Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
40/11.4GAAFE.G3
Relator: FLORBELA SEBASTIÃO E SILVA
Descritores: CRIME DE ESCRAVIDÃO
CRIME DE TRÁFICO DE PESSOAS
CRIME CONTINUADO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 12/18/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
1. O crime de escravidão previsto no artº 159º do Código Penal tem ínsita a ideia de que a vítima é “uma coisa” ou “um objecto”, algo sobre o qual se exerce um direito de propriedade.
2. Antes da reforma penal de 2007, a exploração laboral não integrava a o tipo objectivo da crime de tráfico de pessoas previsto no art. 160.º do Código Penal.
3. Ainda que os actos de aliciamento ou recrutamento tivessem ocorrido em data anterior a Setembro de 2007, a conduta do agente fica sob a incidência do tipo penal de tráfico de pessoas se a aceitação, o acolhimento, o alojamento e o transporte de pessoas para fins de exploração laboral continuarem a ser praticados para além daquela data com aproveitamento da sua situação de especial vulnerabilidade (al. d) do nº 1 do artº 160º do CP)..
4. No caso concreto, a ofendida viu o seu esforço laboral consumido pelos arguidos que lhe ficavam com tudo quanto ganhava, estando sujeita ao controlo dos mesmos, quer quando laborava para fora, nos trabalhos agrícolas, quer quando laborava em casa com as lides domésticas, isto no período ininterrupto compreendido entre 2000 e finais de 2011.
5. A aceitação da ofendida, para trabalhar, por parte dos arguidos, continuou ininterruptamente até Novembro de 2011, bem como a manutenção da ofendida nas várias habitações dos arguidos, em Portugal e em Espanha, para exploração laboral da mesma, tendo por base o aproveitamento das claras fragilidades sócio-económicas, psicológicas e emocionais da mesma, continuou ininterruptamente até Novembro de 2011.
6. Uma vez que o crime de tráfico de pessoas tutela bens iminentemente pessoais, não é possível considerar-se tal crime na forma continuada como determina o art. 30.º, nº 2, do Código Penal.
Decisão Texto Integral:
Procº nº 40/11.4GAAFE.G3

ACÓRDÃO

Acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores da Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I. A) No âmbito de processo comum, com intervenção do Tribunal Colectivo, que corre termos pelo Juiz ... do Juízo Central Cível e Criminal de ..., do Tribunal Judicial da Comarca de ..., sob o nº 40/11...., após audiência de discussão e julgamento, foi proferido um primeiro acórdão em 27-02-2020, com a refª ...60 relativamente aos arguidos AA, BB, CC, DD, EE, FF e GG através do qual os mesmos foram, respectivamente, condenados e absolvidos nos seguintes termos (transcrição):
           
“III. Decisão.
Nos termos expostos, acordam os juízes que constituem o Tribunal Colectivo em julgar a acusação parcialmente procedente, nos termos sobreditos.
Consequentemente:
1) Absolvem o arguido GG da prática dos crimes que lhe eram imputados;
2) Julgam extinto o procedimento criminal por prescrição quanto ao crime de burla relativa a trabalho p. e p. pelo art. 222º/1 CP imputado aos arguidos EE e FF.
Absolvem os referidos arguidos dos restantes crimes imputados.
3) Condenam a arguida DD pela prática de um crime de tráfico de pessoas p. e p. pelo art. 160º/5 CP na pena de dois anos de prisão suspensa na sua execução por igual prazo e mediante regime de prova.
Absolvem a referida arguida da prática dos restantes crimes imputados.
4) Condenam o arguido AA, pela prática em co-autoria material de três crimes de escravidão, p. e p. pelo art. 159º-b) CP, nas penas de cinco e seis meses de prisão, cada um.
Condenam o mesmo arguido, pela prática em co-autoria material de três crimes de tráfico de pessoas p. e p., dois deles, pelos arts. 160º/1-b) e d) e o terceiro pelo art. 160º/2, ambos do CP, nas penas de três anos e seis meses, cada um.
Em cúmulo jurídico, condenam o arguido AA na pena única de oito anos de prisão.
Absolvem o arguido dos demais crimes imputados.
5) Condenam a arguida BB, pela prática em c-autoria material de três crimes de escravidão, p. e p. pelo art. 159º-b) CP, nas penas de cinco e seis meses de prisão, cada um.
Condenam a referida arguida pela prática em co-autoria material de três crimes de tráfico de pessoas p. e p., dois deles, pelos arts. 160º/1-b) e d) e o terceiro pelo art. 160º/2, ambos do CP, nas penas de três anos e seis meses, cada um.
Em cúmulo jurídico, condenam a arguida BB na pena única de oito anos de prisão.
Absolvem a arguida dos demais crimes imputados.

6) Condenam a arguida CC, pela prática em c-autoria material de três crimes de escravidão, p. e p. pelo art. 159º-b) CP, nas penas de cinco e seis meses de prisão, cada um.
Condenam a mesma arguida pela prática em c-autoria material de três crimes de tráfico de pessoas p. e p., dois deles, pelos arts. 160º/1-b) e d) e o terceiro pelo art. 160º/2, ambos do CP, nas penas de três anos e seis meses, cada um.
Condenam a mesma arguida pela prática em autoria material de um crime de aborto na forma tentada p. p. pelos arts. 140º/1, 23º/2 e 73º/1-a) e b) CP na pena de 10 meses de prisão.
Em cúmulo jurídico, condenam a arguida CC na pena única de oito anos e seis meses de prisão.
Absolvem a arguida dos demais crimes imputados.
Custas pelos 1º, 2º, 3º e 4º arguidos, com taxas de justiça que se fixam em 6 Ucs para cada um dos 3 primeiros e em 3 Ucs para a 4ª.
Oportunamente, solicite à DGRS que providencie pela elaboração do plano de reinserção social à arguida DD, devendo, para o efeito, contactar a sua congénere espanhola a fim de articularem a execução/fiscalização do regime de prova.
Ordena-se a recolha, após trânsito, das amostras dos perfis de ADN dos 1º, 2º e 3º arguidos nos termos e para os efeitos do art. 8º/2 da Lei 5/2008 de 12/2 (com finalidade de investigação criminal), que se defere ao Instituto Nacional de Medicina Legal, I. P. (Deliberação n.º 3191/2008).
Comunique-se ao INML.
Remeta boletins.
Notifique.
Deposite.”

B) Inconformados com as respectivas condenações, vieram os arguidos AA, BB, CC e DD interpor recurso do acórdão condenatório, bem como de dois despachos intercalares, os quais, tendo subido a esta Relação, foram alvo de acórdão proferido em 10-05-2021, com a refª ...20, que decidiu o seguinte:

“Em face do exposto, acórdão os Juízes desta Relação:
- Julgar improcedentes os recursos interlocutórios interpostos dos despachos de 9 de Novembro de 2011 e de 15 de Dezembro de 2011;
Custas pelos recorrentes fixando-se a taxa de justiça em 4UC para cada um deles;
- Declarar nulo o acórdão recorrido, por inobservância do disposto no artigo 374º, n.º2 do Código de Processo Penal, o qual deve ser reformulado pelo mesmo tribunal – que para o efeito e se o julgar necessário poderá reabrir a audiência – proferindo novo acórdão que supra as omissões apontadas na fundamentação.
Sem tributação.”

C) Na sequência desta decisão veio, então, o Tribunal a quo, sem proceder à reabertura da audiência, proferir novo (o segundo) acórdão em 22-10-2021 com a refª ...84, através do qual determinou o seguinte:

“III. Decisão.
Nos termos expostos, acordam os juízes que constituem o Tribunal Colectivo em julgar a acusação parcialmente procedente, nos termos sobreditos.
Consequentemente:
1) Absolvem o arguido GG da prática dos crimes que lhe eram imputados;
2) Julgam extinto o procedimento criminal por prescrição quanto ao crime de burla relativa a trabalho p. e p. pelo art. 222º/1 CP imputado aos arguidos EE e FF.
Absolvem os referidos arguidos dos restantes crimes imputados.
3) Condenam a arguida DD pela prática de um crime de tráfico de pessoas p. e p. pelo art. 160º/5 CP na pena de dois anos de prisão suspensa na sua execução por igual prazo e mediante regime de prova.
Absolvem a referida arguida da prática dos restantes crimes imputados.
4) Condenam o arguido AA, pela prática em co-autoria material de três crimes de escravidão, p. e p. pelo art. 159º-b) CP, nas penas de cinco e seis meses de prisão, cada um.
Condenam o mesmo arguido, pela prática em co-autoria material de três crimes de tráfico de pessoas p. e p., dois deles, pelos arts. 160º/1-b) e d) e o terceiro pelo art. 160º/2, ambos do CP, nas penas de três anos e seis meses, cada um.
Em cúmulo jurídico, condenam o arguido AA na pena única de oito anos de prisão.
Absolvem o arguido dos demais crimes imputados.
5) Condenam a arguida BB, pela prática em c-autoria material de três crimes de escravidão, p. e p. pelo art. 159º-b) CP, nas penas de cinco e seis meses de prisão, cada um.
Condenam a referida arguida pela prática em co-autoria material de três crimes de tráfico de pessoas p. e p., dois deles, pelos arts. 160º/1-b) e d) e o terceiro pelo art. 160º/2, ambos do CP, nas penas de três anos e seis meses, cada um.
Em cúmulo jurídico, condenam a arguida BB na pena única de oito anos de prisão.
Absolvem a arguida dos demais crimes imputados.
6) Condenam a arguida CC, pela prática em c-autoria material de três crimes de escravidão, p. e p. pelo art. 159º-b) CP, nas penas de cinco e seis meses de prisão, cada um.
Condenam a mesma arguida pela prática em co-autoria material de três crimes de tráfico de pessoas p. e p., dois deles, pelos arts. 160º/1-b) e d) e o terceiro pelo art. 160º/2, ambos do CP, nas penas de três anos e seis meses, cada um.
Condenam a mesma arguida pela prática em autoria material de um crime de aborto na forma tentada p. p. pelos arts. 140º/1, 23º/2 e 73º/1-a) e b) CP na pena de 10 meses de prisão.
Em cúmulo jurídico, condenam a arguida CC na pena única de oito anos e seis meses de prisão.
Absolvem a arguida dos demais crimes imputados.
Custas pelos 1º, 2º, 3º e 4º arguidos, com taxas de justiça que se fixam em 6 Ucs para cada um dos 3 primeiros e em 3 Ucs para a 4ª.
Oportunamente, solicite à DGRS que providencie pela elaboração do plano de reinserção social à arguida DD, devendo, para o efeito, contactar a sua congénere espanhola a fim de articularem a execução/fiscalização do regime de prova.
Ordena-se a recolha, após trânsito, das amostras dos perfis de ADN dos 1º, 2º e 3º arguidos nos termos e para os efeitos do art. 8º/2 da Lei 5/2008 de 12/2 (com finalidade de investigação criminal), que se defere ao Instituto Nacional de Medicina Legal, I. P. (Deliberação n.º 3191/2008).
Comunique-se ao INML.
Remeta boletins.
Notifique.
Deposite.”

D) Novamente inconformados com as respectivas condenações, vieram os arguidos AA, BB, CC e DD interpor novo (segundo) recurso do (segundo) acórdão condenatório, o qual, tendo subido a esta Relação, foi alvo de acórdão proferido em 30-06-2022, com a refª ...70, que decidiu o seguinte:

“III-Decisão
Em face do exposto, acordam os juízes desta Relação, na procedência parcial do recurso, em declarar nulo o acórdão recorrido por excesso de pronúncia, determinado que seja proferido novo acórdão que cumpra o que fora ordenado pela anterior decisão desta Relação, em face dos afctos provados e não provados do anterior acórdão de 27-02-2020.
Sem tributação (artigo 513º, nº 1 do CPP).”

E) Na sequência desta segunda decisão desta Relação veio, então, o Tribunal a quo proferir novo (o terceiro) acórdão em 12-04-2024 com a refª ...82, relativamente aos arguidos AA, BB, CC, DD, EE, FF e GG através do qual os mesmos foram, respectivamente, condenados e absolvidos nos seguintes termos:

“III. Decisão.
Nos termos expostos, acordam os juízes que constituem o Tribunal Colectivo em julgar a acusação parcialmente procedente, nos termos sobreditos.
Consequentemente:
1) Absolvem o arguido GG da prática dos crimes que lhe eram imputados;
2) Julgam extinto o procedimento criminal por prescrição quanto ao crime de burla relativa a trabalho p. e p. pelo art. 222º/1 CP imputado aos arguidos EE e FF.
Absolvem os referidos arguidos dos restantes crimes imputados.
3) Condenam a arguida DD pela prática de um crime de tráfico de pessoas p. e p. pelo art. 160º/5 CP na pena de dois anos de prisão suspensa na sua execução por igual prazo e mediante regime de prova.
Absolvem a referida arguida da prática dos restantes crimes imputados.
4) Condenam o arguido AA, pela prática em co-autoria material de três crimes de escravidão, p. e p. pelo art. 159º-b) CP, nas penas de cinco e seis meses de prisão, cada um.
Condenam o mesmo arguido, pela prática em c-autoria material de três crimes de tráfico de pessoas p. e p., dois deles, pelos arts. 160º/1-b) e d) e o terceiro pelo art. 160º/2, ambos do CP, nas penas de três anos e seis meses, cada um.
Em cúmulo jurídico, condenam o arguido AA na pena única de oito anos de prisão.
Absolvem o arguido dos demais crimes imputados.
5) Condenam a arguida BB, pela prática em c-autoria material de três crimes de escravidão, p. e p. pelo art. 159º-b) CP, nas penas de cinco e seis meses de prisão, cada um.
Condenam a referida arguida pela prática em c-autoria material de três crimes de tráfico de pessoas p. e p., dois deles, pelos arts. 160º/1-b) e d) e o terceiro pelo art. 160º/2, ambos do CP, nas penas de três anos e seis meses, cada um.
Em cúmulo jurídico, condenam a arguida BB na pena única de oito anos de prisão.
Absolvem a arguida dos demais crimes imputados.
6) Condenam a arguida CC, pela prática em c-autoria material de três crimes de escravidão, p. e p. pelo art. 159º-b) CP, nas penas de cinco e seis meses de prisão, cada um.
Condenam a mesma arguida pela prática em c-autoria material de três crimes de tráfico de pessoas p. e p., dois deles, pelos arts. 160º/1-b) e d) e o terceiro pelo art. 160º/2, ambos do CP, nas penas de três anos e seis meses, cada um.
Condenam a mesma arguida pela prática em autoria material de um crime de aborto na forma tentada p. p. pelos arts. 140º/1, 23º/2 e 73º/1-a) e b) CP na pena de 10 meses de prisão.
Em cúmulo jurídico, condenam a arguida CC na pena única de oito anos e seis meses de prisão.
Absolvem a arguida dos demais crimes imputados.
Custas pelos 1º, 2º, 3º e 4º arguidos, com taxas de justiça que se fixam em 6 Ucs para cada um dos 3 primeiros e em 3 Ucs para a 4ª.
Oportunamente, solicite à DGRS que providencie pela elaboração do plano de reinserção social à arguida DD, devendo, para o efeito, contactar a sua congénere espanhola a fim de articularem a execução/fiscalização do regime de prova.
Ordena-se a recolha, após trânsito, das amostras dos perfis de ADN dos 1º, 2º e 3º arguidos nos termos e para os efeitos do art. 8º/2 da Lei 5/2008 de 12/2 (com finalidade de investigação criminal), que se defere ao Instituto Nacional de Medicina Legal, I. P. (Deliberação n.º 3191/2008).
Comunique-se ao INML.
Remeta boletins.
Notifique.
Deposite.”

II) Novamente inconformados vieram os mesmos arguidos AA, BB, CC e DD interpor recurso em 20-05-2024 com a refª ...02 através do qual oferecerem as seguintes conclusões:
           
“1. Os Recorrentes vêm condenados por Acórdão depositado em 18-04-2024:
O arguido AA, pela prática, em co-autoria material e em concurso efetivo:
- de 3 (três) crimes de escravidão, p. e p. pelo art. 159.º al. b) do Código Penal (CP), nas penas de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão, cada um; e
- de 3 (três) crimes de tráfico de pessoas p. e p., dois deles, pelo art. 160.º n.º 1 alíneas b) e d), e o terceiro pelo art. 160.º n.º 2, ambos do CP, nas penas de três anos e seis meses, cada um;
Em cúmulo jurídico, foi este arguido condenado na pena única de 8 (oito) anos de prisão.
A arguida BB, pela prática, em co-autoria material e em concurso efetivo:
- de 3 (três) crimes de escravidão, p. e p. pelo art. 159.º alínea b) do CP, nas penas de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão, cada um: e
- de 3 (três) crimes de tráfico de pessoas p. e p., dois deles, pelos art. 160.º n.º 1 alíneas b) e d), e o terceiro pelo art. 160.º n.º 2, ambos do CP, nas penas de três anos e seis meses, cada um.
Em cúmulo jurídico, foi esta arguida condenada na pena única de oito anos de prisão;
A arguida CC, pela prática, em co-autoria material:
- de 3 (três) crimes de escravidão, p. e p. pelo art. 159.º alínea b) do CP, nas penas de cinco e seis meses de prisão, cada um;
- de 3 (três) crimes de tráfico de pessoas p. e p., dois deles, pelo art. 160.º n.º 1 alíneas b) e d), e o terceiro pelo art. 160.º n.º 2, ambos do CP, nas penas de três anos e seis meses, cada um; e
- de 1 (um) crime de aborto, na forma tentada, p. e p. pelos artigos 140.º n.º 1, 23.º n.º 2 e 73.º n.º 1 alíneas a) e b) do CP, na pena de 10 meses de prisão;
Em cúmulo jurídico, foi esta arguida condenada na pena única de oito anos e seis meses de prisão;
A arguida DD, pela prática, de 1 (um) crime de tráfico de pessoas p. e p. pelo art. 160.º n.º 5 do CP, na pena de dois anos de prisão, suspensa na sua execução por igual prazo e mediante regime de prova;
2. Por Acórdão datado de 10 de Maio de 2021, o Tribunal da Relação de Guimarães decidiu “Declarar nulo o acórdão (datado de 27.02.2020, por inobservância do disposto no art.º 374, n.º 2 do Código do Processo Penal, o qual deve ser reformado pelo mesmo tribunal – que para o efeito e se o julgar necessário poderá reabrir a audiência- proferindo novo acórdão que supra as omissões apontadas na fundamentação.”
3. Tal decisão teve por base a falta de exame critico da prova produzida (não produzida) em audiência, considerando o acórdão da Relação que o primitivo acórdão padecia de manifesta insuficiência de motivação, pois o mesmo continha referências esparsas à prova documental e pessoal o que “não permite aos sujeitos processuais e a este tribunal de recurso proceder ao exame do processo lógico ou racional que subjaz à convicção dos julgadores."
4. No seguimento de tal douta decisão, o Tribunal a quo por acórdão datado de 22-10-2021, proferiu nova decisão, com o escopo de produzir “novo acórdão para suprir as omissões apontadas na fundamentação.”
5. Na verdade, o Tribunal a quo constatou que o raciocínio lógico que suportou a sua decisão afinal estava errado e, por conseguinte, viu-se obrigado a retificar factos dados como provados com a única finalidade de manter uma decisão que se mantinha (e mantém) ininteligível.
6. De tal modo que por Acórdão datado de 30-06-2022 esse Tribunal Superior acabou por concluir que o Tribunal recorrido foi manifestamente além do que lhe foi doutamente ordenado, apesar de não ter reaberto a audiência para a produção de prova, decidiu ao arrepio das mais basilares regras de defesa dos arguidos alterar a matéria de facto dada como provada.
7. Regressou o Processo à Primeira Instância, foram elaborados novos relatórios sociais e aberta a audiência a pedido dos arguidos no seguimento do despacho do Tribunal, unicamente para prestar esclarecimentos a tal propósito.
8. Foi agora (quase dois anos volvidos) proferido novo acórdão que, recupera a matéria de facto dada como provada no primitivo acórdão, a que chamaremos acórdão de 2020, e junta algumas linhas de incompreensível “fundamentação.”
9. Exara-se no acórdão de que ora se recorre, depositado a 18-04-2024: “Após vicissitudes várias (anulações por falta de fundamentação e por excesso de pronúncia), importa agora proferir novo acórdão, em estrito acatamento do douto acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 10-05-2021: fundamentar de forma mais pormenorizada a convicção do Colectivo, tendo em conta os factos provados constantes do primitivo acórdão de 27-02-2020 (sem os alterar, pois),atinentes aos ofendidos HH e II.”
10. Repristinou agora o Tribunal a primitiva matéria de facto dada como provada e ao arrepio do que seria imaginável vem fundamentar essa outra matéria de facto dada como provada, não com prova, porque não tem, mas com impressões. Conjeturas e adivinhações de pensamento e sentimentos dos ofendidos que nunca o foram: O HH e a II.
11. O acórdão proferido não corresponde à prova que o Tribunal recebeu e ficou ainda mais ininteligível.
12. Agarrou-se num punhado de expressões de terceiros, que infra se contestarão, e pura e simplesmente condenou-se os arguidos por factos que inexistem. E que o próprio Tribunal já havia concluído não terem ocorrido da forma agora descrita no acórdão.
13. A nova fundamentação é parca e com base em prova indireta!
14. Alguns parágrafos parecem novos mas afinal foram só mudados de sitio no acórdão.

III- a) Artigo 379º n.º 1 a) do CPP - NULIDADE DO ACÓRDÃO PROFERIDA PELO TRIBUNAL A QUO por violação do n.º 2 do art.º 374.º do CPP
15. O Acórdão de que ora se recorre só existe porquanto essa Relação entendeu, e bem, que os factos dados como provados sob 3.1, 3.2, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 13, 14 ,17, 23, 24, 38 e 39 careciam de uma fundamentação suficientemente pormenorizada.
16. Confessamos de antemão que nada de novo foi trazido à argumentação expendida no acórdão. O Tribunal mais não fez do que reorganizar a exposição da sua convicção, mudando de sítio alguns dos parágrafos e acrescentando aqui ou ali expressões e nomes de ofendidos.
17. O Tribunal limita-se a adicionar alguns parágrafos de conclusões, impressões e intuições do julgador, sempre suportadas nas alegadas regras da experiência comum insindicáveis.
18. Toda a “nova” fundamentação mais não é do que interpretar as declarações do ressabiado JJ e daí tirar as conclusões que já estavam consagradas na matéria de facto dada como provada.
19. Veja-se a título de exemplo que para fundamentar um alegado domínio dos arguidos, agarra-se o Tribunal a alegadas agressões; agressões que a KK e a LL negam que tenham existido, mas que o Tribunal precisa que seja como o JJ diz para poder fundamentar esta condenação.
20. Já quanto às remunerações e à titularidade das contas bancárias na ausência de prova, indiciária, indireta, presumida, seja o que for, na ausência de qualquer indício sequer, o Tribunal intui o pensamento dos ofendidos II e HH!
21. Salvo o devido respeito, a decisão de que ora se recorre não resolve os apontados erros de fundamentação que determinaram a nulidade do primitivo acórdão.
22. Esta DECISÃO é arbitrária e incompreensível, assenta num raciocínio puramente dedutivo e insindicável!
23. A dúvida quanto à íntima convicção do Tribunal sobressai e de que maneira.
24. E não o fez precisamente porque não cuidou de expor os motivos, de facto e de direito, que fundamentaram a sua decisão, bem como a indicação e o exame crítico das provas!
25. Conclui-se, assim, que o acórdão mantém os vícios detetados no primeiro acórdão proferido pela primeira instância nos presentes autos de processo-crime e se têm aglomerado e agravado a cada nova decisão.
26. As regras de experiência são meramente heurísticas, ajudam a explicar o sucedido, o caso concreto, mas não vinculativas sob pena de se voltar ao sistema da prova legal - cfr. BFDUC, Vol. III, 2010, pág. 1011, in A Prova Penal, Paulo Sousa Mendes.”
27. Deste modo, por verificar-se no acórdão ora posto em crise o vício previsto no artigo 379.º/1, a), por violação do disposto no artigo 374 n.º 2 do C.P.P., se mantém, deverá o mesmo ser declarado nulo.

b) Artigo 379º n.º 1 c) do CPP - NULIDADE DO ACÓRDÃO PROFERIDA PELO TRIBUNAL A QUO por omissão de pronúncia
28. A 8 de novembro de 2011, como melhor consta de fls. 436 dos autos foi apreendido o veiculo automóvel pertença do 1.º arguido, ..., modelo ..., cinzenta, com a matrícula espanhola “....GFR”, à data com 17400KM em bom estado de conservação. _consta do auto de apreensão de veículo de fls. 436, 2.º volume.
29. O destino dos bens apreendidos, sobremaneira de um veículo automóvel, é questão que o Tribunal se deveria ter pronunciado, decidindo a entrega do veículo ao seu proprietário ou, no absurdo, a perda a favor do Estado.
30. Ao omitir na sua decisão o destino do veículo, tornou a sentença nula por omissão de pronúncia nos termos da al. c) do n.º 1 do art.º 379.º do CPP.
31. Considerando que o Acórdão de que ora se recorre recupera quase in tottum o primitivo acórdão e considerando que esse douto Tribunal nos dois recursos já analisados acabou sempre por considerar procedentes questões prévias ao Recurso da Matéria de Facto e de Direito, como aqui se acredita, voltará a acontecer, a Alegação que infra segue, recuperará em grande parte a motivação já anteriormente apresentada e que não foi (porque não tinha de ser) apreciada.
*
III – DO RECURSO DA MATÉRIA DE FACTO:

32. Em matéria de fundamentos dos recursos em processo penal dispõe o art. 410.º, n.º 1 (CPP) que sempre que a lei não restringir a cognição do tribunal ou os respetivos poderes, o recurso pode ter como fundamento quaisquer questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida.
33. Por seu turno, o n.º 2 do preceito prescreve que mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamento, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras de experiência comum, os vícios elencados nas suas três alíneas: a) insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b) contradição insanável da fundamentação da decisão ou entre a fundamentação e a decisão; e c) erro notório na apreciação da prova.
34. Tratam-se, na realidade, de vícios ao nível da matéria de facto, que tornam impossível uma decisão jurídico-factualmente correta e, por isso, configuram vícios da própria decisão e não do julgamento, mas não se tratam de vícios de lógica jurídica. A lógica jurídica é matéria de consonância de argumentação juridicamente relevante, que não apuramento de matéria de facto
35. Não podem considerar-se "factos" suscetíveis de sustentar uma condenação penal as imputações genéricas, em que não se indica o lugar, nem o tempo, nem a motivação, nem o grau de participação, nem as circunstâncias relevantes, mas um conjunto fáctico não concretizado (“desde data não concretamente apurada”, "em circunstâncias não concretamente apuradas”, “noutros casos pessoas que apresentavam algumas das características”, “prometiam boas condições”, “pessoas aliciadas/ admitidas”, etc.).
36. Por outro lado, as afirmações genéricas_ destituídas de qualquer carga penal e sem o mínimo de sustentabilidade probatória_ contidas no elenco desses "factos" provados do acórdão recorrido, não são suscetíveis de contradita, pois não se sabe em que datas, circunstancias, por quanto tempo, o que lhes foi prometido, o que lhes foi pago, quantos meses trabalharam, quanto meses se limitaram a partilhar a casa sem que houvesse trabalho para ninguém, qual a intervenção de cada um dos arguidos, quais os atos de vontade de cada um dos ofendidos, qual ou quais dos arguidos exerceu violência física, qual ou quais dos arguidos exerceu violência psicológica, etc. Por isso, a aceitação dessas afirmações como "factos" inviabiliza o direito de defesa que aos mesmos assiste e, assim, constitui uma grave ofensa aos direitos constitucionais previstos no art. 32.º da Constituição.
37. Termos em que se conclui que na indicação da matéria de facto que julgou provada o douto Acórdão está evidentemente ferido do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (al. a), nº. 2, do art. 410º do C.P.P.), intrínseco à própria decisão, uma vez que da factualidade aí vertida resulta faltarem elementos que, podendo e devendo ser indagados, são necessários para que se possa formular um juízo seguro de condenação, que desde já se deixa arguido para todos os legais efeitos.
38. Na verdade, ao repristinar a matéria de facto dada primitivamente como provada a contradição inserta no texto do acórdão volta a ser ainda mais evidente.
39. Pois só com um novo julgamento integral e um novo acórdão expurgado das considerações pessoais do julgador poder-se-ia corrigir a deficiência.
40. O próprio Tribunal a quo no acórdão de 2021 tentou retificar os erros de descrição factual do acórdão de 2020, e precisar datas e intervenção deste ou daquele arguido ao invés da generalização.
41. O vício que resulta da alínea b) do seu n.º 2, a denominada contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, não constitui exceção e, como a própria expressão evidencia, consiste tanto na contradição entre a matéria de facto dada como provada ou como provada e não provada, entre a fundamentação probatória da matéria de facto ou, até mesmo, entre a fundamentação e a decisão. Ou seja, está em causa uma situação em que, seguindo o fio condutor do raciocínio lógico do julgador, os factos julgados como provados ou como não provados colidem inconciliavelmente entre si ou uns com os outros ou, ainda, com a fundamentação da decisão.
42. As considerações e conclusões vertidas na fundamentação da decisão em matéria de Direito não são de todo compatíveis com a matéria de facto que o mesmo Tribunal dá como provada e assente, essencialmente na parte em que se refere aos ofendidos II e HH.
43. Ora, como se mostra evidente, tais considerações e conclusões vertidas na fundamentação da decisão em matéria de Direito não são de todo compatíveis com os factos 3.1, 3.2, 4, 24 e 39 que o mesmo Tribunal dá como provada e assente.
44. Parece-nos evidente que o Tribunal a quo não poderia, por um lado, considerar “quanto aos ofendidos MM e NN (…) face á ausência de agressões físicas e face ao período de tempo em que perdurou a actuação, verifica-se com facilidade que estamos perante casos de gravidade bastante inferior ao dos ofendidos KK, II e HH e, destarte, que será de incluir no tráfico de pessoas e não na escravidão” – e, em simultâneo, dar como provado que, afinal:
45. - existia um plano (prévio) e conjunto entre os 1.º, 2.ª e 3.ª arguida, que desde data não concretamente apurada mas seguramente, pelo menos, desde o ano de 2000, decidiram, de comum acordo e em comunhão de esforços, como forma de obterem dinheiro fácil/lucros, explorar a força de trabalho de cidadãos portugueses, apoderando-se das remunerações correspondentes ao trabalho prestado pelos mesmos; e, ainda, sujeitá-los ao seu domínio, controlo e total dependência, confiscando-lhes a documentação de identificação pessoal e bancária, exercendo sobre eles violência psicológica e física, reduzindo-lhes a liberdade ambulatória, obrigando ainda as mulheres aliciadas/aceites a trabalharem nas lides domésticas _factos provados em 3) 1) e em 3) 2) do Acórdão;
46. - que atuaram (na execução desse plano) com o propósito de sujeitar os ofendidos ao seu domínio e total dependência, para o que, lhes confiscaram a respetiva documentação de identificação pessoal e a documentação relativa às contas bancárias por aqueles tituladas, e exerceram sobre todos eles violência não só psicológica, incutindo-lhes medo e inquietação, mas também física, agredindo-os (a todos!) _facto provado em 39) do Acórdão.
47. A contradição existe e é ostensiva ao consignar-se que foram todos vítimas de maus-tratos e agredidos fisicamente e, do mesmo passo, se dá pela ausência de agressões físicas nos casos de JJ e NN (!).
48. Mais, estando em causa factualidade e motivação que contendem com o alegado prévio acordo dos supostos co-autores destes factos e com a sua concretização e execução, afigura-se-nos óbvio que o vício detetado fere, irremediavelmente e no seu todo, a decisão de condenação destes arguidos pelos crimes que lhes são imputados.
49. Parece-nos evidente que o Tribunal a quo não poderia, por um lado, considerar
- que atuaram com o propósito de sujeitar os ofendidos ao seu domínio e total dependência, para o que, lhes confiscaram a respetiva documentação de identificação pessoal (facto que o próprio acórdão a fls. 55 expressamente infirma quanto ao HH) e a documentação relativa às contas bancárias por aqueles tituladas, e exerceram sobre alguns deles violência.
- Para depois concluir que, em circunstâncias não apuradas os ofendidos foram viver com os arguidos e trabalhar junto destes.
- Mais se concluindo que a data de início da vivencia em comum quer da II, quer do HH situa-se por 2007, sendo absurdo diferenciar do JJ (o próprio confessa que saiu e voltou) ou do NN (que trabalhou uma única jornada) pelo intervalo de tempo, como erradamente o Tribunal faz.
50. Lida e analisada a decisão conclui-se que os factos dados como provados em 3) 1), 3) 2), 4) 12 e 39) são incompatíveis com a própria fundamentação, contradição essa que resulta do seu texto e é reveladora da sua fragilidade ao nível da matéria de facto assente, impossibilitando uma conclusão jurídico-factualmente correta.
51. Termos em que se conclui que na indicação da matéria de facto que julgou provada o douto Acórdão está evidentemente ferido do vício de contradição insanável da fundamentação (al. b), nº. 2, do art. 410º do C.P.P.), intrínseco à própria decisão, uma vez que da factualidade aí vertida está e, contradição clara, que desde já se deixa arguido para todos os legais efeitos.
52. Aliás, das correções enxertadas ficaram ainda patentes os vícios das als. a) e c) do n.º 2 do art.º 410 do CPP, no presente acórdão estamos perante insuficiência para decisão da matéria de facto provada bem como demonstrado pelo tribunal, sem pejo, perante clara insuficiência da prova para os factos que erradamente foram dados como provados.
53. E censuramos a errada apreciação da prova levada a cabo pelo Tribunal: foram dados como provados factos sem prova para tal!
54. É chocante o erro patente e notório na apreciação da prova facilmente inferido pela comparação dos 3 acórdãos proferidos.
55. É claro e manifesto o erro na apreciação da prova!
56. Termos em que se conclui que na indicação da matéria de facto que julgou provada o douto Acórdão está evidentemente ferido do vício de erro notório na apreciação da prova (al. c), nº. 2, do art. 410º do C.P.P.), intrínseco à própria decisão, é ostensivo o erro de apreciação da prova tanto mais que o próprio Tribunal a quo quis no acórdão de 2021 alterar a matéria de facto provada.
57. E não se diga que os poucos parágrafos enxertados na decisão resolvem o problema de fundo do primitivo acórdão, tanto mais que o Tribunal de 2021 com a alteração à matéria de facto que levou a cabo reconheceu que tinha errado no julgamento efetuado.
58. E note-se que estes concretos factos aqui referidos haviam tido uma roupagem diferente, a título de exemplo, reconhece que só alguns ofendidos foram alvo de agressões, 3.2) E, ainda, decidiram sujeitá-los ao seu domínio, controlo e total dependência, confiscando-lhes a documentação de identificação pessoal e bancária, exercendo sobre eles violência psicológica e, em relação a alguns, física, reduzindo-lhes a liberdade ambulatória, obrigando ainda as mulheres aliciadas/aceites a trabalharem nas lides domésticas.
59. - A insuficiência para a decisão da matéria de facto é patente! - A contradição é reconhecida pelo próprio Tribunal a quo! - O erro ba apreciação da prova é notório!
Em conclusão,
60. Verificado os vícios a que se refere o n.º 2 do artigo 410.º do CPP, que desde já se deixa arguido, e não sendo possível decidir da causa, como é o caso, deve o processo ser reenviado relativamente à totalidade do objeto do processo - atenta a magnitude da vicissitude invocada
- a fim de, em novo julgamento em 1.ª instância, ser afastada tal contradição, nos termos e ao abrigo do disposto nos artigos 426.º n.º 1 e 426.º-A do mesmo diploma.

