Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
430/15.3GEGMR.G1
Relator: JORGE BISPO
Descritores: ACUSAÇÃO PARTICULAR
REJEIÇÃO
OMISSÃO DE FACTOS
ELEMENTO SUBJECTIVO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 06/19/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: JULGADO IMPROCEDENTE
Sumário: I) A alegação de que a arguida sabia que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal não é inócua e desnecessária, não passando de um protocolo ou fórmula pré-determinada acolhida pela prática judiciária, sem qualquer valor funcional. Ao contrário, a alegação da consciência da ilicitude, seja com a utilização daquela fórmula ou através da descrição mais objetiva desse facto da vida interior, corresponde à necessidade de descrever um dos elementos do tipo subjetivo, traduzido no dolo da culpa, o qual, segundo as modernas conceções dogmáticas da teoria do crime, defendidas entre nós por Figueiredo Dias, constitui uma categoria autónoma, relativamente ao dolo do tipo, ao passo que na conceção tradicional não se distinguia entre os elementos do tipo e os elementos do tipo de culpa.
II) Na acusação deduzida nos autos, a assistente limita-se a alegar, em termos de factos relativos ao preenchimento dos elementos subjetivos, que ao dirigir-lhe as palavras "filha da puta" e "pretendia a arguida atingir a assistente na sua honra e consideração social, o que conseguiu". Esta articulação contém factos que integram o elemento volitivo do dolo (direto) e do elemento intelectual do dolo. Já em relação aos elementos integrantes da consciência da ilicitude (elemento emocional), habitualmente traduzido na expressão de que "o arguido atuou sabendo que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal", ou por qualquer outra que comporte o respetivo conteúdo, a acusação omite toda e qualquer referência.
III) Concluindo-se, assim, que a acusação particular deduzida nos autos não contém a descrição dos factos integrantes da totalidade dos elementos subjetivos do tipo, necessária à verificação do crime imputado à arguida, e que, por outro lado, tais elementos em falta não poderão vir a ser aditados em julgamento, não restava outra solução ao Juiz a quo senão considerá-la como manifestamente infundada, por os factos nela descritos não constituírem crime, e, como tal, rejeitá-la ao abrigo do disposto nos artºs 283º, nº 3, b) e 311º, nºs 2, a), e nº 3, d) do CPP.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os Juízes na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães

I. RELATÓRIO
1. No processo comum com intervenção de juiz singular com o NUIPC 430/15.3GEGMR, que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Braga, no Juízo Local Criminal de Guimarães - J2 (anterior Secção Criminal da Instância Local), foi proferido despacho, ao abrigo do preceituado nos art.s 311º, n.º 2, al. a), e n.º 3, al. d) [1], e 386º [2], ambos do Código de Processo Penal, a rejeitar a acusação particular deduzida pela assistente, R. B., contra a arguida, C. R., imputando-lhe a prática de um crime de injúria, previsto e punido pelo art. 181º do Código Penal.
2. Desta decisão recorreu a assistente, motivando o recurso com as seguintes conclusões, que se transcrevem [3]:
«1ª) Por despacho de fls. …, e por aplicação das normas constantes do art.º 311º n.º 2 al. a) e n.º 3 b) do Código de Processo Penal, veio a Mma. Senhora Juiz de Direito rejeitar, por manifestamente infundada, a acusação particular deduzida pela assistente contra a arguida C. R., imputando-lhe a prática de um crime de injúrias, previsto e punido pelo art.o 181º do Código Penal.
2ª) Alicerça o douto despacho o juízo de falta de fundamentação manifesta da acusação particular, em resumo, porque “Num crime doloso, da acusação há de constar necessariamente, pela sua relevância para a possibilidade de imputação do crime ao agente, que o arguido agiu livre (afastamento das causas de exclusão da culpa - o arguido pôde determinar a sua ação), deliberada (elemento volitivo ou emocional do dolo - o agente quis o facto criminoso) e conscientemente (imputabilidade - o arguido é imputável), bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei (elemento intelectual do dolo, traduzido no conhecimento dos elementos objetivos do tipo), entendendo-se que a factualidade vertida na acusação não é suficiente para configurar o crime imputado à arguida.
3ª) Entende a recorrente, porém, que a decisão em causa não pode manter-se.
4ª) Como bem explica o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, datado de 25/02/2015 e disponível em www.dgsi.pt: “I – O erro sobre a ilicitude ou sobre a punibilidade que exclui o dolo (art.º 16º 1 CP) apenas se deve e pode referenciar aos crimes cuja punibilidade não se pode presumir conhecida de todos os cidadãos. II - Aos crimes cuja punibilidade se pode presumir que seja conhecida por todos os cidadãos, o eventual erro sobre a ilicitude só pode ser subsumível ao artº 17º CP, em caso em que a culpa só é afastada se a falta de consciência da ilicitude do facto decorre de erro não censurável. III - A censurabilidade só é de afastar se e quando se trate de proibições de condutas cuja ilicitude material não esteja devidamente sedimentada na consciência ético social.”, sendo certo que, no caso em apreço falamos de crimes conhecidos de todos como tal e que fazem parte da consciência social.
5ª) Como se ensina em Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães datado de 18/11/2013, “A solução está nas normas do art. 17º do Cod. Penal, sendo que a consequência não é a improcedência da acusação. A falta da consciência da ilicitude só exclui a culpa se o erro não for censurável. (…) Se o erro radicar numa “deficiência da própria consciência ética do agente, que não lhe permite apreender corretamente os valores jurídico penais e que por isso revela uma atitude de contrariedade ou indiferença perante o dever-ser jurídico-penal”, o agente é punido com a pena aplicável ao crime doloso respetivo (art. 17 nº 2).
