O artigo 62.º, n.º 1, do RGCO, ao determinar a intervenção do Ministério Público na fase intermédia do processo contraordenacional, pretendeu que este magistrado examinasse o processo que lhe é remetido, designadamente a decisão sancionatória proferida e a contestação apresentada, e ponderasse, obedecendo a critérios de legalidade e objetividade, se o arguido devia ou não ser sujeito a julgamento judicial pela prática de contraordenação ou contraordenações que foram objeto temático do processo que lhe foi remetido. 10.ª Assim, após exame dos autos do processo contraordenacional, o Ministério Público deve apresentá-los ao tribunal competente, para serem distribuídos a um juiz, equivalendo essa opção a dedução de uma acusação em processo penal, caso entenda que existem indícios suficientes da prática da contraordenação ou contraordenações que foram objeto daquele processo; ou pode, pelo contrário, determinar o seu arquivamento, se tiver verificado a existência de prova bastante desses ilícitos não se terem verificado ou de o arguido não os ter praticado, de ser legalmente inadmissível o respetivo procedimento ou ainda de não existirem indícios suficientes da verificação da atividade contraordenacional ou dos seus agentes, tal como sucede no processo penal, por aplicação do disposto no artigo 277.º, n.º 1 e 2, do respetivo Código. 11.ª Quando porém se verificarem vícios sanáveis na decisão impugnada ou no processo contraordenacional, que nem justificam o arquivamento do processo, nem a sua apresentação no tribunal, deve o Ministério Público antecipar-se a decisão judicial de devolução do processo a autoridade administrativa e proceder ele a essa remessa, de modo a que tais vícios sejam sanados, proferindo a autoridade administrativa nova decisão, sem que seja necessária uma intervenção judicial. 12.ª Numa leitura integrada, que tenha presente os princípios que subjazem a intervenção do Ministério Público no Processo Penal, é possível entender-se que estes poderes se encontram ínsitos na competência que lhe é atribuída pelo artigo 62.º, n.º 1, do RGCO, ou então, para quem se sinta limitado pela literalidade deste preceito, deve considerar-se que, com as necessárias adaptações, é aplicável aos poderes do Ministério Público, nesta fase intermédia, o disposto no artigo 277.º e seg., do Código de Processo Penal, como legislação subsidiária. 13.ª Nesta fase, o arquivamento do processo contraordenacional não está dependente da concordância do arguido, nem da auscultação da autoridade administrativa. 14.ª Com o arquivamento ou a devolução do processo contraordenacional a autoridade administrativa, a decisão sancionatória impugnada fica sem efeito, sem ter chegado a ser necessária uma intervenção judicial. 15.ª Arquivado o processo, por decisão do Ministério Público, o processo contraordenacional só pode ser reaberto se surgirem novos elementos de prova que invalidem os fundamentos da opção de arquivamento, numa aplicação subsidiária do disposto no artigo 279.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, ou caso se verifiquem situações análogas as previstas no artigo 449.º, n.º 1, a) e b), do mesmo diploma. 16.ª O Ministério Público não pode, no entanto, face a inexistência de indícios suficientes da prática de qualquer contraordenação pelo arguido, ordenar a entidade administrativa a repetição ou a realização de novas diligências de prova, nem pode devolver-lhe os autos para realização dessas diligências, uma vez que não existe qualquer relação de subordinação hierárquica entre a autoridade administrativa e o Ministério Público.” – sublinhado e negrito nossos Ou seja, cabe ao MºPº, no exercício pleno das suas funções legalmente acometidas, analisar os autos de contra-ordenação e decidir, em princípio, uma de duas coisas: - submeter os autos de contra-ordenação a julgamento; - arquivá-los por falta de indícios. Mas, se os submete a julgamento é porque entende que há indícios suficientes e matéria de facto suficiente para levar a uma condenação. Ora, no caso em apreço, o MºPº decidiu “aderir” aos autos de contraordenação, pelo que os factos que terão de ser apreciados são os que constam da decisão administrativa que os concentra todos – repare-se que o auto levantado pela PSP não contém (como nunca contém) o elemento subjectivo do tipo contraordenacional (o dolo ou culpa e a consciência de ilicitude) recaindo sob a autoridade administrativa colmatar esses factos. Mas, como vimos, não existem os factos tendentes a demonstrar o elemento subjectivo da contra-ordenação, mormente o dolo eventual. Sem aqueles dois factos, não se consegue imputar à acoimado a contraordenação em causa. E tanto assim é que a Mmª Juiz a quo, na sua sentença, fixou o seguinte facto: “6. A arguida, por intermédio dos seus representantes, agiu de forma livre, voluntária e consciente e ao agir de modo a prever o resultado como consequência possível da sua conduta, não se abstendo, porém, de a empreender, e conformando-se com a produção desse mesmo resultado, actuou com dolo, ainda que eventual.” E fixa