B – DO ERRO DO JULGAMENTO DA MATÉRIA DE FACTO:
a) Da Decisão Condenatória: os concretos pontos de facto que os Recorrentes consideram incorretamente julgados (Artigo 412.º nº 3 alínea a) do CPP): À revelia da prova produzida em Audiência de Discussão e Julgamento, o Tribunal a quo deu incorretamente como provada a factualidade constante em 1), 3) 1), 3) 2), 4), 5), 6), 8), 9), 10), 11), 12), 13), 14), 15), 16), 17), 18), 19), 20), 21), 22), 23), 24), 25), 26), 27), 37), 38), 39), 40), 41) e 42), incorrendo, relativamente a estes factos, em manifesto erro de julgamento.
b) Das concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida (artigo 412.º nº 3 alínea b) do CPP):
61. À Audiência de Discussão e Julgamento, com interesse para a causa, chegaram-nos, pela mão do Ministério Público, os depoimentos dos Inspetores da Polícia Judiciária (que se limitaram a descrever as únicas diligências em que todos intervieram: as buscas às residências dos arguidos e seus veículos), o depoimento do ofendido NN (que, em boa verdade, só veio corroborar a posição dos arguidos quanto aos factos) e os depoimentos das testemunhas referentes à factualidade ocorrida no Serviço de Urgência do Hospital ... _pontos 26) e 27) dos factos provados.
62. Assim, não obstante a insistência do titular da ação penal e até da própria defesa, não foram ouvidos nessa sede os outros (pretensos) ofendidos destes autos, HH, II e OO, cujas notificações para comparência se viram reiteradamente frustradas.
63. Como não foram ouvidos no julgamento aqueles identificados ofendidos que haviam prestado declarações para memória futura.
64. 1. Das concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida em relação aos pontos da matéria de facto dada incorretamente como provada em 3) 1), 3) 2), 4), 5), 6), 7), 8), 9), 10) e 13) do Acórdão condenatório:
65. - Do alegado “acordo comum e em comunhão de esforços” e da angariação de trabalhadores nos moldes e com as características supra descritas, refletidos nos pontos 3) 1), 3) 2), 4), 5), 6) e 13) da matéria de facto provada no Acórdão:
66. A arguida BB [ouvida na sessão da ADJ em 15-01-2018, das 11:45:01 às 12:40:24, aos minutos 00:12 a 51:33] nega todos estes factos e as suas declarações são, no que toca ao relacionamento da sua filha CC e HH, corroboradas por KK, nas declarações para memória futura que prestou a fls. 2028 a 2174, páginas 44 e 45 e 50 a 51; NN também disse que conhecia e costumava falar com a filha daquela, com a “CC”, e que foi assim que surgiu a possibilidade de os acompanhar nas vindimas [ouvido na sessão da Audiência de Discussão e Julgamento realizada no dia 06-07-2018, e cujo depoimento ficou devidamente consignado na ata dessa sessão das 11:53:59 às 12:35:50, encontrando-se registado em Cd áudio àquelas horas, concretamente do minuto 01:57 ao minuto 06:47]; JJ apresenta uma versão diferente da arguida, mas o que refere também não é incompatível com o relatado feito por aquela sobre o modo como foram apresentados e a conversa que terão tido num primeiro encontro _cfr. declarações para memória futura que se encontram gravadas em Cd e foram integralmente transcritas constando de fls. 2085 a 2176 dos autos, para as quais se remete, em concreto, página 1 a 3 do depoimento deste ofendido.
67. Não é correto dizer-se que a arguida negou qualquer tipo de recrutamento. A arguida limitou-se a negar: i) que tivessem andado atrás das pessoas nas ruas ou a bater às portas das suas casas; ii) que o tivessem feito com pessoas particularmente frágeis e com o fito aludido; e iii) explicou, com detalhe, como travou conhecimento com cada um dos ofendidos nestes autos.
68. Consta da matéria de facto assente – pontos 6) e 13), como se alude em 4) e 5) – que os arguidos (1.º, 2.ª e 3.ª) aliciavam pessoas prometendo-lhe boas condições de trabalho e boa remuneração, promessas que, porque eram tidas por sérias, levavam essas pessoas a aceitar e a acompanhar os arguidos, mas que depois não eram concretizadas. Esta factualidade, intrinsecamente ligada à anteriormente impugnada, não se compadece com o modo como as identificadas (5) pessoas entraram na vida e dia-a-dia destes arguidos, sobretudo quando falamos das situações particulares de HH (namorado da CC) e II (familiar afastada da mãe da arguida BB), mas até de NN [ouvido na sessão realizada no dia 06-07-2018, das 11:53:59 às 12:35:50, encontrando-se registado em Cd áudio àquelas horas, concretamente do minuto 01:57 ao minuto 06:47]. KK também referiu que foi contratada para ir um mês para Espanha, mas porque começou a namorar com o filho da arguida BB permaneceu lá a viver [declarações para memória futura prestadas em inquérito que se encontram gravadas em Cd e foram integralmente transcritas constando de fls. 2085 a 2176 dos autos, para as quais se remete, página 3 a 8]. JJ diz também que foi primeiro seis meses trabalhar com eles, findos os quais regressou para junto do filho, e quis voltar mais cedo para estar perto de KK, de quem começou a gostar [declarações para memória futura a fls. 2085 a 2176 dos autos, para as quais se remete, em concreto, página 2 a 11 do depoimento de JJ].
69. À revelia do acertado, estas duas pessoas, sabendo que chegara ao fim o trabalho para o qual foram “contratadas”, conscientes ainda de que não teriam trabalho no imediato e, por conseguinte, remuneração correspondente, quiseram permanecer junto desta família pelos enunciados motivos.
70. Estes depoimentos, que ao que julgamos estarão livres do estigma de que o foram em prol dos arguidos (do que carimbou o Tribunal a quo toda a prova apresentada pela defesa, sem exceção), contradizem de modo ostensivo a matéria de facto assente nos pontos 4), 5), 6), 8) e 13) no que ao alegado aliciamento e falsa promessa concerne, devendo, por esse motivo e verificado o erro de julgamento desta matéria de facto, ser dada por não provada, alteração que se reclama nesta sede (artigos 412.º n.º 3 e 4; 427.º, 428.º e 431.º, todos do CPP).
71. A prova produzida elencada contraria ainda a factualidade assente sob os pontos 3) 1), 3) 2), 4) e 5) do Acórdão recorrido, devendo, por esse motivo e verificado o supra identificado erro de julgamento em matéria de facto, ser dada integralmente como não provada, alteração que se reclama nesta sede (artigos 412.º n.º 3 e 4; 427.º, 428.º e 431.º, todos do CPP).
72. - Da factualidade constante dos pontos 6), 8), 9) e 10) da matéria de facto dada como provada no Acórdão recorrido sobre as condições a que alegadamente eram sujeitas as “pessoas aliciadas”:
73. Retomando as declarações prestadas pela arguida BB, reforça-se o que é dito relativamente ao modo como os trabalhadores que a eles se juntavam nestas campanhas agrícolas para aí se deslocavam, ficavam hospedados e se alimentavam, desempenhavam funções e recebiam as suas retribuições, em nada diferindo da situação dos identificados arguidos e demais elementos da sua família. Tinham, aliás, os mesmos horários, as mesmas tarefas (exceção feita à própria BB que cozinhava), partilhavam os mesmos espaços e momentos lúdicos, tinham os mesmos hábitos, que não incluíam (em relação a todos) saídas para cafés no período noturno em dias de semana. O marido normalmente trazia cerca de € 600,00/€ 700,00 por mês [registadas na ata dessa sessão das 11:45:01 às 12:40:24, encontrando-se registadas em Cd áudio àquelas horas, em concreto, desde o minuto 00:12 ao minuto 51:33]. Estas declarações são corroboradas por PP, que partilhou estas vivências porque trabalhou com eles naquelas campanhas nos 8/9 anos seguintes, até 2008/2009 [ouvido na sessão da Audiência de Discussão e Julgamento realizada no dia 26-06-2019 das 10:50:36 às 11:15:10, encontrando-se registado em Cd áudio àquelas horas, concretamente, do minuto 01:10 até final]:
74. Das concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida em relação aos pontos da matéria de facto dada incorretamente como provada em 11), 12), 14), 15), 16), 17), 18), 19), 22), 23), 24), 25), 26), 37), 38), 39), 40), 41) e 42) do Acórdão condenatório:
75. Dissemo-lo anteriormente, contudo, não é despiciendo insistir, que HH e II não foram ouvidos em Audiência de Discussão e Julgamento, e não há, quanto a estes, declarações para memória futura. A prova dos factos que lhes respeitam e constam de 14) e 17) dos factos provados, simplesmente não foi feita. Releva aqui, quanto à II, o depoimento  de NN na parte em que este diz, referindo-se a esta (mas também a KK!) “já eram quase filhas, estiveram ali muito tempo” [ouvida na sessão de realizada no dia 06-07-2018, devidamente consignado na ata dessa sessão das 11:53:59 às 12:35:50, encontrando-se registado em Cd áudio àquelas horas, concretamente, ao minuto 21:48].
76. Faz-se alusão, na análise inicial do “núcleo duro” dos factos, à apreensão de uma caderneta (a fls. 674 dos autos), omitindo-se, porém, que tal conta é ainda co-titulada pela filha do arguido, QQ, que ao que sabemos também chegou a trabalhar nestas campanhas. Este é mais um dado ilustrativo da paridade de tratamento e procedimentos adotados com todos os trabalhadores, até com os filhos.
77. Em 22) e 25) da matéria de facto provada, narra-se a situação de NN [ouvido na sessão da Audiência de Discussão e Julgamento realizada no dia 06-07-2018, que ficou devidamente consignado na ata dessa sessão das 11:53:59 às 12:35:50, encontrando-se registado em Cd áudio àquelas horas, concretamente, aos minutos 06:20 a 41:40], cujo depoimento é relevante porque refere: i) que todos os que trabalhavam na terra tinham as mesmas condições de trabalho, alojamento e alimentação; ii) faziam a mesma vida, ou seja, passavam a maioria do tempo em casa, não saíam; iii) chegavam a Espanha e iam regularizar a sua situação; iv) andavam sempre com o bilhete de identidade, mesmo no campo, por causa da polícia (!); v) trabalhavam cinco dias por semana, tem essa ideia, e garante que não trabalhavam aos domingos; e vi) as filhas que trabalhavam na terra, trabalhavam ao seu lado. Confirmou dois outros dados muitos importantes sobre pagamentos, questionado se os “patrões espanhóis” lhes pagavam diretamente diz “Não, não, pagavam a eles e depois é que faziam contas com nós” – faziam contas com os trabalhadores, teve essa perceção – e que os pagamentos eram efetuados a final (tal como descreveu a testemunha PP).
78. Outro elemento relevante prende-se com as fotografias a fls. 1195-1996 dos autos, que este ofendido confirma terem sido por si tiradas, por sua iniciativa, com a sua máquina fotográfica e que o fez para ter uma recordação daqueles dias. Pelo que, risível e absurda, é a suposição inscrita no Acórdão de que essas fotografias terão sido encenadas para manter as aparências junto dos patrões espanhóis por forma a evitar denúncias.
79. Por fim, NN diz expressamente que veio embora quando quis, tanto é que até o fez mais cedo em relação ao combinado e foi, por isso, trazido pelos arguidos à “estação das camionetas” de ....
80. Os factos relativos a JJ são os que constam dos pontos 19), 20) e 21) da matéria provada. Nas suas declarações, integralmente transcritas a fls. 2085 a 2176 dos autos, em concreto nas 29 páginas que lhe respeitam, JJ expõe tudo o quanto viveu naquele período (de março de 2008 à data da busca realizada em 2011), mas fá-lo de modo notoriamente parcial e tendencioso. Exemplo disso é a forma e o facto de relatar maus-tratos e agressões físicas, que descreve como diários (“aquilo era constantemente, “era por qualquer coisa”), em frontal contradição com os depoimentos prestados, também nessa sede de memória futura, por KK e sua filha, LL [cfr. pág. 16 e 17 das declarações deste ofendidos e pág. 28 das declarações de KK e pág. 3 a 15 das declarações de LL].
81. Como diz, com todas as letras, que desde que regressou a casa dos arguidos sempre trabalhou e nunca recebeu qualquer remuneração, para depois concluir que em 2009 só trabalhou 4 meses e que, em abril de 2010, teve um acidente e nunca mais trabalhou [a páginas 23 a 26]:
82. Embora periclitante em assinaláveis aspetos, não deixamos de sublinhar que este ofendido foi firme quando questionado pelo seguinte [pág. 12]: Sabia que podia vir-se embora, tal como outros dos trabalhadores que lá estiveram, mas nunca quis.
83. Este depoimento, conjugado com os demais, impede a prova da factualidade constante dos dois últimos parágrafos em 24), contrariando o afirmado quanto à liberdade de locomoção e suposto confinamento obrigatório a que estavam sujeitos [pelo que é manifesto que o facto de fecharem a porta de casa à chave durante a noite – como qualquer cidadão – não pode ser tido como revelador de um controlo ou privação de liberdade que os próprios ofendidos negam].
84. Os factos que incidem sobre KK e LL encontram-se plasmados em 15) e 16) da matéria de facto provada. Lidas as declarações para memória futura de KK, integralmente transcritas a fls. 2085 a 2176 dos autos, em concreto nas 69 páginas que lhe respeitam, extrai-se, sumariamente: depois de conhecer e trabalhar um mês em Espanha com a família dos arguidos, acabou por permanecer com estes em sua casa porque se apaixonou e começou a namorar com um dos filhos, GG (7.º arguido nestes autos); e assim continuou, mantendo este relacionamento amoroso, pelo menos, durante os quatro anos que se seguiram (pág. 7 a 8); questionada refere que tinha uma vida normal; que “ajudava” nas lides da casa e que o fazia por namorar com o filho, não porque era obrigada, mas para ser bem vista lá na família “ajudava” (pág. 8); que durante esse período, ia juntamente com a família para as companhas agrícolas, que os ocupavam em média quatro meses por ano; e no período restante continuava a viver com a D. BB e a namorar com o filho desta (pág. 9 e 10 e 54 a 56); questionada se, durante esse período, recebeu algum ordenado, disse que não, que não precisava; e acrescenta “Eu nunca lhe pedi dinheiro porque a LL quando era pequena era ela que comprava a roupa para ela por isso eu nunca lhe pedi dinheiro (…) como comecei a namorar com o filho dela nunca fiz essa pergunta (…) pronto, estava ali em casa nunca perguntei” (pág. 10 e 11); depois de terminar este relacionamento estiveram um longo período em Espanha onde trabalhava também no campo, mas voltou a não pedir dinheiro por continuar a viver ali e “porque não precisava, elas compravam a roupa à LL, o calçado, nunca pedi nada” (pág. 13 e 37 a 44); descreve a alimentação como boa e diz que sempre fez as refeições na mesma mesa da D. BB; sempre se sentiu bem lá, nunca quis vir embora, até ao ano de 2011 (por causa da situação da gravidez pág. 18 e 27 a 30).
85. Confirmou ainda um outro dado de maior relevo: JJ nunca mais trabalhou desde que teve o acidente em abril de 2010 _pág. 61 das suas declarações.
86. Quanto à sua filha, KK disse, sem rodeios, que a tratavam bem, que esta chamava aos filhos da D. BB tias(os) e à própria Avó, passando-se igualmente o inverso. Mais, afirmou que a sua filha era tratada como tal, como neta, como membro da família; era tratada como uma filha é tratada; e porque questionada sobre agressões, contextualiza-as no plano puramente educacional “só quando se portava mal” _pág. 62 e 63);
87. As suas declarações são, em todo este segmento, integralmente confirmadas pelas declarações para memória futura prestadas por LL [pág. 3 a 15] que, de forma sincera, expressa que gostava de viver ali, onde era tratada como família, como neta, não sentia qualquer distinção. À pergunta “alguma vez te bateram” respondeu exatamente o mesmo que a sua mãe “só se me portasse mal”.
88. Toda a prova indicada foi corroborada pelas testemunhas KK [ouvida na sessão realizada no dia 26-06-2019, depoimento que ficou devidamente consignado na ata dessa sessão das 11:15:12 às 11:29:12, encontrando-se registado em Cd áudio àquelas horas, concretamente, aos minutos 01:17 a 13:09]; RR [ouvida na sessão da Audiência de Discussão e Julgamento realizada no dia 26-06-2019, prestou o seguinte depoimento, que ficou devidamente consignado na ata dessa sessão das 10:32:38 às 10:50:24, encontrando-se registado em Cd áudio àquelas horas, concretamente, aos minutos 01:13 a 17:37] e a Dra. SS, Presidente da Câmara ... [ouvida na sessão da Audiência de Discussão e Julgamento realizada no dia 11-10-2018, que ficou devidamente consignado na ata dessa sessão das 11:44:05 às 11:57:50, encontrando-se registado em Cd áudio àquelas horas, concretamente, dos minutos 00:17 ao minuto 13:29].
89. Mais, é a Presidente da Câmara ... quem atesta as condições de habitabilidade, que tem por dignas e de higiene irrepreensível, da casa destes senhores. Como é este mesmo depoimento, desprendido de qualquer interesse nos autos, que faz cair por terra a tese de que estas pessoas viveriam escondidas e reféns naquela casa, onde, a qualquer momento, se faziam visitas inopinadas e sem pré-aviso pelos técnicos responsáveis daquela Câmara.
90. Deste último depoimento ecoam ainda dois outros factos relevantes: i) KK chegou a ir ter consigo à procura de emprego, tendo-lhe sido feito este mesmo pedido pela arguida BB; e LL frequentava, é essa a sua perceção, a escola ....
91. Das declarações para memória futura de LL (pág. 1 e 15) em relação à sua saída da escola, não resulta que o tivesse feito porque foi obrigada. E apesar de comentar que a arguida BB lhe terá dito que não tinham possibilidades, acrescentou em relação ao abandono dos estudos que a sua mãe lhe dizia que já não tinha idade para andar na escola [o que corrobora as declarações da arguida BB no sentido de que foi KK quem decidiu fazê-lo]; questionada de era sua função cuidar da filha de DD, respondeu que não, estava com ela porque não tinha nada para fazer;
92. Em relação ao abono que era recebido para a LL, a arguida BB esclarece na sessão realizada em 06-02-2020 [declarações devidamente consignadas na ata dessa sessão das 14:52:23 às 15:18:55, encontrando-se registadas em Cd áudio àquelas horas, em concreto, aos minutos 10:34 a 15:21] que se tratavam de € 30,00 mês, que lhe era dados pela KK, que se propôs a tal, para ajudar com as despesas da menina;
93. Buscas realizadas às residências e veículos dos arguidos no dia 8 de novembro de 2011. A arguida BB, na 1ª sessão realizada no início de 2018, em concreto no dia 15 de janeiro, cujas declarações ficaram devidamente consignadas na ata dessa sessão das 14:33:49 às 15:49:50, encontrando-se registadas em Cd áudio àquelas horas, mencionou, sobre esta matéria, que os documentos pessoais estavam naquela carrinha porque haviam sido trazidos na noite anterior da casa de ..., que iria entrar em obras; e que por ser já tarde acabaram por deixar tudo no carro [aos minutos 16:22 a 23:48; 30:34 a 36:41 e 01:05:05 a final].
94. O bilhete de identidade de JJ foi encontrado e apreendido dentro da carrinha ..., modelo ..., cinzenta, com a matrícula espanhola “....GFR” _consta do auto de busca a fls. 279 e seguintes dos autos e do provado em 33) do Acórdão recorrido (pág. 31). O documento relativo a JJ que a arguida tinha no seu quarto era um cartão de utente _cfr. auto de busca a fls. 279 e seguintes dos autos e facto provado em 29) do Acórdão (pág. 18).
95. Todos os demais documentos de identificação, com exceção do da menor LL (que estava num armário do quarto do casal, o que até é natural pelo facto de se tratar de uma criança), estavam nessa mesma carrinha, pelos motivos expostos pela arguida.
96. Ora, estes factos, compaginados com a demais prova, não permitem que se conclua que os arguidos retivessem a documentação daquelas pessoas que com eles residiam.
97. Não esqueçamos, ademais, que JJ, KK e LL, únicos ofendidos ouvidos nos autos, nunca referiram ou se queixaram deste facto: da retenção da sua documentação pessoal pelos arguidos contra a sua vontade.
98. Encerrando este bloco factual temos ainda os depoimentos dos Inspetores da Polícia Judiciária que se limitaram a descrever o que de relevante assistiram aquando das buscas realizadas, destacando-se: o depoimento de TT (Inspetor que presidiu à busca), na parte em que refere que no compartimento contiguo à cozinha (anexo) não estava ninguém e as KK estavam na porta[1]; o depoimento de UU (responsável pela investigação) quando diz que a porta (fechada à chave) do quarto onde se encontrava JJ debaixo da cama, a II, a LL e a filha dos arguidos QQ, foi aberta pelo interior por aqueles; que o quarto contíguo à cozinha (onde JJ dormia) tinha documentação pessoal deste; e que a ofendida II pretendeu manter-se com esta família a viver[2];
99. A forma como JJ se encontrava aquando desta diligência, escondido debaixo da cama, não pode servir o fito pretendido na decisão por uma razão simples: este ofendido prestou declarações pouco depois e nunca disse que estava ali contra a sua vontade, pelo contrário, afirmou frontalmente que não se veio embora porque não quis.
100. Quanto à celeuma da documentação bancária apreendida recalcamos que as contas bancárias eram tituladas ou co-tituladas pelos ofendidos _cfr. toda a documentação junta aos autos e Anexos 1 e 2 e, por facilidade, o Relatório Final da PJ a pág. 140 a 149, refletem isso. A única informação relativa a conta co-titulada por arguidos e ofendidos é a que consta de fls. 674 que, como vimos, incluía também a filha dos arguidos QQ, completamente estranha ao objeto deste processo.
101. A factualidade em 26) e 27) dos factos provados é infirmada pelas declarações de LL ao referir (primeiro que lhe contaram e depois que terá mesmo visto) que à mãe só viu bater uma única vez, quando esta estava grávida, pela CC, e que foram “bofetadas”, “lambadas”, “bateram-lhe porque souberam que estava de bebé” [transcrição das declarações para memória futura, pág. 1 a 15]; pela Enfermeira VV, que assistiu KK, que fala especificamente em “arranhões” no abdómem (e não em hematomas), não sabendo sequer dizer, porque não verificou, se seriam ou não frescas as ditas escoriações; não se recorda de ter questionado sobre a origem dessas escoriações (!) _depoimento prestado em audiência em 20-02-2018, que se encontra registado em Cd, devidamente consignado na ata dessa sessão das 11:17:26 às 11:43:13, encontrando-se registadas em Cd áudio àquelas horas, aos minutos 01:00 a 25:46. Por seu turno, o Dr. WW, médico que a examinou, disse que não notou nada de anormal e que o procedimento que teve com esta utente foi em tudo semelhante aos demais casos de possível interrupção voluntária da gravidez _depoimento prestado em audiência em 20-02-2018, que se encontra registado em Cd, devidamente consignado na ata dessa sessão das 10:58:42 às 11:17:25, encontrando-se registadas em Cd áudio àquelas horas, aos minutos 00:20 a 18:42.
102. É inconcebível que esta Senhora tivesse sido objeto da violência refletida nestes factos provados do Acórdão, sem que, naquele exato dia, isso não resultasse sequer indiciado do exame médico a que foi sujeita.
103. Ao inexistir correspondência lógica entre os factos dados como provados e a prova efetivamente produzida, o Tribunal a quo ultrapassa os limites impostos pela Lei Penal na valoração da prova, violando assim disposto nos artigos 125.º, 126.º e 127.º do CPP e o art. 32.º, n.º 2 da CRP.
104. A prova produzida e nesta parte indicada, contraria a factualidade assente sob os pontos 6), 8), 9), 10), 11), 12), 14), 15), 16), 17), 18), 19), 22), 23), 24), 25), 26), 37), 38), 39), 40), 41) e 42) do Acórdão recorrido, devendo, por esse motivo e verificado o supra identificado erro de julgamento em matéria de facto, ser dada integralmente como não provada, alteração que se reclama nesta sede (artigos 412.º n.º 3 e 4; 427.º, 428.º e 431.º, todos do CPP).
Concluindo,
c) A decisão que, no nosso entender, deve ser proferida:
105. Os Recorrentes entendem que o Tribunal ad quem, considerando terem pertinência as questões levantadas em termos de matéria de facto e face a todo o exposto estará em condições de modificar, nos termos do art. 431.º, al. a) do CPP, a matéria de facto impugnada, passando a dar-se como não provados os seguintes factos: 3) 1), 3) 2), 4), 5), 6), 8), 9), 10), 11), 12), 14), 15), 16), 17), 18), 19), 22), 23), 24), 25), 26), 37), 38), 39), 40), 41) e 42).

Termos em que, perante a reclamada alteração de factos deverão os arguidos ser absolvidos dos crimes pelos quais vêm, injustamente, condenados.
Sem prescindir e por mera cautela de patrocínio,

IV – DA MATÉRIA DE DIREITO:

A – DO ENQUADRAMENTO JURÍDICO DOS FACTOS PROVADOS NO ACÓRDÃO RECORRIDO:

106. A matéria de facto provada – mesmo conforme descrita e inalterada – não imprime factualidade suscetível de ser enquadrada nos elementos objetivos e subjetivos do tipo de legal do art. 159.º do CP.
107. Em momento algum aí se descrevem factos que, em termos objetivos, revelem a condição de escravo de HH, KK ou II; como não se descrevem factos que corporizem esta intencionalidade dolosa dos arguidos.
108. Aliás, isto é tão evidente neste Acórdão que a matéria de facto provada não diferencia a situação destes ofendidos dos demais e, precisamente por isso, entra em clara e inultrapassável contradição com a sua fundamentação de direito – originando o vício da al. b) do art. 410.º do CPP.
109. A grande questão, que muito preocupou o Tribunal, é que a ser assim, as condutas dos arguidos reportadas aos anos de 2000 a 2007 (altura da revisão ao tipo legal de tráfico de pessoas), mesmo com tal matéria assente, só seriam suscetíveis de ser enquadradas no tipo legal do art. 222.º do CP e já estariam prescritas (art. 118.º n.1 b) do mesmo diploma).
110. Não serve de argumento, nem poderia, face ao tipo legal previsto no art. 160.º do CP - em que uma das formas de execução do crime é, justamente, a violência - que com isso se pretenda retirar desta factualidade uma gravidade extra que não encontra qualquer suporte legal.
111. Termos em que, e nos demais que V. Exas doutamente suprirão, se entende que o Acórdão recorrido viola as disposições constantes dos artigos 159.º e 160.º do CP, impondo-se a sua revogação;
112. Em consequência, ao abrigo do disposto no art. 222.º, em conjugação com o prescrito no art. 118.º n.º 1 al. b), ambos do CP, deverá ser declarado extinto o procedimento criminal relativamente à factualidade respeitante a HH, II e KK, face às datas em que tais factos ocorreram, o que se roga a V. Exas. se dignem determinar.

B – DA MEDIDA DAS PENAS APLICADAS AOS ARGUIDOS:

113. As penas concretas e as penas únicas resultantes de cúmulo aplicadas aos Recorrentes são injustificadas, incompreensíveis, imerecidas e injustas, impondo-se a sua revogação e reavaliação, os 1.º e 2.ª arguidos têm atualmente 74 e 72 anos de idade.
114. No caso dos Recorrentes, atendendo à sua situação pessoal, quer em termos familiares, sociais e profissionais e estando em causa pessoas sem quaisquer antecedentes criminais desde o início da prática daqueles factos – há 20 anos atrás – até ao presente, impunha-se ao Julgador que aplicasse o instituto da atenuação especial e optasse por penas únicas no limiar dos 5 anos de prisão, suspendendo a sua execução, o que se reclama!
115. A decisão recorrida denuncia, na determinação das penas aplicadas aos arguidos, uma insustentável violação dos artigos 40.º, 50.º, 70.º, 71.º, 72.º n.º 2 d) e 73.º do CP, cuja apreciação e reconhecimento se requer a Vossas Excelências se dignem declarar, com as legais e processuais consequências.

TERMOS EM QUE DEVERÃO V. EX.AS DAR PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO DE MATÉRIA DE FACTO E, EM CONSEQUÊNCIA:

1. DECRETAR A NULIDADE DO ACÓRDÃO PROFERIDA PELO TRIBUNAL A QUO NOS TERMOS DO ARTIGO 379º N.º 1 A) DO CPP;
2. DECRETAR A NULIDADE DO ACÓRDÃO PROFERIDA PELO TRIBUNAL A QUO NOS TERMOS DO ARTIGO 379º N.º 1 C) DO CPP;
SEM PRESCINDIR, E CASO ASSIM SE NÃO ENTENDA,
3. JULGAR VERIFICADO O VÍCIO A QUE SE REFERE O N.º 2 DO ARTIGO 410.º DO CPP E, NÃO SENDO POSSÍVEL DECIDIR DA CAUSA, COMO É O CASO, DEVERÁ O PROCESSO SER REENVIADO RELATIVAMENTE À TOTALIDADE DO SEU OBJETO - ATENTA A MAGNITUDE DA VICISSITUDE INVOCADA - A FIM DE, EM NOVO JULGAMENTO EM 1.ª INSTÂNCIA, SER AFASTADA TAL CONTRADIÇÃO, NOS TERMOS E AO ABRIGO DO DISPOSTO NOS ARTIGOS 426.º N.º 1 E 426.º-A DO MESMO DIPLOMA.
SEM PRESCINDIR, E CASO ASSIM SE NÃO ENTENDA,
4. DETERMINAR A MODIFICAÇÃO DA MATÉRIA DADA COMO PROVADA NO ACÓRDÃO DE QUE ORA SE RECORRE, NOS TERMOS SUPRA EXPOSTOS, E PROFERIR CONSEQUENTE DECISÃO, ABSOLVENDO OS RECORRENTES DA PRÁTICA DOS CRIMES PELOS QUAIS VÊM CONDENADOS. CASO ASSIM SE NÃO ENTENDA,
5. DEVERÁ O RECURSO SER PROVIDO NA PARTE RESPEITANTE Á PRESCRIÇÃO E AO ENQUADRAMENTO JURÍDICO-PENAL DOS FACTOS PROVADOS E NA MEDIDA DA PENA EM PREITO À JUSTIÇA!”

III. O recurso foi admitido por despacho de 04-06-2024, com a refª ...08, tendo sido fixado efeito suspensivo ao mesmo.

IV. Respondeu o MºPº em 05-06-2024, através de contra-alegações com a refª ...29, nas quais pugna pela improcedência do recurso, tendo rematado com as seguintes conclusões:

“I. DO OBJETO DO RECURSO

1.º Inconformados com o douto Acórdão de 12.04.2024, sob a referência ...82, por via do qual foram os arguidos AA, BB, CC e DD por via do qual foram todos condenados, respetivamente, nas penas de 8(oito) anos de prisão, 8(oito) anos de prisão, 8(oito) anos e 6(seis) meses de prisão e 2(dois) anos de prisão suspensa na sua execução por igual período de tempo, dele recorrem os arguidos, suscitando, no essencial as seguintes questões:
i. saber se se verifica a nulidade do Acórdão por falta de exame crítico das provas e por omissão de pronúncia, prevista no artigo 374.º, n.º 2, e 379.º, n.º 1, al. a), do Código de Processo Penal;
ii. saber se o Acórdão recorrido padece dos vícios de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, contradição insanável da fundamentação e erro notório na apreciação da prova, previstos no artigo 410.º, n.º 2, als. a), b) e c) do Código de Processo Penal;
iii. saber se existe erro de julgamento quanto à matéria de facto julgada provada sob os pontos 1), 3) 1), 3) 2), 4), 5), 6), 8), 9), 10), 11), 12), 13), 14), 15), 16), 17), 18), 19), 20), 21), 22), 23), 24), 25), 26), 27), 37), 38), 39), 40), 41) e 42);
iv. saber se o procedimento criminal se mostra extinto, pela prescrição, quanto aos factos ocorridos entre 2000 e 2007 a respeito dos ofendidos HH, II e KK;
v. saber se as penas impostas são adequadas, justas, proporcionais e necessárias;
***
II. DO MÉRITO DO RECURSO

2.º Entende o MINISTÉRIO PÚBLICO, ressalvando sempre o maior dos respeitos por distintas opiniões, que o recurso não deve ter, em qualquer ponto, provimento, devendo ser julgado improcedente in totum.
3.º Assim, a propósito da primeira das suscitadas questões – saber se se verifica a nulidade do Acórdão por falta de exame crítico das provas e por omissão de pronúncia, prevista no artigo 374.º, n.º 2, e 379.º, n.º 1, al. a), do Código de Processo Penal – considera-se que não se verificam as apontadas nulidades.
4.º Com efeito, diz o artigo 379.º, n.º 1, al. a) do Código de Processo Penal, na parte aqui relevante, que “1 - É nula a sentença: a) Que não contiver as menções referidas no n.º 2 e na alínea b) do n.º 3 do artigo 374.º”, continuando, depois, o n.º 2 por dizer que “2 - As nulidades da sentença devem ser arguidas ou conhecidas em recurso, devendo o tribunal supri-las, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto no n.º 4 do artigo 414.º”.
5.º Relativamente aos requisitos da sentença (aqui, acórdão) como ato decisório de excelência, estatui o artigo 374.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, que “[a]o relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal”.
6.º A generalidade da doutrina e da jurisprudência vêm assertivamente dizendo que não é toda a falta de fundamentação que importa a consequência da nulidade da sentença ou acórdão, mas antes a falta que seja absoluta, tanto assim que a “fundamentação insuficiente, deficiente ou não convincente não constitui nulidade da decisão, embora justifique a sua impugnação mediante recurso” (vide, REIS, Alberto dos, in Código de Processo Civil, anotado, vol. 5, pág. 140).
7.º No mesmo sentido, vide, entre outros e por todos, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 03.03.2021, relatado pela Exma. Senhora Juiz Conselheira Leonor Cruz Rodrigues no âmbito do processo n.º 3157/17.8T8VFX.L1.S1 no qual se referiu que “II. Só a absoluta falta de fundamentação – e não a errada, incompleta ou insuficiente fundamentação – integra a previsão da nulidade do artigo 615.º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Civil”.
8.º E, a propósito do exame crítico da prova, veja-se o douto Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 08.01.2020, relatado pela Exma. Senhora Juiz Desembargadora Cristina Almeida e Sousa, no processo n.º 133/17.4PGSXL.L1-3, em cujo sumário se diz de modo assertivo que “O que importa para satisfazer a exigência legal do exame crítico das provas imposta, sob pena de nulidade, pelas disposições conjugadas dos arts. 379º nº 1 al. a) do CPP é que a fundamentação da decisão de facto expresse, com clareza, quais as regras de experiência comum, os critérios de razoabilidade e de lógica, ou os conhecimentos técnicos e científicos utilizados para conferir credibilidade a determinados meios de prova e não a outros e em que medida os meios de prova produzidos oferecem informação esclarecedora e convincente que permite considerar provados os factos ou, pelo contrário, não oferecem segurança para alicerçar uma conclusão positiva acerca da verificação de determinados factos e, por isso, se justifica a sua inclusão, nos factos não provados”.
9.º Resulta do douto Acórdão recorrido, indubitavelmente, que o Tribunal a quo expôs de forma cabal a fundamentação para a formulação da sua convicção quanto à matéria de facto, bem como quanto ao Direito, tudo independentemente da bondade da argumentação e do convencimento (ou não) para o seu destinatário não se verificando, no entendimento do MINISTÉRIO PÚBLICO, que o Tribunal a quo não tenha efetuado uma apreciação crítica da prova documental.
10.º Outrossim, inexiste qualquer nulidade por omissão de pronúncia quanto à destinação do veículo automóvel apreendido, porquanto não tendo sido declarada a sua perda a favor do Estado há, pois, que considerar que será de restituir, tanto assim que não resultaram factos concretos que permitissem concluir pela essencialidade de tal objeto no cometimento dos factos ilícitos e criminais.
11.º O Tribunal a quo decidiu em conformidade com a livre apreciação da prova ínsita ao artigo 127.º do Código de Processo Penal, valorando a prova produzida em conformidade, designadamente os depoimentos dos ofendidos e demais testemunhas e, ainda, as declarações dos arguidos conferindo a maior ou menor credibilidade, senão mesmo a sua falta, consoante a imediação na produção de prova.
12.º Donde se impõe nesta parte seja o recurso interposto julgado improcedente.
13.º Por sua vez, a propósito da segunda das questões – saber se o Acórdão recorrido padece dos vícios de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, contradição insanável da fundamentação e erro notório na apreciação da prova, previstos no artigo 410.º, n.º 2, als. a), b) e c) do Código de Processo Penal – pelos precisos fundamentos supra descritos e constantes das contra-alegações entende-se que nenhum dos apontados vícios se verificam. Existe, sim, uma inconformação por parte dos arguidos quanto à matéria de facto julgada provada por parte do Tribunal a quo.
14.º Pelo que deve, também nesta parte, ser julgado improcedente o recurso interposto.
15.º Quanto à terceira das questões suscitadas – saber se existe erro de julgamento quanto à matéria de facto julgada provada sob os pontos 1), 3) 1), 3) 2), 4), 5), 6), 8), 9), 10), 11), 12), 13), 14), 15), 16), 17), 18), 19), 20), 21), 22), 23), 24), 25), 26), 27), 37), 38), 39), 40), 41) e 42) – considera o Ministério Público que o Tribunal a quo decidiu de facto em conformidade com a livre convicção que formou ao abrigo do postulado no artigo 127.º do Código de Processo Penal segundo os princípios da oralidade e da imediação da prova produzida perante si, nenhum juízo de censura se nos merecendo.
16.º Pelo que também nesta parte deve improceder o recurso interposto.
17.º Quanto à quarta das suscitadas questões – prescrição dos factos ocorridos entre 2000 e 2007 – há que atentar ao disposto no artigo 119.º, n.º 2, al. b) do Código de Processo Penal, segundo o qual o prazo de prescrição só corre, nos “crimes continuados e nos crimes habituais, desde o dia da prática do último acto”.
Tendo-se dado o último ato em 19.03.2011 é a partir de tal data que se deve atentar para efeitos de prescrição do procedimento criminal (vide facto julgado provado sob o ponto 25, sem prejuízo de existirem, ainda factos posteriores, em agosto seguinte).
18.º Deste modo, sendo o prazo prescricional de 15(quinze) anos e considerando as causas de suspensão e de interrupção da prescrição, nos termos do disposto nos artigos 118.º, n.º 1, al. a), 119.º, n.ºs 1 e 2, al. b), 120.º, n.º 1, al. b) e n.º 2, 121.º, n.ºs 1, 2, als. a) e b), e 3, todos do Código Penal, verifica-se o prazo prescricional em 19.09.2037 acrescido, ainda, de 4(quatro) anos ao abrigo da causa suspensiva constante do artigo 120.º, n.º 1, al. e) e n.º 4, do Código Penal, o que se verificará em 19.09.2041.
19.º Em face do que se impõe a improcedência da arguida declaração de prescrição e, assim, do recurso, também nesta parte.
20.º Por fim, no que concerne à última questão – saber se as penas parcelares e únicas impostas são adequadas, justas, proporcionais e necessárias – considerando todo o acervo factual julgado provado, bem como a medida da culpa do arguido ora recorrente, de harmonia com as finalidades das penas e daquilo que dispõem os artigos 40.º e 71.º do Código Penal, afiguram-se justas, adequadas e proporcionais para o tipo de cada um dos crimes em causa, as penas que concreta e parcelarmente foram impostas aos arguidos, assim como a pena única que a cada um foi imposta.
21.º Donde, também nesta última parte se entende que nenhum reparo ou censura merece o douto Acórdão recorrido, devendo julgar-se improcedente o recurso.
22.º Porém, V. Exas. decidindo farão, pois, e como sempre, a tão acostumada JUSTIÇA.”

V.  Colhidos os vistos, foi realizada audiência nos termos do artº 411º nº 5 do CPP, tendo o Exmº Sr. Procurador-Geral Adjunto pedido justiça.

VI. Analisando e decidindo.

O objecto do recurso interposto, e portanto da nossa análise, está delimitado pelas conclusões do mesmo, atento o disposto nos artºs 402º, 403º e 412º todos do CPP devendo, contudo, o Tribunal ainda conhecer oficiosamente dos vícios elencados no artº 410º do CPP bem como das nulidades previstas no artº 379º do mesmo CPP que possam obstar ao conhecimento do mérito do recurso.[3]

Das disposições conjugadas dos artºs 368º e 369º, por remissão do artº 424º nº 2, e ainda o disposto no artº 426º, todos do Código de Processo Penal, o Tribunal da Relação deve conhecer das questões que constituem objecto do recurso, pela seguinte ordem:

1º: das questões que obstem ao conhecimento do mérito da decisão, aqui incluindo-se as nulidades previstas no artº 379º do CPP e os vícios previstos no artº 410º nº 2 do CPP;
2º: das questões referentes ao mérito da decisão, desde logo, as que se referem à matéria de facto, começando pela impugnação alargada, se deduzida, nos termos do artº 412º do CPP;
3º: as questões relativas à matéria de Direito.

Os arguidos entendem que:
- o acórdão recorrido continua a padecer da nulidade apontada pelo primeiro acórdão desta Relação, pois entendem que o Tribunal a quo não fundamentou a decisão de facto nos termos determinados;
- o acórdão recorrido é ainda nulo, por falta de pronúncia, porquanto o Tribunal a quo não se pronunciou acerca do destino a dar ao veículo automóvel apreendido nos autos;
- o acórdão recorrido ainda padece de:
- insuficiência para a decisão da matéria de facto porque a condenação se baseia em factos genéricos;
- contradição insanável no que tange às agressões, pois ora se diz que todas as vítimas foram fisicamente agredidas, ora se diz que só algumas o foram, apontando a contradição entre os factos vertidos em 3.2, 3.2, 5 e 39;
- erro notório na apreciação da prova;
- existe erro de julgamento na fixação dos factos vertidos em 1, 3.1, 3.2, 4, 5, 6.1, 6.2, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 37, 38, 39, 40, 41 e 42, os quais impugnam nos termos do artº 412º do CPP;
- o enquadramento jurídico não se mostra correctamente executado pois entendem que não são descritos factos que, em termos objectivos, revelam a condição de escravo dos ofendidos HH, II e KK, quando muito estaria em causa crime de burla em relação ao trabalho o qual, dadas as datas, se mostra prescrito;
- houve violação do princípio in dúbio pro reo;
- à cautela, as penas mostram-se desadequadas, devendo beneficiar de uma atenuação especial das mesmas.

Está, assim, em causa decidir nos presentes autos pela ordem supra indicada:
I) se o acórdão é nulo nos termos do artº 379º nº 1 al. a) do CPP por falta de fundamentação nos termos do artº 374º nº 2 do CPP;
II) se o acórdão é nulo nos termos do artº 379º nº 1 al. c) do CPP por omissão de pronúncia;
III) se o acórdão padece de algum ou de todos os vícios plasmados no artº 410º nº 2 als. a) b) e c) do CPP;
IV) se a matéria de facto impugnada deve ser alterada nos termos requeridos;
V) se foi violado o princípio in dúbio pro reo;
VI) se a qualificação jurídica dos factos se mostra correctamente efectuada;
VII) se as respectivas medidas da pena devem ser alteradas.