6ª) Como se escreveu no acórdão da Relação do Porto de 2-2-2005, Proc. JTRP00037657 (Relator António Gama) disponível no sítio do ITIJ daquele tribunal, ‘o conhecimento da proibição legal só é indispensável quando o tipo de ilícito objetivo abarca condutas cuja relevância axiológica é tão pouco significativa que o ilícito é primariamente constituído não só ou mesmo nem tanto pela matéria proibida, quanto também pela proibição legal. (…) Sendo os factos narrados na acusação suscetíveis de fundamentarem uma condenação, não é caso de manifesta improcedência.”.
7ª) Ao contrário do que parece resultar ser a interpretação do douto despacho de que se recorre, “ A consciência da ilicitude não respeita ao dolo do tipo, mas antes à culpa. Enquanto facto psicológico de conteúdo positivo não tem que ser alegado e provado em cada caso, pelo menos nos chamados “crimes em si” do direito penal clássico onde se inserem os crimes de difamação e injúria.” – cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, datado de 05/03/2013, disponível em www.dgsi.pt.
8ª) No caso em apreço, não será de negar que a acusação particular oferecida é de simplicidade manifesta e que nela não se recorreu ao uso textual da fórmula habitualmente usada pelo Ministério Público, mas será de considerar que esta contém o bastante para que, considerado provado o que nela se alega, condenar o arguido pelos crimes que lhe são imputados.
9ª) Na verdade, nela se imputam à arguida factos que circunstanciam o tempo e o espaço das imputações feitas, os atos por si praticados e, em especial: que os mesmos são adequados a ofender a da assistente; que a arguida tinha consciência que os seus atos eram aptos a ofender a honra da assistente; que a arguida agiu com a intenção de ofender a honra da assistente; e, ainda, que os atos praticados pela arguida, de facto, concretizaram o seu propósito, isto é, lesaram a honra da assistente.
10ª) Tanto basta para concluir que a acusação particular deduzida contem todos os elementos elencados pelo n.º 3 do art. 283º do Código de Processo Penal, imputando-lhe a prática de factos de natureza objetivamente criminosa e, bem assim, o intuito de praticar esses crimes, pelo que mal andou o douto despacho de fls… . ao rejeitar a acusação particular oferecida e, em consequência, rejeitar o pedido de indemnização civil deduzido, por conter a indicada peça todos os elementos legalmente exigidos.
11ª) Assim e pelas razões supra expostas deverá o douto despacho agora colocado em crise e que não recebeu a acusação particular e, em consequência, não recebeu o pedido de indemnização civil formulado, ser revogado e consequentemente ser substituído por outro que receba a acusação particular e o pedido de indemnização civil apresentados pela assistente, submetendo a arguida a julgamento por todos os factos aí narrados.
12ª) Neste termos, o douto despacho recorrido violou os art.os 16º, 17º e 181º do Código Penal e, bem assim, os art.os 311º, n.º 2 al. a) e n.º 3 al. b), c) e d); art. 283º n.º 3, estes do Código de Processo Penal.
NESTES TERMOS e nos que V. Exas. doutamente suprirão, deve o presente recurso ser julgado provido e, em consequência, ser revogado o despacho que rejeitou a acusação particular deduzida e, em consequência, rejeitou o pedido de indemnização civil formulado, substituindo-se por outro, que receba a acusação particular e o pedido de indemnização civil,
a bem da JUSTIÇA!»
3. A Exma. Procuradora-Adjunta na primeira instância respondeu ao recurso, opinando no sentido de lhe ser negado provimento, mantendo-se a decisão recorrida, por entender que, efetivamente, a acusação particular não indica factos que consubstanciem o elemento subjetivo do crime de injúria que a assistente imputa à arguida e dela nada consta quanto à consciência da ilicitude, o que a torna manifestamente infundada, constituindo motivo de rejeição.
4. O Exmo. Juiz a quo proferiu despacho a sustentar a decisão posta em crise, por os argumentos da recorrente não merecerem o seu acolhimento nem abalarem minimamente a mesma.
5. Neste Tribunal da Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, no parecer que emitiu, entendeu que o Ministério Público na primeira instância respondeu de forma clara, analisando detalhadamente e com muito acerto a questão levantada, concordando inteiramente com essa posição, acrescentando que a questão, em tempos controversa, se encontra hoje resolvida pelo acórdão uniformizador de jurisprudência n.º 1/2015, devendo, pois, o recurso ser julgado improcedente.
6. Cumprido o disposto no art. 417º, n.º 2, do Código de Processo Penal, sem que tenha sido apresentada qualquer resposta a esse parecer, foram colhidos os vistos, após o que o processo foi presente à conferência, de harmonia com o preceituado no art. 419º, n.º 3, al. c) do mesmo diploma.


II. FUNDAMENTAÇÃO

1. Delimitação do objeto do recurso
Sendo entendimento pacífico que o âmbito dos recursos é delimitado pelas conclusões formuladas na motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso [4], no caso presente a única questão a decidir consiste em saber se a acusação é omissa quanto à descrição dos factos que permitam integrar os elementos subjetivos do crime de injúria, conduzindo tal omissão à rejeição da acusação por ser manifestamente infundada, pressuposto da sua rejeição ao abrigo do art. 311º, n.º 2, al. a), e n.º 3, al. d), do Código de Processo Penal, diploma a que pertencem os demais preceitos citados sem qualquer menção.

2. Da decisão recorrida
O despacho recorrido tem o seguinte teor (transcrição):
«O tribunal é o competente.
Não nulidades, exceções ou questões prévias que cumpra conhecer.
*
1. A assistente R. B., deduziu acusação contra C. R., imputando-lhe a prática de factos que entende serem suscetíveis de integrar um crime de injúria p. e p. pelos art.º 181º do C.P..
O MºPº, acompanhou a acusação particular.
2. Nos termos do disposto no art.º 311º, n.º 2, al. a) do C.P.P., se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido de rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada.
3. Para efeitos do disposto naquele preceito, considera-se a acusação manifestamente infundada se, entre outras circunstâncias, os factos nela descritos não constituírem crime (art.º 311º, n.º 3, al. d ) do C.P.P.).