este facto precisamente porque sabe que sem o mesmo não é possível imputar-se à acoimada a contraordenação em referência. Acontece que ao Tribunal a quo não era lícito adicionar factos não contemplados na decisão administrativa, ou seja, não contemplado no universo de factos em discussão submetidos a julgamento, por tal violar o princípio da vinculação temática também aplicável em sede contra-ordenacional. Antes, pelo contrário, o Tribunal a quo tinha obrigação de se pronunciar acerca desta situação, nomeadamente, se a decisão administrativa é nula, dado que a acoimada suscitou essa nulidade mas, em todo o caso, ainda que não o tivesse feito, a nulidade em causa é um vício de conhecimento oficioso. Ao invés, decide, por moto próprio colmatar esta falha grave e fixar ad hoc um facto – o vertido em 6 – com vista a imputar a contra-ordenação à acoimada. Sem dar cumprimento ao disposto nos artºs 358º e 359º do CPP ou sequer sem se debruçar previamente sobre a eventual impossibilidade de, com recurso aos mecanismos dos artºs 358º e 359º do CPP, se poder colmatar a falta de factos tendentes a demonstrar todos os elementos do tipo contra-ordenacional, como muita jurisprudência abundantemente revela. Violando, assim, o mais elementar direito de defesa da acoimada, pois que insere numa decisão judicial um facto não alegado pela autoridade administrativa e que nem sequer revela ter resultado da discussão da questão em sede de julgamento pois que não houve julgamento. Aliás, o Acórdão do STJ de Fixação de Jurisprudência nº 1/2015 de 27-01-2015[4] é claríssimo quando estabelece que: “A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no artigo 358.º do Código de Processo Penal.” Embora referente ao processo penal a nosso ver este AUJ do STJ é extensivamente aplicável ao processo contra-ordenacional nos termos do artº 41º do RGCO, porquanto é aplicável às contra-ordenações o princípio da vinculação temática. E, se nem com recurso ao mecanismo previsto no artº 358º do CPP o Tribunal a quo estaria legitimado a fixar os factos em falta, muito menos o poderia fazer ad hoc por moto próprio. Não, há, assim, a mais pálida dúvida de que a sentença ora recorrida padece da nulidade prevista na al. b) do nº 1 do artº 379º do CPP. Como não há a menor dúvida que a decisão administrativa e, por arrastamento, a “acusação” do MºPº, é também nula nos termos do disposto no artº 283º nº 3 al. b) do Código de Processo Penal que diz: “3 - A acusação contém, sob pena de nulidade: a) (…) b) A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada; (…)” Não sendo, a nosso ver, legalmente viável o que o Exmº Sr. PGA propõe porquanto, o Tribunal a quo não pode devolver ao MºPº uma acusação para correcção quando faltam factos, sendo que, os autos de contra-ordenação, como vimos, valem como acusação, não podendo, consequentemente, o Tribunal a quo devolver o processo contra-ordenacional à respectiva entidade administrativa para colmatar a grave falha detectada. Na verdade, quando faltam factos numa acusação, sem que tenha havido instrução, deve o juiz, nos termos do disposto no artº 311º nº 2 al. a) do Código de Processo Penal rejeitar a acusação, por manifestamente infundada, sendo que, nos termos do nº 3 al. b) do citado artº 311º do CPP a acusação é manifestamente infundada quando não contenha a narração de (todos) os factos necessários à imputação penal, e, neste caso, por analogia (artº 41º do RGCO) necessários à imputação contra-ordenacional. Contudo, mandar baixar os autos para que o Tribunal a quo corrija a referida nulidade afigura-se-nos desnecessário porquanto, esta Relação tem todos os elementos para proferir uma decisão absolutória da recorrente. É que, faltando factos essenciais ao tipo contraordenacional, e não podendo tais factos ser agora aditados, nem mesmo nos termos dos artºs 358º e 359º do CPP, dúvidas não podem restar de que à acoimada não pode ser imputada a prática da contra-ordenação pela qual foi condenado pela respectiva entidade administrativa. E os factos em falta – essencial ao preenchimento do tipo contra-ordenacional em discussão – não pode ser integrado com recurso aos mecanismos previstos quer no artº 358º do CPP – porque se trata de uma alteração substancial – quer no artº 359º do CPP porquanto o Tribunal não se pode imiscuir na vinculação temática da acusação, que no caso em apreço, é a decisão administrativa à qual o MºPº aderiu. No caso previsto no artº 359º do CPP o que estará em causa é uma imputação de novos factos mas, pressupõe-se que que existem já factos suficientes para se imputar a prática de, pelo menos, um tipo criminal, ou, um tipo contra-ordenacional. No caso em apreço, não se pode sequer falar em contra-ordenação porque faltam dois factos essenciais ao preenchimento do respectivo ilícito. Assim, e conforme Acórdão da Relação de Coimbra de 07-03-2018[5]: “I – O fundamento de rejeição [da acusação], por manifestamente infundada, só pode ser aferido diante do texto da acusação; é da sua interpretação que se concluirá, designadamente, se falta ou não a narração de factos que integram os elementos típicos objetivos e subjetivos de um determinado ilícito criminal. II – A falta, na acusação, de todos ou alguns dos elementos caracterizadores do tipo subjetivo do ilícito, mais propriamente, do dolo, não pode ser integrada no julgamento nem por recurso ao mecanismo previsto no art. 358.