Antes de entrarmos na análise do recurso vejamos, primeiro, os factos que foram dados por provados e por não provados e a respectiva fundamentação dessa factualidade levada a cabo pelo Tribunal a quo (transcrição):

II. Fundamentação.

A) Factos provados.
Da audiência de julgamento, resultou provado que,
1) Todos os arguidos são de etnia cigana e familiares entre si, sendo o arguido AA (doravante 1º arguido) marido da arguida BB (doravante, 2ª arguida) e estes progenitores dos arguidos CC (doravante, 3ª arguida), DD (doravante, 4ª arguida), AA (doravante, 7º arguido) e EE (doravante, 5ª arguida), a qual é companheira do arguido FF (doravante 6º arguido).
A arguida BB é vulgarmente conhecida pela alcunha de “XX”.
2) Pelo menos, até novembro de 2011, todos eles residiam no mesmo bairro, em Alfândega ..., sendo os 1º, 2º, 3º e 7º arguidos na casa nº ..., a 4ª arguida na casa nº ...5 e os 5º e 6º na casa nº ...3, e também na Rua ..., ..., em ....
Em Espanha, para onde se deslocavam frequentemente, por ocasião das campanhas agrícolas, residiam na Calle ... ..., em ...,
3º.
Para os seus contactos telefónicos, utilizavam designadamente os telemóveis com os nºs “...04” (arguidos CC, AA e BB), “...80” (DD), “...44” (arguidos EE e FF).
3) 1) Desde data não concretamente apurada mas seguramente, pelo menos, desde o ano de 2000 os 1º, 2º e 3º arguidos decidiram, de comum acordo e em comunhão de esforços, como forma de obterem dinheiro fácil/lucros, explorar a força de trabalho de cidadãos portugueses, apoderando-se das remunerações correspondentes ao trabalho prestado pelos mesmos.
3) 2) E, ainda, decidiram sujeitá-los ao seu domínio, controlo e total dependência, confiscando-lhes a documentação de identificação pessoal e bancária, exercendo sobre eles violência psicológica e física, reduzindo-lhes a liberdade ambulatória, obrigando ainda as mulheres aliciadas/aceites a trabalharem nas lides domésticas.
4) Assim por norma, os arguidos referidos em 3) aliciavam eles próprios as referidas pessoas, em Portugal.
Nessa actividade, contaram pelo menos numa ocasião, com a participação, mediante acordo prévio e em conjugação de esforços, dos 5º e 6º arguidos.
Os referidos arguidos, na execução da aludida decisão, escolhiam pessoas com baixo nível de escolaridade e de qualificação profissional, por vezes com deficiências físicas, oriundas de grupos sociais desfavorecidos, que exerciam actividades indiferenciadas ou estavam desempregadas, sem retaguarda familiar e sem expectativas de melhoria das condições de vida, e abordando-as directamente, prometiam-lhes, assim as aliciando, trabalho, designadamente em Espanha e na
actividade agrícola, bem remunerado e com alimentação, alojamento e transporte gratuitos de e para os locais de trabalho.
5) Noutros casos, os 1º, 2ª e 3ª arguidos aceitaram pessoas em circunstancias não concretamente apuradas, mas sempre com as características supra mencionadas, ficando estas erroneamente convencidas pelos referidos arguidos, que assim o garantiram, que receberiam a remuneração devida.
6) As pessoas assim aliciadas e/ou aceites, convencidas da veracidade/seriedade de tal promessa/garantia, e por causa disso, acabavam por acompanhar os id. arguidos, que por norma, os transportavam, num primeiro momento, para as suas habitações em ... e/ou Alfândega ... e, posteriormente, para Espanha, utilizando para o efeito, veículos pertencentes ao arguido AA, e entre outros, o “...”, branco, com a matrícula (espanhola) “M .... UV” e o “...”, de cor ..., com a matrícula (espanhola) ....GFR.
As pessoas aliciadas e/ou aceites eram obrigadas a laborar todos os dias da semana, com excepão dos Domingos, enquanto duravam as atividades agrícolas (apanha da fruta, vindimas, desfolha, poda, azeitona…) e de igual modo nas obras, entre outras, da autoestrada, em Portugal e em Espanha.
Porém, no caso das mulheres, eram também obrigadas a trabalhar nas lides domésticas, na casa dos 1º e 2ª arguidos, e todos os dias da semana, sem excepção, salvo quando havia trabalhos agrícolas.
As pessoas aliciadas e/ou aceites, caso ainda não o tivessem feito antes de iniciar a viagem até aí, eram obrigados a entregar toda a documentação de identificação pessoal que possuíssem aos identificados arguidos (1º, 2º e 3º), que depois estes mantinham retidas na sua posse e à sua guarda.
7) Para a realização das campanhas agrícolas, quer em Portugal (em Alfândega ... e concelhos limítrofes), quer em Espanha, designadamente em ..., ..., ..., e nas províncias de ..., ..., ..., ... e ..., as pessoas aliciadas e/ou aceites eram transportadas pelos 1º e/ou 3ª arguidos nos veículos referidos e noutros e frequentemente ficavam alojados nas quintas (“fincas/bodegas”) dos patrões ou então, na residência que os 1º e 2º arguidos possuíam em ..., Espanha, sendo-lhes então proporcionado o transporte de ida e volta aos locais de trabalho.
8) Nas quintas as pessoas aliciadas e/ou aceites eram vigiadas pelo 1º arguido, que estabelecia contactos com os patrões/donos daquelas, recebendo a remuneração por estes paga e entregue ao referido arguido, como contrapartida do trabalho daquelas pessoas e a quem deveria ser entregue, em montante não inferior a 6 ou 7 contos/dia por cada uma e por vezes em montante mensal de cerca de 1.300 €.
9) Sucede, porém, que a remuneração assim entregue ao 1º arguido, que deveria ser entregue ás referidas pessoas como contrapartida do trabalho prestado, era retida pelos 1º, 2º e 3º arguidos, que a faziam sua, em execução do propósito delineado, integrando-a no seu património e causando prejuízo ás pessoas que trabalhavam, desde logo em montante correspondente a tais remunerações.
De igual forma, o trabalho prestado nas lides domésticas e que era diário (salvo quando havia trabalhos agrícolas) não era remunerado pelos arguidos em referência, que assim enriqueciam com as quantias poupadas e inversamente prejudicavam as que o prestavam com o não recebimento da respectiva contrapartida.
10) As pessoas aliciadas e/ou aceites não dominavam a língua espanhola, desconhecendo em absoluto as respetivas normas jurídicas.
11) Durante o período compreendido entre, pelo menos, o ano de 2000 até ../../2011, em execução do plano acordado e em comunhão de esforços e intentos, sempre com o propósito de se locupletarem com a retribuição auferida pelo trabalho das pessoas por si aliciadas e/ou aceites e/ou de não pagarem a remuneração devida pelos trabalhos prestados em seu (referidos arguidos) benefício e, assim, de obterem dinheiro fácil, os 1º, 2ª e 3ª arguidos agiram do modo supra descrito, pelo menos, com cinco cidadãos portugueses, tendo ainda actuado da forma que se descreverá quanto a uma menor do que beneficiou também a 4ª arguida.
Pelo menos em relação ao aliciamento de um dos ofendidos, os 1º, 2ª e 3ª arguidos actuaram mediante acordo e em comunhão de esforços, com os 5º e 6º arguidos nos termos referidos em 4), bem sabendo estes que nenhuma remuneração seria paga e que assim o referido ofendido ficaria prejudicado.
12) Os referidos ofendidos, aliciados ou aceites pelos referidos arguidos com o propósito de á custa deles se locupletarem foram:
a) HH (nascido em ../../1974 e titular do bilhete de identidade nº ...11), aceite pelo menos no ano de 2000 e até ../../2011;
b) II (nascida em ../../1971 e titular do bilhete de identidade nº ...29), aceite pelo menos em meados de 2000 e até ../../2011;
c) KK (nascida em ../../1976 e titular do bilhete de identidade nº ...86; é mãe de LL), aliciada desde meados de 2000 até ../../2011;
d) JJ (nascido em ../../1960 e titular do bilhete de identidade nº ...27), aliciado em Março/Abril de 2008 até Setembro/Outubro do mesmo ano;
e) NN (nascido em ../../1950 e titular do cartão de cidadão nº ...), aliciado pelo menos em Setembro e até Outubro de 2010.
Em relação a LL (nascida em ../../1997 e titular do bilhete de identidade nº ...28; é filha de KK), que permaneceu com eles desde meados de 2000 até ../../2011, actuaram da forma como se descreverá, do que beneficiou, também, a 4ª arguida.
13) Os ofendidos supra aludidos em a) a e) não tinham retaguarda familiar, atravessando dificuldades financeiras, encontrando-se desempregados ou a exercer atividades laborais indiferenciadas, nomeadamente na agricultura e na construção civil e não tinham perspetivas de qualquer evolução positiva.
Ficaram convencidos pelas promessas/garantias dos referidos arguidos, e por isso foram trabalhar, que se trataria de uma boa oportunidade para melhorarem a sua situação económica e as suas condições de vida.
Assim:
14) Pelo menos em meados do ano de 2000, após contacto ocorrido em circunstâncias não concretamente apuradas, os 1º e 2ª arguidos, sabedores da situação da má situação económica e total falta de perspectiva de trabalho em que se encontrava o HH (doravante HH) e disso se aproveitando, garantiram-lhe que receberia uma remuneração, em montante não inferior a 7 contos/dia, com direito a alojamento, refeições e transporte gratuito de e para os locais de trabalho.
Com tal garantia e face à situação em que se encontrava o HH, os 1º e 2º arguidos convenceram-no a ir com eles para Alfândega ... e Espanha, para aí trabalhar na agricultura, designadamente nas vinhas, em ..., ..., ... (Espanha) e nas obras da autoestrada em ....
Desde pelo menos meados de 2000 até ../../2011, HH executou por conta dos 1º, 2ª e 3ª arguidos ou de terceiros e sempre sob as ordens daqueles arguidos, todo o tipo de trabalhos, quer agrícolas, em Portugal, designadamente nas regiões de Alfândega ... e ... e em Espanha, nas províncias de ..., ..., ..., ..., ..., nas vinhas em ..., ..., ..., Espanha para onde se deslocavam frequentemente para realizar as campanhas das vindimas (entre setembro e outubro), da poda (de dezembro a março), da desfolha (entre março a julho) e da apanha da fruta (entre junho a agosto), quer nas obras, designadamente de construção da autoestrada de ....
Nunca recebeu qualquer tipo de remuneração ou contrapartida pelo trabalho que prestava a qual, invariavelmente, era retida e apropriada pelos 1º, 2º e 3º arguidos.
15) Também no ano de 2000, os 1º e 2º arguidos, em comunhão de vontades e forças com os 5º e 6º arguidos, através da promessa de um trabalho bem remunerado, com boas condições de alojamento, alimentação e transporte gratuito de e para os locais de trabalho, e tendo perfeito conhecimento da situação económica difícil em que KK se encontrava, tanto mais quanto tinha uma filha, LL, à data, apenas com cerca de dois anos de idade, e disso se aproveitando, convenceram-na a acompanhá-los até Alfândega ... para trabalhar na agricultura na região de ... e em Espanha (designadamente, em ... e ...), mediante o pagamento de boa remuneração, de 6 contos/dia, incluindo alojamento, alimentação e transporte.
Assim convencida que as condições de trabalho propostas pelos referidos arguidos se concretizariam, acedeu acompanhá-los, em direção à habitação daqueles, em Alfândega ..., onde permaneceu a trabalhar diariamente de manha à noite nas lides domésticas (limpando a casa, lavando e passando a roupa, arrumando, cozinhando, passando a ferro…), salvo as épocas em que ia para os trabalhos agrícolas, quer na região do nordeste transmontano, quer em Espanha para onde se deslocava frequentemente, não recebendo qualquer remuneração, nem a que era paga por terceiros para quem também trabalhava na agricultura, por os arguidos dela se apoderarem não lha entregando, nem a que lhes era devida pelos trabalhos que prestava, mormente nas lides domésticas, por os 1º, 2º e 3º arguidos também não lha pagarem, o que sucedeu até ../../2011, data em que foi resgatada na sequência de uma intervenção policial.
16) Quando completou o 6º ano de escolaridade, a LL foi retirada da escola pela 2ª arguida, passando a estar obrigada a cuidar e tratar da filha ainda menor da arguida DD, YY, nascida a ../../2010.
Além disso, a LL era beneficiária da prestação social do abono de família, mas cujo montante nunca recebeu efetivamente, uma vez que os 1º, 2º e 3º arguidos dele se apoderaram todos os meses.
Para o efeito, e porque os 1º, 2º e 3º arguidos haviam imposto á KK que a 2º arguida fosse autorizada a movimentar a conta bancária “Banco 1...” de Alfândega ..., onde eram depositados os valores pagos a título de abonos, a referida arguida procedia ao levantamento das respectivas quantia em benefício daqueles, nunca tendo entregue qualquer quantia monetária àquela ofendida.
Assim, entre ../../2007 e ../../2011, levantou em seu benefício e da sua família, quantia superior a 2.110 € correspondente aos abonos pagos, apesar de obrigar a menor a trabalhar cuidando da neta, nos termos vistos.
17) No ano de 2000, após contacto ocorrido em circunstâncias não concretamente apuradas, os 1º, 2º e 3º arguidos, sabedores da má situação económica e total falta de perspectiva de trabalho, em que se encontrava a II e disso se aproveitando, garantiram-lhe que receberia uma remuneração, cujo montante não foi possível apurar, mas não inferior a 6 contos/dia, com direito a alojamento, refeições e transporte gratuito de e para os locais de trabalho.
Assim convencida que as condições de trabalho garantidas referidos arguidos se concretizariam, acedeu acompanhá-los, em direção à habitação daqueles, em Alfândega ....
Passou a fazer os trabalhos agrícolas, quer na região do nordeste transmontano, quer em Espanha para onde se deslocava frequentemente, e nas lides domésticas, não recebendo qualquer remuneração, nem a que era paga por terceiros para quem também trabalhava na agricultura, por os 1º, 2º e 3º arguidos dela se apoderarem não lha entregando, nem a que lhes era devida pelos 1º, 2º e 3º arguidos pelos trabalhos que lhes prestavam, mormente nas lides domésticas, por estes também não lha pagarem, o que sucedeu até ../../2011.
18) Em meados de 2008, os 1º e 2º arguidos, sabedores da falta de retaguarda familiar de JJ (doravante JJ) e disso se aproveitando, contactaram através da promessa de um trabalho bem remunerado, com boas condições de alojamento, alimentação e transporte gratuito de e para os locais de trabalho, convenceram-no a acompanhá-los até Alfândega ... para trabalhar, designadamente, na agricultura e nas obras, na região de ... e em Espanha.
Assim, também este ofendido, convencido que as condições de trabalho propostas pelos 1º e 2º arguidos se concretizariam, acedeu acompanhá-los.
19) Assim, desde pelo menos meados de 2008 e durante cerca de 6 meses, JJ trabalhou em Espanha, como sinalista, na construção de uma auto estrada, na zona de ..., ficando alojado na residência dos 1º e 2º arguidos, em Espanha, onde já se encontravam os ofendidos HH, KK, a filha desta LL e ainda II.
Como contrapartida das referidas funções na construção da autoestrada desempenhadas pelo ofendido JJ era paga a retribuição mensal de € 1.300,00 que, porém, este nunca recebeu, uma vez que a 2ª arguida (BB) com o acordo dos 1º e 3º arguidos (AA e CC) dela se apoderou todos os meses.
20) Decorridos os 6 meses, e como o trabalho na auto-estrada tivesse chegado ao fim e não haver trabalhos agrícolas, os 1º, 2º e 3º arguidos deixaram o JJ ir-se embora, tendo-lhe entregue na altura a quantia de 300 €.
21) Todavia, como o JJ nutrisse sentimentos pela ofendida KK, voltou, dias depois, para junto dos referidos arguidos, afim de estar junto daquela.
Desde então e até e sob as ordens dos 1º, 2º e 3º arguidos, desenvolveu trabalhos agrícolas, em Portugal, designadamente nas regiões de Alfândega ... e ... e em Espanha, nas províncias de ..., ..., ..., ..., ..., nas vinhas em ..., ..., ..., Espanha para onde realizavam com frequência as campanhas das vindimas (entre setembro e outubro), da poda (de dezembro a março), da desfolha (entre março a julho) e da apanha da fruta (entre junho a agosto).
Como contrapartida dos trabalhos prestados pelo JJ, era disponibilizada pelo patrão espanhol ou português a quantia mensal correspondente ao trabalho prestado, que atingia cerca de € 1.300,00 nas obras da autoestrada, que, porém, o ofendido JJ nunca recebeu, por os 1º 2º e 3º arguidos dela se apoderarem e gastarem em proveito próprio.
22) Também em data não concretamente apurada mas por volta de finais de agosto de 2010, a 3º arguida, sempre em execução do mesmo propósito e em conjugação de esforços com os 1º e º arguidos, sabedora das graves dificuldades económicas e por causa disso, convenceu NN a viajar até ... para daí os acompanhar até Espanha para trabalhar nas vindimas.
Assim, uma vez chegado a ... NN foi recolhido e transportado no veículo de marca ...”, branco, de matrícula espanhola “M .... UV”, seguindo de imediato viagem até ... (Espanha).
Quando chegou a Espanha, no próprio dia NN ficou alojado na residência dos 1º e 2º arguidos, em ..., constituída por três pisos (..., 1º e ... andar) e logradouro, onde já se encontravam os ofendidos HH, JJ, KK, LL e II e, de imediato, foi advertido pelos 1º, 2º e 3º arguidos que não poderia ausentar-se da habitação fora do período laboral e durante o período noturno.
Desde aí e durante cerca de mês e meio, o sobredito ofendido NN trabalhou todos os dias, à exceção do domingo, nas vindimas designadamente, sendo diariamente transportado para os locais de trabalho e depois recolhido ao final do dia na residência dos 1º, 2º e 3º arguidos.
Tal como sucedia com os outros mencionados ofendidos, os 1º, 2º e 3º arguidos recebiam a remuneração devida pelo trabalho prestado por NN e que era paga pelos donos das quintas nas quais aquele laborava em montante diário de cerca de € 50,00 mas não lha entregavam, apoderando-se do dinheiro que recebiam, gastando-o em seu proveito e no do seu agregado familiar, bem sabendo que tal dinheiro não lhes pertencia.
23) Inicialmente os patrões espanhóis entregavam diretamente ao 1º arguido a remuneração correspondente ao trabalho prestado pelos ofendidos, com a incumbência de lhas entregar, mas que era invariavelmente retida e assim apropriada pelos 1º, 2º e 3º arguidos.
A dada altura os patrões espanhóis passaram a exigir a abertura de contas bancárias tituladas pelas pessoas que prestavam o trabalho a fim de depositarem as respectivas remunerações directamente nas respectivas contas.
Porém, mesmo nesses casos, o dinheiro das remunerações continuava a ser objecto de apropriação pelos arguidos em causa, que exigiam aos ofendidos, obrigando-os, que procedessem ao levantamento das remunerações depositadas, para o que eram acompanhados, geralmente, pela 2ª arguida, até às agências bancárias onde procediam aos referidos levantamentos em numerário que depois e logo que no exterior da dependência bancária lhe entregavam.
24) Os 1º, 2º e 3º arguidos dispunham a seu bel-prazer da força de trabalho dos referidos ofendidos, seja em benefício próprio, em trabalhos domésticos sem qualquer remuneração, seja mediante a colocação daqueles ao dispor de terceiros em Espanha e em várias regiões do nordeste transmontano, a quem prestavam serviços no ramo agrícola, apropriando-se das remunerações que lhes eram devidas.
Para melhor exercerem o seu domínio e controlo sobre os ofendidos e os sujeitarem totalmente, além dos ofendidos serem obrigados a dormirem sem condições de habitabilidade e salubridade, na casa térrea de ... (composta apenas por duas divisões: a cozinha – sem banca e com dois armários – e um quarto com duas camas uma de casal e outra de solteiro, e dois roupeiros, sendo que na cozinha existia uma janela pequena, com grades), e no chão, na casa de Alfândega ..., em cima de cobertores e de um colchão, num compartimento anexo à cozinha e de se verem negada qualquer peça de vestuário (apenas lhes sendo entregue roupa usada) e produtos de higiene pessoal, os 1º, 2º e 3º arguidos retinham-lhes, assim a confiscando, a documentação oficial de identificação pessoal (e outra), a documentação relativa às contas bancárias por aqueles tituladas e a que os arguidos em causa tinham pleno acesso e disponibilidade sobre o dinheiro, nos termos vistos; além disso, os referidos arguidos exerciam sobre os ofendidos ameaças de agressão e outras, e além das ameaças, recorriam quase diariamente ás agressões físicas, designadamente, quando o HH se queixava da falta de pagamento da remuneração ou da falta de condições, era agredido fisicamente com murros e pontapés pelos 1º, 2ª e 3ª arguidas e, do mesmo modo, também as ofendidas KK[4] e II eram quase diariamente agredidas com bofetadas na face e insultadas pelas 2º e 3º arguidas sempre que não cumpriam as tarefas como desejado por estas arguidas, mais ainda quando[5] partiam alguma peça em louça, ou até mesmo sem qualquer motivo que aparentemente o justificasse, situação que se agravou relativamente à ofendida KK a partir de Agosto de 2011.
Também a menor LL passou a ser vítima de agressões físicas, a contar de 2008.
Além disso, sempre para melhor os controlarem, os referidos arguidos fechavam, á noite, os ofendidos, pois as portas das casas dos 1º e 2º arguidos, na Rua ..., em Alfândega ..., na de ... e na de ... eram fechadas á chave, ficando o 1º arguido com a chave, assim impossibilitando os ofendidos de saírem, e só muito raramente lhes permitiam telefonar e na sua presença.
Os ofendidos, ainda que só estivessem fechados de noite, não tentavam fugir porque e também, para além do estado de sujeição e controlo dos 1º, 2º e 3º arguidos, não dominavam a língua nem as normas jurídicas espanholas, desconhecendo as zonas onde estavam, não tinham dinheiro, além das suas características pessoais supra referidas, o que no caso da KK era agravado porque as 2º e 3º arguidas lhe diziam que ficaria sem a sua filha LL.
25) Por força do acima descrito e do clima de intimidação, o ofendido NN pediu para ir embora, o que só lhe foi consentido pelos 1º, 2º e 3º arguidos, uma vez terminadas as vindimas, por volta de finais de Outubro de 2010, tendo recebido 100 € daqueles arguidos.
E, também por força do acima descrito, agressões e intimidação, o ofendido HH veio a fugir, a 19.3.2011.
26) Na sequência de relacionamento sexual de cópula completa não consentido, a ofendida KK engravidou de ZZ, marido da arguida DD, e quando tal gravidez foi visível para a arguida CC, o que aconteceu no dia 03 de agosto de 2011, esta, com o intuito de colocar termo àquela gestação, desferiu diversos golpes com as mãos na zona do ventre da KK, causando-lhe fortes dores e vários ferimentos, mormente equimoses, na região abdominal.
Com o propósito de se certificarem do tempo de gestação e da viabilidade da sua interrupção, nesse mesmo dia 3 de agosto de 2011, e pelo menos as arguidas BB e CC levaram a ofendida KK ao Serviço de Urgência do Hospital ..., vindo-se a confirmar uma gestação de 24 semanas, a impossibilitar a referida interrupção.
27) As 2ª e 3ª arguidas tentaram, no que foram impedidas pelos profissionais de saúde, estar sempre junto da ofendida durante a observação médica, com vista a controlá-la e a certificarem-se que a mesma não denunciasse a situação que vivenciava.
Não obstante a insistência dos profissionais de saúde que a atenderam, KK recusou ficar internada, mostrando-se sempre muito receosa e inibida.
28) No dia ../../2011, na sequência de uma busca realizada na residência dos arguidos AA, BB e CC, no Bairro ..., casa nº ..., em Alfândega ..., foram encontrados, num dos quartos as ofendidas KK e a sua filha LL e, o ofendido JJ, escondido debaixo da cama, além de que foram encontrados e apreendidos os seguintes objetos:
29) No quarto dos arguidos AA e BB:
a). No interior de uma gaveta da mesa de cabeceira situada junto da parede exterior (janela):
- bilhete de identidade... n.º ...98 (emitido pelo ... a 2005/JUL/14; válido até 2010/NOV/14), titulado por OO;
- comprovativo de pedido de Cartão de Cidadão (local de pedido: CRCiv. ...; data: 2011/SET/30; morada associada: Rua ..., ... ..., Alfândega ...; n.º telemóvel: ...04) relativo a OO;
- cartão de utente n.º ...56 (emissão: 1999/OUT/12, ...), titulado por JJ;
- oito (8) folhas emitidas pela “...” (sucursal 0490 AAA, ...), relativas a contrato de tarjeta de débito (data: 2011/AGO/30; cartão n.º ...05; conta associada:  ...00; morada associada: CALLE ..., ... ...; contactos telefónicos associados: ...15 e ...05), em nome da ofendida KK;
- caderneta bancária da Banco 1.... (balcão 0042 Alfândega ...; conta n.º  ...00) titulada pelos arguidos AA e BB;
b) No interior de uma gaveta da cómoda (situada junto da parede exterior/janela), sob o vestuário:
- aparelho de telemóvel, da marca ..., com o IMEI ..., contendo inserido cartão SIM.
c) No interior de uma carteira de cor ... que se encontrava no roupeiro:
- Cartão de Cidadão n.º ..., titulado pela ofendida LL.
d) No interior de uma gaveta da mesa de cabeceira situada junto do roupeiro:
- fotografia onde se encontra registado o ofendido HH, na companhia, designadamente, da arguida BB, respetivos filhos e terceiros não identificados;
- aparelho de telemóvel, ligado, da marca ..., modelo ..., com o IMEI ...80, contendo inserido cartão SIM da operadora EMP01..., contendo registado, entre outros, o nº de telefone “TEL ...09”.
e) No interior da carteira da arguida BB, colocada sobre a cama:
- doc. “demanda de empleo/...” (data renovação: 2011/FEV/25; morada associada: CALLE ... ...; data inscrição: 2008/FEV/29) relativo à arguida BB - NIE ...88...;
- doc. “declaração atendimento centro de saúde de ..., ...” (data: 2011/NOV/03) relativo à arguida BB;
- certificado de registo de cidadão estrangeiro em Espanha (data: 2008/FEV/15; morada associada: CALLE ..., ..., ...) relativo à arguida BB – NIE ...88...;
- contrato de empréstimo e recibo emitidos pela “...” (data: 2011/NO...4; sucursal ... ..., ...; morada associada: CALLE ..., ... ...), em nome da arguida BB - NIE ...88...;
- doc. emitido pela ..., relativo à emissão de “tarjeta sanitária” (data: 2011/SET/23;centro saúde ..., ...; n.º seguridad social: 49/...29/04; morada associada: CALLE ..., ... ...; contacto telefónico associado: ...77) em nome da arguida BB – NIE ...88...;
- doc. infracção rodoviária emitido pelo “Ministério del Interior – Jefatura de Tráfico de ...”, relativo ao veículo com a matrícula (espanhola) ZA .... K (data: 2010/SET/24) e doc. declaração (data: 2011/OUT/14) da arguida BB, informando que, aquando da infração, o condutor daquele veículo era o denunciado ZZ (morada associada: CALLE ..., ... ...);
- decisão do “Julgado 1.ª Instância e Instruccion n.º 1 – ...” (data: 2011/JUL/14), relativa a “delito de Hurto”, condenando DD e BBB em pena de multa;
- caderneta bancária (emitida a 2009/SET/25) “Banco 2... ...” (sucursal 0664 – ..., 3, ...03 ...) relativa à conta n.º ...64, titulada pela arguida BB;
- certificado de registo de cidadão estrangeiro em Espanha (atestando que a arguida solicitou e obteve a inscrição no “Registro Central de Extranjeros de la Dirección General de La Polícia y de ... Civil” como residente comunitário com carácter permanente desde a data de ../../1992) titulado pela arguida CCC (3) papéis contendo referências telefónicas (números e nomes) manuscritas com os seguintes registos com relevância:
- “MÃE – ...31”;
- “MARIDO – P. ...50, E. ...92”;
- “CC – P. ...04, E. ...15”;
- “AA. F – P. ...35”;
- “DDD – ...20”;
- “EEE – ...83”;
- “FFF – P. ...22, E. ...67”;
- “EE – P. ...50”;
- “GGG – P. ...68”.
30) No quarto de dormir da arguida CC, sobre a mesa de cabeceira:
- aparelho de telemóvel, ligado, da marca ..., com o IMEI ...00, contendo inserido cartão SIM da operadora EMP02..., com vários registos.
- “QQ – ...22”;
- “QQ – ...67”;
- “Irmao – ...20”;
- “HHH – ...38”;
- “mae – ...07”;
- “Mae – ...77”;
- “... – ...93”;
- “EE – ...05”;
- “... – ...34”;
- “... – ...87”;
- “... – ...42”;
- “EE – ...41”;
- “Pai – ...98”;
- “... – ...95”;
- “III – ...68”;
- “DD – ...72”;
- “JJJ – ...60”;
- “Tio KKK – ...34”;
- “Irmao – ...20”;
- “...73 – “CC sou a DD ja tamos em alkanices…se keres alguma koixa resp pra este numero”;
- “... – ...58”;
- “Amor – ...53”;
- Cunhado – ...38”.
- aparelho de telemóvel, ligado, da marca ..., modelo ..., com o IMEI ...58, contendo inserido cartão SIM da operadora EMP02..., com os seguintes registos, entre outros:
- “Mae – ...31”;
- “Meu – ...25”;
- “Pai – ...50”;
- “... – ...50”;
- “LLL – ...28”;
- “QQ – ...22”;
- “DD – ...49”;
- “...28 – “Tia a judixiaria xta aki em kaxa a revixtar a kasa” (../../2011 – 07:00:37);
- “...03 – “CC lg xou o ...” (../../2011 – 07:19:23);
- “EE – ...50”;
- “HHH – ...33”;
- “... – ...55”;
- “DD – ...42”;
- “GGG – ...68”;
- “... – ...71”;
- “...91 – ...88”;
- “DD – ...16”;
- “Irmao.96 – ...94”;
- “FF – ...25”;
- “Irmao93 – ...38”;
- “KKK – ...75”.
- caderneta bancária da “Banco 3...” (balcão 2192 – Alfândega ...), relativa à conta n.º ...37 (data abertura: 2005/JUL/13), titulada pela arguida CC;
- folha “EMP02... – Información para personas físicas y jurídicas que adquieran una tarjeta de preparo” (Espanha), relativa ao n.º ...15, em nome da arguida CC – NIE ...08... (morada associada: CALLE ..., ... ...);
- duas (2) folhas relativas a remuneração de trabalho (peon agricola) prestado pela arguida CC (...; n.º seguridad social: ...15) em Espanha;
31) No arrumo/aposento contíguo à cozinha e com acesso através desta:
a) No interior de um móvel colocado junto da parede posterior, sob diversas peças de roupa de cama, uma (1) carteira de cor ..., em material tipo pele, contendo:
- folha do Instituto de Segurança Social/Serviço local de Alfândega ..., em nome do ofendido JJ;
- cartão do I.E.F.P./Centro de Emprego de ... em nome do ofendido JJ;
- cartão dos Serviços de Transportes Urbanos de ... em nome do ofendido JJ;
- quatro (4) fotografias tipo passe correspondentes ao ofendido JJ;
- calendário de 2010 “Gobierno de España – Ministerio de Trabajo e Inmigración”, contendo informação oficial/minuta relativa a condições de pretação laboral em Espanha.
32) Nesse mesmo dia, na sequência de revista pessoal realizada ao arguido AA, foi encontrado na sua posse e apreendido o aparelho de telemóvel, da marca ..., modelo ..., ligado, com o IMEI ...72, contendo inserido cartão SIM da operadora EMP02..., o qual continha inúmeros registos fotográficos de familiares, bem como dos ofendidos LL, JJ e HH e vários registos, entre outros:
- “MMM – ...04”;
- “CC – ...15”;
- “... – ...50”;
- “... – ...71”;
- “... – ...50”;
- “Pai – ...50”;
- “DD – ...72”;
- “Mae – ...68”;
- “Mujer – ...15”;
- “... – ...08”;
- “Amor/1 – ...25”;
- “CC/1 – ...04”;
- “QQ/1 – ...52, ...88, ...22”;
- “.../1 – ...88”;
- “.../1 – ...85”;
- “Filho/1 – ...72”;
- “LLL – ...28”;
- “Filho ... – ...31”;
- “Filha CC – ...04”.
33) Nesse mesmo dia ../../2011, foi realizada uma busca aos veículos pertencentes aos arguidos e, na sequência da mesma foi apreendida a viatura de marca ...”, modelo ..., cinzento, com a matrícula (espanhola) “....GFR” e o ..., onde foram encontrados e apreendidos os seguintes objetos:
33) 1) No tablier:
- duas (2) folhas do “Banco 4...” relativos à conta bancária n.º ...19, em nome do ofendido JJ (data: 2011/OUT/28; morada associada: Rua ..., ... ..., Alfândega ...);
- doc. emitido pela ..., relativo à emissão de “tarjeta sanitária” (data: 2011/AGO/30; centro saúde ..., ...; morada associada: CALLE ..., ... ...; contacto telefónico associado: ...07) em nome da ofendida KK – ...;
- doc. emitido pela ..., relativo à emissão de “tarjeta sanitária” (data: 2011/ABR/20; centro saúde ..., ...; morada associada: CALLE ..., ... ...; contacto telefónico associado: ...07) em nome do ofendido JJ – ...;
- nove (9) folhas relativas a prestação de cuidados de saúde (traumatologia) em Espanha (acidente em 2011/ABR/20; moradas associadas: CALLE ..., ..., ..., ...; contacto telefónico associado: ...15; conta bancária associada: ...19) e Portugal (Alfândega ...) ao ofendido JJ – ...;
- certificado de registo de cidadão estrangeiro em Espanha relativo ao ofendido JJ – ... (data: 2007/DEZ/17; morada associada: CALLE ..., ..., ...);
- folha relativa a “demanda de empleo” em Espanha relativa ao ofendido JJ – ... (data: 2011/OUT/14; morada associada: CALLE ..., ... ...);
- cartão de segurança social portuguesa (n.º beneficiário: ...31; data de emissão: 05/12/97) em nome da ofendida KK;
- cartão da segurança social portuguesa (n.º beneficiário: ...97; data de emissão: 05/12/97) em nome da ofendida/menor LL;
- cartão/papel da “Banco 1....” (agência de Alfândega ...) relativo à conta n.º ...00, titulada pela ofendida KK;
- caderneta bancária (emitida a 2009/../../..../17) da “EMP03...” (balcão ...), relativa à conta n.º ...19, titulada pelos ofendidos KK - e JJ – ...;
- cartão de saúde emitido pela “..., Espanha”, em nome da ofendida/menor LL – NIE ...39...;
- cartão de saúde emitido pela “..., Espanha”, em nome de NNN – NIE ...24...;
- cartão de saúde emitido pela “..., Espanha”, em nome da ofendida II – NIE ...19...;
- cartão de saúde emitido pela “..., Espanha”, em nome do ofendido HH – NIE ...55...;
- doc. emitido (data: 2011/AGO/12) pela “Banco 3...” (Alfândega ...) relativo à conta bancária n.º ...05 (morada associada: Rua ..., ... ..., Alfândega ...), titulada pela arguida CC;
- certificado de registo de cidadão estrangeiro em Espanha (data: 2010/SET/30; morada associada: CALLE ..., ..., ...), relativo a OOO – NIE ...66...;
- doc./notificação emitida pelo “Ministério de Trabajo e Inmigración” de Espanha relativa a OOO – NIE ...66... (data: 2010/SET/15; morada associada: AV.ª ..., ... ... DE ..., ...; n.º seguridad social: 48-...85);
- atestado de residência... ...8) pela Junta de Freguesia ..., Alfândega ..., relativo ao ofendido JJ (data: 2011/OUT/28; morada associada: Rua ..., ...);
- doc. “Banco 4...”, relativo ao ofendido JJ (data: 2011/OUT/28; agência Alfândega ...; conta associada: ...19; morada associada: Rua ..., ... ..., Alfândega ...);
- doc. renovação de dados na “.../Espanha”, relativo ao ofendido JJ – ... (data: 2011/ABR/15; morada associada: CALLE ..., ... ...);
- certificado de registo de cidadão estrangeiro em Espanha (data: 2009/SET/25; morada associada: CALLE ..., ..., ...), relativo à ofendida/menor LL – NIE ...39...;
- certificado de registo de cidadão estrangeiro em Espanha (data: 2010/SET/20; morada associada: CALLE ..., ..., ...), relativo a ...;
- doc. inscrição na segurança social em Espanha (data: 2010/SET/20; morada associada: CALLE ... ..., ...; n.º seguridad social: 49-...51), relativo a ...;
- certificado de registo de cidadão estrangeiro em Espanha (data: 2008/ABR/21; morada associada: CALLE ... ..., ...), relativo a PPP – NIE ...87-M;
- doc. inscrição na segurança social em Espanha (data: 2008/ABR/21; morada associada: CALLE ..., ... ..., ...; n.º seguridad social: 11-...33), relativo a PPP;
- certificado de registo de cidadão estrangeiro em Espanha (data: 2007/../../..../12; morada associada: CALLE ..., ..., ...), relativo à ofendida KK;
- doc. renovação de dados em Espanha (data: 2011/ABR/15; morada associada: CALLE ... ..., ...), relativo à ofendida KK;
- atestado de residência emitido pela Junta de Freguesia ..., Alfândega ... (data: 2011/OUT/28; morada associada: Rua ..., ... ...), relativo à ofendida KK;
- doc. “demanda de empleo” (data: 2011/SET/18; morada associada: CALLE ... ...), relativo à ofendida KK;
- certificado de registo de cidadão estrangeiro em Espanha (data: 2007/../../..../12; morada associada: CALLE ..., ..., ...), relativo à ofendida II – NIE ...19...;
- doc. inscrição na segurança social em Espanha (data: 2011/ABR/25; morada associada: CALLE ..., ...), relativo à ofendida II – NIE ...19...;
- doc. renovação de dados em Espanha (data: 2011/ABR/15; morada associada: CALLE ... ...), relativo à ofendida II – NIE ...19...;
- doc. renovação de dados em Espanha (data: 2011/OUT/06; morada associada: CALLE ... ...), relativo à ofendida II – NIE ...19...;
- comprovativo de pedido de Cartão de Cidadão... ...1; morada associada: Rua ..., ..., ... ..., Alfândega ...; n.º telemóvel associado: ...04) da ofendida II;
- doc. do Ministério do Trabalho em Espanha (data: 2011/JUL/07; morada associada: CALLE ..., ... ...; período laboral reconhecido: 2011/JUL/03 a 2011/AGO/21; transferência para a conta bancária EMP03... n.º ...33), relativo à ofendida II;
- doc. “demanda de empleo” (data: 2011/JUL/07; morada associada: CALLE ... ...) relativo à ofendida II – NIE ...19...;
- doc. emitido pelo Ministério del Interior de Espanha (data: 2007/JAN/25; morada associada: CALLE ..., ... ...), relativo ao ofendido HH – NIE ...55...;
- contrato de trabalho (peon agricola) de duração determinada em Espanha (data: 2011/MAI/17) celebrado entre a empresa “EMP04..., S.L.” (..., ...) e o arguido GG – NIE ...85... (n.º seguridad social: ...35; domicílio: ...);
- contrato de trabalho (peon agricola) de duração determinada em Espanha (data: 2011/MAI/15) celebrado entre a empresa “EMP04..., S.L.” (..., ...) e BBB – NIE ...57... (n.º seguridad social: ...61; domicílio: ...);
- contrato de trabalho (peon agricola) de duração determinada em Espanha (2011/MAI/17) celebrado entre a empresa “EMP04..., S.L.” (..., ...) e o arguido AA – NIE ...86... (n.º seguridad social: ...63; domicílio: ...);
34) No interior de uma pasta amarela, sita no tablier, foram ainda encontrados os seguintes documentos de identificação originais:
- Cartão de Cidadão n.º ... (validade: 2013/MAI/30), titulado pela ofendida KK;
- bilhete de identidade nº ...29 (data emissão: 2009/SET/02; validade: 2009/DEZ/02), titulado pela ofendida II;
- bilhete de identidade nº ...27 (data emissão: 2007/JUL/04; validade: 2017/OUT/04), titulado pelo ofendido JJ;
- Cartão de Contribuinte n.º ...10 (emitido a 2000/JAN/27 e com validade até 2005), titulado pelo ofendido JJ;
- boletim de nascimento da menor/ofendida LL.
35) No dia 14.12.2011, em nova busca ao referido veiculo, foram apreendidos na parte inferior do tablier:
- caderneta bancária da “Banco 1....” (data: 2008/AGO/13; balcão 0042 Alfândega ...), relativa à conta n.º  ...00, titulada pela ofendida KK;
- caderneta bancária da “...” (data: 2011/AGO/30; balcão 2096/0490 AAA, ...), relativa à conta n.º  ...00, titulada pela ofendida KK;
- caderneta bancária da “EMP03...” (data: 2010/FEV/10; balcão 0075 ...-6), relativa à conta n.º  ...15, titulada pelos ofendidos HH da
HH – NIE ...55... e II - NIE ...19..., por PPP – NIE ...87..., pelo arguido AA – NIE ...87... e respetivas filhas, QQ – NIE ...76... e EE – NIE ...02...;
- doc. “permiso de circulación” emitido pelo “...” e relativo à viatura ... com a matrícula ....GFR (proprietário: AA; morada associada: CALLE ..., ... ...);
- doc. “informe de vida laboral” (data: 2011/ABR/26; resumo dos períodos de trabalho em Espanha entre 1997/SET/01 e 2011/JAN/06 – ..., ... e ...; morada associada: CALLE ... ...) emitido pelas autoridades espanholas e relativo à ofendida II (n.º seguridad social: ...72);
- doc. “entrevista de seguimiento” emitido pelo Servicio Publico de Empleo de Castilla Y Leon (data: 2011/MAI/18), relativo à ofendida II – NIE ...19...;
- doc. “informe de derivación a servicios de inserción laboral” emitido pelo Servicio Publico de Empleo de Castilla Y Leon (data: 2011/ABR/28) relativo a II”(II) ... – NIE ...19...;
- doc. cartão do I.E.F.P. (centro de emprego de ...) em nome da ofendida KK;
- doc. “tarjeta de débito” (sem cartão) da “...” (data: 2011/AGO/30; sucursal 0490 AAA, ...), relativo à ofendida KK;
- doc. “instancia normalizada” (“renovación de empadronamiento”) emitido pelo ..., ... (data: 2011/../../..../03; morada associada: CALLE ..., ... ...), relativo à ofendida/menor LL – NIE ...39...;
- doc. “instancia normalizada” (“renovación de empadronamiento”) emitido pelo ..., ... (data: 2011/../../..../03; morada associada: CALLE ..., ... ...), relativo à ofendida KK;
- doc. emitido pela .../... (data: 2011/JAN/31; morada associada: CALLE ..., ... ...) relativo ao ofendido HH;
- doc. emitido pelo Ayuntamiento de ... (data: 2011/JAN/10; morada associada: CALLE ..., ..., ..., ...) relativo ao ofendido HH – NIE ...55....
36) Ainda no dia ../../2011, foi realizada busca à residência da arguida DD, no Bairro ..., casa nº ...5, em Alfândega ..., e na sequência da mesma foram encontrados e apreendidos os seguintes objetos:
- certificado de registo de cidadão estrangeiro em Espanha (data: 2010/SET/02; morada associada: CALLE ..., ..., ...) relativo à arguida DD – NIE ...93...;
- doc. “demanda de empleo” emitido pela ... (data: 2011/JAN/18; morada associada: CALLE ... ..., ...) relativo a ZZ;
- contrato de arrendamento (data: 2010/SET/09; local: ...) de vivenda correspondente à morada Calle ..., ..., ..., em nome de ZZ;
- doc. referentes a contratos de trabalho (peon agricola) de duração determinada em Espanha (periodos: 2009/JAN/01 a 2009/JAN/31 – empresa “EMP05... S.L.”, ..., ...; 2009/FEV/01 a 2009/FEV/28 – empresa “EMP05... S.L.” , ..., ...; 2009/../../..../01 a 2009/../../..../31 – empresa “EMP05... S.L.” , ..., ...; 2009/MAI/11 – empresa “EMP05... S.L.” , ..., ...) em nome de ZZ (n.º seguridad social: ...24);
- doc. referente a contrato de trabalho (peon agricola) de duração determinada em Espanha (data: 2009/MAI/11 – empresa “EMP05... S.L.” , ..., ...) em nome da arguida DD – NIE ...93-Y (n.º seguridad social: ...71). 422.
37) Os 1º, 2º e 3º arguidos agiram sempre de comum acordo e em comunhão de esforços e vontades.
No aliciamento da ofendida KK, os 5º e 6º arguidos actuaram de comum acordo e em comunhão de esforços com os 1º, 2º e 3º arguidos.
Os 1º, 2º e 3º arguidos faziam das respectivas e descritas condutas a sua principal fonte de rendimentos.
38) Os 1º, 2º e 3º arguidos e quanto à ofendida KK, também os 5º e 6º arguidos ao aproveitaram-se das fragilidades dos ofendidos, que os tornavam especialmente vulneráveis, e ao prometer-lhes elevados salários (com transporte, alojamento e refeições asseguradas) para trabalharem na agricultura e/ou nas obras, em Portugal e Espanha, actuaram com o propósito concretizado de os enganar, levando-os a acompanhá-los no convencimento de que iriam trabalhar nas condições prometidas, mormente quanto ao recebimento da remuneração, quando nunca foi sua intenção pagarem-lhes, entregarem-lhes ou deixarem-lhes á disposição as remunerações, antes pretendendo locupletarem-se, como se locupletaram, com as mesmas.
39) Actuaram com o propósito de sujeitar os ofendidos ao seu domínio e total dependência, para o que lhes confiscaram a respectiva documentação de identificação pessoal e a documentação relativa às contas bancárias por aqueles tituladas, exerceram sobre todos eles violência não só psicológica, incutindo-lhes medo e inquietação, mas também física, agredindo-os, fechando-os á chave, de noite, para lhes dificultar contra as suas vontades a liberdade ambulatória o que, quando em Espanha, era agravado pelo desconhecimento da zona, da língua e normas jurídicas e também agravado por não terem dinheiro, pois os mencionados arguidos se apoderavam das remunerações e agravado ainda e no caso da arguida KK também porque as 2ª e 3ª arguidos lhe diziam que caso fugisse ficaria sem a filha LL.
Sujeitaram ainda as ofendidas II e KK a trabalhar nas lides domésticas sem nada lhes pagarem, como sujeitaram ainda a menor LL a trabalhar como cuidadora da filha de tenra idade da coarguida DD.
40) A sujeição da ofendida LL a trabalhar como cuidadora da filha de tenra idade da coarguida DD era do conhecimento desta, que não se coibiu de aceitar que cuidasse da filha.
41) Os 1º, 2º e 3º arguidos actuaram sempre deliberado, livre e conscientemente.
Na conduta descrita em 26) a arguida CC actuou de forme deliberada livre e consciente.
Ao actuarem da forma descrita em 15) os 5º e 6º arguidos fizeram-no de forma deliberada livre e consciente.
Ao actuar da forma descrita em 40) a 4ª arguida fê-lo de forma deliberada livre e consciente.
42) Todos os arguidos referidos em 41) tinham consciência de praticar actos proibidos e punidos por lei penal.
43) O 1º arguido é de origem social humilde.
Por ter perdido o pai muito cedo (8 anos de idade) e sendo a mãe jornaleira, abandonou a escola com apenas a 4ª classe e ingressou no mundo laboral, trabalhando maioritariamente na agricultura.
A 2ª arguida é de origem social humilde.
Frequentou a escola apenas até completar a 4ª classe, desistindo depois fruto da desvalorização da frequência escolar, á data.
Casaram um com outro em 1976, tendo nascido 5 filhos dessa união.
O casal continua a residir em Alfândega ..., na mesma habitação social arrendada à Câmara Municipal ..., pagando de renda 69 euros mensais, dotada de boas condições de habitabilidade e conforto.
Ao nível económico, aufere 330 euros mensais, a titulo de reforma, ao que acresce igual valor auferido pelo marido, beneficiando ainda de apoios sociais atribuídos, essencialmente pela Ação Social da C. M. ....
O 1º arguido sofre de problemas de saúde, designadamente, oncológicos e da próstata, necessitando de tratamentos hospitalares trimestrais por causa disso, deixou de trabalhar como varredor de ruas para a C. M. ..., há cerca de 3 anos.
A 2ª arguida tem, ela também, vários problemas de saúde, avultando um carcinoma folicular, artroses generalizadas (pés, ancas e joelhos) hérnias discais lombares múltiplas, e que condicionam a sua mobilidade e autonomia.
Pagam 69 € mensais de renda social à C. M. ..., acrescendo despesas medicamentosas, em montante não apurado.
São vistas como pessoas educadas e cordiais, estando socialmente integrados.
Não têm antecedentes criminais.
44) A 3ª arguida desde muito cedo e por desmotivação na aprendizagem ingressou no mundo laboral tendo então concluído e apenas a 4ª classe, passando a ajudar os pais e ora 1º e 2º arguidos.
Veio, no entanto, e já em idade adulta a obter equivalência ao 9º ano de escolaridade ao abrigo do programa Novas Oportunidades.
A contar de 2013, passou a viver em união de facto com um companheiro, nas .../..., em casa arrendada, tendo, no entanto, há cerca de 2 anos, comprado, juntamente com aquele, uma vivenda, na aldeia  de ..., concelho ..., de tipologia T4, com boas condições de habitabilidade e conforto e com terreno de cultivo contíguo ao imóvel.
Desde Agosto de 2015 que trabalha para a S. Casa da Misericórdia num Lar de Idosos (...) como ajudante familiar/domiciliário, auferindo o salário mínimo.
É tida como uma trabalhadora responsável, assídua e empenhada, mantendo um muito bom relacionamento com os utentes; ajuda ainda o companheiro na pastorícia de um rebanho de gado ovino, usufruindo o casal de uma situação económica remediada.
É tida por pessoa afável e educada.
Não tem antecedentes criminais.
45) A 4ª arguida, à data com 13 anos e o 6º ano feito, abandonou a escola e passou a trabalhar desde muito cedo, ajudando os pais e ora 1º e 2º arguidos.
A partir de 2012 passou a trabalhar como assistente operacional para a Câmara ..., auferindo 705 € mensais.
Vive com a filha menor, YY.
É tida por pessoa cumpridora, sensível, educada e cordial.
Não tem antecedentes criminais.
Veio, no entanto, e já em idade adulta a obter equivalência ao 9º ano de escolaridade ao abrigo do programa Novas Oportunidades
*
Não se mencionaram as condições pessoais, profissionais, familiares, sociais dos 5º, 6º e 7º arguidos porque não serão condenados – art. 369º/1 CP.
*
B) Factos não provados.