Num crime doloso, da acusação há de constar necessariamente, pela sua relevância para a possibilidade de imputação do crime ao agente, que o arguido agiu livre (afastamento das causas de exclusão da culpa - o arguido pôde determinar a sua ação), deliberada (elemento volitivo ou emocional do dolo - o agente quis o facto criminoso) e conscientemente (imputabilidade - o arguido é imputável), bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei (elemento intelectual do dolo, traduzido no conhecimento dos elementos objetivos do tipo) – Acórdão da Relação de Coimbra, 01-06-2011, publicado em www.dgsi.pt.
Segundo o Professor Germano Marques da Silva, in Direito Penal Português, vol. II, pág. 162, pode definir-se o dolo como a vontade consciente de praticar um facto que preenche um tipo de crime, constando a vontade dolosa de dois momentos: a) a representação ou visão antecipada do facto que preenche um tipo de crime (elemento intelectual ou cognoscitivo); e b) a resolução, seguida de um esforço do querer dirigido à realização do facto representado (elemento volitivo).
Ainda segundo o mesmo Professor, na obra citada, não basta o conhecimento de que o facto preenche um tipo de crime, sendo necessária a própria consciência da ilicitude, pois nos expressos termos do artigo 16º do Código Penal, a falta de consciência da ilicitude exclui o dolo. No mesmo sentido aponta o Prof. Figueiredo Dias, in Direito Penal, Parte Geral, tomo I, págs. 332 e 333.
Segundo aquele Professor a doutrina hoje dominante conceitualiza o dolo, na sua formulação mais geral, como o conhecimento e vontade de realização do tipo objetivo de ilícito, sendo o conhecimento o momento intelectual e a vontade o momento volitivo de realização do facto.
Também Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do CPP (…), 2ª ed., UCE, pág. 791, “Assim, o fundamento da inexistência de factos na acusação que constituam crime só pode ser aferido diante do texto da acusação, quando faltem os elementos típicos objetivos e subjetivos de qualquer ilícito criminal da lei penal Portuguesa (…)”.
Assim, entende-se que a factualidade vertida na acusação não é suficiente para configurar o crime imputado às arguidas.
Vide o Ac. fixação jurisprudência nº 1/2015, publicado no D.R. nº 18/2015, S.I., de 27.01.2015, «A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjetivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no artigo 358.º do Código de Processo Penal.»
Nestes termos, e ao abrigo do preceituado no artigo 311.º, n.º 2, al. a) e n.º 3, al. b) e 386.º do Código de Processo Penal, rejeita-se a acusação particular deduzida por ser manifestamente infundada.
Custas a cargo da assistente, com taxa de justiça que se fixa em 01 U.C.
Notifique.»

3. Apreciação do recurso
3.1 - A assistente e ora recorrente deduziu acusação particular contra a arguida, imputando-lhe a prática de um crime de injúria, p. e p. pelo art. 181º do Código Penal, a qual foi acompanhada pelo Ministério Público nos termos e para os efeitos do art. 285º, n.º 4.
No despacho de saneamento do processo (decisão recorrida), o Exmo. Juiz a quo concluiu que a factualidade vertida nessa acusação não é suficiente para configurar o crime imputado à arguida, por não conter os elementos integrantes do dolo, sendo, pois, manifestamente infundada, razão pela qual a rejeitou nos termos do art. 311º, n.ºs 2, al. a), e 3, al. b) (embora invocando, na parte da fundamentação do despacho, a al. d) deste último normativo).
Em contraposição, no recurso defende a recorrente que a acusação particular descreve que a arguida tinha consciência que os seus atos eram aptos a ofender a honra da assistente, que agiu com essa intenção e que concretizou esse propósito, sendo que os factos relativos à consciência da ilicitude não carecem de ser alegados relativamente aos crimes cuja ilicitude é conhecida de todos, como é o caso da injúria.
Argumenta, em síntese, que a acusação particular por si deduzida, ao imputar à arguida a prática de factos objetivamente injuriosos e o intuito de praticar esse crime, contém todos os elementos elencados no n.º 3 do art. 283º, pedindo, assim, a revogação do despacho recorrido e a sua substituição por outro que receba tal acusação.
Vejamos se lhe assiste razão.
3.2 - A acusação, sendo formalmente a manifestação da pretensão de que o arguido seja submetido a julgamento pela prática de determinado crime e por ele condenado, constitui o pressuposto indispensável da fase de julgamento, por ela se definindo e fixando o seu objeto [5].
Dispõe o art. 283º, n.º 3, al. b), aplicável à acusação particular por força do n.º 3 do art. 285º, que a acusação contém, sob pena de nulidade, “a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada…”.
Trata-se de uma imposição decorrente do princípio do acusatório e que surge como forma de assegurar ao arguido todas as garantias de defesa, em respeito pelo art. 32º, n.ºs 1 e 5, da Constituição.
O atual modelo, vigente desde o Código de Processo Penal de 1987, aprovado pelo DL n.º 78/87, de 17 de fevereiro, estrutura-se no referido princípio do acusatório, embora mitigado com uma vertente investigatória, tendo, nessa parte, a respetiva autorização legislativa sido concedida com o sentido e extensão de estabelecimento da máxima acusatoriedade do processo penal, temperada com o princípio da investigação judicial [6].
Um dos traços estruturais do princípio acusatório consiste na clara distinção entre, por um lado, a entidade que tem a seu cargo uma fase investigatória e, se for o caso, sustenta uma acusação, e, por outro lado, uma entidade distinta que julga, em audiência pública e contraditória, os factos objeto dessa acusação.
Por sua vez, o art. 311º, n.º 2, al. a), permite ao juiz, quando o processo é remetido para julgamento sem ter havido instrução, “rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada”.