º do CPP, nem sequer através do mecanismo do art. 359.º, do mesmo Código, devendo o Juiz atalhar o vício antes de chegar àquela fase.” É certo que esta jurisprudência se reporta ao processo penal mas, como já o dissemos, ela tem aplicação mutatis mutandis ao processo contra-ordenacional atento o disposto no artº 41º nº 1 do RGCO que determina o seguinte: “Sempre que o contrário não resulte deste diploma, são aplicáveis, devidamente adaptados, os preceitos reguladores do processo criminal.” Sendo certo, ainda, que nos termos do artº 62º nº 1 do RGCO o envio do processo contra-ordenacional a tribunal é considerada uma “acusação”. Porquanto não faz qualquer sentido, submeter um acoimado a um processo judicial se a “acusação” que serve de base está, desde a sua nascença, votada ao insucesso por lhe faltar um elemento essencial ao preenchimento do tipo contra-ordenacional em causa. Por isso, tem a sentença que ser anulada e substituída por decisão que absolva a acoimada da coima aplicada. Consequentemente, fica prejudicada a análise das restantes questões submetidas a recurso. Decisão: Em face do acima exposto decidem os Juízes Desembargadores da Secção Penal desta Relação de Guimarães anular a sentença recorrida nos termos do artº 379º nº 1 al. b) do Código de Processo Penal e, em consequência, determinam a absolvição da recorrente da coima que lhe foi aplicada. Sem Tributação. Guimarães, 29 de Maio de 2023. Florbela Sebastião e Silva (Relatora) Paulo Correia Serafim (1º Adjunto) Pedro Freitas Pinto (2º Adjunto) [1] Ver a nota 1 do acórdão da RC de 21/01/2009, relatado por Gabriel Catarino, no proc. 45/05.4TAFIG.C2, in www.dgsi.pt, que reproduzimos: “Cfr. Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 05.12.2007; proferido no proc. nº 1378/07, disponível in Sumários do Supremo Tribunal de Justiça; www.stj.pt. “O objecto do recurso é definido e balizado pelas conclusões extraídas da respectiva motivação, ou seja, pelas questões que o recorrente entende sujeitar ao conhecimento do tribunal de recurso aquando da apresentação da impugnação – art. 412.º, n.º 1, do CPP –, sendo que o tribunal superior, tal qual a 1.ª instância, só pode conhecer das questões que lhe são submetidas a apreciação pelos sujeitos processuais, ressalvada a possibilidade de apreciação das questões de conhecimento oficioso, razão pela qual nas alegações só devem ser abordadas e, por isso, só assumem relevância, no sentido de que só podem ser atendidas e objecto de apreciação e de decisão, as questões suscitadas nas conclusões da motivação de recurso, questões que o relator enuncia no exame preliminar – art. 417.º, n.º 6, do CPP –, a significar que todas as questões incluídas nas alegações que extravasem o objecto do recurso terão de ser consideradas irrelevantes. Cfr. ainda Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 24.03.1999, CJ VII-I-247 e de 20-12-2006, processo 06P3661 em www.dgsi.pt) no sentido de que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas [Ressalvando especificidades atinentes à impugnação da matéria de facto, na esteira do doutrinado pelo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17-02-2005, quando afirma que :“a redacção do n.º 3 do art. 412.º do CPP, por confronto com o disposto no seu n.º 2 deixa alguma margem para dúvida quanto ao formalismo da especificação dos pontos de facto que no entender do recorrente foram incorrectamente julgados e das provas que impõem decisão diversa da recorrida, pois que, enquanto o n.º 2 é claro a prescrever que «versando matéria de direito, as conclusões indicam ainda, sob pena de rejeição» (...), já o n.º 3 se limita a prescrever que «quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar (...), sem impor que tal aconteça nas conclusões.” -proc 04P4716, em www.dgsi.pt; no mesmo sentido o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16-06-2005, proc 05P1577,] (art.s 403º e 412º do Código de Processo Penal), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (art. 410º nº 2 do Código de Processo Penal e Acórdão do Plenário das secções criminais do STJ de 19.10.95, publicado no DR Iª série A, de 28.12.95).”. [2] Alterado sucessivamente pelos seguintes diplomas legais: Declaração de 06-01-1983; DL nº 356/89 de 17-10; Declaração de 31-10-1989; DL nº 244/95 de 14-09; DL nº 323/2001 de 17-12 e Lei nº 109/2001 de 24-12. [3] Localizável em: http://www.dgsi.pt/jtrg.nsf/86c25a698e4e7cb7802579ec004d3832/0f0c84a73d74ebdb8025814e004799ce?OpenDocument [4] Localizável em: https://dre.pt/dre/detalhe/acordao-supremo-tribunal-justica/1-2015-66348204 [5] Localizável em: http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/8fe0e606d8f56b22802576c0005637dc/0b46478a778d855b8025824f003ee132?OpenDocument |