Não se provaram quaisquer outros factos com relevo (e só os que o assumiam), e, designadamente, não se provou que:
- a actuação dos 1º, 2º e 3º arguidos começou em 1999;
- o 7º arguido teve intervenção em uma qualquer das condutas descritas.
- os 4º, 5º e 6º arguidos tiveram intervenção em todas as condutas descritas e, concretamente, os 5º e 6º arguidos tiveram intervenção em outras condutas para além do aliciamento da KK e a 4ª arguida teve intervenção em outras condutas para além de aceitar a utilização da menor.
- as pessoas angariadas tinham todas deficiências do foro psíquico ou físico e sofriam de consumo excessivo de álcool e/ou drogas.
- todos os ofendidos eram obrigados a laborar todos os dias da semana sem excepção.
- os ofendidos faziam obras de construção civil nas casas dos arguidos.
- a cada dia de trabalho dos ofendidos correspondia quantia não inferior a 50€.
- nenhum dos ofendidos estava inscrito, em Portugal, na Segurança Social.
- HH foi aliciado e em Maio de 1999.
- II foi aliciada.
- LL foi aliciada.
- JJ foi aliciado em Janeiro de 2008 e foi novamente aliciado em Julho de 2008;
-NN esteve 4 meses com os arguidos.
- OO foi angariado e durante uma semana, no final do Verão de 2011.
- o ofendido HH consumia álcool em excesso, e o contacto ocorreu em ....
- pelo menos a partir de 2008 até dezembro de 2010 residiu na casa de ....
- a casa de ... não tinha casa de banho, mas apenas uma torneira na cozinha para se lavar e as necessidades fisiológicas eram feitas em baldes.
- o HH só se alimentava dos restos de comida que os arguidos lhe davam.
- as refeições dos ofendidos consistiam, invariavelmente, em café epão com manteiga ao pequeno almoço, sandes ao almoço e sopa ao jantar.
- LL, desde tenra idade passou a trabalhar na habitação de todos os arguidos, nas tarefas doméstica.
- os levantamentos dos abonos pagos à LL foram todos feitos pela 2ª arguida por intermédio da ofendida KK que procedia àqueles e de imediato entregava as respectivas quantias á 2ª arguida.
- A II e a KK executavam as tarefas da lide doméstica nas habitações de todos os arguidos, e iniciavam tais tarefas por volta das 06h30.
- A contrapartida dos trabalhos prestados pelo ofendido JJ foi sempre de cerca de € 1.200,00/€ 1.300,00 mensais.
- A partir de, pelo menos, Setembro de 2009, HH e JJ passaram também a executar por conta e sob as ordens dos arguidos trabalhos indiferenciados de construção civil na habitação de todos os arguidos, em Alfândega ..., na construção de anexos e pintura (interior e exterior) das respetivas residências, iniciando tais trabalhos por volta das 07h00 e terminando pelas 23h00/23h30.
- o ofendido NN tinha problemas relacionados com a toxicodependência.
- O ofendido NN permaneceu até Novembro de 2010, e trabalhava das 08h00 até às 18h00.
- por cada dia de trabalho era sempre paga pelo patrão espanhol uma quantia diária nunca inferior a € 50,00/60,00.
- quando os empregadores espanhóis passaram a exigir a abertura de contas bancárias tituladas pelos respetivos trabalhadores para procederem ao depósito das retribuições, os levantamentos feitos pelos ofendidos eram sempre na presença conjunta dos 1º, 2º e 3º arguidos e as entregas eram sempre à arguida CC.
- A ida ao Hospital ... deveu-se á necessidade da ofendida KK receber tratamento médico.
- as 1ª e 2ª arguidas e a 4ª arguida estiveram sempre junto daquela durante a observação médica.
- os 1º, 2º e 3º arguidos aliciaram OO e este trabalhou por conta daqueles, que lhe retiveram as remunerações e o sujeitaram aos seu domínio.
*
C) Motivação da convicção.

O Tribunal formou a sua convicção com base na análise e ponderação da prova produzida e/ou examinada em audiência, conjugada com as regras da experiência comum, como estabelece o art. 127º CP, que consagra o princípio da livre apreciação da prova.
Este princípio reconduz-se ao poder-dever de decidir segundo o bom senso e a experiência de vida, temperados pela capacidade crítica de distanciamento e de ponderação (cf., por muito desenvolvido, o Ac. do STJ de 2/9/2012 – P. 233/08.1PBGDM.P3.S1, dgsi).
Na valoração da prova, devem pois (e até por imperativo legal) ser tidos em conta os pressupostos valorativos e critérios, objectivos ou objectiváveis, decorrentes das máximas da experiência e inferências lógicas que lhe estão tipicamente ligadas e que por isso mesmo não passariam despercebidas ao homem comum suposto pela ordem jurídica (o “bom pai de família” a que alude o art. 487º/2 CC – que consagra um princípio geral de direito).
Dito isto o tribunal baseou-se nos diversos meios de prova produzidos e/ou examinados em audiência – avultando a prova por declarações das arguidas BB e DD, dos ofendidos KK, LL e JJ prestadas para memória futura, por depoimentos das testemunhas, a prova documental (para além dos autos de busca e apreensão e dos docs. que se analisarão especificamente, foram todos vistos, desde os elementos bancários, oficiais – registos e inscrições … constantes dos anexos I e II – fichas de identificação civil, registo automóvel, fotografias, prints, autos de diligencia externa, auto de exame directo aos telemóveis, certidões de nascimento, exame aos dados dos telemóveis e cartões SIM e resultados) – que analisou cada um de per si e após os concatenou entre si e á luz das regras da experiência comum.
Importa fazer uma nota[6], quanto à prova documental:
Não é necessário, para serem valorados, que se proceda á leitura dos documentos (que não contenham declarações/depoimentos) em audiência (cf. art. 355º/2 CPP; acórdão Supremo Tribunal de Justiça de 23/2/05, CJSTJ, 1, 210.)
Avancemos então no caminho trilhado para a formação da convicção.
Quanto a isso, no que toca ao núcleo duro da factualidade comprovada, foram fundamentais as buscas/apreensões e as declarações para memória futura conjugadas com o depoimento de NN (também ele ofendido) e, embora numa parte pequena, mas mito relevante, nas declarações da arguida BB, tudo concatenado com a restante prova e regras da experiência, realçando-se a documental que vem dar consistência á versão dos ofendidos porque comprova factos que só fazem sentido á luz dessa versão, e a testemunhal com ênfase para dois depoimentos de grande relevo, do Dr. WW e da Enf. VV, porque incidem sobre um episódio muito significativo em si mesmo, pelo que demonstra, e que contradizem a versão da arguida BB.
As declarações da arguida BB, que nega o essencial dos factos, foram, não obstante, importantes em várias vertentes, e além do mais e primeiro, porque admite que todos os ofendidos, á excepção do OO, estiveram efectivamente com os arguidos, a trabalhar; segundo, porque o relato produzido (acolheu os ofendidos porque eles lhe pediram, e trabalhavam auferindo as respectivas remunerações) não resiste, em si mesmo considerado, ao crivo da normalidade e regras da experiência, o que conforta a versão dos ofendidos.
De resto, a própria arguida disso se apercebeu, pois se fosse como ela dizia (acolhiam os ofendidos sem nada receberem em troca), então teríamos de concluir que ficavam só com os prejuízos, o que evidentemente não faz o menor sentido, pelo que acabou por admitir que recebiam dinheiro dos ofendidos (mas, refere, sempre entregas voluntárias e pouco significativas – esta ambivalência mostra que por um lado pretende dar uma «justificação» mas por outra que não seja, a seus olhos demasiado comprometedora).
Em todo o caso, nega qualquer actividade de recrutamento (evidentemente incompatível com o restante relato da arguida), sendo no entanto de sublinhar desde já que o contrário resulta do relatório social primitivo (e o actualizado nada altera) 1º arguido que, quanto á sua inserção profissional (e a inserção socioprofissional é uma das informações que deve constar do relatório social; art. 1º-h) CPP) refere expressamente que era habitual “angariar grupos de pessoas” e que assegurava o “transporte” das mesmas, acentuando as “avultadas despesas” a tal inerentes.
O “núcleo duro” da factualidade, e, portanto, atinente á angariação/aceitação dos ofendidos, o que lhes foi prometido, os trabalhos prestados, condições em que o faziam, estado de sujeição e meios coactivos, ausência de pagamento das remunerações, resultou desde logo mas não só, como já se intui, das buscas/apreensões e das declarações para memória futura.
Quanto ás buscas e apreensões em Alfândega ... e em ..., cujos autos e reportagem fotográfica foram confirmados (acentuando o posicionamento do JJ, escondido; a presença de um colchão e de um mero cobertor em vez de camas) pelos depoimentos dos inspectores da PJ TT, UU, QQQ (esta, ...) e que constam dos autos de f. 279 a 302, 303 a 388, 405 a 433, 436, 670 a 685, avultam, evidentemente, a natureza e diversidade dos documentos (é absolutamente prodigioso o nº de documentação em nome dos ofendidos) sendo de destacar os seguintes aspectos:
Primeiro, é muito significativa a retenção/confisco dos documentos de identificação (mormente BI, Cartão Cidadão), apreendidos aos arguidos (duas notas: só não foi apreendido o de HH, porque conseguiu fugir, levando-o consigo; a explicação dada pela 2º arguida quanto á posse de toda essa documentação é risível) – e é tão significativo no âmbito da criminalidade que nos ocupa que só por si constitui crime (o do art. 169º/7 CP) precisamente por a retenção daqueles documentos constituir por si só uma forma de coacção particularmente adequada á execução de actos de exploração.
Segundo, assume outrossim evidente significado a presença, em grande nº, de elementos bancários, avultando cadernetas, extractos bancários, e, até, do código secreto /PIN de cartões de débito – ver, especialmente, f. 673 e 681 – por, em si mesmos, demonstrarem um controlo (até mais, no caso do PIN) dos detentores sobre as finanças dos titulares.
Terceiro, para além disso, surpreendem-se contas bancárias tituladas não só pelos ofendidos como também pelos arguidos, como é, por exemplo, o caso da conta cuja caderneta foi apreendida e consta a f. 674 co-titulada, para além do HH e da II, por AA (1.º arguido) ou contas bancárias cuja movimentação está autorizada a favor de algum arguido, como é o caso, por exemplo, da conta cuja caderneta apreendida está junta a f. 672, titulada pela ofendida KK mas com autorização de movimentação a favor da 2.ª arguida, como consta de f. 225 e 226 dos autos.
Disso se extrai não só o controlo já referido supra como uma efectiva disponibilidade sobre o dinheiro dos ofendidos.
Esta conclusão é de tal forma evidente que se constata de f. 226 que a autorização foi revogada no dia 5/8/2011, um dia depois de a GNR se ter deslocado a casa dos 1.ºs e 2.º arguidos na sequência da ida da ofendida KK ao hospital (como se verá), como consta do auto de notícia de f. 136.
Quer dizer, um dia depois de a GNR ter feito tal diligência (embora debalde por não ter conseguido falar com a 2.ª arguida; queriam falar com esta porque a morada indicada pela KK no hospital correspondia à morada da 2.ª arguida) a 2ª arguida “retira-se” da condição de autorizada, o que é deveras significativo dada a íntima conexão temporal entre os dois factos, e demonstra que a 2.ª arguida se apercebeu da suspeição que tal autorização lançava sobre si.
Quarto, para além dos documentos portugueses, existem inúmeros documentos espanhóis, avultando:
- inscrições dos ofendidos no Centro de Emprego, Segurança Social e registo de cidadãos estrangeiros.
Sublinhe-se, porém, que tal não só não é incompatível com o estado de domínio a que estavam submetidos, como acentua a sua sujeição, uma vez que a inscrição formal nos registos oficiais (cidadãos estrangeiros, segurança Social…) era necessária para que os patrões espanhóis pagassem, sobretudo quando os pagamentos passaram a ser feitos por transferência bancária.
Acresce que se percebe que tais inscrições serviram outrossim (e sobretudo no caso das ofendidas) à obtenção indevida, por banda dos 1º, 2ª e 3ª arguidos, utilizando a ofendida II, do subsídio de desemprego, como se retira, por exemplo, de f. 378, conjugado com os movimentos da caderneta a f. 674 (vê-se que os subsídios atribuídos a que alude o documento de f. 378, emanado do «Servicio Público de Empleo Estatal (SEPE)» e cujas funções são, entre outras, de gerir o sistema de protecção no desemprego: cf. o respectivo sítio na net foram pagos na referida conta co-titulada, designadamente, pela II e pelo 1.º arguido e correspondem aos pagamentos que aí constam como «prest.INEM» (Instituto Nacional de Empleo, antecessor do SEPE; cf. sítio referido).
Isso mesmo foi corroborado pelo ofendido JJ, nas suas declarações para memória futura, explicando que ia com a arguida CC ao desempego, e ela “é que falava lá com aqueles senhores que estão no computador. Ela é que conhecia para o que era isso. Eu não percebo espanhol” – de resto, o desconhecimento da língua e das normas jurídicas espanholas assume-se como uma evidência, face à origem dos ofendidos, sua simplicidade e regras da experiência.
Daqui ressuma, e por um lado, a visão que os arguidos tinham dos ofendidos – mera fonte de obtenção de rendimentos – e por outro evidentemente que reforça o crédito a atribuir àquelas declarações.
Deve notar-se que, evidentemente, e perante os patrões espanhóis, o estado de sujeição era, forçosamente, escondido, oculto – sob pena daqueles desconfiarem e denunciarem a situação (de resto a passagem para o pagamento por transferência bancário mostra bem que havia uma preocupação com tais situações, o que exponenciava o risco de denúncia), pelo que não é de estranhar que o estado de sujeição não apareça de forma ostensiva nas fotografias de f. 1195-1196, p. ex.
Quinto: foram apreendidos docs. atinentes a cuidados de saúde prestados ao RRR em 2011, p. ex. juntos a f. 341 a 350.
De f. 350 resulta que se teria tratado de lesões decorrentes de um acidente sofrido a 20.4.2011 no estabelecimento “EMP06...” – tendo sido paga pela seguradora, após os tratamentos impostos, a quantia de 8.500 € a título de indemnização pelos danos permanentes.
Sucede que tal nada tem que ver com uma qualquer visão “humanista” por banda dos arguidos, antes lhe subjaz a instrumentalização do ofendido JJ, que explica nas suas declarações ter-se tratado de um acidente na apanha da fruta e que os 1º, 2º e 3º arguidos o levaram a “um centro comercial” ( e o “EMP06...” de ... é uma espécie de centro comercial, como é facto público e notório) e lá foi simulada a queda.
Daqui só surgem reforçadas as conclusões já aludidas supra.
Sexta: a própria forma como o ofendido JJ estava escondido, aquando da busca e bem espelhada a f. 286 e o que tal mostra.
Das prestadas pela ofendida KK, resultou, e designadamente, a prova da comparticipação (para além da 2ª arguida) dos arguidos EE e FF na sua angariação, sua situação pessoal, de todos conhecida, o que lhe foi garantido («6 mil escudos/dia, comida e dormida» e que «poderia levar a menina»), trabalho desenvolvido (na agricultura, sobretudo em Espanha, onde iam três temporadas por ano, e nas lides domésticas) e intenso («saía de manhã e entrava quase de noite, quando estávamos em Espanha» e quando não trabalhava na agricultura, fazia as lides e mesmo em relação a estas, e como refere a LL, a ofendida estava «quase sempre a trabalhar, na cozinha, a limpar») nunca ter recebido qualquer quantia a título de remuneração, que era retida pelos 1º, 2º e 3º arguidos e como o era (com ênfase para os levantamentos na conta bancária co-titulada por ela e pelo JJ, por ordem da arguida BB que ia com ela à agência), e que não obstante algumas tergiversações, em que aparentou relativizar a importância que dava á falta de qualquer pagamento (porque, referiu: eles sustentavam-na e à filha; gostava do o-arguido AA, com quem se relacionou intimamente), acabou por admitir que esteva sempre na expectativa que depois me pagariam».
Esta tentativa de desculpabilização, por si só, diz muito sobre o estado de sujeição/fragilidade em que se encontrava a ofendida, o que foi outrossim visível quanto ás condições em que lá permaneceu.
O que não deve admirar, não só face ás características de vulnerabilidade das vítimas e dureza das condições em que sobreviveram, como á frequência com que tal ocorre neste tipo de criminalidade, o que foi de resto posto em destaque pelo Inspector UU (coordenador da investigação policial) no seu depoimento (criam-se laços «muito fortes» entre agressor e vítima), sendo conhecido como síndrome de Estocolmo ou de identificação com o agressor (sobre o tema, ver, p. ex., a tese de mestrado apresentada ao Instituto Superior de Psicologia Aplicada por SSS e intitulada “Ensaio sobre o Mecanismo de Defesa Identificação com o Agressor”).
Assim:
Relatando embora a sujeição física (duas agressões, uma delas logo ao início – quando questionou sobre se poderia ir embora quando o pretendesse e «a CC começou a bater-lhe, não a deixaram ir embora» – outra na parte final – «há um ano pedi para ir embora e bateram-me e nunca mais voltei a pedir para ir embora») e psíquica («que estava bem ali»; «para onde é que queria ir?»; «não tinha para onde ir»; a pressão exercida aproveitando os laços de afecto com a filha: a CC disse-lhe «no dia em que te fores embora a LL não vai contigo, fica connosco, está no nosso poder») a que estava sujeita para não fugir, não deixou de tentar minimizar o nº das agressões - que eram frequentes resulta das declarações para memória futura de JJ («à KK aquilo era constantemente…isso era diariamente» e «era por qualquer coisa, desperdício de copo ou qualquer coisa…») e de LL («ás vezes via bater», «lambadas») sendo significativo que o tenham referido espontaneamente) e foi indirectamente reforçado pelo depoimento de NN («falava-se» disso).
O estado de sujeição a que estavam votados, ela e restantes ofendidos resulta particularmente nítido, além do mais:
- por um lado, da distinção feita, nas suas declarações, entre eles, ofendidos, e «os trabalhadores», e que se baseia no facto destes últimos receberem os salários/retribuições, ao contrário dos ofendidos («não nos entregavam o dinheiro, só entregavam aos trabalhadores») e o que tal mostra acerca da condição destes últimos;
- por outro lado, da seguinte expressão que deixou escapar: “Eu não podia sair à rua para passear, só ia para estender a roupa”.
Outro elemento concorre quanto a ela e ainda para o estado de sujeição: as 2ª e 3ª arguidas começaram a dizer-lhe que não tinha “direitos nenhuns em relação á LL” e que “não podia dar-lhe carinhos, atenção” – assim tentando despojá-la da sua maternidade.
Mereceu ainda destaque o relato da ida da ofendida acompanhada das 2ª e 3ª arguidas (cuja ocorrência é indiscutível pois resulta outrossim das declarações para memória futura e foi relatada pelas testemunhas Dr. WW e Enf. VV e das próprias declarações da arguida e dos docs. de fls. 136-137 142, 1594 a 1596) ao Hospital ..., para apurar do tempo da gravidez e tentar a sua interrupção (notando-se, aqui, que a interrupção era também da vontade da ofendida, o que de resto não deve surpreender dada a 2ª relação ter sido forçada, como resulta das suas declarações) porque daí resultaram conclusões de grande importância:
- primeiro, comprova-se a veracidade do depoimento, mormente quanto á agressão (por banda da arguida CC como relata a ofendida) a que foi submetida quando foi detectada a sua gravidez, dadas as lesões na barriga (arranhões) e evidentemente que é mais um elemento que contribui para se concluir pela total sujeição.
- segundo, comprova-se o controlo que as 2ª e 3ª arguidas mantinham sobre a ofendida, querendo a todo o custo assistir á consulta (esta insistência – confirmada pelas duas testemunhas referidas e até foi necessário o Dr. WW opor-se – ruidosa – a Enf. VV descreveu a exaltação e até gritos das arguidas – conjugada com o temor da ofendida, também descrito pela Enf., ficando aquela calada, mostra bem que do que se tratava era do controlo que as arguidas pretendiam manter sobre a ofendida mesmo no hospital; não mereceu pois qualquer crédito a versão da arguida BB que referiu que «nem ela e nem a CC entraram com a KK no Hospital ...») e daí extrai-se outrossim o domínio exercido pelas 2ª e 3ª arguidas sobre a ofendida e a inerente sujeição desta; de resto, a mesma reacção de medo foi constatada pelo inspector UU aquando da busca: “Os ofendidos retraíam-se na sua presença e nem o olhavam nos olhos”.
Este episódio ilustra bem como as coisas se passavam quando os ofendidos saíam, acompanhados pelos arguidos, para irem a algum organismo/serviço, mesmo que oficial – nada denunciavam ou diziam, tal o estado de medo e sujeição, e é particularmente impressivo que a ofendida KK, mesmo em Portugal (no seu País) e num hospital (não é, nem de perto nem de longe, um ambiente e hostil/repressivo) não tenha conseguido ultrapassar o medo.
- O terceiro facto é o estado de desleixo extremo em que se encontrava a ofendida, e era de tal ordem que até impressionou a Enf. VV e por isso se lembrava tão bem do episódio, levando-a a falar em estado de «sujidade» (sic).
Este facto é tanto mais impressionante quanto é das regras da normalidade que quando vão ao médico as pessoas têm o cuidado de fazer a higiene pessoal.
Naturalmente que do estado de desleixo extremo da ofendida se retirou a forma como eram tratados os ofendidos (todos eles, evidentemente, nem se vê razão para que houvesse diferenças entre eles – pois se nem a ida ao hospital foi suficiente para que a KK fosse apresentada minimamente limpa).
No tocante á menor LL, para além do já referido pela ofendida KK, a factualidade provada resultou, da certidão de nascimento de fl. 1965 (data de nascimento: ../../1997) das suas declarações, designadamente, no que toca a ter sido tirada da escola depois de concluir o 6º ano, passando então a «cuidar da menina da DD», a «YY», nascida a ../../2010 (certidão de nascimento de fl. 1967) - daqui se extrai que a LL tinha 13 anos quando foi tirada da escola (pois em 2011 já tomava conta da YY e foi tirada concluído o 6º ano, portanto quando acabou o ano lectivo de 2010).
Nem se diga como fez a 2ª arguida que tal se deveu á incapacidade de financiar a «aquisição dos livros», desde logo porque – e diga-se desde já, é mais um dos elementos probatórios que comprovam a credibilidade das declarações da KK que a isso se referiu – era ela quem levantava os abonos depositados, mensalmente, na conta bancária  ...00 da Banco 1...-Alfândega ... e, realce-se, por particularmente importante, num período entre ../../2007 e ../../2011 e portanto, abrangendo o período em que a menor foi retirada da escola – autorização de movimentação, levantamentos, período, resultantes de fls. 224 a 231.
De resto, a caderneta de tal conta bancária estava na posse dos 1º e 2ª arguidos – fl. 672.
Não se diga ainda que nas pessoas de etnia cigana (e só por isso nos referimos á etnia), a frequência escolar não é tão valorizada, o que poderia explicar a retirada, desde logo porque os netos da 2ª arguidas continuaram os estudos (como afirma a LL nas suas declarações para memória futura).
Relativamente ás agressões físicas, a menor não se lhes referiu, mas foram referidas quer pela KK quer sobremaneira pelo JJ – e embora aquela, KK, tenha limitado (na mesma lógica que utilizou quando também tentou minimizar as agressões de que foi vítima) tais agressões ás «vezes que se portava mal», o JJ foi peremptório «aquilo era constantemente, isso era diariamente».
No que ao JJ respeita, foram tidas em conta as suas declarações, já citadas por várias vezes, em que no essencial confirma a factualidade que ficou provada (angariação, por quem, o que foi prometido, nada ter recebido de vencimento – era tudo deles, eles é que recebia tudo» ressalvando os 300 € quando se foi embora – relatando como tal se processava, mesmo nas transferências bancárias – «levantava o dinheiro no banco e passava para o nome da CC e esta guardava dinheiro» – e o que fazia, ter regressado porque «gostava» da KK…), salientando-se alguns aspectos mais impressivos: o ambiente opressivo e intimidatório criado pelos arguidos («a maneira de eles falarem é mandarem, senhor Juiz»; «percebe, senhor doutor? É muito bonito...), limitações impostas («não deixavam a gente sair de casa, era casa-trabalho-trabalho casa», «nem telemóveis nem nada», chamadas telefónicas recusadas ou pelo menos e sempre vigiadas «pedi para telefonar, nada» e quando conseguia permissão para telefonar «era do telemóvel, sempre sob escuta. Ela é que ligava o nº, a CC, passava-me o telemóvel e depois estava sempre a ouvir as conversas», nem cafés podiam tomar fora: «pedi uma vez para ir tomar um café, negaram-me e a partir daí nunca mais pedi nada»).
Quanto ao NN, baseou-se no seu depoimento, em que relatou a forma e por quem foi angariado, a sua situação muito precária (recebia o RSI e recorria á assistência de IPSS), ida com a arguida CC, duração (mês e meio, sensivelmente), o que fazia, em que condições (foi quando pediu para sair que percebeu em que condições iria ficar, pois elas até «tremeram» - de raiva, subentenda-se – e recusaram, «não o deixavam sair», e ficavam «fechados de noite, a jogar ás cartas, e não falavam com mais ninguém», pelo e «ficavam lá, ninguém saía e tinham um baralho de cartas» e «nem no dia de descanso podiam sair» e «ele» já nem pedia), nada ter recebido (salvo 100 €, quando se foi embora).
No que toca á II, valem aqui as considerações tecidas supra acerca da retenção dos documentos, sendo ainda de salientar dois aspectos:
- por um lado, estão em causa o documento de identificação (BI) e o pedido de obtenção do cartão de cidadão, o que, só por si, indicia (e já se aludiu ao “peso específico” que tal encerra, pois que por si só constitui crime) a exploração/sujeição da ofendida – pois outra explicação plausível não se vislumbra, face às regras da experiência comum, nem, de resto foi carreada aos autos;
- por outro, vemos que a documentação atinente à ofendida II mas em poder dos arguidos, abarca todos os aspectos da sua relação com as entidades competentes espanholas – desde o cartão de saúde espanhol, passando pelos registos de cidadã estrangeira em Espanha e sucessivas actualizações dos dados, pela “demanda de empleo” e “entrevista de seguimento” em Espanha, pela inscrição na segurança social espanhola e resumo dos períodos de trabalho declarado em Espanha, pelos elementos bancários, designadamente, caderneta bancária da “EMP03...” – o que é bem revelador da sua sujeição ao controlo dos arguidos.
A sua presença junto dos arguido, para trabalhar, resultou das declarações da arguida BB: “já a conhecia” e “foi-lhe bater á porta e pediu-lhe abrigo porque tinha discutido com marido e aí ficou e nunca quis embora de vez” e “ela ia trabalhar com ela e contribuía com ajuda monetária para despesas e só e voluntariamente” – portanto, admite a presença, contínua, da II, para trabalhar, sendo evidentemente inverosímil a justificação quer da contribuição voluntária quer das circunstâncias em que a ofendida se teria deslocado a casa dos arguidos (a que propósito se nem familiares eram?) como admite que a II estava a atravessar um momento difícil quando foi para lá.
A sua presença durante muitos anos resultou do depoimento de NN («estavam [a II e a KK] lá havia muito tempo» – sem distinguir, pois, o que incute a clara ideia de terem ambas as ofendidas entrado ao serviço dos arguidos sensivelmente na mesma altura), conjugado com os docs. apreendidos (avultando o “informe de vida laboral” em Espanha, com início em 1997).
Que a II fazia as lides domésticas foi admitido até pela arguida EE (referiu que “poderia ter pedido algumas vezes á II para fazer algumas lides domesticas – p. ex. varrer a cozinha”) e confirmado por NN, já mencionado, que referiu que a II também fazia a limpeza, e que a II também trabalhava na agricultura foi confirmado pelo referido NN (também fazia trabalhos agrícolas, p. ex., as vindimas), em termos de resto idênticos aos da KK – vê-se que o tratamento era igual para ambas  o que, diga-se, faz sentido; aliás, estas até dormiam juntas, nas mesmas condições, como referiu a KK nas suas declarações.
Que nada recebia de remuneração resulta das declarações para memória futura da KK, nas quais, recorde-se, distingue entre os ofendidos e os trabalhadores, sendo que aqueles, II incluída, estavam todos na mesma situação – a de não receberem qualquer remuneração – e do depoimento de NN (os arguidos nada pagavam ou só entregavam uma quantia irrisória – tendo em conta os dias trabalhados).
De resto, o controlo do dinheiro da ofendida II e designadamente por parte do 1º arguido resulta da conta bancaria daquela (EMP03...) estar co-titulada por aquele.
Importa acentuar, aqui, que não só nenhuma remuneração lhe era paga, como, e ainda, a ofendida II era instrumentalizada pelos arguidos como fonte de obtenção – indevida – de subsídios de desemprego – cfr. supra, onde se analisam os subsídios pagos pelo INEM Espanhol na conta da II na EMP03... e contitulada, designadamente, pelo 1º arguido – o que é deveras significativo da visão que os arguidos tinham dos ofendidos, designadamente, da II.
O seu estado de sujeição resultou, ainda, particularmente nítido dos depoimentos de JJ (para memória futura), que relatou o ambiente de opressão e de intimidação a que os ofendidos, II incluída, eram sujeitos, limitações impostas (“não deixavam a gente sair de casa”), chegando ás agressões (a II era agredida regularmente), e de NN que, também ele, descreveu um ambiente opressivo, intimidatório (“ninguém saía”, havia “ameaças”, “não falavam com ninguém”) e não deixou de referir que se comentava que os 1º, 2ª e 3ª arguidos (“que eram quem mandavam”) “batiam”, assim confirmando indirectamente as agressões físicas.
O facto de não ter sido inquirida, nem para memória futura, acabou, pois, por apenas impedir a prova do exacto circunstancialismo em que ocorreu o contacto com os arguidos (e, designadamente, não se provou a actividade de aliciamento dos arguidos, no sentido, pois, de uma actuação de angariação, mas e apenas ter sido aceite); mas, recorde-se que a 2ª arguida admitiu que já conhecia a II, e “que esta estava num momento difícil”, o que, aliado ao depoimento do inspector UU (que salientou, designadamente, as características, neste tipo de criminalidade, de vulnerabilidade das vítimas) e às regras da experiência comum, permitiu afirmar o aproveitamento dos arguidos (1º, 2ª e 3ª, que eram os que mandavam).
Que a ofendida II pensava que viria a ser remunerada pelo trabalho que viesse a prestar por tal lhe ter sido garantido, resulta da normalidade das coisas, sendo uma evidência, e tanto o é que até a testemunha de defesa, PP, exclamou «de certeza que foram pelos mesmos motivos que os outros: ganhar dinheiro».
Quanto ao montante da remuneração (e demais condições), e por não se vislumbrarem razões para que fossem diferentes dos da KK, deram-se por provadas as referidas por esta nas suas declarações para memória futura, tanto mais quanto as tarefas a desenvolver foram apresentadas como semelhantes, tendo ambas as ofendidas entrado ao serviço dos arguidos sensivelmente na mesma altura.
No que toca ao HH, e para além de valerem as considerações tecidas acerca do significado da retenção dos docs. apreendidos (realçando-se o cartão de saúde espanhol, a documentação bancária, demais documentação oficial de vários organismos espanhóis: do “Ministério del Interior”, da “.../...” e do “Ayuntamiento de ...) sendo de sublinhar ter este ofendido logrado fugir em 19.3.2011 (por isso se percebe não ter sido encontrado o seu doc. de identificação aquando das buscas/apreensões).
A sua presença, provindo da zona do “Porto”, junto dos arguidos, a “trabalhar” é confirmada pela 2ª arguida em sede de declarações que, assim, admite a presença, contínua, do HH.
Presença esta, de resto, confirmada pelas fotografias apreendidas (fotografia e registo de imagens constantes do telemóvel apreendido o 1º arguido).
Que a sua presença perdurou por muito tempo resultou das declarações da id. arguida: “durante muito tempo” e do depoimento da testemunha TTT: “O UUU esteve lá anos”.
O Tribunal baseou-se no depoimento de NN quanto á caracterização do referido ofendido como tendo um problema de claudicação («o manco»), oriundo do Porto onde «dormia na rua» e no depoimento de TTT que se lhe referiu como uma pessoa sem retaguarda (“sem grande família”), o que é congruente com o protótipo de pessoas vítimas desse tipo de ilícito.
Acabou por conseguir fugir – na expressão de JJ “Teve o UUU que o fez” – e no próprio dia 19.3.2011 denunciou os factos à GNR (auto de notícia de fls. 9 confirmado pelo inspector da PJ VVV e pelo depoimento de WWW da GNR, que tomou conta da ocorrência).
O tratamento incluía agressões físicas – presenciadas pelo JJ: “Ó UUU vi [bater] pelo menos 3 ou 4 vezes” e mostra a razão de ciência do JJ (estavam todos juntos, até á fuga do HH) – sendo bem impressivos os depoimentos de JJ e de NN, já referidos e para os quais se remete, quanto ao ambiente de opressão de de intimidação.
Evidentemente, e desde logo o referido ambiente de opressão criado pelos arguidos isso logo indicia, que nenhuma remuneração era paga – recorde-se mais uma vez a distinção entre ofendidos e trabalhadores feita pela KK – pelo trabalho prestado, como sucedeu, de resto, em relação a todos os restantes ofendidos (como já vimos; de resto, nem outra coisa seria lógica).
Aliás, o controlo do dinheiro do ofendido e designadamente por parte do 1º arguido resulta da conta bancaria daquele (conjuntamente com a II, na EMP03...) estar co-titulada por aquele arguido.
Quanto ao tipo de trabalho prestado e condições em que o prestavam e viviam, valoraram-se as já referidas declarações para memória futura da KK e do JJ, pois que viveram todos juntos, eles e o HH, e que este e o JJ trabalhavam juntos, valendo para aquele a descrição contida naquelas declarações e que correspondem á factualidade provada.
O facto de não ter sido inquirido, nem para memória futura, acabou, pois, por apenas impedir a prova do exacto circunstancialismo em que ocorreu o contacto com os arguidos e, assim e designadamente, não se provou a actividade de aliciamento dos arguidos, no sentido, pois, de uma actuação de angariação, provando-se apenas ter sido aceite – em todo o caso, face à ostensiva deficiência física do ofendido (claudicava) e e ás sua situação pessoal (dormia na rua, não tinha retaguarda familiar) e às regras da experiência, afirmou-se o aproveitamento dos arguidos (1º, 2ª e 3ª, que eram os que mandavam).
Que o ofendido HH pensava, obviamente, que viria a ser remunerada pelo trabalho que viesse a prestar por tal lhe ter sido garantido, resulta da normalidade das coisas, sendo uma evidência, e tanto o é que até a testemunha de defesa, PP, exclamou «de certeza que foram pelos mesmos motivos que os outros: ganhar dinheiro».
Quanto ao montante da remuneração (e demais condições), e sendo certo que é do conhecimento generalizado que a “jeira” paga aos homens superava (e ainda hoje supera) aquela que era paga às mulheres, afirmou-se uma quantia ligeiramente superior (7 contos/dia em vez dos 6 contos/dia para as mulheres), a que, naturalmente (é do conhecimento comum e, relembre-se, foi afirmado, designadamente, pela ofendida KK), acresciam o transporte, alojamento e comida.
Perante tudo quanto se expôs, resulta evidente que não mereceram crédito os depoimentos de:
- RR, que quis fazer crer que os ofendidos, designadamente, a KK e a filha LL frequentavam a sua pastelaria/pizzaria em Alfândega ..., como clientes normais, e até que pagavam a pronto; ora, para além de em si mesmo tal relato não merecer crédito (a necessidade de acrescentar que «pagavam a pronto» é reveladora – então não é suposto pagar-se a pronto? E, assim sendo, como se lembraria ele, passados 9 anos, de clientes normais que pagavam a pronto como…todos!?) ele surge absolutamente contrariado pela prova já exposta;
- PP, em grande medida (mas não completamente como já veremos) porque produziu um depoimento ostensivamente parcial, em favor dos arguidos (iniciou o depoimento dizendo que estes estavam a ser julgados «por uma injustiça», sendo indisfarçável a vontade de os beneficiar – referindo que o transporte para Espanha era feito em «carros dignos»! – e que a «BB ainda fazia muito pois que os alimentava aos Domingos», quando a alimentação fazia parte do prometido) e que se revelou por completo quando ao findar o seu depoimento deixou escapar que as suas «despesas de transporte ao tribunal são com o AA» [1º arguido].
Em todo o caso, não deixou de referir que o dinheiro do trabalho era entregue ao AA e este, no final, é que o dividiria e que se, nesse entretanto, precisassem de dinheiro, teriam que pedir ao AA um «adiantamento para café e tabaco» – o que não deixa de confirmar parte do relato dos ofendidos (o dinheiro era entregue pelos patrões aos arguidos designadamente ao 1º - na fase do pagamento em numerário, claro está).
Os depoimentos de KK e de XXX para além de em si mesmos, pouco relevo terem, foram produzidos de forma tendenciosa e parcial (a KK referiu que os arguidos só tinham uma carrinha, quando nem a 2º arguida o sustentou e o contrário resulta dos doc.s juntos aos autos – registo automóvel e autos de diligência externa; a XXX referiu que a LL andou na escola com a filha dela, quando a própria 2ª arguida admite que a LL foi retirada da escola).
Também não mereceu crédito o depoimento da testemunha TTT, desmentido categoricamente por quanto foi exposto supra.
No que toca às actuais condições pessoais, profissionais, familiares, inserção social, o tribunal baseou-se nos relatórios sociais (primitivos e actualizados), no documento médico junto na última sessão da audiência (reabertura), nas declarações dos 1º, 2ª e 3ª arguidas (sobretudo quanto ao estado de saúde) e nos depoimentos das testemunhas abonatórias: - SS – que, para além do mais, acentuou a boa inserção social dos arguidos, embora nem sempre com inteiro rigor: o «casal» não trabalhava para a Câmara »em contrato de emprego inserção» mas apenas o marido, 1º arguido; a CC também não; quanto á questão dos serviços municipais nada de anormal terem reportado no que á ocupação da casa integrada em bairro social e ocupada pelos 1º e 2º arguidos concerne (como quem diz: se houvesse mais ocupantes, os serviços camarários teriam reportado tal facto), tal nada significa pois é a própria 2ª arguida a admitir que teve lá os ofendidos sem que pelos vistos tal tenha parecido estranho…;
- YYY, para quem e que saiba, o 1º arguido era «boa gente» e cumpridor;
- ZZZ, directora dos recursos humanos da S. Casa da M. de ... onde trabalha a arguido CC desde 2015 (portanto só daí em diante tem razão de ciência) e elogiou o seu desempenho funcional, tendo já efectivado;
- AAAA, que abonou a personalidade dos arguidos mormente da DD mas que só os conhece desde 2013.
Valoraram-se os CRC.
Os factos não provados resultaram da falta ou insuficiência da prova produzida, realçando-se que, e para além do que já ficou dito e foi quase tudo:
- nenhuma prova foi produzida quanto ao 7º arguido;
- os 5º e 6º só foram mencionados a propósito da KK;
- não foi mencionado o OO, sendo insuficiente que haja sido encontrado o BI daquele na posse da 2º arguida para se afirmar a factualidade imputada;
- o depoimento de JJ, na parte e que refere obras feitas conjuntamente com o HH, quer em ... quer em Alfândega ..., nesta precisa parte não foram suficientes, pois nenhuma obra se vislumbra que haja sido feita – não o foi seguramente em ..., face ao estado da casa, e não se vê que o hajam sido feitas em Alfândega, pois são casas propriedade da Câmara (bairro social).”