A reforma processual penal operada pela Lei n.º 59/98 de 25 de agosto, introduziu determinadas alterações que vieram reforçar o referido modelo, nomeadamente explicitando as funções dos vários sujeitos processuais, afastando várias dúvidas e divergências jurisprudenciais, como sucedeu com o aditamento do n.º 3 do art. 311º, segundo qual:
“…
3 - Para efeitos do disposto no número anterior, a acusação considera-se manifestamente infundada:
a) Quando não contenha a identificação do arguido;
b) Quando não contenha a narração dos factos;
c) Se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam; ou
d) Se os factos não constituírem crime.
…”.
Ao prever-se, de modo claro e taxativo, as situações que podem levar à conclusão de se estar perante uma acusação manifestamente infundada, pressuposto da sua rejeição, limitaram-se os poderes do juiz sobre a acusação, antes do julgamento, confinando-os, no ponto de vista material, à valoração jurídica dos factos tidos como suficientemente indiciados pelo acusador. Mas, ainda assim, com uma margem de atuação bastante restrita, uma vez que apenas a pode rejeitar quando for manifestamente infundada, ou seja, quando for inequívoco e incontroverso que os factos nela descritos não constituem crime, pelo que, em face dos seus próprios termos, não tem condições de viabilidade, de nada servindo recebê-la e fazer prosseguir o processo, sujeitando o arguido inutilmente a julgamento, quando ela está votada ao insucesso.
3.3 - Na situação em apreço, remetido o processo para julgamento, sem ter havido instrução, o Exmo. Juiz a quo, ao proferir o despacho a que alude o art. 311º, rejeitou a acusação particular, na qual a assistente imputa à arguida a prática de um crime de injúria, p. e p. pelo art. 181º do Código Penal, considerando-a manifestamente infundada, por entender que da mesma não constam os factos integrantes dos elementos subjetivos desse tipo de crime.
Em causa está, pois, a previsão da al. d) do n.º 3 do art. 311º, ou seja, os factos descritos na acusação não constituírem crime, o que se traduz numa das quatro situações em que a mesma é manifestamente infundada e, por isso, o juiz pode rejeitá-la sem violar o princípio do acusatório.
Analisada a acusação particular constata-se que, em termos de descrição de factos, dela apenas consta que, nas circunstâncias de tempo em apreço, «a arguida …, enquanto a ofendida se encontrava no logradouro da sua residência, dirigiu-se a esta, chamando-lhe “filha da puta”. Com tais palavras, pretendia a arguida atingir a assistente na sua honra e consideração social, o que conseguiu, até porque tal comportamento durou cerca de 30 minutos, período durante o qual, a vizinhança, bem como quem por ali passava e assistiu ao chorrilho de injúrias dirigidas à assistente, o que lhe causou enorme vergonha e embaraço social».
É sabido que nos elementos do tipo subjetivo de ilícito incluem-se os que se prendem com o dolo ou a negligência, dispondo o art. 13º do Código Penal que “só é punível o facto praticado com dolo ou, nos casos especialmente previstos na lei, com negligência”.
O dolo, única modalidade de culpa de que pode revestir o crime que nos ocupa (injúria), é composto por vários elementos, habitualmente designados de forma sintética como "o conhecimento e a vontade de realização do tipo objetivo de ilícito"(cf. art. 14º do Código Penal).
Segundo a doutrina tradicional do crime, de que Eduardo Correia foi o principal defensor entre nós, o dolo desdobra-se num elemento intelectual e num elemento volitivo ou emocional, ao passo que para uma nova corrente, defendida por Figueiredo Dias, este elemento emocional constitui um terceiro e autónomo elemento.
O elemento intelectual traduz-se no conhecimento (enquanto previsão ou representação), pelo agente, das circunstâncias do facto, ou seja, dos elementos materiais constitutivos do tipo objetivo do ilícito, incluindo eventuais circunstâncias modificativas agravantes.
Relativamente a elementos normativos do tipo [7], o conhecimento que se exige é apenas que a representação do agente, ao nível próprio das suas representações, corresponda, no essencial, ao conteúdo da valoração jurídica, cumprindo assim a função de orientar o agente para a ilicitude do facto [8].
Há, no entanto, casos em que o uso de expressões jurídicas mais elaboradas impõe uma maior exigência de conhecimento, como sucede por exemplo no direito penal secundário, e outros em que, ao contrário, apenas se exige ao agente um conhecimento dos pressupostos materiais da valoração, como sucede em relação a noções como "ascendente", "descendente", "bons costumes", "ilegitimidade", "dever de garante", etc. [9].
Em suma, o que o elemento intelectual exige é o conhecimento do sentido ou significado correspondente ao tipo de ilícito dos diversos elementos materiais e normativos que o compõem.
Por seu lado, o elemento volitivo do dolo consiste na especial direção da vontade do agente na realização do facto típico, depois de ter representado (ou previsto) as circunstâncias ou elementos do tipo objetivo do ilícito. Em função da diversidade dessa atitude, são diversas as espécies de dolo previstas nos vários números do art. 13º do Código Penal: dolo direto (em que o agente tem a intenção de realizar o facto criminoso), o dolo necessário (quando o agente não quer o facto, mas prevê-o como consequência necessária da sua conduta) e o dolo eventual (quando o agente prevê o facto como consequência possível, conformando-se com o resultado).
Para a posição tradicional defendida por Eduardo Correia, o elemento volitivo não se confunde com o aspeto psicológico, traduzido num simples ato de volição, em que o agente quer praticar o facto (naturalístico), tendo representado todos os seus elementos. O que caracteriza o dolo é a vontade do agente revelar a sua personalidade contrária ao direito, ou seja, a sua determinação em sobrepor os seus próprios sentimentos e interesses aos valores tutelados pelo direito criminal. Daí que, para esta posição, o dolo do tipo legal de crime contivesse já o chamado elemento emocional, traduzido na consciência, por parte do agente, de que realizava um tipo objetivo de ilícito e que tal supunha a sobreposição dos seus interesses egoístas aos valores tutelados pela lei.
Já a posição defendida por Figueiredo Dias distingue entre dolo do tipo (de ilícito) e o dolo enquanto pertencente ao tipo de culpa. Segundo esta conceção, «o dolo não pode esgotar-se no tipo de ilícito (por consequência, não é igual ao dolo do tipo), mas exige do agente um qualquer momento emocional que se adiciona ao elemento intelectual e volitivo contidos no "conhecimento e vontade de realização". (…); antes se torna indispensável um elemento que já não pertence ao tipo de ilícito, mas à culpa ou ao tipo de culpa. Com esse elemento se depara quando se atente em que a punição por facto doloso só se justifica quando o agente revele no facto uma posição ou uma atitude de contrariedade ou indiferença perante o dever-ser jurídico-penal» [10], ou seja, uma qualquer posição ou atitude de contrariedade ou indiferença face às proibições ou imposições jurídicas, revelada pelo agente no facto e que justifica a punição a título de dolo.
Assim, em resumo, de acordo com os ensinamentos de Figueiredo Dias [11], a culpa jurídico penal revela-se através do tipo de culpa doloso e do tipo de culpa negligente, verificando-se o primeiro quando, perante um ilícito típico doloso, se comprova que o seu cometimento deve imputar-se a uma atitude íntima do agente contrária ou indiferente ao Direito e às suas normas.
Esta atitude íntima, de sobreposição dos interesses do agente do facto ao desvalor do ilícito pressupõe que este, para além de representar e querer a realização do tipo objetivo (dolo do tipo), atue também com consciência do ilícito isto é, representando que o facto era proibido pelo Direito.
A consciência da ilicitude é também momento constitutivo do dolo (não do tipo de ilícito mas do tipo de culpa), acrescendo, como seu momento emocional, ao conhecimento de todas as circunstâncias do facto (elemento intelectual) e à vontade de realizar o facto típico (elemento volitivo), que são elementos do dolo do tipo, traduzindo-se na indiferença ou oposição da vontade do agente aos valores protegidos pela norma (tipo de culpa doloso).
A acusação tem de descrever os elementos em que se analisa o dolo, ou seja: o conhecimento (ou representação ou, ainda, consciência em sentido psicológico) de todas as circunstâncias do facto, de todos os elementos descritivos e normativos do tipo objetivo do ilícito; a intenção de realizar o facto, se se tratar de dolo direto, ou a previsão do resultado danoso ou da criação de perigo (nos crimes desta natureza) como consequência necessária da sua conduta (tratando-se de dolo necessário), ou ainda a previsão desse resultado ou da criação desse perigo como consequência possível da mesma conduta, conformando-se o agente com a realização do evento (se se tratar de dolo eventual).
A esses elementos acresce o referido elemento emocional, traduzido na atitude de indiferença, contrariedade ou sobreposição da vontade do agente aos valores protegidos pela norma e fazendo parte, como vimos, do tipo de culpa doloso.
Este elemento emocional é dado através da consciência da ilicitude e integra a forma de aparecimento mais perfeita do delito doloso. Daí que só possa afirmar-se que o agente atuou dolosamente quando, nomeadamente, esteja assente que o mesmo atuou com conhecimento ou consciência do carácter ilícito e criminalmente punível da sua conduta.
Todos esses elementos, que constituem os elementos subjetivos do crime, são habitualmente expressos na acusação através da utilização de uma fórmula pela qual se imputa ao agente ter agido de forma livre (isto é, podendo agir de modo diverso, em conformidade com o direito ou dever-ser jurídico), voluntária ou deliberadamente (querendo a realização do facto), conscientemente (isto é, tendo representado na sua consciência todas as circunstâncias do facto) e sabendo que a sua conduta é proibida e punida por lei (consciência da proibição como sinónimo de consciência da ilicitude).
A questão de saber se, perante a omissão total ou parcial, na acusação, de elementos constitutivos do tipo subjetivo do ilícito, nomeadamente do dolo, o tribunal do julgamento pode, por recurso ao artigo 358º do Código de Processo Penal, integrar os elementos em falta, dividiu a jurisprudência, tendo o Pleno das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça, através do acórdão n.º 1/2015 [12], acabado por fixar a seguinte jurisprudência uniformizadora: "A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjetivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e da vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no artigo 358.º do Código de Processo Penal."
A oposição de julgados verificou-se entre dois acórdãos que versaram precisamente sobre a falta de descrição na acusação particular dos elementos subjetivos do crime de injúria, incluindo a consciência da ilicitude.
A propósito deste elemento, reconhecendo que modernamente o problema se coloca de forma diferente do que era usual colocar-se, o acórdão uniformizador refere o seguinte (no ponto 10.2.3.1):
«O conhecimento da proibição legal, que não é exatamente equivalente a “consciência da ilicitude” será de exigir em certos casos em que a relevância axiológica de certos comportamentos é muito pouco significativa ou não está enraizada nas práticas sociais e em que, portanto, o conhecimento dos elementos do tipo e a sua realização voluntária e consciente não é suficiente para orientar o agente de acordo com o desvalor comportado pelo tipo de ilícito. «Por isso, o desconhecimento desta proibição impede o conhecimento total do substrato de valoração e determina uma insuficiente orientação da consciência ética do agente para o problema da ilicitude. Por isso, em suma, neste campo o conhecimento da proibição é requerido para a afirmação do dolo do tipo […] » FIGUEIREDO DIAS, ob. cit., pp. 363/364).
A necessidade de tal exigência faz-se sentir sobretudo a nível do direito contraordenacional, do direito penal secundário, relativamente a certas incriminações de menor relevância axiológica, mas também a nível de algumas incriminações do direito penal de justiça, principalmente no que toca à proteção de bens jurídicos cuja consciência se não encontra ainda suficientemente solidificada na comunidade social. Então, faz sentido exigir o conhecimento da proibição como forma de realização do dolo do tipo.