Vejamos, agora, as concretas questões submetidas a recurso.

I)  Da nulidade prevista no artº 379º nº 1 al. a) do Código de Processo Penal – falta de fundamentação:

Entendem os recorrentes que o acórdão ora sob escrutínio é nulo por ter violado o disposto no artº 374º nº 2 do CPP, tal como já detectado por esta Relação, aquando da primeira subida, por não se mostrar devidamente fundamentado no que tange aos factos referentes aos ofendidos HH e II, mormente os vertidos em 14 e 17 e ainda 3.1, 3.2 6, 7, 8, 9, 10, 11, 13, 23, 28 e 39.

Vejamos.

O artº 379º do Código de Processo Penal, subordinado à epígrafe “nulidade da sentença” determina o seguinte:

“1 - É nula a sentença:
a) Que não contiver as menções referidas no n.º 2 e na alínea b) do n.º 3 do artigo 374.º ou, em processo sumário ou abreviado, não contiver a decisão condenatória ou absolutória ou as menções referidas nas alíneas a) a d) do n.º 1 do artigo 389.º-A e 391.º-F;
b) Que condenar por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, fora dos casos e das condições previstos nos artigos 358.º e 359.º;
c) Quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.
2 - As nulidades da sentença devem ser arguidas ou conhecidas em recurso, devendo o tribunal supri-las, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto no n.º 4 do artigo 414.º
3 - Se, em consequência de nulidade de sentença conhecida em recurso, tiver de ser proferida nova decisão no tribunal recorrido, o recurso que desta venha a ser interposto é sempre distribuído ao mesmo relator, exceto em caso de impossibilidade.” – sublinhado nosso

Por sua vez, o artº 374º nº 2 do Código de Processo Penal, subordinado à epígrafe “requisitos da sentença” diz o seguinte:

“2 - Ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.” – sublinhado nosso

Ora, no primeiro acórdão prolatado nesta Relação foi anotado o seguinte:

“Com efeito, conforme consta expressamente daquela motivação:

«O “núcleo duro” da factualidade, e, portanto, atinente à angariação/aceitação dos ofendidos, o que lhes foi prometido, os trabalhos prestados, condições em que o faziam, estado de sujeição e meios coactivos, ausência de pagamento das remunerações, resultou desde logo, mas não só, como já se intuiu, das buscas/apreensões e das declarações para memória futura»

Sucede, porém, que os ofendidos BBBB e II não foram inquiridos em audiência de julgamento nem lhe foram tomadas declarações para memória futura.
Por isso que quanto a eles se exigisse um esforço acrescido de fundamentação.”

No acórdão ora submetido à nossa apreciação, e ao contrário do propugnado pelos recorrentes, não se vislumbra já o apontado vício uma vez que o Tribunal a quo logrou explicar de forma clara a formação da sua convicção no que tange aos ofendidos HH e II como se percebe do seguinte trecho da fundamentação do acórdão recorrido que aqui recapitulamos:

“Que a II fazia as lides domésticas foi admitido até pela arguida EE (referiu que “poderia ter pedido algumas vezes á II para fazer algumas lides domesticas – p. ex. varrer a cozinha”) e confirmado por NN, já mencionado, que referiu que a II também fazia a limpeza, e que a II também trabalhava na agricultura foi confirmado pelo referido NN (também fazia trabalhos agrícolas, p. ex., as vindimas), em termos de resto idênticos aos da KK – vê-se que o tratamento era igual para ambas  o que, diga-se, faz sentido; aliás, estas até dormiam juntas, nas mesmas condições, como referiu a KK nas suas declarações.
Que nada recebia de remuneração resulta das declarações para memória futura da KK, nas quais, recorde-se, distingue entre os ofendidos e os trabalhadores, sendo que aqueles, II incluída, estavam todos na mesma situação – a de não receberem qualquer remuneração – e do depoimento de NN (os arguidos nada pagavam ou só entregavam uma quantia irrisória – tendo em conta os dias trabalhados).
De resto, o controlo do dinheiro da ofendida II e designadamente por parte do 1º arguido resulta da conta bancaria daquela (EMP03...) estar co-titulada por aquele.
Importa acentuar, aqui, que não só nenhuma remuneração lhe era paga, como, e ainda, a ofendida II era instrumentalizada pelos arguidos como fonte de obtenção – indevida – de subsídios de desemprego – cfr. supra, onde se analisam os subsídios pagos pelo INEM Espanhol na conta da II na EMP03... e contitulada, designadamente, pelo 1º arguido – o que é deveras significativo da visão que os arguidos tinham dos ofendidos, designadamente, da II.
O seu estado de sujeição resultou, ainda, particularmente nítido dos depoimentos de JJ (para memória futura), que relatou o ambiente de opressão e de intimidação a que os ofendidos, II incluída, eram sujeitos, limitações impostas (“não deixavam a gente sair de casa”), chegando ás agressões (a II era agredida regularmente), e de NN que, também ele, descreveu um ambiente opressivo, intimidatório (“ninguém saía”, havia “ameaças”, “não falavam com ninguém”) e não deixou de referir que se comentava que os 1º, 2ª e 3ª arguidos (“que eram quem mandavam”) “batiam”, assim confirmando indirectamente as agressões físicas.
O facto de não ter sido inquirida, nem para memória futura, acabou, pois, por apenas impedir a prova do exacto circunstancialismo em que ocorreu o contacto com os arguidos (e, designadamente, não se provou a actividade de aliciamento dos arguidos, no sentido, pois, de uma actuação de angariação, mas e apenas ter sido aceite); mas, recorde-se que a 2ª arguida admitiu que já conhecia a II, e “que esta estava num momento difícil”, o que, aliado ao depoimento do inspector UU (que salientou, designadamente, as características, neste tipo de criminalidade, de vulnerabilidade das vítimas) e às regras da experiência comum, permitiu afirmar o aproveitamento dos arguidos (1º, 2ª e 3ª, que eram os que mandavam).
Que a ofendida II pensava que viria a ser remunerada pelo trabalho que viesse a prestar por tal lhe ter sido garantido, resulta da normalidade das coisas, sendo uma evidência, e tanto o é que até a testemunha de defesa, PP, exclamou «de certeza que foram pelos mesmos motivos que os outros: ganhar dinheiro».
Quanto ao montante da remuneração (e demais condições), e por não se vislumbrarem razões para que fossem diferentes dos da KK, deram-se por provadas as referidas por esta nas suas declarações para memória futura, tanto mais quanto as tarefas a desenvolver foram apresentadas como semelhantes, tendo ambas as ofendidas entrado ao serviço dos arguidos sensivelmente na mesma altura.
No que toca ao HH, e para além de valerem as considerações tecidas acerca do significado da retenção dos docs. apreendidos (realçando-se o cartão de saúde espanhol, a documentação bancária, demais documentação oficial de vários organismos espanhóis: do “Ministério del Interior”, da “.../...” e do “Ayuntamiento de ...) sendo de sublinhar ter este ofendido logrado fugir em 19.3.2011 (por isso se percebe não ter sido encontrado o seu doc. de identificação aquando das buscas/apreensões).
A sua presença, provindo da zona do “Porto”, junto dos arguidos, a “trabalhar” é confirmada pela 2ª arguida em sede de declarações que, assim, admite a presença, contínua, do HH.
Presença esta, de resto, confirmada pelas fotografias apreendidas (fotografia e registo de imagens constantes do telemóvel apreendido o 1º arguido).
Que a sua presença perdurou por muito tempo resultou das declarações da id. arguida: “durante muito tempo” e do depoimento da testemunha TTT: “O UUU esteve lá anos”.
O Tribunal baseou-se no depoimento de NN quanto á caracterização do referido ofendido como tendo um problema de claudicação («o manco»), oriundo do Porto onde «dormia na rua» e no depoimento de TTT que se lhe referiu como uma pessoa sem retaguarda (“sem grande família”), o que é congruente com o protótipo de pessoas vítimas desse tipo de ilícito.
Acabou por conseguir fugir – na expressão de JJ “Teve o UUU que o fez” – e no próprio dia 19.3.2011 denunciou os factos à GNR (auto de notícia de fls. 9 confirmado pelo inspector da PJ VVV e pelo depoimento de WWW da GNR, que tomou conta da ocorrência).
O tratamento incluía agressões físicas – presenciadas pelo JJ: “Ó UUU vi [bater] pelo menos 3 ou 4 vezes” e mostra a razão de ciência do JJ (estavam todos juntos, até á fuga do HH) – sendo bem impressivos os depoimentos de JJ e de NN, já referidos e para os quais se remete, quanto ao ambiente de opressão de de intimidação.
Evidentemente, e desde logo o referido ambiente de opressão criado pelos arguidos isso logo indicia, que nenhuma remuneração era paga – recorde-se mais uma vez a distinção entre ofendidos e trabalhadores feita pela KK – pelo trabalho prestado, como sucedeu, de resto, em relação a todos os restantes ofendidos (como já vimos; de resto, nem outra coisa seria lógica).
Aliás, o controlo do dinheiro do ofendido e designadamente por parte do 1º arguido resulta da conta bancaria daquele (conjuntamente com a II, na EMP03...) estar co-titulada por aquele arguido.
Quanto ao tipo de trabalho prestado e condições em que o prestavam e viviam, valoraram-se as já referidas declarações para memória futura da KK e do JJ, pois que viveram todos juntos, eles e o HH, e que este e o JJ trabalhavam juntos, valendo para aquele a descrição contida naquelas declarações e que correspondem á factualidade provada.
O facto de não ter sido inquirido, nem para memória futura, acabou, pois, por apenas impedir a prova do exacto circunstancialismo em que ocorreu o contacto com os arguidos e, assim e designadamente, não se provou a actividade de aliciamento dos arguidos, no sentido, pois, de uma actuação de angariação, provando-se apenas ter sido aceite – em todo o caso, face à ostensiva deficiência física do ofendido (claudicava) e e ás sua situação pessoal (dormia na rua, não tinha retaguarda familiar) e às regras da experiência, afirmou-se o aproveitamento dos arguidos (1º, 2ª e 3ª, que eram os que mandavam).
Que o ofendido HH pensava, obviamente, que viria a ser remunerada pelo trabalho que viesse a prestar por tal lhe ter sido garantido, resulta da normalidade das coisas, sendo uma evidência, e tanto o é que até a testemunha de defesa, PP, exclamou «de certeza que foram pelos mesmos motivos que os outros: ganhar dinheiro».
Quanto ao montante da remuneração (e demais condições), e sendo certo que é do conhecimento generalizado que a “jeira” paga aos homens superava (e ainda hoje supera) aquela que era paga às mulheres, afirmou-se uma quantia ligeiramente superior (7 contos/dia em vez dos 6 contos/dia para as mulheres), a que, naturalmente (é do conhecimento comum e, relembre-se, foi afirmado, designadamente, pela ofendida KK), acresciam o transporte, alojamento e comida.”

Se esta fundamentação encerra ou não erro de julgamento ou se é, como afirmam os recorrentes, “arbitrária e incompreensível, (assentando) num raciocínio puramente dedutivo”, é uma questão à parte que não implica a nulidade suscitada pelos arguidos, sendo que se apercebe o motivo pelo qual o Tribunal a quo imputou responsabilidades criminais aos arguidos recorrentes também em relação a duas vítimas que não foram ouvidas em tribunal, quer no julgamento, quer para memória futura.
Ou seja, o que releva na análise da nulidade em apreço não é saber se o Tribunal a quo cometeu um erro de julgamento ao concluir desta ou daquela forma, mas se se consegue perscrutar o caminho lógico-dedutivo que o Tribunal a quo seguiu na formação das sua convicção.

Se for visível o caminho seguido pelo Tribunal a quo para chegar às conclusões de facto a que chegou não há nulidade, embora o caminho levado possa, em outro momento, ser sindicado.

Por conseguinte, não existindo já a apontada nulidade deve o recurso improceder nesta parte.

II) Da nulidade prevista no artº 379º nº 1 al. c) do Código de Processo Penal – omissão de pronúncia:

Entendem ainda os recorrentes que o Tribunal a quo não se pronunciou acerca do destino a dar ao veículo automóvel apreendido nos autos, o que inquine o acórdão recorrido de nulidade.

Vejamos.

Conforme se retira de fls. 436, a 8 de Novembro de 2011 foi apreendido o veículo automóvel ..., modela ... com a matrícula espanhola ....GFR.

No acórdão recorrido nenhuma menção é feita acerca do destino a dar a tal viatura.

Contudo essa omissão não integra a nulidade propugnada pelos recorrentes pelos seguintes motivos:

Os requisitos da sentença vêm previstos no artº 374º do Código de Processo Penal que os enumera da seguinte maneira:

“1 - A sentença começa por um relatório, que contém:
a) As indicações tendentes à identificação do arguido;
b) As indicações tendentes à identificação do assistente e das partes civis;
c) A indicação do crime ou dos crimes imputados ao arguido, segundo a acusação, ou pronúncia, se a tiver havido;
d) A indicação sumária das conclusões contidas na contestação, se tiver sido apresentada.
2 - Ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.
3 - A sentença termina pelo dispositivo que contém:
a) As disposições legais aplicáveis;
b) A decisão condenatória ou absolutória;
c) A indicação do destino a dar a animais, coisas ou objetos relacionados com o crime, com expressa menção das disposições legais aplicadas;
d) A ordem de remessa de boletins ao registo criminal;
e) A data e as assinaturas dos membros do tribunal.
4 - A sentença observa o disposto neste Código e no Regulamento das Custas Processuais em matéria de custas.” – sublinhado e negrito nossos

Como se constata da análise do preceito legal em apreço a indicação do destino a dar aos objectos apreendidos integra o nº 3, mais concretamente, a al. c).

Concatenando tal norma legal com a norma que estabelece as nulidades da sentença – o já supra citado artº 379º do CPP – facilmente se apreende que a falta dos elementos previstos no nº 3 do artº 374º, à execpção da al. b), não é cominada com nulidade alguma.

Pois o artº 379º nº 1 al. a) é explícito ao remeter para a falta dos elementos contidos no nº 2 do artº 374º bem como o contido na al. b) do nº 3 do mesmo artº 374º, deixando de fora as restantes alíneas do nº 3.

Se o legislador quisesse abranger a al. c), ou qualquer outra alínea do nº 3 do artº 374º, que não a al. b), tê-lo-ia feito, ademais considerando que o legislador foi cirúrgico na escolha dos elementos que a sentença deve conter – artº 374º do CPP – em relação aos quais determina a nulidade da sentença, não se podendo concluir por lapso ou qualquer lacuna.

E não tendo o legislador especificamente previsto a falta de menção dos elementos contidos na al. c) do nº 3 do artº 374º como nulidade, não faz sentido entender que a falta de menção de tais elementos na sentença possa, então, integrar a al. c) do nº 1 do artº 379º do CPP.

Como se explica de forma bastante clara no Acórdão da Relação do Porto de 08-03-2023[7]:
“A leitura atenta e conjugada dos arts. 374.º, n.ºs 2 e 3, e 379.º, n.º 1, al. a), ambos do CPPenal, revela que o legislador entendeu que a sentença é nula quando não cumpre a totalidade da indicação das menções previstas no n.º 2 do art. 374.º – o relatório, a enumeração dos factos provados e não provados e uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do Tribunal –, aí não se incluindo qualquer referência ao destino dos bens apreendidos, e quando, quanto ao dispositivo, não contém a decisão condenatória ou absolutória.
Se o art. 379.º, n.º 1, do CPPenal não remete in totum para as alíneas a) a e) do n.º 3 do preceito é porque o legislador entendeu que apenas a menção que indica, isto é, a omissão de menção da decisão condenatória ou absolutória, é que assume relevância suficiente para gerar a nulidade da decisão. Assim, as demais menções previstas no n.º 3 do art. 374.º geram, simplesmente, a respectiva irregularidade, de acordo com os arts. 118.º e 123.º do CPPenal.
O mesmo se diga da ausência de referência ao destino dos bens apreendidos no âmbito do art. 374.º, n.º 2, do CPPenal, matéria que aos olhos do legislador não assumiu dignidade suficiente para ser ali mencionada.
Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (art. 9.º, n.º 3, do CCivil).
Nesta perspectiva, se o legislador considerasse que a omissão de todas as menções previstas nas diversas alíneas do n.º 3 do art. 374.º do CPPenal geravam a nulidade da sentença tê-lo-ia seguramente dito, remetendo apenas para aquele número, ao invés de salientar única e exclusivamente a sua al. b). O mesmo se diga do texto do n.º 2 do art. 374.º quando ao destino dos bens apreendidos.
Ainda ao obrigo da mesma norma interpretativa, e tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico (art. 9.º, n.º 1, do CCivil), há que entender que se o legislador não integrou nas nulidades da sentença previstas no art. 379.º, n.º 1, al. a), do CPPenal o destino a dar aos objectos, por via da não previsão dessa decisão no n.º 2 do art. 374.º do CPPenal, e também ali não mencionou as demais alíneas do n.º 3 do art. 374.º do CPenal, mas apenas a sua al. b), não as terá, seguramente, pretendido inserir através da previsão da al. c) do n.º 1 do art. 379.º, ou seja, através da omissão de pronúncia sobre questões que devesse apreciar.
Uma tal interpretação seria deixar entrar pela janela aquilo que o legislador não quis deixar entrar pela porta.
As questões que esta al. c) prevê são aquelas que, não estando já previstas, ou arredadas, por força da previsão do art. 379.º, n.º 1, al. a), do CPPenal, o Ministério Público, os assistentes, os arguidos e as partes civis tragam à apreciação do tribunal de julgamento no âmbito do objecto do processo, ou as que, neste enquadramento, sejam de conhecimento oficioso, desde que assumam dignidade processual penal bastante para serem uma questão objecto do processo, do dissídio ou do problema concreto a decidir, como algumas nulidades ou a prescrição da responsabilidade criminal, por exemplo.”
- negrito nosso

Ou, como já decidido nesta mesma Relação de Guimarães, por acórdão de 28-10-2019, cuja relator é Paulo Serafim[8]:

“O facto de o tribunal não se ter pronunciado na sentença sobre o destino a dar às armas e munições apreendidas nos autos, desse modo incumprindo o disposto no art. 374º, nº3, al. c), do CPP, não gera nulidade, mas tão só mera irregularidade, a qual, por não afectar a decisão do objecto do processo, não determina a invalidade da sentença.”

No mesmo sentido e de forma uniforme há já mais de uma década, veja-se, a título meramente exemplificativo:
- o Acórdão da Relação do Porto de 11-01-2012 (consultável em https://jurisprudencia.pt/acordao/13153/);
- o Acórdão da Relação de Lisboa de 11-07-2013 (consultável em: http://www.gde.mj.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/9c3fd0e215bc53f080257c2f004b3411?OpenDocument);

E ainda no recente Acórdão do Tribunal Constitucional nº 893/2023 de 19-12-2023[9], que a propósito da norma contida no artº 109º do Código Penal, e aderindo ao proposto pelo MºPº quando este refere:

“o regime previsto no art. 109.º do CP, de matriz substantiva, não é alterado pela norma meramente processual inscrita no n.º 2 do art. 186.º do CPP e muito menos que a partir desta última se possa produzir um novo regime legal de base jurisprudencial, consoante a natureza proibida, ou não, dos bens (como faz abundante jurisprudência que nos escusamos de citar) o que permitiria afastar o regime do art.109.º do CP após o trânsito da sentença sem que exista alguma razão válida para isso”, pelo que “o trânsito da sentença não é critério, nem tinha de ser, para a oportunidade de apreciação deste regime (aliás, a sentença que não se pronuncie sobre o regime de perdimento nos termos do art. 374º n.º3 alínea c) do CPP, não padece de nulidade, nos termos do art.379º n.º1 alínea a) do mesmo diploma, e muito menos o caso julgado da sentença que não se pronuncie sobre o perdimento de bens, atinge o regime previsto no art.109º do CP, que pode ulteriormente ser atuado, com perdimento do instrumento do crime, mesmo após o trânsito da sentença). Não se pode invocar ofensa do caso julgado em relação a aspetos do processo que, de todo em todo não foram decididos, não se podendo, salvo o devido respeito, afirmar que a omissão os decide negativamente”. – negrito nosso

Concluiu que:
“Em face do exposto, não se prefiguram razões aptas a sustentar um juízo de inconstitucionalidade da norma contida no artigo 109.º, n.º 1, do Código Penal, interpretada no sentido segundo o qual a perda aí prevista pode ser decretada após o trânsito em julgado da decisão condenatória, com a consequente improcedência do recurso” pois “o arguido tem, à luz da Lei Fundamental, o direito a que a questão da perda, enquanto consequência da prática de um crime (ou, pelo menos, consequência ligada ao juízo sobre a prática de um crime), seja apreciada por um juiz, mediante decisão fundamentada e suscetível de recurso – o que não está em causa neste recurso –, mas não se antevê em que medida teria um direito acolhido na Constituição a que essa decisão só possa ocorrer na sentença.”

Por aqui se retira com segurança que o próprio Tribunal Constitucional entende que a falta de menção dos elementos contidos na al. c) do nº 3 do artº 374º do CPP não consubstancia nulidade da sentença, podendo a questão do destino a dar aos bens apreendidos ser decidido em momento posterior.

Constata-se, assim, que o acórdão recorrido também não padece desta nulidade invocada pelos arguidos, motivo pelo qual esta parte do recurso também tem de improceder.

III) Dos vícios do artº 410º nº 2 als. a), b) e c) do Código de Processo Penal:
           
Entendem os arguidos que o acórdão recorrido padece de insuficiência para a decisão da matéria de facto na medida em que contém factos genéricos em que “não se indica o lugar, nem o tempo, nem a motivação, nem o grau de participação, nem as circunstâncias relevantes…”.

Tanto que, no segundo acórdão prolatado (e também anulado por esta Relação) o Tribunal a quo “tentou rectificar os erros de descrição factual do acórdão de 2020, e precisar datas e intervenção deste ou daquele arguido ao invés da generalização”.

Entendem igualmente que o acórdão recorrido padece de contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão por “as considerações e conclusões vertidas na fundamentação da decisão da matéria de Direito não (serem) de todo compatíveis com a matéria de facto que o mesmo Tribunal dá como provada e assente, essencialmente na parte em que se refere aos ofendidos II e HH.”

Entendem igualmente que o acórdão recorrido contém o vício do erro notório na apreciação da prova por terem sido dados como provados factos sem prova para tanto, “facilmente inferido pela comparação dos três acórdãos proferidos.”

Vejamos.

Conforme dispõe o artº 410º do Código de Processo Penal:

“1. Sempre que a lei não restringir a cognição do tribunal ou os respectivos poderes, o recurso pode ter como fundamento quaisquer questões que pudesse conhecer a decisão recorrida.
2. Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:
a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;     
b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
c) Erro notório na apreciação da prova.
3. O recurso pode ainda ter como fundamento, mesmo que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, a inobservância de requisito sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada.”  

Esclarecem Simas Santos e Leal Henriques[10] “Deve notar-se que a al. a) do nº 2 se refere à insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito e não à insuficiência da prova para a matéria de facto provada, questão do âmbito do princípio da livre apreciação da prova (art. 127º), que é insindicável em reexame da matéria de direito.
Por sua vez a contradição a que se reporta a al. b) é só aquela que, como expressamente se postula, se apresente como insanável, irredutível, que não possa ser ultrapassada com recurso à decisão recorrida no seu todo e com recurso às regras da experiência.
Finalmente o erro notório na apreciação da prova a que alude a al. c) é aquele que é evidente, que não escapa ao homem comum, de que um observador médio se apercebe com facilidade, que é patente. Esse erro existe quando se dão como provados factos incompatíveis entre si, v.g., quando se dá por assente que o arguido está num determinado local a determinada hora e ao mesmo tempo se tem como provado que ele estava em local longínquo minutos depois; ou quando se dá por assente que o arguido disparou três tiros de pistola a 4 metros de uma mesa onde estavam sentadas várias pessoas, no interior de um café apinhado e se dá por provado que ele não previu a possibilidade de atingir mortalmente alguém.(…)
Mas existe igualmente erro notório na apreciação da prova quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada ao das legis artis.
Não pode esquecer-se que, como se prescreve na 2ª parte do corpo do nº 2, os vícios apontados nas suas alíneas têm de resultar do próprio texto da decisão recorrida por si só ou com recurso às regras da experiência comum, não sendo permitida a consulta de outros elementos constantes do processo.”

Como muito bem explicitado no Acórdão do STJ de 15-09-2009 (procº nº 103/09 da 3ª Secção, in Boletim do STJ):

“I -As anomalias, os vícios da decisão elencados no n.° 2 do art. 410.° do CPP têm de emergir, resultar do próprio texto, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum, o que significa que os mesmos têm de ser intrínsecos à própria decisão, como peça autónoma; esses vícios têm que resultar da própria decisão recorrida, na sua globalidade, mas sem recurso a quaisquer elementos estranhos à peça decisória, que lhe sejam externos, constando do processo em outros locais, como documentos juntos ou depoimentos colhidos ao longo do processo.
II - Trata-se de vícios de lógica jurídica ao nível da matéria de facto, que tornam impossível uma decisão logicamente correcta e conforme à lei -vícios da decisão, não do julgamento.
III - Os vícios previstos no artigo 410.°, n.° 2, do CPP, nomeadamente, o erro notório na apreciação da prova, não podem ser confundidos com a insuficiência de prova para a decisão de facto proferida ou com a divergência entre a convicção pessoal do recorrente sobre a prova produzida em audiência e a convicção que o tribunal firme sobre os factos, questões do âmbito da livre apreciação da prova, princípio inscrito no art. 127.° do CPP.
IV - Não podendo, neste tipo de análise, prevalecer-se de prova documentada nem se encontrando perante prova legal ou tarifada, não pode o tribunal superior sindicar a boa ou má valoração daquela, e querer discutir, nessas condições, a valoração da prova produzida; é, afinal, querer impugnar a convicção do tribunal, olvidando a citada regra.
V - Neste aspecto, o que releva, necessariamente, é essa convicção formada pelo tribunal, sendo irrelevante, no âmbito da ponderação exigida pela função de controlo ínsita na identificação dos vícios do art. 410.°, n.° 2, do CPP, a convicção pessoalmente alcançada pelo recorrente sobre os factos.”

Assim, os vícios previstos no artº 410º do CPP, embora de conhecimento oficioso, são vícios que têm de resultar da análise da sentença/acórdão em si, sem recurso a outros elementos processuais, e têm de ser vícios patentes que sobressaem da sentença pela simples leitura desta.

Ou conforme se refere no recente Acórdão do STJ de 06-02-2019 (in stj.pt) tratam-se de vícios que “decorrem do texto da própria decisão”.

Em relação aos vícios concretamente anunciados sabemos que:

O vício da insuficiência, para a decisão, da matéria de facto, plasmado na al. a) do nº 2 do artº 410º CPP não se confunde com a falta de prova para a matéria de facto, antes, traduzindo a falta de factos para a decisão dada, isto é, constata-se, da simples leitura da sentença/acórdão de que não existem factos suficientes para integrar o crime imputado e pelo qual se veio a condenar determinado arguido, ou então, não há factos suficientes para a determinação da pena em concreto, como, por exemplo, para se concluir pela taxa diária da multa aplicada desconhecendo-se por completo a situação económica do arguido.
           
“O vício da contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão (constante da al. b) do nº 2 do artº 410º do CPP) consiste tanto na contradição entre a matéria de facto dada como provada ou como provada e não provada, como também entre a fundamentação probatória da matéria de facto, ou até mesmo entre a fundamentação e a decisão. Ou seja, uma situação em que, seguindo o fio condutor do raciocínio lógico do julgador, os factos julgados como provados ou como não provados colidem inconciliavelmente entre si ou uns com os outros ou, ainda, com a fundamentação da decisão.”[11]

“Há contradição insanável da fundamentação quando, sendo feito um raciocínio lógico, for de concluir que a fundamentação leva a uma decisão contrária àquela que foi tomada. Há contradição entre os fundamentos e a decisão quando haja oposição entre o que ficou provado e o que é referido como fundamento da decisão tomada; e há contradição entre os factos quando os factos provados e não provados se contradigam entre si ou se excluam mutuamente.”[12]

Ou ainda, conforme explicitado no Ac. do STJ de 24-02-2016[13]:
“Há contradição insanável da fundamentação quando, através de um raciocínio lógico, se conclua pela existência de oposição insanável entre os factos provados, entre estes e os não provados, ou entre a fundamentação probatória da matéria de facto. A contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, por sua vez, ocorre quando, também através de um raciocínio lógico, se conclua pela existência de oposição insanável entre os meios de prova indicados na fundamentação como base dos factos provados ou entre a fundamentação e o dispositivo da decisão.”

“O vício previsto no art. 410.º, n.º 2, al. c), do CPPerro notório na apreciação da prova – só se pode verificar quando, partindo do texto da decisão recorrida, a matéria de facto considerada provada e não provada pelo tribunal a quo atenta, de forma notória, evidente ou manifesta, contra as regras da experiência comum, avaliadas de acordo com o padrão do homem médio.”[14]

Nos termos do Acórdão do STJ de 15-09-2009 (já supra citado):
“O erro-vício não se confunde com errada apreciação e valoração das provas, com o erro de julgamento relativamente à apreciação e valoração da prova produzida. Tendo como denominador comum a sindicância da matéria de facto, são muito diferentes na sua estrutura, alcance e consequências. Aquele examina-se, indaga-se, através da análise do texto; esta, porque se reconduz a erro de julgamento da matéria de facto, analisa-se em momento anterior à produção do texto, na ponderação conjugada e exame crítico das provas produzidas do que resulta a formulação de um juízo, que conduz à fixação de uma determinada verdade histórica que é vertida no texto; daí que a exigência de notoriedade do erro se não estenda ao processo cognoscitivo/valorativo, cujo resultado vem a ser inscrito no texto, só este sendo susceptível de apreciação.”

Vejamos, agora, cada vício relembrando que os vícios em causa têm de resultar do texto da sentença (acórdão), ainda que conjugados com as regras da experiência comum.

Assim, e no que diz respeito ao vício da insuficiência, para a decisão, da matéria de facto entendem os arguidos que o acórdão recorrido contém “imputações genéricas” insusceptíveis de contradita uma vez que não se indica o lugar, o tempo, a motivação, o grau de participação, nem se sabe em que datas, circunstâncias, por quanto tempo, o que foi prometido, o que lhes foi pago, etc...

Ora, e salvo o devido respeito, não sufragamos o entendimento dos arguidos no que tange a este vício em concreto uma vez que, apesar dos factos genéricos plasmados nos primeiros números da matéria de facto dada por provada, os quais servem apenas de contexto no qual se desenrola a trama penal retratada, o Tribunal a quo, dentro do que lhe foi possível, e repare-se estamos a lidar com factos ocorridos, pelo menos, desde 2000, identificou as vítimas (facto vertido em 12), concretizou as características específicas das vítimas que permitem compreender a vulnerabilidade das mesmas perante o esquema adoptado pelos arguidos (facto vertido em 13), depois concretizou a actuação perante cada vítima individualmente, começando pela vítima HH (facto vertido em 14) em relação a quem explicou a janela temporal (meados de 2000 a ../../2011), o que lhe foi prometido em termos remuneratórios (7 contos por dia), o que lhe competia fazer (todo o tipo de trabalhos agrícolas incluindo campanhas das vindimas, da poda, da desfolha e da apanha da fruta), onde (nas regiões de Alfândega ..., ... e Espanha, nas províncias de ..., ..., ..., ..., ..., ..., ... e ...) e durante que períodos do ano (as vindimas entre Setembro e Outubro, a poda entre Dezembro a Março, a desfolha entre Março a Julho e a apanha da fruta entre Junho a Agosto).
           
Concretizou ainda o Tribunal a quo em relação a esta vítima que a mesma jamais recebeu qualquer tipo de remuneração e identificou os concretos arguidos implicados que retiveram as respectivas verbas.

O mesmo se diga em relação às vítimas KK (factos vertidos em 15, 26 e 27), II (facto vertido em 17), JJ (factos vertidos em 18 a 21) e NN (facto vertido em 22).

Em relação à vítima menor, LL os concretos factos a si referentes vêm contemplados em 16.

Os factos vertidos em 23 e 24 descrevem o modus operandi dos arguidos.

Assim, não se pode concluir que os factos constantes do acórdão recorrido não sejam suficientes para a decisão de condenação proferida, nem resulta do simples texto do acórdão que o Tribunal a quo não tivesse encetado todas as diligências necessárias ao cabal apuramento dos referidos factos.

Se os factos foram bem julgados é questão diversa.

Aliás, e salvo o devido respeito, afigura-se-nos que os recorrentes confundem a falta de prova para os factos com a falta de factos para a decisão.

São situações diferentes que não se confundem.

Sendo que a eventual falta ou insuficiência de prova para dar como provado determinado facto, ou factos, se insere no erro de julgamento e não nos vícios do acórdão plasmados no artº 410º nº 2 do CPP.

O mesmo se diga em relação ao invocado erro notório na apreciação da prova que os arguidos também invocam, sendo que se nos afigura que também este vício não se apresenta da cuidada leitura do acórdão recorrido.

O facto dos arguidos discordarem da convicção alcançada pelo Tribunal a quo não significa que o Tribunal a quo tenha cometido um erro na sua apreciação, erro esse que, como vimos, tem de ser patente e resultar do próprio texto do acórdão.
           
Argumentam os arguidos que “é ostensivo o erro de apreciação da prova tanto mais que o próprio Tribunal a quo quis no acórdão de 2021 alterar a matéria de facto provada” (cfr. página 32 do recurso fls. 4194 vº).

Salvo o devido respeito, o acórdão objecto deste recurso é o elaborado em 12 de Abril de 2024, sendo em relação a este que a nossa análise, em especial, dos vícios que possam resultar do seu respectivo texto, deve recair.

Pois, estando em causa um vício que apenas pode ser aferido a partir do texto do acórdão recorrido, não só não é permitido compará-lo com o acórdão proferido em 22 de Outubro de 2021 como, da análise do texto oferecido pelo Tribunal a quo, também não é possível detectar um erro notório na apreciação da prova.