Na generalidade dos casos, porém, o sentido ou significação da ilicitude do facto promana da realização pelo agente da factualidade típica, agindo com o dolo requerido pelo tipo. Na verdade, em crimes como o de homicídio, ofensa à integridade física, furto, injúrias, pôr a questão de saber se o agente, que atuou conscientemente, representando todas as circunstâncias do facto, e querendo, mesmo assim, a sua realização, atuou ou não com conhecimento da proibição legal, isto é, se sabia que matar, agredir fisicamente uma pessoa, subtrair coisa alheia para dela se apropriar, ofender a honra de alguém, era proibido legalmente, seria o mesmo que questionar se ele efetivamente vivia neste mundo ou se não seria um extraterrestre acabado de aterrar neste planeta, como no filme de Steven Spielberg. (…)
Quanto à consciência da ilicitude, é evidente que ela é uma exigência da atuação dolosa do agente na realização do ilícito típico. Porém, a sua compreensão dogmática coloca-se a um outro nível e tem a ver com a questão da relevância do erro sobre a ilicitude, contemplada no art. 17.º do CP. O erro sobre a ilicitude não exclui o dolo, ao contrário do erro sobre a factualidade típica, na qual se pode incluir, em certas circunstâncias, como as já referidas, o conhecimento sobre proibições legais. Fica, porém, ressalvada, quanto a este tipo de erro, a punibilidade da negligência nos termos gerais (art. 16.º). O erro sobre a ilicitude exclui a culpa, se o erro não for censurável ao agente (sendo uma causa de exclusão da culpa), mas faz persistir o dolo, no caso de o erro ser censurável. Daí que o facto praticado sem consciência da ilicitude seja equiparável ao praticado com essa consciência, desde que não possa afastar-se a censurabilidade de tal erro.
Escreve FIGUEIREDO DIAS, cujas ideias básicas, muito pela rama, intentamos transpor para aqui, que a razão de ser da diferença entre o regime do erro sobre proibições, cujo conhecimento seja razoavelmente indispensável para o agente tomar conhecimento da ilicitude (art. 16.º), conduzindo à exclusão do dolo do tipo, e o erro sobre o carácter ilícito do facto (art. 17.º), fundamentador do dolo da culpa, está em que «neste último caso, o erro não radica ao nível da consciência psicológica (ou consciência intencional […]), mas ao nível da própria consciência ética (ou consciência dos valores (…), revelando a falta de sintonia com a ordem dos valores ou dos bens jurídicos que ao direito penal cumpre proteger», ao passo que, no primeiro caso, trata-se da «falta de conhecimento necessário a uma correta orientação da consciência ética do agente para o desvalor do ilícito (Direito Penal, cit., pp. 356 e ss. e 531 e ss.)
Diz ainda o mesmo Autor, noutra passagem da mesma obra, que o que se visa com a exigência do conhecimento, representação ou consciência (psicológica ou intencional) de todas as circunstâncias do facto realizador de um tipo de ilícito objetivo, é que o agente conheça tudo quanto é necessário a uma correta orientação da sua consciência ética para o desvalor jurídico que concretamente se liga à ação intentada, para o seu carácter ilícito; porque tudo isso é indispensável para se poder afirmar que o agente detém, ao nível da sua consciência intencional ou psicológica, o conhecimento necessário para que a sua consciência ética, ou dos valores, se ponha e resolva corretamente o problema da ilicitude do comportamento (sublinhados nossos) [ob. cit., p. 351).
Logo se seguida pode ler-se o seguinte, sendo nosso o sublinhado:
«Em conclusão: a acusação, enquanto delimitadora do objeto do processo, tem de conter os aspetos que configuram os elementos subjetivos do crime, nomeadamente os que caracterizam o dolo, quer o dolo do tipo, quer o dolo do tipo de culpa no sentido referido, englobando a consciência ética ou a consciência dos valores e a atitude do agente de indiferença pelos valores tutelados pela lei criminal, ou seja: a determinação livre do agente pela prática do facto, podendo ele agir de modo diverso; o conhecimento ou representação de todas as circunstâncias do facto, tanto as de carácter descritivo, como as de cariz normativo e a vontade ou intenção de realizar a conduta típica, apesar de conhecer todas aquelas circunstâncias, ou, na falta de intenção, a representação do evento como consequência necessária (dolo necessário) ou a representação desse evento como possível, conformando-se o agente com a sua produção (dolo eventual), atuando, assim, conscientemente contra o direito.
O problema da relevância ou pouco significativa relevância axiológica da conduta, aflorado no acórdão recorrido, tem relevo, como vimos atrás, em sede de conhecimento da proibição, ou seja, dos elementos do tipo legal, quando seja razoavelmente de exigir o seu conhecimento para uma correta orientação da consciência ética do agente no sentido do desvalor do facto.»
Também no ponto 11 da fundamentação do acórdão se fez constar o seguinte, sendo igualmente nossos os sublinhados:
«Conexionado com o problema anterior, coloca-se finalmente a questão de saber se a falta, na acusação, de todos ou de alguns dos elementos caracterizadores do tipo subjetivo do ilícito, mais propriamente, do dolo (englobando o dolo da culpa, no sentido atrás referido), pode ser integrado no julgamento por recurso ao mecanismo previsto no art. 358.º do CPP.
Tal equivalerá a considerar essa integração como consubstanciando uma alteração não substancial dos factos.
11.1. Já vimos que esses elementos têm de constar obrigatoriamente da acusação, implicando a sua falta a nulidade do libelo (art. 283.º, n.º 3, alínea b) do CPP).
Por conseguinte, tendo o processo sido despachado para julgamento, sem ter passado pela instrução, o respetivo juiz (presidente) deveria rejeitar a acusação, não só por a mesma ser nula, nos moldes referidos, mas também por ser manifestamente infundada, nos termos do art. 311.º, n.ºs 2, alínea a) e 3, alínea b) do CPP – não conter a narração dos factos.
Claro que uma tal visão implica que os factos em falta na descrição constante da acusação (pressuposto que ela contém uma descrição relativa a outros factos) são essenciais, imprescindíveis, e o que falta corresponde à falta de narração a que se refere o normativo referido. Ou seja: a exigida narração dos factos é a de todos os factos constitutivos do tipo legal de crime, sejam eles pertencentes ao tipo objetivo do ilícito, sejam ao tipo subjetivo e ainda, naturalmente, na sequência do que temos vindo a expor, os elementos referentes ao tipo de culpa. A factualidade relevante, como factualidade típica, portadora de um sentido de ilicitude específico, só tem essa dimensão quando abarque a totalidade dos seus elementos constitutivos. Não existem puros factos não valorados, como vimos, a propósito, nomeadamente, das teorias do objeto do processo, e a valoração especifica que aqui se reclama, consonante com um tipo de ilícito, só se alcança com a imputação do facto ao agente, fazendo apelo à representação do facto típico, na totalidade das suas circunstâncias, à sua liberdade de decisão, como pressuposto de toda a culpa, e, envolvendo a consciência ética ou dos valores, à posição que tomou, do ponto de vista da sua determinação pelo facto. Sem isso, não está definida a conduta típica, ilícita e culposa.»
Da leitura dos transcritos segmentos da fundamentação do acórdão uniformizador, mormente daqueles que foram por nós sublinhados, parece claro que, contrariamente ao defendido pela recorrente, com apoio nos vários arestos por si citados na motivação do recurso (todos, porém, anteriores àquele acórdão), os factos integrantes da consciência da ilicitude, enquanto dolo da culpa, têm necessariamente de ser alegados na acusação.
Neste sentido se pronunciaram, nomeadamente, os acórdãos da Relação de Coimbra de 02-03-2016 [13] e desta Relação de Guimarães de 21-11-2016 [14] em que o ora relator interveio como adjunto.
Daí que também não subscrevamos o entendimento expendido no acórdão da Relação do Porto de 26-04-2017 [15], no sentido de que a jurisprudência fixada constante do acórdão n.º 1/2015, não abrange a consciência da ilicitude, como causa excluidora da culpa.
Com efeito, parece-nos que da fundamentação desse aresto uniformizador parece resultar claro que sendo a consciência da ilicitude, como já referimos, uma exigência da atuação dolosa do agente na realização do facto típico, acrescendo, como elemento emocional, ao conhecimento e vontade de realizar o facto típico (elementos do dolo do tipo), traduzindo-se na indiferença ou oposição da vontade do agente aos valores protegidos pela norma (tipo de culpa doloso), não pode deixar de constar da acusação.
Assim, diferentemente do sustentado pela recorrente, a alegação de que a arguida sabia que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal não é inócua e desnecessária, não passando de um protocolo ou fórmula pré-determinada acolhida pela prática judiciária, sem qualquer valor funcional. Contrariamente, a alegação da consciência da ilicitude, seja com a utilização daquela fórmula ou através da descrição mais objetiva desse facto da vida interior, corresponde à necessidade de descrever um dos elementos do tipo subjetivo, traduzido no dolo da culpa, o qual, segundo as modernas conceções dogmáticas da teoria do crime, defendidas entre nós por Figueiredo Dias, constitui uma categoria autónoma, relativamente ao dolo do tipo, ao passo que na conceção tradicional não se distinguia entre os elementos do tipo subjetivo e os elementos do tipo de culpa.
3.4 - Na acusação particular deduzida nos autos, a assistente limita-se a alegar, em termos de factos relativos ao preenchimento dos elementos subjetivos, que ao dirigir-lhe as palavras “filha da puta”, “pretendia a arguida atingir a assistente na sua honra e consideração social, o que conseguiu”.
Essa articulação apenas contém factos que integram o elemento volitivo do dolo (direto) de injúria, traduzido na vontade do agente de praticar o facto.
Já em relação ao elemento intelectual do dolo, embora não seja expressamente alegado que a arguida agiu de forma consciente, ou seja, sabendo o que estava a fazer, com conhecimento das circunstâncias da factualidade típica (elementos integrantes do tipo), afigura-se-nos defensável considerar que tal elemento intelectual estará contido na alegação de que pretendeu atingir a assistente na sua honra e consideração, o que pressupõe logica e necessariamente que tinha conhecimento do potencial ofensivo das palavras que proferiu, pois quem pretende deliberadamente ofender outrem na sua honra com determinadas palavras, conhece e pressupõe necessariamente o potencial ofensivo das mesmas.
Já em relação aos elementos integrantes da consciência da ilicitude (elemento emocional), enquanto tipo de culpa que supra ficou caracterizado, habitualmente traduzida pela expressão de que “o arguido atuou sabendo que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal”, ou por qualquer outra que comporte o respetivo conteúdo, a acusação omite toda e qualquer referência, o que, como vimos, não pode suceder.
Como é sabido, o dolo é um conceito jurídico que tem de ser preenchido por factos.
Embora, a nível probatório, o dolo, enquanto facto interno, se possa deduzir dos factos externos, objetivos, tal não dispensa que tenha de constar da acusação, sob pena de nunca estar preenchido o tipo de crime pelo qual se pretende levar o arguido a julgamento.
Com efeito, há que destrinçar entre a alegação de factos pertinentes (neste caso relativos ao elemento subjetivo) e a respetiva prova, ou seja, distinguir, por um lado, o que é facto concreto a provar (sendo imprescindível a sua alegação) e, por outro, quais são as provas desse facto concreto (o que interessa para a fundamentação da decisão da matéria de facto).
O facto de o dolo poder ser provado (e, portanto, inferir-se) com recurso a presunções naturais ou com recurso às regras da vida não significa que fica prescindida a alegação dos factos respetivos. Uma coisa é a presunção do dolo, absolutamente inadmissível, e outra coisa completamente diferente e aceitável, é a necessidade de o juiz comprovar a existência do dolo através de presunções naturais (não jurídicas) ligadas ao princípio da normalidade ou da regra geral ou às chamadas máximas da vida e regras da experiência.