Tanto mais que os recorrentes, ao afirmarem que “não se diga que os poucos parágrafos enxertados na decisão resolvem o problema de fundo do primitivo acórdão, tanto mais que o Tribunal de 2021 com a alteração à matéria de facto que levou a cabo reconheceu que tinha errado no julgamento efectuado” (cfr. página 32 do recurso fls. 4194 vº), revelam que o problema que suscitam insere-se no campo do erro de julgamento e não no dos vícios do acórdão.

O erro notório na apreciação da prova é algo que tem de resultar patente e claro da própria motivação que o Tribunal a quo oferece para fundamentar a sua convicção aquando da determinação da matéria de facto.

E trata-se de um erro sobre a matéria de facto e não sobre a subsunção desta ao respectivo tipo legal.

Se o tribunal a quo subsumiu de forma errónea os factos ao Direito não estamos perante o vício do artº 410º nº 2 al. c) do CPP.

E, se é necessário analisar e consultar os autos, mormente confrontar a prova produzida, por exemplo, através de depoimentos concretos para demonstrar o erro na formação da convicção do Tribunal a quo, também não estamos perante o vício da al. c) do nº 2 do artº 410º do CPP.
             
Não se vislumbrando apenas do texto do acórdão que o Tribunal a quo tenha violado qualquer regra da experiência comum, nem que se tenha estribado em pressupostos ilógicos, tendo exercido a livre apreciação da prova prevista no artº 127º do Código de Processo Penal, tem de se concluir que o acórdão recorrido não padece de qualquer erro notório na apreciação da prova.

Vejamos, agora, o último dos vícios anunciados a contradição insanável prevista na al. b) do nº 2 do artº 410º do CPP.

Entendem os arguidos que em relação aos ofendidos “II e UUU que o Tribunal no acórdão de 2021 referiu terem ido viver com os arguidos antes de 2007 e até 2011. Diz-se na fundamentação: «pois fechavam-nos à chave de noite e tal prolongou-se pelo menos por 10 longos anos» (cfr. página 27 do recurso, fls. 4192 dos autos).

Ora, e como já tivemos oportunidade de referir, o texto que merece a nossa atenção é o que consta do acórdão de Abril de 2024.

É absolutamente irrelevante o que consta do acórdão de 2021, nem o seu texto pode servir de ponto de comparação para analisar os vícios do artº 410º nº 2 CPP.

No acórdão que nos ocupa – de Abril de 2024 – não consta que os ofendidos II e UUU tivessem ido viver com os arguidos antes de 2007 e até 2011, sendo, assim, na óptica dos recorrentes, contraditório afirmar-se que foram consequentemente fechados à chave durante 10 longos anos.

No acórdão sob escrutínio consta do facto vertido em 14, em relação ao ofendido HH, e no facto vertido em 17, em relação à ofendida II que ambos foram viver com os arguidos no ano 2000, tendo o HH permanecido até Março de 2011 e a II até Novembro de 2011.

Pelo que a janela temporal de “10 longos anos” cabe perfeitamente naquelas datas não havendo qualquer contradição ou incongruência.

Por outro lado, afirmam os arguidos que “as contradições são de tal modo gritantes que é até difícil todas e cada uma” (cfr. página 27 do recurso, fls. 4192 dos autos).

Ora, e salvo o devido respeito, se as contradições são assim tão gritantes não haveria, seguramente, tanta dificuldade em as identificar.

Por outro lado, compete aos arguidos identificar todas as contradições e/ou incongruências que constam do acórdão recorrido pois é a si que compete o ónus de provar o que alega no seu recurso.

É certo que os vícios do artº 410º nº 2 do CPP são também de conhecimento oficioso mas – e à parte uma situação que infra identificaremos e que também foi suscitada pelos recorrentes – não vislumbramos as “gritantes contradições”, nem o seu elevado número que torne a tarefa de as identificar tão penosa.

Assim, a única contradição que vislumbramos, e é a única que os arguidos conseguem demonstrar, é a que resulta da conjugação dos factos vertidos em 3.2 e 39 com a fundamentação jurídica constante de fls. 4171 (segundo parágrafo).

Vejamos, recapitulando os referidos factos e a parte da fundamentação em referência, com sublinhado nosso das concretas partes em destaque.

3) 2) E, ainda, decidiram sujeitá-los ao seu domínio, controlo e total dependência, confiscando-lhes a documentação de identificação pessoal e bancária, exercendo sobre eles violência psicológica e física, reduzindo-lhes a liberdade ambulatória, obrigando ainda as mulheres aliciadas/aceites a trabalharem nas lides domésticas.
           
39) Actuaram com o propósito de sujeitar os ofendidos ao seu domínio e total dependência, para o que lhes confiscaram a respectiva documentação de identificação pessoal e a documentação relativa às contas bancárias por aqueles tituladas, exerceram sobre todos eles violência não só psicológica, incutindo-lhes medo e inquietação, mas também física, agredindo-os, fechando-os á chave, de noite, para lhes dificultar contra as suas vontades a liberdade ambulatória o que, quando em Espanha, era agravado pelo desconhecimento da zona, da língua e normas jurídicas e também agravado por não terem dinheiro, pois os mencionados arguidos se apoderavam das remunerações e agravado ainda e no caso da arguida KK também porque as 2ª e 3ª arguidos lhe diziam que caso fugisse ficaria sem a filha LL.
Sujeitaram ainda as ofendidas II e KK a trabalhar nas lides domésticas sem nada lhes pagarem, como sujeitaram ainda a menor LL a trabalhar como cuidadora da filha de tenra idade da coarguida DD.

Sendo que na motivação se diz:
Quanto aos ofendidos MM e NN, e vistos os factos provados, dúvidas não há quanto ao seu aliciamento, através de ardil (prometendo determinadas prestações que nunca quiseram cumprir como nunca cumpriram) e de aproveitamento da sua especial vulnerabilidade (mormente no caso do NN), com a especial resolução de os virem a explorar, como o fizeram , não recebendo quaisquer remunerações, sendo obrigados a trabalhar, ficando fechados á noite…Face á ausência de agressões físicas e face ao período de tempo em que perdurou a actuação, verifica-se com facilidade que estamos perante casos de gravidade bastante inferior ao dos ofendidos KK, II e HH e, destarte, que será de incluir no tráfico de pessoas e não na escravidão.

Ora, à primeira vista pode efectivamente parecer existir uma contradição insanável, pois parece que o Tribunal a quo ora entende que todos os ofendidos sofreram agressões físicas, perpetradas pelos arguidos, ora entende que em relação a dois dos ofendidos, o JJ e NN, não houve agressões físicas.

Contudo, uma análise mais aturada revela que a contradição não é insanável e resulta, seguramente, de mero lapso que é aqui corrigível nos termos do artº 380º nº 1 al. b) e nº 2 do CPP.
Vejamos.

A condenação efectuada pelo Tribunal a quo, no que tange a estas duas vítimas vai no sentido de considerar que as mesmas não foram vítimas do crime de escravidão, tanto mais que considerou a actuação perpetrada sobre as mesmas pelos primeiros três arguidos como sendo “casos de gravidade bastante inferior” precisamente porque não foram vítimas de agressões físicas a par do período temporal que permaneceram com os arguidos.

Motivo pelo qual, em relação a estes dois ofendidos o Tribunal a quo reconduziu a incriminação para o crime de tráfico de pessoas e não de escravidão.

O crime de escravidão ficou reservado para as vítimas II, KK e HH, em relação as quais o Tribunal a quo referiu a existência de violência física.

Conclui-se, assim, que a violência física não ter sido especificada em relação a todas as vítimas e apenas em relação a algumas, nos factos vertidos em 3.2 e 39 se deve a mero lapso, ou descuido na respectiva redacção.

Resultando, para nós claro, que o Tribunal a quo, no momento em que efectuou a subsunção jurídica dos factos aos respectivos tipos legais em causa, e no momento em que determinou as respectivas penas, considerou distinta a situação dos ofendidos JJ e NN precisamente devido à falta de agressões físicas.

Ora, nos termos do artº 380º do Código de Processo Penal, subordinado à epígrafe “correcção da sentença”:
“1 - O tribunal procede, oficiosamente ou a requerimento, à correcção da sentença quando:
a) Fora dos casos previstos no artigo anterior, não tiver sido observado ou não tiver sido integralmente observado o disposto no artigo 374.º;
b) A sentença contiver erro, lapso, obscuridade ou ambiguidade cuja eliminação não importe modificação essencial.
2 - Se já tiver subido recurso da sentença, a correcção é feita, quando possível, pelo tribunal competente para conhecer do recurso.
3 - O disposto nos números anteriores é correspondentemente aplicável aos restantes actos decisórios previstos no artigo 97.º” – sublinhado nosso

De notar ainda que o artº 426º do CPP no seu nº1 diz: “sempre que, por existirem os vícios referidos nas alíneas do n.º 2 do artigo 410.º, não for possível decidir da causa …”, ou seja, a regra é a de que a Relação só reenvia o processo se, efectivamente, não conseguir, de todo, sanar os vícios do nº 2 do artº 410º do CPP, o que não é o caso dos autos, pois o vício em apreço não assume a natureza de “insanável”, tratando-se, antes, de algo estranho ao pensamento do Tribunal a quo que é facilmente corrigível atento o texto e sentido do acórdão na sua globalidade.

Conforme se esclarece no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 15-10-2014:[15]
“Nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 380.º, n.º 1, alínea b), do CPP, o erro ou lapso manifesto - ostensivo, perceptível a qualquer pessoa de medianos conhecimentos - cuja eliminação não importe modificação essencial há-de decorrer do pensamento do julgador, a averiguar única e exclusivamente no contexto específico da sentença.”
           
Assim, procede-se à correcção dos apontados factos nos seguintes termos:

3) 2) E, ainda, decidiram sujeitá-los ao seu domínio, controlo e total dependência, confiscando-lhes a documentação de identificação pessoal e bancária, exercendo sobre eles violência psicológica e, em relação a alguns, também física, reduzindo-lhes a liberdade ambulatória, obrigando ainda as mulheres aliciadas/aceites a trabalharem nas lides domésticas.
           
39) Actuaram com o propósito de sujeitar os ofendidos ao seu domínio e total dependência, para o que lhes confiscaram a respectiva documentação de identificação pessoal e a documentação relativa às contas bancárias por aqueles tituladas, exerceram sobre todos eles violência psicológica, incutindo-lhes medo e inquietação, mas também em relação a alguns, física, agredindo-os, fechando-os á chave, de noite, para lhes dificultar contra as suas vontades a liberdade ambulatória o que, quando em Espanha, era agravado pelo desconhecimento da zona, da língua e normas jurídicas e também agravado por não terem dinheiro, pois os mencionados arguidos se apoderavam das remunerações e agravado ainda e no caso da arguida KK também porque as 2ª e 3ª arguidos lhe diziam que caso fugisse ficaria sem a filha LL.
Sujeitaram ainda as ofendidas II e KK a trabalhar nas lides domésticas sem nada lhes pagarem, como sujeitaram ainda a menor LL a trabalhar como cuidadora da filha de tenra idade da coarguida DD.

Não se vislumbra qualquer contradição ou incongruência com os factos vertidos em 3.1, 5 e 12 como entendem os arguidos pois nos mesmos não vem referida qualquer agressão física.

IV) Da Impugnação da Matéria de Facto:
                       
Os arguidos impugnam os factos vertidos em 1, 3.1, 3.2, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 37, 38, 39, 40, 41 e 42 do acórdão recorrido por entenderem que a prova que indicam leva a solução diversa, tendo o Tribunal a quo cometido erro de julgamento.

Vejamos.

A impugnação da matéria de facto segue o disposto no artº 412º nº3 do Código de Processo Penal que dispõe o seguinte:

“3. Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas.”

Tendo a prova sido gravada diz o nº 5 do citado artº 412º do CPP que “as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no nº 3 do artigo 364º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.”

Sendo que, nos termos do nº 6 do artº 412º do CPP “no caso previsto no nº 4, o tribunal procede à audição ou visualização das passagens indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa.”

No que se refere às declarações dos arguidos, aos depoimentos das testemunhas e à sua articulação com os documentos, vigora o princípio da livre apreciação da prova, nos termos do artº 127º do CPP, que assenta na inexistência de regras legais que atribuam valor específico, pré-determinado às provas, ou que estabeleçam alguma hierarquia entre elas e na admissibilidade de todos os meios de prova, em geral, desde que não incluídos nas proibições contidas no artº 126º do CPP, em sintonia com o princípio consagrado no art. 32º nº 8 da Constituição.
 
Assim, “O tribunal ad quem não procede a um novo julgamento, verifica apenas da legalidade da decisão recorrida, tendo em conta todos os elementos de que se serviu o tribunal que proferiu a decisão recorrida. Daí que também a renovação da prova só seja admitida em situações excepcionais e, sobretudo, o recorrente tenha que indicar expressamente os vícios da decisão recorrida” (Prof. Germano Marques da Silva, Registo da Prova em Processo Penal, Tribunal Colectivo e Recurso, in Estudos em Homenagem a Cunha Rodrigues, vol. I, Coimbra, 2001. No mesmo sentido, Ana Maria Brito, Revista do C.E.J., Jornadas Sobre a Revisão do C.P.P., pág. 390; Cunha Rodrigues, «Recursos», in O Novo Código de Processo Penal, p. 393).

“Por outro lado diremos também que, dependendo o juízo de credibilidade da prova por declarações do carácter e probidade moral de quem as presta e não sendo tais atributos apreensíveis, em princípio, mediante exame e análise da gravação áudio onde as mesmas se encontram documentadas, mas sim através do contacto com as pessoas, é evidente que o tribunal superior, salvo casos de excepção, deve adoptar o juízo valorativo formulado pelo tribunal a quo.
Ou seja, a convicção do julgador só pode ser modificada, pelo tribunal de recurso, quando a mesma violar os seus momentos estritamente vinculados (obtida através de provas ilegais ou proibidas, ou contra a força probatória plena de certos meios de prova) ou então quando afronte, de forma manifesta, as regras da experiência comum. Sempre que a convicção seja uma convicção possível e explicável pelas regras da experiência comum, deve acolher-se a opção do julgador, até porque o mesmo beneficiou da oralidade e imediação da recolha da prova.”[16]

Conforme se esclarece ainda no Acórdão da Relação de Lisboa (9ª secção) de 08-10-2015, proferida no procº nº 220/15.3PBAMD.L1-9, in dgsi.pt:
“III- O recurso em matéria de facto, não pressupõe uma reapreciação pelo tribunal de recurso do complexo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas apenas uma reapreciação sobre a razoabilidade da convicção formada pelo tribunal a quo, relativamente à decisão sobre os concretos pontos de facto que o recorrente considere incorrectamente julgado, fazendo referência expressa às concretas passagens/excertos das declarações, que, no seu entendimento, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas, na ausência de consignação na acta do início e termo das declarações, ou da renovação das provas nos pontos em que entenda que esta deve ocorrer;
IV- Não basta ao recorrente enunciar a sua pretensão quanto a um determinado resultado final em termos de facto ou de direito (v.g. da prova produzida não resultam provados os factos do tipo legal ou não se provou o crime, pelo que deve ser absolvido), de tal modo que fosse o tribunal superior, oficiosamente a retirar conclusões sobre quais os factos e provas concretas que se ajustariam à sua pretensão final e dentro destas, quais as passagens relevantes, depois de ouvir a prova gravada na íntegra, uma vez que o recurso da matéria de facto fundado em erro de julgamento não visa a realização, pelo tribunal “ad quem”, de um segundo julgamento, mas apenas a correção de erros relevantes (evidentes e óbvios) na apreciação e ou aquisição da prova produzida em sede de primeira instância.”

Por isso é que é absolutamente fundamental que no recurso interposto da matéria de facto, nos termos do artº 412º nº 3 do CPP, o recorrente identifique os concretos factos cuja alteração pretende e as concretas provas que impunham a requerida alteração, não cabendo a este Tribunal de recurso refazer o julgamento, ouvir toda a prova e voltar a decidir.
É que a alteração da matéria de facto em sede de recurso só deve ocorrer se, após cumprimento do disposto no artº 412º do CPP, o Tribunal de recurso constatar que o Tribunal a quo nunca poderia ter decidido como decidiu face à concreta prova produzida e tendo em atenção as regras da experiência comum, da lógica, etc.
Se apenas se constatar que o Tribunal a quo seguiu uma possível solução de entre várias possíveis interpretações válidas resultantes da prova produzida, então, deve ser dada prevalência à convicção do Tribunal a quo por ser o tribunal mais bem colocado para avaliar toda a prova atendendo ao princípio da imediação da prova.

Conforme se esclarece de forma clara no Acórdão da Relação de Guimarães de 23-03-2015:[17]
“I. O recurso visa apenas uma reapreciação autónoma da decisão tomada pelo tribunal a quo, circunscrita aos factos individualizados que o recorrente considere incorrectamente julgados, na base, para tanto, na avaliação das provas que impunham uma decisão diferente.
II. Tem-se entendido que impor decisão diferente quanto á matéria de facto provada e não provada (artigo 412º nº 3 alínea b) do CPP) não pode deixar de ter um significado mais exigente do que admitir ou permitir uma decisão diversa da recorrida.
III. Deste modo, se o tribunal de recurso se convencer que os concretos elementos de prova indicados pelo recorrente permitem ou consentem uma decisão diferente, mas que não a «tornam necessária» ou racionalmente «obrigatória», então deve manter a decisão da primeira instância tal como está.
IV. A circunstância de alguém, seja por erro de percepção ou por outro motivo, acabar por efectuar declarações inverosímeis ou contraditórias não significa necessariamente que seja falsa toda a sua narrativa, pelo que o tribunal não se encontra adstrito á inutilização de todo um depoimento ou declaração por uma incompletude ou por uma contradição com outros elementos probatórios.” – sublinhado nosso

Como afirma Paulo Pinto de Albuquerque na sua anotação ao artº 412º do Código de Processo Penal[18]:
“A especificação das «concretas provas» só se satisfaz com a indicação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova que impõe decisão diversa da recorrida. Por exemplo, é insuficiente a indicação genérica de um depoimento, de um documento, de uma perícia ou de uma escuta telefónica realizada entre duas datas ou a uma pessoa. Mais exactamente, no tocante aos depoimentos prestados na audiência, a referência aos suportes magnéticos só se cumpre com a indicação do número de «voltas» do contador em que se encontram as passagens dos depoimentos gravados que impõem diferente decisão, não bastando a indicação das rotações correspondentes ao início e ao fim de cada depoimento. (…)

Por fim, e como explicado de forma muito clara e compreensiva no Acórdão de Fixação de Jurisprudência do STJ nº 3/2012 de 08-03-2012 (in DR 1ª Série, nº 77 de 18-04-2012):

“Pede -se ao tribunal de recurso uma intromissão no julgamento da matéria de facto, um juízo substitutivo do proclamado na 1.ª instância, mas há que ter em atenção que o duplo grau de jurisdição em matéria de facto não visa a repetição do julgamento em segunda instância, não impõe uma avaliação global, não pressupõe uma reapreciação pelo tribunal de recurso do complexo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida e muito menos um novo julgamento da causa, em toda a sua extensão, tal como ocorreu na 1.ª instância, tratando-se de um reexame necessariamente segmentado, não da totalidade da matéria de facto, envolvendo tal reponderação um julgamento/reexame meramente parcelar, de via reduzida, substitutivo.
Esta limitação da capacidade cognitiva da matéria de facto por parte do Tribunal da Relação sempre esteve presente, como desde logo esclareceu o primeiro diploma legal onde se estabeleceu a documentação das declarações orais.
Com efeito, como foi afirmado no preâmbulo do Decreto -Lei n.º 39/95, de 15 de Fevereiro, «o objecto do 2.º grau de jurisdição na apreciação da matéria de facto não é a pura e simples repetição das audiências perante a Relação, mas, mais singelamente, a detecção e correcção de concretos, pontuais e claramente apontados e fundamentados erros de julgamento, o que atenuará sensivelmente os riscos emergentes da quebra da imediação na produção da prova (que, aliás, embora em menor grau, sempre ocorreria, mesmo com a gravação em vídeo da audiência)».
O Supremo Tribunal de Justiça tem reafirmado que o recurso da matéria de facto perante a Relação não é um novo julgamento em que a 2.ª instância aprecia toda a prova produzida e documentada em 1.ª instância, como se o julgamento não existisse, tratando-se antes de um remédio jurídico, destinado a colmatar erros de julgamento, que devem ser indicados precisamente com menção das provas que demonstram esses erros e não indiscriminadamente, de forma genérica, quaisquer eventuais erros. (…)
Como se refere no acórdão de 27 de Janeiro de 2009, processo n.º 3978/08 -3.ª «O julgamento efectuado pela Relação é de via reduzida, de remédio para deficiências factuais circunscritas, confinadamente a pontos específicos, concretamente indicados, não valendo uma impugnação genérica, repousando em considerações mais ou menos alargadas ou simplesmente abrangentes da leitura pessoal, unilateralista e interessada que os sujeitos processuais fazem das provas e do resultado a que devam chegar».
Os ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão em matéria de facto, a exemplo do que ocorria com o artigo 690.º -A, e actualmente do artigo 685.º -A do CPC e artigo 412.º, n.ºs 3 e 4, do CPP, decorrem dos princípios estruturantes da cooperação, lealdade e boa fé processuais, com vista a assegurar a seriedade do recurso e obviar que os poderes da Relação sejam utilizados para fins dilatórios.”

 Vejamos agora o recurso em causa.

Os recorrentes começam por invocar que “o Tribunal assume que determinada prova ocorreu com base em declarações da arguida EE …e esta fez uso do seu direito ao silêncio, quer em inquérito, quer no julgamento (não se percebe onde o Tribunal ouviu tal prova)” – cfr. página 45 do recurso, fls. 4201 dos autos.

Ora, analisando com cuidado a motivação dada pelo Tribunal a quo para fundamentar a matéria de facto, constata-se que apenas num pequeno parágrafo (o 4º de fls. 4160 vº) o Tribunal a quo diz o seguinte:
“Que a II fazia as lides domésticas foi admitido até pela arguida EE (referiu que «poderia ter pedido algumas vezes à II para fazer algumas lides domésticas – p. ex. varrer a cozinha») e confirmado pelo NN….”
Em mais parte alguma do acórdão ora sob escrutínio o Tribunal a quo faz referência a declarações que teriam sido prestadas pela arguida EE, sendo que começa por explicar que conjugou os vários elementos probatórios, que identifica, nos quais inclui as declarações prestadas pela 2ª arguida, a arguida BB.

E todas as referências que efectua a declarações de arguidos é unicamente às prestadas pela arguida BB.

Somos em crer que a singela referência à arguida EE se deve exclusivamente a lapso de escrita.

Entendem ainda os arguidos, no que tange à convicção do Tribunal a quo acerca da intenção dos arguidos em se apoderarem das quantias auferidas pelas vítimas que “apropriação ilegítima que o próprio Tribunal a quo duvida que tenha existido, pois na alteração dos factos efectuada no acórdão de 2021 o Tribunal não hesitou em cortar literalmente as expressões que a esse propósito havida decidido e que agora, repristinando-as fundamenta, sem crença, veja-se factos 11) e 12)” – cfr. página 96 dos recurso, fls. 4226 vº dos autos).

Sem prejuízo de tudo quanto temos vindo a referir acerca do objecto da nossa análise recair exclusivamente sobre o Acórdão de Abril de 2024, uma vez que os recorrentes apelam ao acórdão de Outubro de 2021 para atacar a convicção do Tribunal a quo em sede de impugnação da matéria facto operada nos termos do artº 412º do CPP, o que já não implica a mera análise do respectivo texto, iremos abordar esta objecção.

Assim, e salvo o devido respeito, os recorrentes laboram em erro uma vez que, as aparentes alterações nos factos vertidos em 11 e 12 do acórdão de 2021 traduzem meras alterações de português e de estilo, sem qualquer atentado à respectiva substância.

Vejamos.

No acórdão ora sob escrutínio (Abril de 2024) os factos vertidos em 11 e 12 têm a seguinte redacção:

11) Durante o período compreendido entre, pelo menos, o ano de 2000 até ../../2011, em execução do plano acordado e em comunhão de esforços e intentos, sempre com o propósito de se locupletarem com a retribuição auferida pelo trabalho das pessoas por si aliciadas e/ou aceites e/ou de não pagarem a remuneração devida pelos trabalhos prestados em seu (referidos arguidos) benefício e, assim, de obterem dinheiro fácil, os 1º, 2ª e 3ª arguidos agiram do modo supra descrito, pelo menos, com cinco cidadãos portugueses, tendo ainda actuado da forma que se descreverá quanto a uma menor do que beneficiou também a 4ª arguida.
Pelo menos em relação ao aliciamento de um dos ofendidos, os 1º, 2ª e 3ª arguidos actuaram mediante acordo e em comunhão de esforços, com os 5º e 6º arguidos nos termos referidos em 4), bem sabendo estes que nenhuma remuneração seria paga e que assim o referido ofendido ficaria prejudicado.
12) Os referidos ofendidos, aliciados ou aceites pelos referidos arguidos com o propósito de á custa deles se locupletarem foram:
a) HH (nascido em ../../1974 e titular do bilhete de identidade nº ...11), aceite pelo menos no ano de 2000 e até ../../2011;
b) II (nascida em ../../1971 e titular do bilhete de identidade nº ...29), aceite pelo menos em meados de 2000 e até ../../2011;
c) KK (nascida em ../../1976 e titular do bilhete de identidade nº ...86; é mãe de LL), aliciada desde meados de 2000 até ../../2011;
d) JJ (nascido em ../../1960 e titular do bilhete de identidade nº ...27), aliciado em Março/Abril de 2008 até Setembro/Outubro do mesmo ano;
e) NN (nascido em ../../1950 e titular do cartão de cidadão nº ...), aliciado pelo menos em Setembro e até Outubro de 2010.
Em relação a LL (nascida em ../../1997 e titular do bilhete de identidade nº ...28; é filha de KK), que permaneceu com eles desde meados de 2000 até ../../2011, actuaram da forma como se descreverá, do que beneficiou, também, a 4ª arguida.

No acórdão de Outubro de 2021 os factos vertidos em 11 e 12 têm a seguinte redacção (estando a negrito o que parece ter sido alterado):

11) Durante o período compreendido entre, pelo menos, o ano de 2000 até ../../2011, os 1º, 2ª, e 3ª arguidos, por si ou conjuntamente, em execução do plano acordado, sempre com os propósitos referidos em 3)1) e 3)2), agiram do modo supra descrito em 4) e 5), pelo menos, com cinco cidadãos portugueses, tendo ainda actuado da forma que se descreverá quanto a uma menor do que beneficiou também a 4ª arguida.
E, pelo menos em relação ao aliciamento de um dos ofendidos, actuaram mediante acordo e em comunhão de esforços, com os 5º e 6º arguidos.

12) Nessas circunstâncias, os referidos ofendidos, foram:
a) HH (nascido em ../../1974 e titular do bilhete de identidade nº ...11), aceite pelo menos no ano de 2000 e até ../../2011;
b) II (nascida em ../../1971 e titular do bilhete de identidade nº ...29), aceite pelo menos em meados de 2000 e até ../../2011;
c) KK (nascida em ../../1976 e titular do bilhete de identidade nº ...86; é mãe de LL), aliciada desde meados de 2000 até ../../2011;
d) JJ (nascido em ../../1960 e titular do bilhete de identidade nº ...27), aliciado em Março/Abril de 2008 até Setembro/Outubro do mesmo ano;
e) NN (nascido em ../../1950 e titular do cartão de cidadão nº ...), aliciado pelo menos em Setembro e até Outubro de 2010.
12.1) Em relação a LL (nascida em ../../1997 e titular do bilhete de identidade nº ...28; é filha de KK), que permaneceu com eles desde meados de 2000 até ../../2011, actuaram da forma como se descreverá, do que beneficiou, também, a 4ª arguida.

Ora, uma cuidadosa análise das duas versões revela, com clareza, que as mesmas mantêm a essência dos factos, tendo as aparentes alterações apenas a ver com sintaxe e português.

Veja-se que no facto vertido em 11 do acórdão que nos ocupa neste recurso se diz:
“..em execução do plano acordado e em comunhão de esforços e intentos… os 1º, 2ª e 3ª arguidos agiram do modo supra descrito…”

Enquanto que no facto vertido em 11 do acórdão de 2021 se diz:
“…os 1º, 2ª, e 3ª arguidos, por si ou conjuntamente, em execução do plano acordado…”

Acórdão recorrido:
“…sempre com o propósito de se locupletarem com a retribuição auferida pelo trabalho das pessoas por si aliciadas e/ou aceites e/ou de não pagarem a remuneração devida pelos trabalhos prestados em seu (referidos arguidos) benefício e, assim, de obterem dinheiro fácil…”

Acórdão 2021:
“…sempre com os propósitos referidos em 3)1) e 3)2), agiram do modo supra descrito em 4) e 5)…”

Sendo que nos termos dos factos vertidos em 3.1, 3.2, 4 e 5 se afirma:
3) 1) Desde data não concretamente apurada mas seguramente, pelo menos, desde o ano de 2000 os 1º, 2º e 3º arguidos decidiram, de comum acordo e em comunhão de esforços, como forma de obterem dinheiro fácil/lucros, explorar a força de trabalho de cidadãos portugueses, apoderando-se das remunerações correspondentes ao trabalho prestado pelos mesmos.
3) 2) E, ainda, decidiram sujeitá-los ao seu domínio, controlo e total dependência, confiscando-lhes a documentação de identificação pessoal e bancária, exercendo sobre eles violência psicológica e física, reduzindo-lhes a liberdade ambulatória, obrigando ainda as mulheres aliciadas/aceites a trabalharem nas lides domésticas.
4) Assim por norma, os arguidos referidos em 3) aliciavam eles próprios as referidas pessoas, em Portugal.
Nessa actividade, contaram pelo menos numa ocasião, com a participação, mediante acordo prévio e em conjugação de esforços, dos 5º e 6º arguidos.
Os referidos arguidos, na execução da aludida decisão, escolhiam pessoas com baixo nível de escolaridade e de qualificação profissional, por vezes com deficiências físicas, oriundas de grupos sociais desfavorecidos, que exerciam actividades indiferenciadas ou estavam desempregadas, sem retaguarda familiar e sem expectativas de melhoria das condições de vida, e abordando-as directamente, prometiam-lhes, assim as aliciando, trabalho, designadamente em Espanha e na
actividade agrícola, bem remunerado e com alimentação, alojamento e transporte gratuitos de e para os locais de trabalho.
5) Noutros casos, os 1º, 2ª e 3ª arguidos aceitaram pessoas em circunstancias não concretamente apuradas, mas sempre com as características supra mencionadas, ficando estas erroneamente convencidas pelos referidos arguidos, que assim o garantiram, que receberiam a remuneração devida.

E no facto vertido em 12 o que resulta do acórdão recorrido:
“Os referidos ofendidos, aliciados ou aceites pelos referidos arguidos com o propósito de á custa deles se locupletarem foram…”

Constando da versão do acórdão de 2021:
Nessas circunstâncias, os referidos ofendidos, foram:…”

Quais circunstâncias?
As concretizadas em 11, ou seja, o descrito em 3.1, 3.2 e 4.

Claro se torna ver que, ao contrário do afirmado pelos recorrentes o Tribunal a quo não duvida minimamente da imputada “apropriação ilegítima” não tendo, de forma alguma “cortado literalmente as expressões que a este propósito havia decidido e que agora, repristinando-as fundamenta, sem crença.”

Ora, feitos estes esclarecimentos específicos, e sem prejuízo de infra analisarmos em concreto um ou outro ponto controverso, o que resulta da motivação dos arguidos em termos gerais é que os mesmos discutem a convicção alcançada pelo Tribunal a quo por entenderem que a sua leitura da prova é mais válida.

Ou seja, da cuidada análise da impugnação da matéria de facto oferecida pelos recorrentes, o que salta à vista é o discorrer de páginas e páginas de argumentação cuja única finalidade é oferecer uma leitura alternativa sem, contudo, cumprir com o ónus previsto no artº 412º do CPP e que é a de demonstrar como é que a prova alternativa que oferece “impõe” decisão diversa.

O que os arguidos fazem é apresentar uma versão alternativa dos factos, assente na sua própria convicção, sem lograrem demonstrar em que medida a convicção do Tribunal a quo teria, forçosamente, de ser outra.

Veja-se, por exemplo, que o Tribunal a quo explicou de forma bastante extensa e clara, com recurso a exemplos, o motivo pelo qual não deu credibilidade às declarações da arguida BB no sentido que a mesma queria justificar a sua intervenção nos autos, e, no entanto, os recorrentes insistem no seu recurso que a sua versão dos factos deveria ter sido acolhida pelo Tribunal a quo, sem lograr demonstrar em que medida a não aceitação daquela versão, por parte deste, se mostra arbitrária, desprovida de lógica, despida de bom senso e, consequentemente, inválida.

O Tribunal a quo ouviu em primeira mão a arguida BB, beneficiando dos princípios da imediação e da oralidade, pôde aperceber-se de um manancial de elementos não verbais como olhares, expressões, tons de voz, hesitações, tiques, postura corporal, etc. etc. etc.

O mesmo se diga em relação às testemunhas ouvidas em sede de julgamento, mormente PP em relação a quem o Tribunal a quo explicou de forma bem clara e logicamente aceitável o motivo pelo qual não acolheu como verosímil o depoimento desta testemunha.

Ora, aos recorrentes compete demonstrar porque motivo racional e coerente o Tribunal a quo não poderia ter rejeitado este ou aquele depoimento.

Só assim, é que poderíamos falar em erro de julgamento porquanto o Tribunal a quo não teria avaliado de forma lúcida, racional e lógica determinado depoimento.

Por exemplo:
Se o Tribunal a quo se limita a dizer que não acreditou na testemunha A por que sim, ou porque não gostou do cabelo ou do casaco dessa testemunha, claramente se torna ver que estamos perante uma avaliação pessoal, meramente arbitrária e, consequentemente, em violação directa do disposto no artº 127º do Código de Processo Penal.

Contudo, explicando o Tribunal a quo os concretos motivos pelos quais, até em conjugação com a restante prova, não atribuiu credibilidade a determinada testemunha ou porque motivo só aceitou como verosímil parte do respectivo depoimento, a simples discordância dos recorrentes, não basta para se concluir ter havido erro de julgamento.

Mesmo que esta Relação, ouvindo a prova, tivesse uma leitura diferente da mesma, desde que a análise do Tribunal a quo se mantenha dentro do que é plausível, ou seja, desde que seja uma narrativa alternativamente aceitável, não há que considerar haver erro de julgamento, devendo prevalecer a leitura da prova efectuada pelo Tribunal a quo que dela beneficiou em primeira mão.

É certo que, parte da prova resulta de declarações para memória futura a que o Tribunal a quo não teve o benefício da oralidade e da imediação, contudo, lendo na íntegra as respectivas declarações – prestadas pelos ofendidos KK, JJ e a então menor LL – não se retiram as conclusões a que os arguidos chegam e que apenas revelam a sua própria leitura e a sua pessoal convicção.

Aliás, prova do que vimos afirmando é o simples facto dos arguidos impugnaram praticamente toda a matéria de facto, estando apenas de fora dessa impugnação os factos referentes aos resultados das buscas (factos vertidos em 28 a 36) –  constando dos autos toda a documentação apreendida – e os factos referentes às condições sociais (factos vertidos em 43, 44 e 45), fruto dos relatórios sociais.

Ou seja, os arguidos não impugnam concretos pontos que foram mal julgados, antes, pretendem a realização de um novo julgamento, por parte desta Relação, que abarque toda a matéria de facto que implica a condenação dos mesmos.

Não se trata de pedir a esta Relação uma análise cirúrgica e limitada a concretos pontos, mas uma análise nova e cabal de toda a prova, com recurso a argumentação despendida pelos recorrentes.

Assim, a não ser que os recorrentes consigam demonstrar que determinada conclusão, premissa ou silogismo efectuado pelo Tribunal a quo na construção do seu edifício lógico e no caminho por si percorrido para alcançar a sua convicção não é, de todo, viável ou normal, a simples oferta de argumentos que visam vincar uma leitura alternativa ou também plausível não chega.

E é isso que os recorrentes fazem: apresentam a sua leitura dos factos, oferecem uma possível argumentação sem conseguirem ferir de morte a convicção adiantada pelo Tribunal a quo porque igualmente válida.

Veja-se, por exemplo, que os recorrentes invocam as declarações da testemunha PP, sendo que em relação a esta testemunha o Tribunal a quo explicou porque motivo não valorou o seu depoimento naquilo que visava beneficiar os arguidos, tendo referido:

“PP, em grande medida (mas não completamente como já veremos) porque produziu um depoimento ostensivamente parcial, em favor dos arguidos (iniciou o depoimento dizendo que estes estavam a ser julgados «por uma injustiça», sendo indisfarçável a vontade de os beneficiar – referindo que o transporte para Espanha era feito em «carros dignos»! – e que a «BB ainda fazia muito pois que os alimentava aos Domingos», quando a alimentação fazia parte do prometido) e que se revelou por completo quando ao findar o seu depoimento deixou escapar que as suas «despesas de transporte ao tribunal são com o AA» [1º arguido].”

Argumentam os recorrentes que o depoimento desta testemunha é “um (dos) mais atacados na decisão recorrida em termos de credibilidade” (cfr. página 95 do recurso, fls. 4226 dos autos), contudo não conseguem oferecer um único elemento que permitisse impor uma leitura diversa dessa credibilidade, resultando da simples leitura da transcrição das respectivas declarações que a referida testemunha deixa, de facto, muitas dúvidas acerca da sua credibilidade e revela uma clara parcialidade na defesa dos arguidos, não se nos afigurando incorrecta a leitura encetada pelo Tribunal a quo.

Aliás, olhando as declarações que os recorrentes transcrevem da referida testemunha PP das mesmas não se consegue retirar qualquer conclusão que pudesse levar à alteração da matéria de facto nos termos pretendidos.

Porquanto, o facto da testemunha referir que recebia o seu vencimento por inteiro (mas para beber um café ou comprar tabaco tinha de pedir dinheiro ao 1º arguido) não invalida o facto do Tribunal a quo ter explicado que havia também trabalhadores, a par dos ofendidos, que tinham o estatuto próprio de trabalhador e que não estariam nas mesmas condições.

Aliás, a ofendida KK também o confirmou nas suas declarações para memória futura.

Como o simples facto dos arguidos também trabalharem na apanha da fruta ou nas outras actividades agrícolas não invalida, de forma alguma, a possibilidade de manterem um esquema em que explorassem os ofendidos, pois as duas realidades não só não são incompatíveis, como até se complementam, uma vez que permitiam aos arguidos o acesso aos patrões espanhóis e o consequente controlo exercido como intermediários entre aqueles e os ofendidos que se viam, assim, na completa dependência, de língua seguramente, nos arguidos, situação realçada pelo simples facto dos arguidos terem na sua posse toda a documentação espanhola relativa às vítimas.

Repare-se que, em relação a esta testemunha PP o Tribunal a quo tece a seguinte consideração que os arguidos não conseguem afastar no seu recurso:

“Em todo o caso, não deixou de referir que o dinheiro do trabalho era entregue ao AA e este, no final, é que o dividiria e que se, nesse entretanto, precisassem de dinheiro, teriam que pedir ao AA um «adiantamento para café e tabaco» – o que não deixa de confirmar parte do relato dos ofendidos (o dinheiro era entregue pelos patrões aos arguidos designadamente ao 1º - na fase do pagamento em numerário, claro está).”

Aliás, das declarações indicadas da referida testemunha PP resulta que este recebia a sua parte “em dinheiro”, contudo, a partir de determinada altura, conforme também resulta dos elementos objectivamente alcançados nos autos – mormente os elementos documentais que provam a existência de contas bancárias em nome dos ofendidos co-tituladas e/ou com autorização de movimentação pelos arguidos – os ofendidos recebiam o seu salário por transferência bancária, motivo pelo qual a referida testemunha PP nunca poderia saber se o 1º arguido entregava o dinheiro que recebia dos patrões espanhóis, em pé de igualdade, aos ofendidos.

Além de ter admitido que apenas esteve com os arguidos até 2008/2009, pelo que nunca poderia testemunhar factos posteriores a esta data.

Esta observação que aqui fazemos acerca da testemunha PP vale mutatis mutandis para a arguida BB, cujas declarações são amplamente contraditadas pela restante prova como infra veremos melhor.