A este propósito, consta também da fundamentação do referido acórdão uniformizador n.º 1/2015 que «De forma alguma será admissível que os elementos do dolo, quando não descritos na acusação, possam ser deduzidos por extrapolação dos factos objetivos, com «recurso à lógica, à racionalidade e à normalidade dos comportamentos, de onde se extraem conclusões suportadas pelas regras da experiência comum» (Acórdão recorrido).
Tal equivaleria a conceptualizar o dolo como emanação da própria factualidade objetiva, ou como inerente a essa factualidade, um dolus in re ipsa, que o mesmo Autor que se vem citando repudia vivamente como ultrapassado, nos moldes das antigas “presunções do dolo”. Isto, porém, não é impeditivo de «o juiz comprovar a existência do dolo através de presunções naturais (não jurídicas) ligadas ao princípio da normalidade ou da regra geral ou às chamadas máximas da vida e regras da experiência» (FIGUEIREDO DIAS, «Ónus De Alegar E De Provar Em Processo Penal?», Revista de Legislação e Jurisprudência n.º 3474. P. 142).»
3.5 - Por outro lado, de acordo a mencionada jurisprudência fixada por esse aresto, a omissão na acusação da descrição de algum elemento do tipo subjetivo de ilícito, onde se inclui a consciência da ilicitude, com a consequente absolvição, não pode ser integrada em julgamento com recurso ao mecanismo do art. 358º, n.º 1.
Refira-se que essa jurisprudência não tem exclusivamente por objeto a falta absoluta, na acusação, da descrição do tipo subjetivo do crime imputado, abrangendo a omissão de qualquer elemento dele constitutivo, conclusão que resulta da leitura dos segmentos da fundamentação supra transcritos, bem como da utilização, no texto da jurisprudência fixada, da expressão “a falta de descrição, na acusação, dos elementos subjetivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem (…)”.
Embora a solução assim encontrada seja radical e de consequências relevantes em termos de prevenção geral e especial, conforme refere o voto de vencido lavrado nesse aresto, que defende a aplicação do art. 358º nos casos em que há uma mera deficiência (e já não uma absoluta omissão) na alegação dos elementos subjetivos, o certo é que os argumentos relativos a esse alargamento da impunidade e à manifesta desproporção entre o vício detetado e a sua consequência não são novos em relação à ponderação então feita, não existindo razões nos levem a divergir dela nos termos do art. 445º, n.º 3.
Concluindo-se, assim, que a acusação particular deduzida nos autos não contém a descrição dos factos integrantes da totalidade dos elementos subjetivos do tipo, necessária a verificação do crime imputado à arguida, e que, por outro lado, tais elementos em falta não poderão vir a ser aditados em julgamento, não restava outra solução ao Exmo. Juiz a quo senão considerá-la como manifestamente infundada, por os factos nela descritos não constituíram crime, e, como tal, rejeitá-la ao abrigo do disposto nos art.s 283º, n.º 3, al. b), e 311º, n.ºs 2, al. a), e 3, al. d).
Por conseguinte, nenhuma censura merece o despacho recorrido, devendo ser confirmado, por não ter violado qualquer dos preceitos legais invocados pela recorrente.


III. DISPOSITIVO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar improcedente o recurso interposto pela assistente R. B., confirmando o despacho recorrido.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em quantia correspondente a três unidades de conta (art. 515º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Penal, art. 8º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais, e Tabela III anexa a este último diploma).
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(Elaborado pelo relator e revisto por ambos os signatários - art. 94º, n.º 2, do CPP)
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Guimarães, 19 de junho de 2017
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(Jorge Bispo)


(Pedro Miguel Cunha Lopes)

[] Embora na fundamentação do despacho recorrido seja invocada a al. d).
[2] Devendo-se seguramente a mero lapso de escrita a referência a este art. 386º do Código de Processo Penal, já que o mesmo enuncia os princípios gerais do julgamento em processo sumário, sendo, pois, manifestante inaplicável ao caso vertente.
[3] Todas as transcrições efetuadas respeitam o respetivo original, salvo gralhas evidentes e a ortografia utilizada, sendo a formatação da responsabilidade do relator.
[4] Como sucede, nomeadamente, nos casos previstos nos art.s 119º, n.º 1, 123º, n.º 2, e 410º, n.º 2, al.s a), b) e c), do Código de Processo Penal, e resulta do acórdão de uniformização de jurisprudência n.º 7/95 do STJ, de 19-10-1995, in Diário da República – I Série-A, de 28-12-1995.
[5] Vd. Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, III, 2ª Edição, Revista e atualizada, pág. 113.
[6] Cf. art. 2º, n.º 2, 4), da Lei n.º 43/86, de 26 de setembro (autorização legislativa em matéria de processo penal).
[7] Como é o caso, nomeadamente, do carácter “alheio” da coisa nos crimes contra o património, a qualidade de “funcionário” nos crimes cometidos no exercício de funções públicas e das noções de “documento”, “documento autêntico” e “vale do correio”, “letra de câmbio” e “cheque” nos crimes de falsificação.
[8] Figueiredo Dias, in Direito Penal - Parte Geral, Questões Fundamentais, A Doutrina Geral do Crime, Tomo 1º, Coimbra Editora, 2ª edição, 2007, págs. 352-353.
[9] Figueiredo Dias, ob. cit., pág. 354.
[0] Ob. cit., pág. 350.
[1] Ob. cit., pág. 529 e ss.
[2] In Diário da República, 1ª Série, n.º 18, de 27 de janeiro de 2015.
[3] Proferido no processo n.º 2572/10.2TALRA-C2, disponível em http://www.dgsi.pt.
[4] Proferido no processo n.º 2644/09.6TABRG-G1.
[5] Proferido no processo n.º 8473/16.3T9PRT.P1, disponível em http://www.dgsi.pt.