Sendo que, na sequência de busca domiciliária, além de terem sido localizados e apreendidos documentos pessoais dos ofendidos, na posse dos arguidos, o ofendido JJ estava escondido debaixo de uma cama – cfr. foto de fls. 286 – sendo visível as condições desumanas em que os ofendidos eram albergados, pois as vítimas KK e II dividiam um estreito colchão fininho, assente directamente no chão e o ofendido JJ, no mesmo espaço, dormia num cobertor também assente no chão, num pequeno compartimento contíguo à cozinha (que a arguida BB classificou de “marquise”) e ao qual apenas se tem acesso pela cozinha onde estava a respectiva chave que, assim permitia fechar tal compartimento sem que os habitantes dela pudessem sair, dado que a outra porta existente em tal divisão, que abria para um pátio, encontrava-se trancada e sem chave – cfr. fotos de fls. 287 e 288
Afirmando a arguida BB, à pergunta do Sr. Juiz Presidente se a sua casa “tinha condições” que “sim, sim, sem dúvida alguma, sempre com boa casa de banho, com água quente, com toda a higiene”.

Quando foi notado pelo pessoal clínico que atendeu a ofendida KK quando esta, grávida, foi agredida pela arguida CC, que aquela se encontrava suja, cfr. notado pelo Tribunal a quo que referiu e que os recorrentes não impugnam:
“…o estado de desleixo extremo em que se encontrava a ofendida, e era de tal ordem que até impressionou a Enf. VV e por isso se lembrava tão bem do episódio, levando-a a falar em estado de «sujidade» (sic).”

Por outro lado, foi indicado o depoimento da médica de família SS, que, em 2009 também exerceu funções como Presidente da Câmara ..., que nada sabe acerca dos factos em discussão, excepto quanto ao isolado evento da ida da ofendida KK ao Hospital ... durante a sua gravidez e que infra veremos melhor, contudo a mesma terá referido que “nas visitas que as assistentes sociais fazem às casas[19]– os 1º, 2ª e 3ª arguidos, em Portugal, viviam ao tempo numa casa camarária[20] –  até (lhe) referiram sempre que as casas estavam muito limpas e cuidadas” o que só confirma que a ofendida KK executava bem as suas funções uma vez que era quem fazia as limpezas, a par das restantes lides domésticas, em casa dos 1ª, 2ª e 3ª arguidos, cfr. declarações por si e pela sua filha prestadas para memória futura.

Ora, feitas estas considerações gerais vejamos em concreto a prova oferecida pelos recorrentes e porque motivo a mesma, na sua esmagadora maioria, não pode levar à alteração da matéria de facto, nos termos propugnados.

Os recorrentes começam por impugnar os factos vertidos em 1, 3.1, 3.2, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10 e 13.

Recapitulemos estes factos:

1) Todos os arguidos são de etnia cigana e familiares entre si, sendo o arguido AA (doravante 1º arguido) marido da arguida BB (doravante, 2ª arguida) e estes progenitores dos arguidos CC (doravante, 3ª arguida), DD (doravante, 4ª arguida), AA (doravante, 7º arguido) e EE (doravante, 5ª arguida), a qual é companheira do arguido FF (doravante 6º arguido).
A arguida BB é vulgarmente conhecida pela alcunha de “XX”.
3) 1) Desde data não concretamente apurada mas seguramente, pelo menos, desde o ano de 2000 os 1º, 2º e 3º arguidos decidiram, de comum acordo e em comunhão de esforços, como forma de obterem dinheiro fácil/lucros, explorar a força de trabalho de cidadãos portugueses, apoderando-se das remunerações correspondentes ao trabalho prestado pelos mesmos.
3) 2) E, ainda, decidiram sujeitá-los ao seu domínio, controlo e total dependência, confiscando-lhes a documentação de identificação pessoal e bancária, exercendo sobre eles violência psicológica e física, reduzindo-lhes a liberdade ambulatória, obrigando ainda as mulheres aliciadas/aceites a trabalharem nas lides domésticas.
4) Assim por norma, os arguidos referidos em 3) aliciavam eles próprios as referidas pessoas, em Portugal.
Nessa actividade, contaram pelo menos numa ocasião, com a participação, mediante acordo prévio e em conjugação de esforços, dos 5º e 6º arguidos.
Os referidos arguidos, na execução da aludida decisão, escolhiam pessoas com baixo nível de escolaridade e de qualificação profissional, por vezes com deficiências físicas, oriundas de grupos sociais desfavorecidos, que exerciam actividades indiferenciadas ou estavam desempregadas, sem retaguarda familiar e sem expectativas de melhoria das condições de vida, e abordando-as directamente, prometiam-lhes, assim as aliciando, trabalho, designadamente em Espanha e na actividade agrícola, bem remunerado e com alimentação, alojamento e transporte gratuitos de e para os locais de trabalho.
5) Noutros casos, os 1º, 2ª e 3ª arguidos aceitaram pessoas em circunstancias não concretamente apuradas, mas sempre com as características supra mencionadas, ficando estas erroneamente convencidas pelos referidos arguidos, que assim o garantiram, que receberiam a remuneração devida.
6) As pessoas assim aliciadas e/ou aceites, convencidas da veracidade/seriedade de tal promessa/garantia, e por causa disso, acabavam por acompanhar os id. arguidos, que por norma, os transportavam, num primeiro momento, para as suas habitações em ... e/ou Alfândega ... e, posteriormente, para Espanha, utilizando para o efeito, veículos pertencentes ao arguido AA, e entre outros, o “...”, branco, com a matrícula (espanhola) “M .... UV” e o “...”, de cor ..., com a matrícula (espanhola) ....GFR.
As pessoas aliciadas e/ou aceites eram obrigadas a laborar todos os dias da semana, com excepão dos Domingos, enquanto duravam as atividades agrícolas (apanha da fruta, vindimas, desfolha, poda, azeitona…) e de igual modo nas obras, entre outras, da autoestrada, em Portugal e em Espanha.
Porém, no caso das mulheres, eram também obrigadas a trabalhar nas lides domésticas, na casa dos 1º e 2ª arguidos, e todos os dias da semana, sem excepção, salvo quando havia trabalhos agrícolas.
As pessoas aliciadas e/ou aceites, caso ainda não o tivessem feito antes de iniciar a viagem até aí, eram obrigados a entregar toda a documentação de identificação pessoal que possuíssem aos identificados arguidos (1º, 2º e 3º), que depois estes mantinham retidas na sua posse e à sua guarda.
7) Para a realização das campanhas agrícolas, quer em Portugal (em Alfândega ... e concelhos limítrofes), quer em Espanha, designadamente em ..., ..., ..., e nas províncias de ..., ..., ..., ... e ..., as pessoas aliciadas e/ou aceites eram transportadas pelos 1º e/ou 3ª arguidos nos veículos referidos e noutros e frequentemente ficavam alojados nas quintas (“fincas/bodegas”) dos patrões ou então, na residência que os 1º e 2º arguidos possuíam em ..., Espanha, sendo-lhes então proporcionado o transporte de ida e volta aos locais de trabalho.
8) Nas quintas as pessoas aliciadas e/ou aceites eram vigiadas pelo 1º arguido, que estabelecia contactos com os patrões/donos daquelas, recebendo a remuneração por estes paga e entregue ao referido arguido, como contrapartida do trabalho daquelas pessoas e a quem deveria ser entregue, em montante não inferior a 6 ou 7 contos/dia por cada uma e por vezes em montante mensal de cerca de 1.300 €.
9) Sucede, porém, que a remuneração assim entregue ao 1º arguido, que deveria ser entregue ás referidas pessoas como contrapartida do trabalho prestado, era retida pelos 1º, 2º e 3º arguidos, que a faziam sua, em execução do propósito delineado, integrando-a no seu património e causando prejuízo ás pessoas que trabalhavam, desde logo em montante correspondente a tais remunerações.
De igual forma, o trabalho prestado nas lides domésticas e que era diário (salvo quando havia trabalhos agrícolas) não era remunerado pelos arguidos em referência, que assim enriqueciam com as quantias poupadas e inversamente prejudicavam as que o prestavam com o não recebimento da respectiva contrapartida.
10) As pessoas aliciadas e/ou aceites não dominavam a língua espanhola, desconhecendo em absoluto as respetivas normas jurídicas.
13) Os ofendidos supra aludidos em a) a e) não tinham retaguarda familiar, atravessando dificuldades financeiras, encontrando-se desempregados ou a exercer atividades laborais indiferenciadas, nomeadamente na agricultura e na construção civil e não tinham perspetivas de qualquer evolução positiva.
Ficaram convencidos pelas promessas/garantias dos referidos arguidos, e por isso foram trabalhar, que se trataria de uma boa oportunidade para melhorarem a sua situação económica e as suas condições de vida.

Em relação ao facto vertido em 1) insurgem-se os recorrentes no que tange à referência à etnia cigana, afirmando que, à excepção da 2ª arguida BB os restantes arguidos são caucasianos.

Sem prejuízo de se alterar esta referência a verdade é que, não só não se retira, com segurança, das fotografias a cores juntas aos autos dos 1º, 2ª, 3ª e 4ª arguidos que os mesmos não possam ser de etnia cigana, como os próprios recorrentes confessam que a 2ª arguida será desta etnia, pelo menos em parte, o que significa que, pelo menos os seus filhos biológicos também o serão, ou seja, os 3ª (CC), 4ª (DD), 5ª (EE) e 7º (AA) arguidos.

Por outro lado, consta ao longo dos autos, desde a primeira participação efectuada pelo ofendido HH, a caracterização dos arguidos como sendo de etnia cigana.

Contudo, não sendo a referência à etnia cigana um facto necessário para a qualificação dos factos de índole penal, nem um qualquer pressuposto da punibilidade, sendo desnecessária para o que se discute nos autos, entende-se que tal referência deve ser retirada do facto vertido em 1, o qual passará a ter a seguinte redacção:

1) Todos os arguidos são familiares entre si, sendo o arguido AA (doravante 1º arguido) marido da arguida BB (doravante, 2ª arguida) e estes progenitores dos arguidos CC (doravante, 3ª arguida), DD (doravante, 4ª arguida), AA (doravante, 7º arguido) e EE (doravante, 5ª arguida), a qual é companheira do arguido FF (doravante 6º arguido).
A arguida BB é vulgarmente conhecida pela alcunha de “XX”.

Em relação ao facto vertido em 3.2 já tivemos ocasião de referir, aquando da análise dos vícios do acórdão e, mormente o previsto na al. b) do nº 2 do artº 410º do CPP, que este facto deve sofrer uma correcção que aqui novamente transcrevemos:

3) 2) E, ainda, decidiram sujeitá-los ao seu domínio, controlo e total dependência, confiscando-lhes a documentação de identificação pessoal e bancária, exercendo sobre eles violência psicológica e, em relação a alguns, também física, reduzindo-lhes a liberdade ambulatória, obrigando ainda as mulheres aliciadas/aceites a trabalharem nas lides domésticas.

Em relação aos restantes factos indicados supra (3.1, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10 e 13) os recorrentes oferecem as declarações prestadas pela 2ª arguida BB quando essas declarações foram julgadas não credíveis pelo Tribunal a quo, sendo certo que os recorrentes também não conseguem demonstrar em que medida as mesmas deveriam ter sido positivamente valoradas.

Repare-se que as declarações da arguida BB, transcritas no recurso, são em inúmeros pontos frontalmente contraditadas pelas declarações da ofendida KK, contradições que os próprios recorrentes detectaram mas que tentaram desconsiderar.

Vejamos.

A arguida BB disse, em relação à forma como a KK passou a estar consigo e restantes arguidos, que “foi a minha filha que a apresentou”, referindo-se à 3ª arguida CC.

Contudo, a ofendida KK, nas suas declarações para memória futura – fls. 2103, 2104 e 2133 – diz claramente que foi abordada, em ..., pelos arguidos BB, EE e FF e que não os conhecia antes.

Sendo notória esta discrepância entre o discurso da arguida BB e o depoimento da ofendida KK, vêm os recorrentes no seu recurso (cfr. página 68, fls. 4212 vº) adiantar o seguinte raciocínio:
“Quanto à própria KK esta refere que foram a arguida, seu marido e filha EE e marido desta, que se deslocaram à sua casa em ... e a questionaram se não gostaria de ir trabalhar com eles, mas também confirma que costumava trabalhar nas «jeiras» e que era conhecido no meio que ela queria mudar de vida, sair dali, arranjar outro emprego. Portanto, mesmo não o tendo referido, muito provavelmente por não se recordar, é verosímil que tenha comentado este facto com a outra filha da arguida, a CC.” – negrito nosso

Além de presumirem que a ofendida ter-se-ia “esquecido” de ter falado com a arguida CC, o que só de si revela que não oferecem prova que imponha uma alteração na matéria de facto concretamente impugnada, da cuidada leitura das declarações da ofendida KK se retira que a mesma afirmou não ter conhecido nenhum dos arguidos em momento anterior, pelo que não poderia ter falado com a arguida CC, conforme afirmou a arguida BB nas suas declarações.

Nega a arguida BB que jamais impediu a ofendida KK de se ir embora, mormente ameaçando-a que ficaria com a filha menor, a ofendida LL, contudo o que resulta das declarações da ofendida KK é precisamente o contrário, tendo a mesma referido que, pese embora nos primeiros quatro anos de convivência com os arguidos (sensivelmente entre 2000 e 2004) e até o arguido AA se ter ido embora, manteve-se com os 1º, 2ª e 3ª arguidos porque nutria afecto pelo mesmo, contudo e já depois queria ir-se embora e as arguidas BB e CC não a deixaram usando a filha menor como trunfo.

De notar que a ofendida KK até terá prestado declarações numa situação pouco confortável, pese embora não estivessem presentes os arguidos, a mesma ter-se-á sentido constrangida com a presença da ilustre mandatária dos mesmos, como se retira de fls. 2117 e 2118 em que o Sr. Juiz de Instrução Criminal sente a necessidade de dizer:

“Não esteja a olhar sempre para a Senhora Doutora que a Senhora Doutora não faz mal a ninguém. A Senhora Doutora está ali, é boa pessoa, não faz mal a ninguém. Fale à vontade, a senhora fale a vontade.”

Ao que a ilustre mandatária dos arguidos informou:
“A senhora conhece-me Senhor Doutor. Temos aqui este problema, não é?”

Tendo o Mmº. JIC dito:
“Está bem, mas por isso é que pode estar constrangida. Está sempre a olhar. Sempre que diz uma coisa qualquer está a olhar.”
Tendo a ilustre mandatária dos arguidos clarificado que:
“Já esteve comigo numa situação há uns anos em que estava muita polícia.”

Afirmam ainda os recorrentes, com base apenas nas declarações da arguida BB, que esta nega alguma vez ter conversado ou delineado qualquer plano ou acordo com o seu marido (1º arguido) e filha CC (3ª arguida).

Salvo o devido respeito, a co-autoria e conjugação de esforços colectivos não obriga à existência de um acordo verbal, previamente delineado e acertado ao pormenor.

Basta o apertado relacionamento familiar, claramente, existente entre os 1º, 2ª, 3ª, 4ª, 5ª e 7ª arguidos, trabalhando todos para o mesmo fim, através do mesmo modus operandi em conjugação de actividades, sendo que os arguidos perseguiam o mesmo tipo de trabalho e actuavam como uma unidade familiar, sendo de notar que todos os arguidos vivem no mesmo Bairro ..., ..., 2ª, 3ª e 7º arguidos na casa nº ....

Perseguiam, no fundo, um mesmo projecto de vida, entreajudando-se.

Sendo jurisprudência pacífica – da qual destacamos a título meramente exemplificativo o Acórdão do STJ de 06-10-2004 consultável em: http://www.gde.mj.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/cc01fff10f9c53df802571b9004f67da) – que o acordo pode ser tácito, bastando uma adesão dos restantes co-autores.

Continuando.

 Já no julgamento, a instâncias do Sr. Juiz Presidente a arguida BB negou alguma vez conhecer OO, um dos possíveis ofendidos indigitados no inquérito, contudo, na sequência de busca domiciliária, foi encontrado dentro de uma mesa de cabeceira do quarto de dormir dos 1º e 2ª arguidos (AA e BB), o bilhete de identidade desta pessoa, cfr. fls. 308 do segundo volume dos autos.

Como também referiu que foi o ofendido JJ que a terá procurado a ela e ao marido para arranjar um trabalho, quando, das declarações para memória futura do referido JJ consta o oposto, ou seja, teriam sido os arguidos a procurá-lo para o aliciarem a trabalhar – cfr. fls. 2085 vº.

Mas se as declarações da arguida BB são, de um modo geral, negadas pela prova testemunhal indicada, bem como também pela prova documental junta aos autos, que revela à saciedade a posse dos documentos pessoais das pessoas que consigo coabitavam, não deixam, contudo, de trair as verdadeiras intenções, pelo menos, dos  1º, 2ª e 3ª arguidos.

Veja-se que os recorrentes impugnam os factos vertidos em 4 e 13, os quais se referem, precisamente, à escolha por parte dos arguidos de pessoas desfavorecidas, desempregadas, sem rectaguarda familiar, emfim, pessoas carenciadas a vários níveis e consequentemente vulneráveis, com uma propensão para serem facilmente subjugados.

Contudo é a própria arguida BB que admite que:
- aceitaram a ofendida II porque esta lhe pediu que a acolhesse por ter sido expulsa de casa pelo seu marido;
- aceitaram a ofendida KK porque “tinha uma menina pequenininha, e segundo dizia tinha muitas más relações com o «marido», com o homem que estava, que levava muito má vida e que não lhe dava nada e passava fome”;
- aceitaram o ofendido JJ porque este estava desempregado e pediu-lhes ajuda;
- aceitaram o ofendido NN porque este estava desempregado e encontrando-se num retiro chamado ... ou qualquer coisa assim “numa casa de toxicodependência”.

Em relação à II é ainda de notar do bilhete de identidade dela (cuja fotocópia está junta a fls. 384), do comprovativo do pedido do cartão de cidadão, junto a fls. 376, bem como das declarações prestadas perante a PJ em ../../2011 (fls. 457), que a mesma não sabia assinar o seu nome, o que só reforça a sua vulnerabilidade.

E quanto ao ofendido HH, embora os recorrentes tenham tentado demonstrar, através das declarações prestadas pelo ofendido NN que este, quando se referia ao “manco” não estava a referir-se ao HH, pois sabia o nome deste e não se lembraria do nome do manco, olhando essa parte do depoimento na sua plenitude, e não apenas naquilo que os recorrentes quiseram focar, temos de concluir, ao contrário do pretendido pelos recorrentes, que o referido NN se referia, de facto, ao HH, porquanto, embora num primeiro momento tivesse referido que não sabia o nome do “manco” o mesmo disse que o manco era “esse de Lisboa” e o “tal de Lisboa mas estava aqui no Porto”.

Ora, o ofendido NN foi claro ao identificar o HH, em momento prévio, como sendo de Lisboa e que era “o rapaz que estava aqui na cidade ...”, pelo que, se logo a seguir diz, em relação ao manco “esse de Lisboa mas estava aqui no Porto” claramente se está a referir à mesma pessoa.
Sendo que o ofendido NN ainda referiu, em relação ao HH, que “ele dormia, até aí acho na rua”.

Não pode haver a menor dúvida que todas estas pessoas – KK e sua filha LL, JJ, HH e NN – apresentavam fragilidades a vários níveis, o que as tornava vulneráveis e alvos fáceis, e até explica porque em algumas situações, aparentemente bizarras, como é o caso da KK, que logo de início, em 2000, querendo vir-se embora e porque lhe “começaram a bater”, não se atreveu, acabando por ficar porque depois se enamorou do arguido AA, e no caso do JJ, que tendo já se afastado num primeiro momento sabendo que tinha sido enganado e não pago os valores devido, acabou por voltar para o mesmo porque gostava da KK, os ofendidos acabaram todos por se submeter à vontade, pelo menos dos 1º, 2ª e 3ª arguidos, ficando sem dinheiro, sujeitos às vontades daqueles sem aparente força de vontade de se rebelar.

Estamos claramente perante o cenário clássico de uma vítima que não tem vontade própria e se submete à vontade de terceiro que até qualifica de “bonzinho” por a proteger e alimentar.

É o caso da KK que nas suas declarações deixa transparecer, não só uma certa fragilidade intelectual, a par da emocional, mas cuja história de vida – que os recorrentes bem conhecem como revelaram no seu recurso – é deveras triste, pois a mesma engravida do padrasto, e embora admitisse que não foi uma relação forçada, a mesma acabaria por ficar destinada a estar num anexo sem água nem luz, conforme referiu nas suas declarações com uma bebé pequena e sem perspectivas laborais.

Nem mesmo a sua filha, LL, a KK pôde criar em plenitude como resulta das suas declarações para memória futura (bem como as da própria menor LL) e, pese embora, a ilustre mandatária dos arguidos tenha tentado demonstrar, em tal inquirição, que a KK é que não seria boa mãe, que não se interessaria pela filha, o que nós retiramos das referidas declarações é que as arguidas BB e CC se apoderaram da criança, não sendo de estranhar que a KK não pudesse ter muito tempo junto da filha, para ser mãe, pois, ou estava nos trabalhos agrícolas ou estava nas lides domésticas, tendo a arguida BB assumido o comanda das coisas.

Aliás, a ofendida KK referiu, em relação às arguidas BB e CC que elas lhe disserem: “que se um dia fosse embora nunca levava a LL comigo, que nunca me pertencia a LL”, tendo ainda reiterado junto do Mmº JIC que “eu só estive estes anos todos em casa dela por causa da LL” – cfr. fls. 2128.

Por isso, se por um lado não espanta porque motivo a LL até possa chamar a arguida BB de avó –  o que de per se já é revelador de um apoderamento, por parte da 2ª arguida, de uma relação de parentesco que de todo não existia e que muitas vezes se vê nos casos de alienação parental –  por outro lado, tal só revela que a dependência que foi criada na mesma e na sua mãe KK – talvez, por isso, ainda hoje, do que nos apercebemos em sede de audiência, a KK terá voltado, mais uma vez, a viver com os arguidos – é sintomático da forma como este tipo de relacionamento opera entre vítima e agressor.

É uma situação frequentemente detectada nos crimes de violência doméstica em que a vítima, mesmo apesar dos maiores maus tratos e humilhações, não consegue separar-se definitivamente do agressor, e até o defende se for preciso, transferindo para si o peso de uma culpa que não lhe pertence.

Por vezes opera-se uma espécie de simbiose entre agressor/dominador e vítima, esta, a qual, por puro mecanismo subconsciente de sobrevivência, acaba por procurar justificação nas atitudes do agressor, aceitando que o que este faz é bom e para o seu bem, como se vê com facilidade do discurso da KK quando esta diz que não pedia o dinheiro do seu trabalho porque os arguidos a alimentavam e a albergavam quando a comida e dormida fazia parte, a par do pagamento do salário – seis mil escudos diários – do “proposto” pelos primeiros três arguidos.

Ou que, tomavam conta da sua filha, a ofendida LL, esquecendo a KK que se era mantida a trabalhar dentro e fora de casa pelos arguidos, alguém teria de cuidar da sua criança e que os arguidos não lhe estavam a fazer qualquer favor até porque ficavam com os abonos de família da criança, cuja existência sabiam quando procuraram a KK num dos seus momentos difíceis.

Note-se que a 2ª arguida, cerceando a menor – esta diz claramente nas suas declarações para memória futura que a mãe “estava quase sempre a trabalhar” (cfr. fls. 2171) e que “tomavam elas conta de mim porque a minha mãe ia a trabalhar” (cfr. fls. 2170 vº) – acabou por forjar uma dependência afectiva na menor, em relação à qual a mãe da mesma, a KK, não podia participar, sendo até notável que, podendo a ofendida KK dormir com a filha, dada a exiguidade das condições de habitação dos arguidos na casa em ..., o que até seria normal e expectável, é posta a dormir com a II num pequeno colchão fino no chão, estando a menor LL colocada junto das filhas da 2ª arguida.

É certo que a ofendida KK referiu que fazia as lides domésticas porque queria, no fundo, para agradar ao AA mas isso não explica porque motivo continuou a executar tais tarefas quando o AA se foi embora, logo nos primeiros anos.

E se as coisas não corriam mal, até ao momento em que as 2ª e 3ª arguidas descobriram que a mesma estava grávida do HH, companheiro da DD, tal só se deve à passividade da vítima que, submetendo-se por completo ao seu cativeiro, nem sequer questionava nada.

É verdadeiramente revelador desse estado de total apatia e co-dependência as declarações da ofendida KK quando esta responde às seguintes perguntas do Mmº JIC.

JIC: “Olhe, e você podia sair à rua? Passear como queria?”
KK: “Não. À rua não.”
JIC: “Não podia?”
KK: “Não, pra rua eu só ia estender a roupa. Mais nada.”
JIC: “E nunca saía de casa’”
KK: “Com eles.”
JIC: “Mas se quisesse sair sozinha, saía?”
KK: “Nunca saí.”
JIC: “Porque nunca quis ou porque não deixavam?”
KK: “Aí, isso não sei…Nunca…Eu nunca perguntei nada disso. Quando eles saíam eu saía. Agora se podia sair sozinha à rua ou não nunca perguntei nada.”

“A Síndrome de Estocolmo, também conhecida como Vinculação Afetiva de Terror ou Traumática, é um estado psicológico em que vítimas desenvolvem um relacionamento com seu raptor. Essa identificação afetiva é uma forma de afastá-la emocionalmente da realidade violenta à qual está submetida e também de ganhar a simpatia do sequestrador, podendo até mesmo resultar em amizade ou amor. Em alguns casos, a vítima acaba ajudando o raptor a alcançar seus objetivos, como fugir da polícia. No entanto, a vítima não se torna totalmente alheia à situação, buscando escapar em algum momento.”[21]

Embora não se possa falar de uma situação de rapto no caso dos autos, os contornos do cativeiro e subjugação a que vítimas, como a KK e JJ, se sujeitaram são reveladoras de um estado de submissão fruto de fragilidades psicológicas, emocionais e culturais que incutiram nas vítimas uma incapacidade de se auto-organizarem e de verem, consequentemente, no agressor/dominador uma espécie de salvador a quem tudo é justificável.

Constata-se, com clareza, que as declarações da arguida, ao contrário do pretendido pelos recorrentes, em nada permitem alterar a matéria de facto indicada.

Assim, e à excepção dos factos vertidos em 1 e 3.2, tem de improceder a impugnação dos factos vertidos em 3.1, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10 e 13, contudo, em relação ao 13 que remete para o 12, e na medida em que remete para este facto, como infra veremos terá de se efectuar uma pequena alteração ao facto vertido em 13.

Vejamos agora os restantes factos – 11, 12, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 37, 38, 39, 40, 41 e 42 – que os recorrentes também impugnam, aqui os recapitulando.

11) Durante o período compreendido entre, pelo menos, o ano de 2000 até ../../2011, em execução do plano acordado e em comunhão de esforços e intentos, sempre com o propósito de se locupletarem com a retribuição auferida pelo trabalho das pessoas por si aliciadas e/ou aceites e/ou de não pagarem a remuneração devida pelos trabalhos prestados em seu (referidos arguidos) benefício e, assim, de obterem dinheiro fácil, os 1º, 2ª e 3ª arguidos agiram do modo supra descrito, pelo menos, com cinco cidadãos portugueses, tendo ainda actuado da forma que se descreverá quanto a uma menor do que beneficiou também a 4ª arguida.
Pelo menos em relação ao aliciamento de um dos ofendidos, os 1º, 2ª e 3ª arguidos actuaram mediante acordo e em comunhão de esforços, com os 5º e 6º arguidos nos termos referidos em 4), bem sabendo estes que nenhuma remuneração seria paga e que assim o referido ofendido ficaria prejudicado.
12) Os referidos ofendidos, aliciados ou aceites pelos referidos arguidos com o propósito de á custa deles se locupletarem foram:
a) HH (nascido em ../../1974 e titular do bilhete de identidade nº ...11), aceite pelo menos no ano de 2000 e até ../../2011;
b) II (nascida em ../../1971 e titular do bilhete de identidade nº ...29), aceite pelo menos em meados de 2000 e até ../../2011;
c) KK (nascida em ../../1976 e titular do bilhete de identidade nº ...86; é mãe de LL), aliciada desde meados de 2000 até ../../2011;
d) JJ (nascido em ../../1960 e titular do bilhete de identidade nº ...27), aliciado em Março/Abril de 2008 até Setembro/Outubro do mesmo ano;
e) NN (nascido em ../../1950 e titular do cartão de cidadão nº ...), aliciado pelo menos em Setembro e até Outubro de 2010.
Em relação a LL (nascida em ../../1997 e titular do bilhete de identidade nº ...28; é filha de KK), que permaneceu com eles desde meados de 2000 até ../../2011, actuaram da forma como se descreverá, do que beneficiou, também, a 4ª arguida.
Assim:
14) Pelo menos em meados do ano de 2000, após contacto ocorrido em circunstâncias não concretamente apuradas, os 1º e 2ª arguidos, sabedores da situação da má situação económica e total falta de perspectiva de trabalho em que se encontrava o HH (doravante HH) e disso se aproveitando, garantiram-lhe que receberia uma remuneração, em montante não inferior a 7 contos/dia, com direito a alojamento, refeições e transporte gratuito de e para os locais de trabalho.
Com tal garantia e face à situação em que se encontrava o HH, os 1º e 2º arguidos convenceram-no a ir com eles para Alfândega ... e Espanha, para aí trabalhar na agricultura, designadamente nas vinhas, em ..., ..., ... (Espanha) e nas obras da autoestrada em ....
Desde pelo menos meados de 2000 até ../../2011, HH executou por conta dos 1º, 2ª e 3ª arguidos ou de terceiros e sempre sob as ordens daqueles arguidos, todo o tipo de trabalhos, quer agrícolas, em Portugal, designadamente nas regiões de Alfândega ... e ... e em Espanha, nas províncias de ..., ..., ..., ..., ..., nas vinhas em ..., ..., ..., Espanha para onde se deslocavam frequentemente para realizar as campanhas das vindimas (entre setembro e outubro), da poda (de dezembro a março), da desfolha (entre março a julho) e da apanha da fruta (entre junho a agosto), quer nas obras, designadamente de construção da autoestrada de ....
Nunca recebeu qualquer tipo de remuneração ou contrapartida pelo trabalho que prestava a qual, invariavelmente, era retida e apropriada pelos 1º, 2º e 3º arguidos.
15) Também no ano de 2000, os 1º e 2º arguidos, em comunhão de vontades e forças com os 5º e 6º arguidos, através da promessa de um trabalho bem remunerado, com boas condições de alojamento, alimentação e transporte gratuito de e para os locais de trabalho, e tendo perfeito conhecimento da situação económica difícil em que KK se encontrava, tanto mais quanto tinha uma filha, LL, à data, apenas com cerca de dois anos de idade, e disso se aproveitando, convenceram-na a acompanhá-los até Alfândega ... para trabalhar na agricultura na região de ... e em Espanha (designadamente, em ... e ...), mediante o pagamento de boa remuneração, de 6 contos/dia, incluindo alojamento, alimentação e transporte.
Assim convencida que as condições de trabalho propostas pelos referidos arguidos se concretizariam, acedeu acompanhá-los, em direção à habitação daqueles, em Alfândega ..., onde permaneceu a trabalhar diariamente de manha à noite nas lides domésticas (limpando a casa, lavando e passando a roupa, arrumando, cozinhando, passando a ferro…), salvo as épocas em que ia para os trabalhos agrícolas, quer na região do nordeste transmontano, quer em Espanha para onde se deslocava frequentemente, não recebendo qualquer remuneração, nem a que era paga por terceiros para quem também trabalhava na agricultura, por os arguidos dela se apoderarem não lha entregando, nem a que lhes era devida pelos trabalhos que prestava, mormente nas lides domésticas, por os 1º, 2º e 3º arguidos também não lha pagarem, o que sucedeu até ../../2011, data em que foi resgatada na sequência de uma intervenção policial.
16) Quando completou o 6º ano de escolaridade, a LL foi retirada da escola pela 2ª arguida, passando a estar obrigada a cuidar e tratar da filha ainda menor da arguida DD, YY, nascida a ../../2010.
Além disso, a LL era beneficiária da prestação social do abono de família, mas cujo montante nunca recebeu efetivamente, uma vez que os 1º, 2º e 3º arguidos dele se apoderaram todos os meses.
Para o efeito, e porque os 1º, 2º e 3º arguidos haviam imposto á KK que a 2º arguida fosse autorizada a movimentar a conta bancária “Banco 1...” de Alfândega ..., onde eram depositados os valores pagos a título de abonos, a referida arguida procedia ao levantamento das respectivas quantia em benefício daqueles, nunca tendo entregue qualquer quantia monetária àquela ofendida.
Assim, entre ../../2007 e ../../2011, levantou em seu benefício e da sua família, quantia superior a 2.110 € correspondente aos abonos pagos, apesar de obrigar a menor a trabalhar cuidando da neta, nos termos vistos.
17) No ano de 2000, após contacto ocorrido em circunstâncias não concretamente apuradas, os 1º, 2º e 3º arguidos, sabedores da má situação económica e total falta de perspectiva de trabalho, em que se encontrava a II e disso se aproveitando, garantiram-lhe que receberia uma remuneração, cujo montante não foi possível apurar, mas não inferior a 6 contos/dia, com direito a alojamento, refeições e transporte gratuito de e para os locais de trabalho.
Assim convencida que as condições de trabalho garantidas referidos arguidos se concretizariam, acedeu acompanhá-los, em direção à habitação daqueles, em Alfândega ....
Passou a fazer os trabalhos agrícolas, quer na região do nordeste transmontano, quer em Espanha para onde se deslocava frequentemente, e nas lides domésticas, não recebendo qualquer remuneração, nem a que era paga por terceiros para quem também trabalhava na agricultura, por os 1º, 2º e 3º arguidos dela se apoderarem não lha entregando, nem a que lhes era devida pelos 1º, 2º e 3º arguidos pelos trabalhos que lhes prestavam, mormente nas lides domésticas, por estes também não lha pagarem, o que sucedeu até ../../2011.
18) Em meados de 2008, os 1º e 2º arguidos, sabedores da falta de retaguarda familiar de JJ (doravante JJ) e disso se aproveitando, contactaram através da promessa de um trabalho bem remunerado, com boas condições de alojamento, alimentação e transporte gratuito de e para os locais de trabalho, convenceram-no a acompanhá-los até Alfândega ... para trabalhar, designadamente, na agricultura e nas obras, na região de ... e em Espanha.
Assim, também este ofendido, convencido que as condições de trabalho propostas pelos 1º e 2º arguidos se concretizariam, acedeu acompanhá-los.
19) Assim, desde pelo menos meados de 2008 e durante cerca de 6 meses, JJ trabalhou em Espanha, como sinalista, na construção de uma auto estrada, na zona de ..., ficando alojado na residência dos 1º e 2º arguidos, em Espanha, onde já se encontravam os ofendidos HH, KK, a filha desta LL e ainda II.
Como contrapartida das referidas funções na construção da autoestrada desempenhadas pelo ofendido JJ era paga a retribuição mensal de € 1.300,00 que, porém, este nunca recebeu, uma vez que a 2ª arguida (BB) com o acordo dos 1º e 3º arguidos (AA e CC) dela se apoderou todos os meses.
20) Decorridos os 6 meses, e como o trabalho na auto-estrada tivesse chegado ao fim e não haver trabalhos agrícolas, os 1º, 2º e 3º arguidos deixaram o JJ ir-se embora, tendo-lhe entregue na altura a quantia de 300 €.
21) Todavia, como o JJ nutrisse sentimentos pela ofendida KK, voltou, dias depois, para junto dos referidos arguidos, afim de estar junto daquela.
Desde então e até e sob as ordens dos 1º, 2º e 3º arguidos, desenvolveu trabalhos agrícolas, em Portugal, designadamente nas regiões de Alfândega ... e ... e em Espanha, nas províncias de ..., ..., ..., ..., ..., nas vinhas em ..., ..., ..., Espanha para onde realizavam com frequência as campanhas das vindimas (entre setembro e outubro), da poda (de dezembro a março), da desfolha (entre março a julho) e da apanha da fruta (entre junho a agosto).
Como contrapartida dos trabalhos prestados pelo JJ, era disponibilizada pelo patrão espanhol ou português a quantia mensal correspondente ao trabalho prestado, que atingia cerca de € 1.300,00 nas obras da autoestrada, que, porém, o ofendido JJ nunca recebeu, por os 1º 2º e 3º arguidos dela se apoderarem e gastarem em proveito próprio.
22) Também em data não concretamente apurada mas por volta de finais de agosto de 2010, a 3º arguida, sempre em execução do mesmo propósito e em conjugação de esforços com os 1º e º arguidos, sabedora das graves dificuldades económicas e por causa disso, convenceu NN a viajar até ... para daí os acompanhar até Espanha para trabalhar nas vindimas.
Assim, uma vez chegado a ... NN foi recolhido e transportado no veículo de marca ...”, branco, de matrícula espanhola “M .... UV”, seguindo de imediato viagem até ... (Espanha).
Quando chegou a Espanha, no próprio dia NN ficou alojado na residência dos 1º e 2º arguidos, em ..., constituída por três pisos (..., 1º e ... andar) e logradouro, onde já se encontravam os ofendidos HH, JJ, KK, LL e II e, de imediato, foi advertido pelos 1º, 2º e 3º arguidos que não poderia ausentar-se da habitação fora do período laboral e durante o período noturno.
Desde aí e durante cerca de mês e meio, o sobredito ofendido NN trabalhou todos os dias, à exceção do domingo, nas vindimas designadamente, sendo diariamente transportado para os locais de trabalho e depois recolhido ao final do dia na residência dos 1º, 2º e 3º arguidos.
Tal como sucedia com os outros mencionados ofendidos, os 1º, 2º e 3º arguidos recebiam a remuneração devida pelo trabalho prestado por NN e que era paga pelos donos das quintas nas quais aquele laborava em montante diário de cerca de € 50,00 mas não lha entregavam, apoderando-se do dinheiro que recebiam, gastando-o em seu proveito e no do seu agregado familiar, bem sabendo que tal dinheiro não lhes pertencia.
23) Inicialmente os patrões espanhóis entregavam diretamente ao 1º arguido a remuneração correspondente ao trabalho prestado pelos ofendidos, com a incumbência de lhas entregar, mas que era invariavelmente retida e assim apropriada pelos 1º, 2º e 3º arguidos.
A dada altura os patrões espanhóis passaram a exigir a abertura de contas bancárias tituladas pelas pessoas que prestavam o trabalho a fim de depositarem as respectivas remunerações directamente nas respectivas contas.
Porém, mesmo nesses casos, o dinheiro das remunerações continuava a ser objecto de apropriação pelos arguidos em causa, que exigiam aos ofendidos, obrigando-os, que procedessem ao levantamento das remunerações depositadas, para o que eram acompanhados, geralmente, pela 2ª arguida, até às agências bancárias onde procediam aos referidos levantamentos em numerário que depois e logo que no exterior da dependência bancária lhe entregavam.
24) Os 1º, 2º e 3º arguidos dispunham a seu bel-prazer da força de trabalho dos referidos ofendidos, seja em benefício próprio, em trabalhos domésticos sem qualquer remuneração, seja mediante a colocação daqueles ao dispor de terceiros em Espanha e em várias regiões do nordeste transmontano, a quem prestavam serviços no ramo agrícola, apropriando-se das remunerações que lhes eram devidas.
Para melhor exercerem o seu domínio e controlo sobre os ofendidos e os sujeitarem totalmente, além dos ofendidos serem obrigados a dormirem sem condições de habitabilidade e salubridade, na casa térrea de ... (composta apenas por duas divisões: a cozinha – sem banca e com dois armários – e um quarto com duas camas uma de casal e outra de solteiro, e dois roupeiros, sendo que na cozinha existia uma janela pequena, com grades), e no chão, na casa de Alfândega ..., em cima de cobertores e de um colchão, num compartimento anexo à cozinha e de se verem negada qualquer peça de vestuário (apenas lhes sendo entregue roupa usada) e produtos de higiene pessoal, os 1º, 2º e 3º arguidos retinham-lhes, assim a confiscando, a documentação oficial de identificação pessoal (e outra), a documentação relativa às contas bancárias por aqueles tituladas e a que os arguidos em causa tinham pleno acesso e disponibilidade sobre o dinheiro, nos termos vistos; além disso, os referidos arguidos exerciam sobre os ofendidos ameaças de agressão e outras, e além das ameaças, recorriam quase diariamente ás agressões físicas, designadamente, quando o HH se queixava da falta de pagamento da remuneração ou da falta de condições, era agredido fisicamente com murros e pontapés pelos 1º, 2ª e 3ª arguidas e, do mesmo modo, também as ofendidas KK[22] e II eram quase diariamente agredidas com bofetadas na face e insultadas pelas 2º e 3º arguidas sempre que não cumpriam as tarefas como desejado por estas arguidas, mais ainda quando[23] partiam alguma peça em louça, ou até mesmo sem qualquer motivo que aparentemente o justificasse, situação que se agravou relativamente à ofendida KK a partir de Agosto de 2011.
Também a menor LL passou a ser vítima de agressões físicas, a contar de 2008.
Além disso, sempre para melhor os controlarem, os referidos arguidos fechavam, á noite, os ofendidos, pois as portas das casas dos 1º e 2º arguidos, na Rua ..., em Alfândega ..., na de ... e na de ... eram fechadas á chave, ficando o 1º arguido com a chave, assim impossibilitando os ofendidos de saírem, e só muito raramente lhes permitiam telefonar e na sua presença.
Os ofendidos, ainda que só estivessem fechados de noite, não tentavam fugir porque e também, para além do estado de sujeição e controlo dos 1º, 2º e 3º arguidos, não dominavam a língua nem as normas jurídicas espanholas, desconhecendo as zonas onde estavam, não tinham dinheiro, além das suas características pessoais supra referidas, o que no caso da KK era agravado porque as 2º e 3º arguidas lhe diziam que ficaria sem a sua filha LL.
25) Por força do acima descrito e do clima de intimidação, o ofendido NN pediu para ir embora, o que só lhe foi consentido pelos 1º, 2º e 3º arguidos, uma vez terminadas as vindimas, por volta de finais de Outubro de 2010, tendo recebido 100 € daqueles arguidos.
E, também por força do acima descrito, agressões e intimidação, o ofendido HH veio a fugir, a 19.3.2011.
26) Na sequência de relacionamento sexual de cópula completa não consentido, a ofendida KK engravidou de ZZ, marido da arguida DD, e quando tal gravidez foi visível para a arguida CC, o que aconteceu no dia 03 de agosto de 2011, esta, com o intuito de colocar termo àquela gestação, desferiu diversos golpes com as mãos na zona do ventre da KK, causando-lhe fortes dores e vários ferimentos, mormente equimoses, na região abdominal.
Com o propósito de se certificarem do tempo de gestação e da viabilidade da sua interrupção, nesse mesmo dia 3 de agosto de 2011, e pelo menos as arguidas BB e CC levaram a ofendida KK ao Serviço de Urgência do Hospital ..., vindo-se a confirmar uma gestação de 24 semanas, a impossibilitar a referida interrupção.
27) As 2ª e 3ª arguidas tentaram, no que foram impedidas pelos profissionais de saúde, estar sempre junto da ofendida durante a observação médica, com vista a controlá-la e a certificarem-se que a mesma não denunciasse a situação que vivenciava.
Não obstante a insistência dos profissionais de saúde que a atenderam, KK recusou ficar internada, mostrando-se sempre muito receosa e inibida.
37) Os 1º, 2º e 3º arguidos agiram sempre de comum acordo e em comunhão de esforços e vontades.
No aliciamento da ofendida KK, os 5º e 6º arguidos actuaram de comum acordo e em comunhão de esforços com os 1º, 2º e 3º arguidos.
Os 1º, 2º e 3º arguidos faziam das respectivas e descritas condutas a sua principal fonte de rendimentos.
38) Os 1º, 2º e 3º arguidos e quanto à ofendida KK, também os 5º e 6º arguidos ao aproveitaram-se das fragilidades dos ofendidos, que os tornavam especialmente vulneráveis, e ao prometer-lhes elevados salários (com transporte, alojamento e refeições asseguradas) para trabalharem na agricultura e/ou nas obras, em Portugal e Espanha, actuaram com o propósito concretizado de os enganar, levando-os a acompanhá-los no convencimento de que iriam trabalhar nas condições prometidas, mormente quanto ao recebimento da remuneração, quando nunca foi sua intenção pagarem-lhes, entregarem-lhes ou deixarem-lhes á disposição as remunerações, antes pretendendo locupletarem-se, como se locupletaram, com as mesmas.
39) Actuaram com o propósito de sujeitar os ofendidos ao seu domínio e total dependência, para o que lhes confiscaram a respectiva documentação de identificação pessoal e a documentação relativa às contas bancárias por aqueles tituladas, exerceram sobre todos eles violência não só psicológica, incutindo-lhes medo e inquietação, mas também física, agredindo-os, fechando-os á chave, de noite, para lhes dificultar contra as suas vontades a liberdade ambulatória o que, quando em Espanha, era agravado pelo desconhecimento da zona, da língua e normas jurídicas e também agravado por não terem dinheiro, pois os mencionados arguidos se apoderavam das remunerações e agravado ainda e no caso da arguida KK também porque as 2ª e 3ª arguidos lhe diziam que caso fugisse ficaria sem a filha LL.
Sujeitaram ainda as ofendidas II e KK a trabalhar nas lides domésticas sem nada lhes pagarem, como sujeitaram ainda a menor LL a trabalhar como cuidadora da filha de tenra idade da coarguida DD.
40) A sujeição da ofendida LL a trabalhar como cuidadora da filha de tenra idade da coarguida DD era do conhecimento desta, que não se coibiu de aceitar que cuidasse da filha.
41) Os 1º, 2º e 3º arguidos actuaram sempre deliberado, livre e conscientemente.
Na conduta descrita em 26) a arguida CC actuou de forme deliberada livre e consciente.
Ao actuarem da forma descrita em 15) os 5º e 6º arguidos fizeram-no de forma deliberada livre e consciente.
Ao actuar da forma descrita em 40) a 4ª arguida fê-lo de forma deliberada livre e consciente.
42) Todos os arguidos referidos em 41) tinham consciência de praticar actos proibidos e punidos por lei penal.

Comecemos pelos factos vertidos em 11, 12, 14 e 17.

É de refutar o argumento apresentado pelos recorrentes quando estes, a propósito da impugnação que pretendem fazer do “controlo” exercido pelo 1º arguido dizem:

“Faz-se alusão, na análise inicial do “núcleo duro” dos factos, à apreensão de uma caderneta (a fls. 674 dos autos) relativa a uma conta co-titulada, para além do HH e da II, por AA (1.º arguido) e conclui-se: “(…) disso se extrai não só o controlo já referido supra como uma efectiva disponibilidade sobre o dinheiro dos ofendidos”.
Omite-se, porém, que tal conta é ainda co-titulada pela filha do arguido, QQ, que ao que sabemos também chegou a trabalhar nestas campanhas. Ora, a não ser que se pretenda enveredar pela tese peregrina de que este “controlo” era igualmente exercido sobre os seus filhos, este é mais um dado ilustrativo da paridade de tratamento e procedimentos adotados com todos os trabalhadores.” – cfr. páginas 99 e 99 vº do recurso, fls. 4228 e 4228 vº dos autos.

Ora, e salvo o devido respeito, a caderneta junta a fls. 674 encontrada nas buscas policiais, pertencente ao Banco “Banco 5...” de ... tem como titulares:
- HH
- AA
- QQ
- EE
- II
- PPP.

Embora se desconheça quem seja PPP, os 1º e 5ª titulares são ofendidos nestes autos, sendo os 2º, 3ª e 4ª titulares, arguidos.

Não colhe a tese supra aventada pelos recorrentes uma vez que não é, de todo, comparável uma conta bancária titulada por um filho, ainda que maior, e co-titulada pelo seu progenitor com a situação dos ofendidos.

Estamos a falar de pessoas adultas que tinha o direito de aceder aos seus ganhos laborais, sem ter de passar por terceiros, e não de uma família que, entre si, possa partilhar esses ganhos.

Quantos de nós não são titulares de contas em conjunto com os nossos filhos ou mesmo com os nossos pais?

No entanto, quantos de nós são co-titulares de contas bancárias com trabalhadores a cargo de uma terceira entidade?

Aliás, o facto de também as filhas do 1º arguido terem acesso a uma caderneta titulada por pessoas estranhas à família e, portanto, empregues por terceiros, só revela o grau de controlo pois, na impossibilidade do 1º arguido se deslocar ao banco, qualquer uma das filhas titulares também o poderia fazer, sendo de notar que a posse da caderneta estava com os 1º e 2ª arguidos e não com nenhum dos restantes titulares.

Assim, a caderneta em referência – e a mesma é apenas uma de várias apreendida aos arguidos o que já de si é deveras significativo – revela precisamente o controlo a que aludiu o Tribunal a quo na sua motivação, não merecendo, por isso, qualquer censura da nossa parte, não sendo o argumento proposto pelos recorrentes apto a impor decisão diversa.

Avancemos.

Se nos afigura que, em relação ao facto vertido em 11, no que tange ao modus operandi, intenção e participação dos arguidos aí referidos, nada há a alterar em face de tudo quanto termos vindo a referir, já no que tange ao número de ofendidos e, em particular, no que diz respeito ao HH e II é nosso entendimento que não existe prova suficiente para, com a necessária segurança, incluir estes ofendidos como vítimas dos arguidos.

É que, após cuidada análise das declarações dos ofendidos KK, JJ e NN, únicos que teriam convivido com os ofendidos HH e II, afigura-se-nos, em face da inexistência de depoimentos valoráveis – o HH e a II prestaram declarações em sede de inquérito mas as mesmas não são susceptíveis de valoração atento o disposto no artº 355º do CPP – uma vez que não foram tomadas declarações para memória futura e não vieram depor em sede de audiência de discussão e julgamento que, em relação a estes dois ofendidos em particular não é possível concluir sobre:
- as condições em que HH e II foram “aceites” no seio dos arguidos e, embora a arguida BB tenha dito que acolheu a II porque esta lhe pediu por estar numa situação pessoal complicada – tinha alegadamente sido expulsa pelo marido – o que só revela a fragilidade da mesma, a verdade é que se desconhece por completo se foi feita alguma proposta de trabalhão, se foi aliciada a trabalhar e quais as respectivas condições;
- é certo que os ofendidos KK, JJ e NN fizeram menção da presença daqueles dois, tendo também referido que ambos já lá estavam e, embora pudessem desempenhar as mesmas “funções”, não souberam esclarecer se foram contratados nos mesmos moldes, qual o valor prometido pagar, se é que foi prometido algum valor.

Não deixa de ser verdade que há, pelo menos, a caderneta de fls. 674, que revela a titularidade também pelos referidos HH e II, contudo apenas podemos especular que os mesmos estariam nas mesmas condições que os restantes ofendidos.

Como também apenas será especulação ter-se considerado, como o fez o Tribunal a quo, que o HH receberia 7 contos por dia porquanto as mulheres recebiam 6 contos.

Ora, no direito penal, a especulação não basta, sendo que, ainda que se conseguisse fazer um salto lógico, assente numa premissa sólida, e concluir que tanto o HH como a II estariam “no mesmo barco” que os restantes ofendidos dos autos, a verdade é que não sabemos os concretos contornos do respectivo “aliciamento”, sendo de notar que foi referido, quer pela ofendida KK, quer pelo ofendido NN que o HH foi-se embora (a KK até diz que ele estaria CCCC ao tempo) sem que os arguidos o tivessem tentado impedir.

Por isso, não é possível considerar-se como provados os factos vertidos em 11, no que tange ao número de ofendidos, 12, als. a) e b), 14 e 17.

Ou seja, não se consegue considerar provado que:

11) Durante o período compreendido entre, pelo menos, o ano de 2000 até ../../2011, em execução do plano acordado e em comunhão de esforços e intentos, sempre com o propósito de se locupletarem com a retribuição auferida pelo trabalho das pessoas por si aliciadas e/ou aceites e/ou de não pagarem a remuneração devida pelos trabalhos prestados em seu (referidos arguidos) benefício e, assim, de obterem dinheiro fácil, os 1º, 2ª e 3ª arguidos agiram do modo supra descrito, pelo menos, com cinco cidadãos portugueses, tendo ainda actuado da forma que se descreverá quanto a uma menor do que beneficiou também a 4ª arguida.
Pelo menos em relação ao aliciamento de um dos ofendidos, os 1º, 2ª e 3ª arguidos actuaram mediante acordo e em comunhão de esforços, com os 5º e 6º arguidos nos termos referidos em 4), bem sabendo estes que nenhuma remuneração seria paga e que assim o referido ofendido ficaria prejudicado.
12) Os referidos ofendidos, aliciados ou aceites pelos referidos arguidos com o propósito de á custa deles se locupletarem foram:
a) HH (nascido em ../../1974 e titular do bilhete de identidade nº ...11), aceite pelo menos no ano de 2000 e até ../../2011;
b) II (nascida em ../../1971 e titular do bilhete de identidade nº ...29), aceite pelo menos em meados de 2000 e até ../../2011;
(…)
14) Pelo menos em meados do ano de 2000, após contacto ocorrido em circunstâncias não concretamente apuradas, os 1º e 2ª arguidos, sabedores da situação da má situação económica e total falta de perspectiva de trabalho em que se encontrava o HH (doravante HH) e disso se aproveitando, garantiram-lhe que receberia uma remuneração, em montante não inferior a 7 contos/dia, com direito a alojamento, refeições e transporte gratuito de e para os locais de trabalho.
Com tal garantia e face à situação em que se encontrava o HH, os 1º e 2º arguidos convenceram-no a ir com eles para Alfândega ... e Espanha, para aí trabalhar na agricultura, designadamente nas vinhas, em ..., ..., ... (Espanha) e nas obras da autoestrada em ....
Desde pelo menos meados de 2000 até ../../2011, HH executou por conta dos 1º, 2ª e 3ª arguidos ou de terceiros e sempre sob as ordens daqueles arguidos, todo o tipo de trabalhos, quer agrícolas, em Portugal, designadamente nas regiões de Alfândega ... e ... e em Espanha, nas províncias de ..., ..., ..., ..., ..., nas vinhas em ..., ..., ..., Espanha para onde se deslocavam frequentemente para realizar as campanhas das vindimas (entre setembro e outubro), da poda (de dezembro a março), da desfolha (entre março a julho) e da apanha da fruta (entre junho a agosto), quer nas obras, designadamente de construção da autoestrada de ....
Nunca recebeu qualquer tipo de remuneração ou contrapartida pelo trabalho que prestava a qual, invariavelmente, era retida e apropriada pelos 1º, 2º e 3º arguidos.
17) No ano de 2000, após contacto ocorrido em circunstâncias não concretamente apuradas, os 1º, 2º e 3º arguidos, sabedores da má situação económica e total falta de perspectiva de trabalho, em que se encontrava a II e disso se aproveitando, garantiram-lhe que receberia uma remuneração, cujo montante não foi possível apurar, mas não inferior a 6 contos/dia, com direito a alojamento, refeições e transporte gratuito de e para os locais de trabalho.
Assim convencida que as condições de trabalho garantidas referidos arguidos se concretizariam, acedeu acompanhá-los, em direção à habitação daqueles, em Alfândega ....
Passou a fazer os trabalhos agrícolas, quer na região do nordeste transmontano, quer em Espanha para onde se deslocava frequentemente, e nas lides domésticas, não recebendo qualquer remuneração, nem a que era paga por terceiros para quem também trabalhava na agricultura, por os 1º, 2º e 3º arguidos dela se apoderarem não lha entregando, nem a que lhes era devida pelos 1º, 2º e 3º arguidos pelos trabalhos que lhes prestavam, mormente nas lides domésticas, por estes também não lha pagarem, o que sucedeu até ../../2011.

Consequentemente, o facto vertido em 39 tem de sofrer uma segunda correcção pois há que suprimir a referência nele à II e à menor LL.

Assim, a redacção final do facto vertido em 39 terá de ser a seguinte:

39) Actuaram com o propósito de sujeitar os ofendidos ao seu domínio e total dependência, para o que lhes confiscaram a respectiva documentação de identificação pessoal e a documentação relativa às contas bancárias por aqueles tituladas, exerceram sobre todos eles violência psicológica, incutindo-lhes medo e inquietação, mas também em relação à ofendida KK, física, agredindo-a, fechando-os á chave, de noite, para lhes dificultar contra as suas vontades a liberdade ambulatória o que, quando em Espanha, era agravado pelo desconhecimento da zona, da língua e normas jurídicas e também agravado por não terem dinheiro, pois os mencionados arguidos se apoderavam das remunerações e agravado ainda e no caso da arguida KK também porque as 2ª e 3ª arguidos lhe diziam que caso fugisse ficaria sem a filha LL.
Sujeitaram ainda a ofendida KK a trabalhar nas lides domésticas sem nada lhe pagarem.

Como o facto vertido em 3.2 também deve sofrer uma segunda alteração de modo a acomodar agressões apenas em relação à ofendida KK, nos seguintes termos:

3) 2) E, ainda, decidiram sujeitá-los ao seu domínio, controlo e total dependência, confiscando-lhes a documentação de identificação pessoal e bancária, exercendo sobre eles violência psicológica e, em relação à ofendida KK, também física, reduzindo-lhes a liberdade ambulatória, obrigando ainda as mulheres aliciadas/aceites a trabalharem nas lides domésticas.

O mesmo se diga, em parte, no que tange à ofendida LL pois, embora resulte claro quer das declarações para memória futura prestadas pela KK, quer as prestadas pela LL, ao tempo com 14 anos, que esta foi efectivamente retirada da escola contra a sua vontade – note-se que nas suas declarações para memória futura quando a ilustre mandatária dos arguidos tentou levar a menor a confirmar que tinha dito que não gostava da escola em Portugal e que não queria ir para a escola, a ofendida LL respondeu “não disse nada disso” cfr. fls. 2176 – já não podemos afirmar, com a segurança necessária, que a menor fosse obrigada a tratar e cuidar da filha da arguida DD.

De facto, a menor nas suas declarações, e mesmo admitindo uma dependência emocional da criança nos arguidos por tudo quanto temos vindo a referir, afirma que tomou conta da filha da arguida DD, a YY, porque “não tinha mais nada que fazer, deixei a escola” – cfr. fls. 2169 vº.

É certo que sempre se poderia argumentar que, tendo os arguidos retirado a menor da escola, como esta confirma, e aliás, a arguida BB também o admite embora oferecesse uma desculpa inqualificável de que não tinha dinheiro para os livros, que a finalidade dessa retirada era precisamente a de colocar a menor a cuidar da filha da arguida DD.

Pelo menos, é, no mínimo, muito conveniente.

Contudo, não resulta das declarações da menor, nem das da ofendida KK que a menina tivesse sido obrigada a cuidar de uma outra criança, sendo normal em certos grupos familiares os jovens mais velhos cuidarem dos mais novos.

É claro que a menor nunca deveria ter sido retirada da escola e que essa retirada acabou por servir os interesses exclusivos dos 1º, 2ª e 4ª arguidos, contudo não conseguimos descortinar da prova algo que concretamente indique que a menor foi obrigada, forçada ou de algum modo ameaçada a tal tarefa.

Parece, antes, que se juntou “o útil ao agradável”, pois tendo a menor acabado por sair, prematuramente, da escola, a mesma passou a não ter mais nada que fazer e, assim, acabou por “naturalmente” assumir alguns cuidados da criança YY com quem, aliás, poderia até brincar numa relação de normal convívio e como forma de ocupar o seu tempo.

Não se consegue, assim, concluir, com a segurança que é necessário no direito penal, que em relação à menor LL tivesse havido uma exploração do seu trabalho, ou que esta tivesse sido “obrigada” a cuidar de uma criança.

Lamentável, sim, e altamente censurável foi o facto da 2ª arguida, em particular, ter impedido a menor, que até queria continuar a estudar, de frequentar a escola, reduzindo-lhe drasticamente a possibilidade de melhorar a sua condição de vida no futuro, tornando-a, assim, ainda mais dependente de si o que só confirma o controle que a mesma exercia em relação à ofendida KK que foi arredada de qualquer decisão efectiva sobre a escolaridade da filha.
Assim, afigura-se-nos que a redacção do facto vertido em 16 tem de ser alterado nos seguintes termos:

16) Quando completou o 6º ano de escolaridade, a LL foi retirada da escola pela 2ª arguida, passando a cuidar e tratar da filha ainda menor da arguida DD, YY, nascida a ../../2010.
Além disso, a LL era beneficiária da prestação social do abono de família, mas cujo montante nunca recebeu efetivamente, uma vez que os 1º, 2º e 3º arguidos dele se apoderaram todos os meses.
Para o efeito, e porque os 1º, 2º e 3º arguidos haviam imposto á KK que a 2º arguida fosse autorizada a movimentar a conta bancária “Banco 1...” de Alfândega ..., onde eram depositados os valores pagos a título de abonos, a referida arguida procedia ao levantamento das respectivas quantia em benefício daqueles, nunca tendo entregue qualquer quantia monetária àquela ofendida.
Assim, entre ../../2007 e ../../2011, levantou em seu benefício e da sua família, quantia superior a 2.110 € correspondente aos abonos pagos, apesar de obrigar a menor a trabalhar cuidando da neta, nos termos vistos.

Mantém-se na íntegra a redacção do facto vertido em 16 no que tange à retenção do abono de família da menor uma vez que, pese embora os recorrentes tentassem demonstrar que essa retenção faria sentido na medida em que eram eles quem alimentavam, vestiam e calçavam a menor, a verdade é que, quando aliciaram a mãe da mesma, a ofendida KK, a menor já existia, pelo que, ao proporem àquela um trabalho pelo qual, além de receber os 6 contos diários, também teria direito a dormida e comida, tal abarcava, naturalmente, a criança.

E, ainda que se pudesse considerar adequado que os arguidos beneficiassem do abono de família da menor por dela, na prática, cuidarem, a verdade é que isso é algo que teria de ter sido acertado com a mãe da menor, e não pura e simplesmente algo que os arguidos impusessem, tanto mais que os arguidos ficaram com toda a remuneração devida à KK pelo seu trabalho agrícola ao longo dos anos e não lhe pagavam nada pela lides doméstica que era obrigada a executar.

Ainda, além da alteração ora operada ao facto vertido em 16 há que, consequentemente, dar como não provado o facto vertido em 40 e o último parágrafo do facto vertido em 41:

40) A sujeição da ofendida LL a trabalhar como cuidadora da filha de tenra idade da coarguida DD era do conhecimento desta, que não se coibiu de aceitar que cuidasse da filha.
41) (…)
Ao actuar da forma descrita em 40) a 4ª arguida fê-lo de forma deliberada livre e consciente.

Há também que alterar a redacção do facto vertido em 24 na parte em que o mesmo faz referência, quer ao HH quer à menor LL uma vez que não resulta de nenhum depoimento, nem da própria menor (ao tempo) que esta alguma vez tivesse sido agredida pelos arguidos.

E, em relação à ofendida KK, pese embora o ofendido JJ, nas suas declarações para memória futura tivesse dito que a mesma era agredida diariamente por tudo e por nada, das declarações da própria KK prestadas para memória futura (uma vez que as prestadas em sede de inquérito não podem ser valoradas) resultam “apenas” duas agressões, logo no início em 2000 e depois quando as 2ª e 3ª arguidas ficaram a saber da sua gravidez.

A própria filha da KK, a LL, também confirma que agrediram a mãe no momento da gravidez não concretizando qualquer outra situação.

Assim, o facto vertido em 24 terá de ter a seguinte redacção:

24) Os 1º, 2º e 3º arguidos dispunham a seu bel-prazer da força de trabalho dos referidos ofendidos, seja em benefício próprio, em trabalhos domésticos sem qualquer remuneração, seja mediante a colocação daqueles ao dispor de terceiros em Espanha e em várias regiões do nordeste transmontano, a quem prestavam serviços no ramo agrícola, apropriando-se das remunerações que lhes eram devidas.
Para melhor exercerem o seu domínio e controlo sobre os ofendidos e os sujeitarem totalmente, além dos ofendidos serem obrigados a dormirem sem condições de habitabilidade e salubridade, na casa térrea de ... (composta apenas por duas divisões: a cozinha – sem banca e com dois armários – e um quarto com duas camas uma de casal e outra de solteiro, e dois roupeiros, sendo que na cozinha existia uma janela pequena, com grades), e no chão, na casa de Alfândega ..., em cima de cobertores e de um colchão, num compartimento anexo à cozinha e de se verem negada qualquer peça de vestuário (apenas lhes sendo entregue roupa usada) e produtos de higiene pessoal, os 1º, 2º e 3º arguidos retinham-lhes, assim a confiscando, a documentação oficial de identificação pessoal (e outra), a documentação relativa às contas bancárias por aqueles tituladas e a que os arguidos em causa tinham pleno acesso e disponibilidade sobre o dinheiro, nos termos vistos; além disso, os referidos arguidos chegaram a recorrer a agressões físicas relativamente à ofendida KK, situação que se agravou a partir de Agosto de 2011.
Além disso, sempre para melhor os controlarem, os referidos arguidos fechavam, á noite, os ofendidos, pois as portas das casas dos 1º e 2º arguidos, na Rua ..., em Alfândega ..., na de ... e na de ... eram fechadas á chave, ficando o 1º arguido com a chave, assim impossibilitando os ofendidos de saírem, e só muito raramente lhes permitiam telefonar e na sua presença.
Os ofendidos, ainda que só estivessem fechados de noite, não tentavam fugir porque e também, para além do estado de sujeição e controlo dos 1º, 2º e 3º arguidos, não dominavam a língua nem as normas jurídicas espanholas, desconhecendo as zonas onde estavam, não tinham dinheiro, além das suas características pessoais supra referidas, o que no caso da KK era agravado porque as 2º e 3º arguidas lhe diziam que ficaria sem a sua filha LL.
 
Também por referência ao HH há que alterar o facto vertido em 25 suprimindo-se a parte ao mesmo referente, bem como há que corrigir tal facto no que tange ao ofendido NN uma vez que, do seu depoimento, não resulta que o mesmo só pudesse vir embora quando os arguidos autorizaram, nem que tivesse sido um clima de intimidação que o fez querer sair – antes o facto de trabalhar sem nada receber e de ficar fechado em casa no final da jornada – passando, assim, tal facto a ter a seguinte redacção.

25) Por força do acima descrito, o ofendido NN pediu para ir embora, o que lhe foi consentido pelos 1º, 2º e 3º arguidos, tendo recebido 100 € daqueles arguidos.

Os factos verificados em 18 e 19 dizem respeito ao ofendido JJ, ouvido em declarações para memória futura sendo que a prova que os recorrentes indicam em nada permite infirmar o que aqueles factos determinam.

Vejamos recapitulando tais factos.

18) Em meados de 2008, os 1º e 2º arguidos, sabedores da falta de retaguarda familiar de JJ (doravante JJ) e disso se aproveitando, contactaram através da promessa de um trabalho bem remunerado, com boas condições de alojamento, alimentação e transporte gratuito de e para os locais de trabalho, convenceram-no a acompanhá-los até Alfândega ... para trabalhar, designadamente, na agricultura e nas obras, na região de ... e em Espanha.
Assim, também este ofendido, convencido que as condições de trabalho propostas pelos 1º e 2º arguidos se concretizariam, acedeu acompanhá-los.
19) Assim, desde pelo menos meados de 2008 e durante cerca de 6 meses, JJ trabalhou em Espanha, como sinalista, na construção de uma auto estrada, na zona de ..., ficando alojado na residência dos 1º e 2º arguidos, em Espanha, onde já se encontravam os ofendidos HH, KK, a filha desta LL e ainda II.
Como contrapartida das referidas funções na construção da autoestrada desempenhadas pelo ofendido JJ era paga a retribuição mensal de € 1.300,00 que, porém, este nunca recebeu, uma vez que a 2ª arguida (BB) com o acordo dos 1º e 3º arguidos (AA e CC) dela se apoderou todos os meses.

O que consta destes factos resulta das declarações do ofendido JJ.

O acidente de trabalho que o mesmo teria tido ocorreu em momento posterior, depois de ter voltado por nutrir sentimentos pela ofendida KK.

Em todo o caso, também resulta das declarações do JJ que mesmo quando não podia fazer os trabalhos agrícolas – em parte porque tinha de se legalizar – pintou as casas dos arguidos, lavava os carros, em suma, foi participando daquilo que podia, sendo de notar que o facto dos arguidos continuarem a dar-lhe comida e dormida não significa que tinham o direito de reter verbas de todos os ofendidos, uma vez que a dormida e comida faziam parte do contrato, pelo menos em relação à KK e esta testemunha, a par do salário.

Assim não há que alterar os factos vertidos em 18 e 19 e muito menos considerá-los como não provados como pretendem os recorrentes.

E, pese embora os recorrentes tenham anunciado que impugnam os factos vertidos em 20 e 21, nem da sua motivação (cfr. ponto 3 da página 98 do recurso, fls. 4227 vº), nem das conclusões (cfr. conclusão nº 74 da página 190 do recurso, fls. 4273 dos autos) consta a indicação da prova que oferecem para “impor” decisão diversa no que a estes dois factos diz respeito.

Como também não pedem que estes factos sejam dados como “não provados”.

Simplesmente consta da anunciação genérica que fazem acerca da impugnação da matéria de facto a inclusão dos factos vertidos em 20 e 21 mas, depois, na prática nenhuma prova é indicada e nenhuma conclusão é retirada quanto aos mesmos.

Quanto aos factos vertidos em 22 apenas assiste razão aos recorrentes quando estes afirmam que não há prova de que o montante diário devido era cerca de € 50,00 uma vez que resulta das declarações do NN que o mesmo não fez um contrato específico com os arguidos, pelo que não foram falados valores.

Assim, há que suprimir a referida referência do facto vertido em 22, passando este facto a ter a seguinte redacção:

22) Também em data não concretamente apurada mas por volta de finais de agosto de 2010, a 3º arguida, sempre em execução do mesmo propósito e em conjugação de esforços com os 1º e º arguidos, sabedora das graves dificuldades económicas e por causa disso, convenceu NN a viajar até ... para daí os acompanhar até Espanha para trabalhar nas vindimas.
Assim, uma vez chegado a ... NN foi recolhido e transportado no veículo de marca ...”, branco, de matrícula espanhola “M .... UV”, seguindo de imediato viagem até ... (Espanha).
Quando chegou a Espanha, no próprio dia NN ficou alojado na residência dos 1º e 2º arguidos, em ..., constituída por três pisos (..., 1º e ... andar) e logradouro, onde já se encontravam os ofendidos HH, JJ, KK, LL e II e, de imediato, foi advertido pelos 1º, 2º e 3º arguidos que não poderia ausentar-se da habitação fora do período laboral e durante o período noturno.
Desde aí e durante cerca de mês e meio, o sobredito ofendido NN trabalhou todos os dias, à exceção do domingo, nas vindimas designadamente, sendo diariamente transportado para os locais de trabalho e depois recolhido ao final do dia na residência dos 1º, 2º e 3º arguidos.
Tal como sucedia com os outros mencionados ofendidos, os 1º, 2º e 3º arguidos recebiam a remuneração devida pelo trabalho prestado por NN e que era paga pelos donos das quintas nas quais aquele laborava em montante diário que não se apurou, mas não lha entregavam, apoderando-se do dinheiro que recebiam, gastando-o em seu proveito e no do seu agregado familiar, bem sabendo que tal dinheiro não lhes pertencia.

De resto, não há que alterar os factos vertidos em 23, sendo que, em relação aos factos vertidos em 24 e 25, já referimos em que medida deveriam ser alterado, não resultando da prova indicada pelos recorrentes que os mesmos (23, 24 e 25) devem ser dados por não provados uma vez que resultam das declarações do ofendido NN.

 Aliás, os recorrentes indicam as declarações do ofendido NN mas, não só as declarações do mesmo não vão ao encontro das conclusões que os recorrentes oferecem – por exemplo dizem os recorrentes que “é notório do depoimento da testemunha que faziam a mesma vida, ou seja, passavam a maioria do tempo em casa, mesmo em momentos de lazer (que era passados, p. ex. a jogar às cartas)” – cfr. página 112 do recurso, fls. 4234 vº dos autos – quando o que resulta do referido depoimento é que não podiam sair de casa, os “patrões fechavam a porta e estávamos ali sentados, prontos, e tinham lá um jogo de cartas” e que, depois do dia de trabalho iam para a casa dos arguidos em Espanha  e já não podiam sair, “nada, nada, estávamos ali fechados e acabou” – como confirmam os factos vertidos em 22, 23, 24 e 25, nas partes que não excluímos aqui.

E não se venha com a tese de que todas as pessoas fecham as portas de casa à noite, porquanto, o que estava em causa era a limitação ambulatória dos ofendidos mesmo durante o dia e, no caso da ofendida KK, ficou patente das buscas que a mesma dormia num anexo, no chão ao qual era feito o acesso por uma porta da cozinha que era fechada por dentro da cozinha.

Ora, uma coisa é fechar a porta da rua à noite para que não entrem ladrões, outra é cercear os movimentos das pessoas, obrigando-as a ficarem em casa, mesmo no final da tarde, o ofendido NN disse que acabava o seu trabalho por volta das 17:00, onde mais nada lhes restava se não jogar cartas que os arguidos lá deixavam para os “entreter”.

Repare-se que a própria menor LL disse que só saía quando os arguidos saíam, isto vindo de uma adolescente que acabou por viver isolada sem acesso a amigos escolares a partir do momento em que foi retirada da escola.

Quanto aos factos vertidos em 26 e 27, pertinentes à tentativa de aborto imputado à 3ª arguida CC, afigura-se-nos que os arguidos não lograram demonstrar, minimamente, erro de julgamento por parte do Tribunal a quo.

Em primeiro lugar, indicam dois depoimentos, o da enfermeira VV e do médico WW, que teriam assistido a ofendida KK no Hospital ... em Agosto, contudo limitam-se a indicar o início e fim dos respectivos depoimentos, e o tempo de duração de cada depoimento sem lograr indicar as concretas passagens que impunham uma alteração à matéria de facto impugnada.

Em todo o caso, ouvimos os dois depoimentos na íntegra.

Por outro lado, e salvo o devido respeito, tecem considerandos que também não fazem, a nosso ver, sentido.

Por exemplo, referem os recorrentes que o constrangimento da ofendida KK, que foi claramente notada pela senhora enfermeira, não seria de estranhar “que assim estivesse, já que acabara de saber que estava grávida do genro da mulher que a acolheu, e à filha, durante anos…” – cfr. página 143 do recurso, fls. 4250 dos autos.

Contudo, não é isso que resulta das declarações da dita enfermeira que transmitiu que o constrangimento da ofendida KK se prendia com a presença das acompanhantes, estando a ofendida com “aspecto sujo” e muito magra.

Também não se retira das declarações da KK que a mesma “acabara” de saber que estava grávida, pois antes da mesma ter sido conduzida ao Hospital ... pelas 2ª e 3ª arguidas, tinha estado previamente numa unidade clínico em Espanha com as mesmas, onde se tentou saber o número de semanas de gravidez.

Foi essa dúvida quanto ao número de semanas de gestação que terá levado a que as 2ª e 3ª arguidas depois levassem a ofendida KK a ... para confirmar e assim proceder ao aborto como acabou por acontecer, posteriormente numa clínica em Espanha onde deram uma injecção à ofendida KK para terminar a gravidez – cfr. fls. 2126 das declarações para memória futura.

Por outro lado, estando a ofendida em 03-08-2011 com, pelo menos, 22 semanas de gestação, ou seja, 5 meses e 15 dias (!) é pouco plausível que a mesma não tivesse dado pela gravidez muito mais cedo, tanto que apresentava um abdómen saliente conforme confirmado pelo médico e enfermeira que a atenderam no respectivo dia.

Questionam, ainda, os recorrentes “porque não terá relatado, LL, que deram murros à mãe?...Porque terá dito que lhe bateram porque souberam que estava de bebé, ao invés de dizer que lhe bateram para lhe tirar o bebé?” – cfr. página 142 do recurso, fls. 4249 vº dos autos.

Contudo e salvo o devido respeito, não só a LL terá começado por dizer que “às vezes via bater” na mãe, dando-lhe “lambadas”, depois diz que teria sido quando a mãe “teve o bebé” mas que não viu, “soube” cfr. fls. 2170 das declarações para memória futura.

Dita o bom senso que as 2ª e 3ª arguidas não confrontariam a KK acerca de uma possível gravidez à frente da menor LL, pelo que é perfeitamente possível que a mesma não tivesse visto que tipo de agressão a mãe sofreu, ou tendo visto, isso não exclui o facto da mãe poder ter sido agredida, na mesma ocasião de várias outras maneiras, sendo, até perfeitamente plausível que a mesma tivesse sofrido várias agressões, as tais “lambadas” em momento posterior.

Por outro lado, considerando que a ofendida LL era menor ao tempo, cerca de 14 anos, é natural que não olhasse uma agressão à mãe como sendo uma forma de a fazer abortar, mas apenas como uma reacção à notícia da gravidez. Não é pela menor não referir nas suas declarações para memória futura que a mãe foi agredida por causa da gravidez que daí se possa concluir que não teria sido para lhe tirar o bebé, pois isso já é especulação por parte dos recorrentes.

Os recorrentes agarram-se ainda ao depoimento da enfermeira VV para demonstrar que a ofendida KK não poderia ter sofrido murros na barriga, conforme referiu nas suas declarações para memória futura, porquanto as lesões vistas por tal enfermeira era “escoriações” ou seja, arranhões o que não é consentâneo com murros.

Contudo, do auto de notícia de fls. 136 – citado pelo Tribunal a quo na sua motivação e não impugnado pelos recorrentes – resulta que o Posto Territorial da GNR ... foi contactada pela Drª SS, na qualidade de Presidente da Câmara Municipal ... – sendo que esta testemunha em sede de audiência, quando ouvida, confirmou esse contacto –  a informar do sucedido no Hospital ... no dia anterior, referindo que a ofendida KK, na consulta, queixava-se de fortes dores abdominais, apresentando lesões (equimoses) no abdómen.

Ora, equimoses são o que vulgarmente se conhece como “nódoas negras” o que já é consentâneo com os murros que a KK refere nas suas declarações.

Por outro lado, o facto da enfermeira VV ter mencionado apenas as escoriações não afasta, de per se, a possibilidade de também ter havido as equimoses uma vez que o depoimento foi prestado em 2018, ou seja, 7 anos depois dos factos, e a enfermeira transmitiu aquilo que recordou e que mais lhe sobressaiu do evento, conforme esclareceu.

Salvo o devido respeito, não conseguimos compreender a tese aventada pelos recorrentes de que entre a arguida CC e a ofendida KK tivesse havido uma espécie de contenda, em que ambas se tivessem envolvido em agressões (cfr. página 144 do recurso, fls. 4250 vº dos autos), uma vez que isto não resulta de nenhum dos depoimentos, quer da KK, quer da LL além de não ser consentâneo com o perfil psicológico da KK, claramente subjugada ao domínio dos arguidos como já tivemos ocasião de referir.

Não faz qualquer sentido a KK, que não se atrevia a pedir o dinheiro que lhe era devido, que não se atrevia a sair de casa sem ser para estender roupa, que aceitou executar tarefas domésticas sem condigna remuneração e que se viu afastada da sua maternidade relativamente à sua filha LL, de repente envolver-se numa luta com a arguida CC.

Em todo o caso, ainda que hipoteticamente as duas se tivessem envolvido numa contenda, o que de todo não é verosímil, a verdade é que a KK revelou agressões na barriga o que só demonstra que a arguida CC quis deliberadamente atingir a KK nessa zona do corpo, pois, caso contrário, uma simples contenda não implicaria arranhões na barriga, que por norma até está coberta, sendo normal atingir-se a cara ou braços, puxar os cabelos ou eventualmente dar pontapés nas canelas mas, estando a barriga de uma mulher grávida atingida por agressões, dita a lógica que a finalidade não era simplesmente magoar a ofendia ou repelir uma agressão por parte desta.
 
Aliás, de tão grave foi considerado o respectivo incidente que a própria Presidente das Câmara ..., Drª SS, que também era médica de família há 25 anos dos 1º, 2ª e 3ª arguidas, não só foi alertada para a situação pelo jurista da CPCJ que foi contactado pelo respectivo corpo clínico, aqui se inclui o Dr. WW, a enfermeira VV e uma tal Drª DDDD, como sentiu a necessidade de pedir a intervenção da GNR, por entender que o assunto não do pelouro da CPCJ, cfr. documento de fls. 136 não impugnado pelos recorrentes e depoimento prestado por esta testemunha em julgamento.

Por isso, os factos vertidos em 26 e 27 não podem ser dados como “não provados”.

Apenas há que operar uma pequena alteração ao número de semanas de gestação constante do facto vertido em 26 pois, quer do depoimento do médico que assistiu a ofendida, Dr. WW, quer da própria KK nas suas declarações para memória futura, o número de semanas determinado em 03-08-2011 foram 22 e não 24.

Sendo que, do auto de notícia de fls. 136 consta a referência a 26 semanas, motivo pelo qual não se compreende onde o Tribunal a quo foi buscar as 24 semanas que não correspondem nem aquele auto de notícia nem aos depoimentos em apreço.

Assim, o facto vertido em 26 passará a ter a seguinte redacção:
26) Na sequência de relacionamento sexual de cópula completa não consentido, a ofendida KK engravidou de ZZ, marido da arguida DD, e quando tal gravidez foi visível para a arguida CC, o que aconteceu no dia 03 de agosto de 2011, esta, com o intuito de colocar termo àquela gestação, desferiu diversos golpes com as mãos na zona do ventre da KK, causando-lhe fortes dores e vários ferimentos, mormente equimoses, na região abdominal.
Com o propósito de se certificarem do tempo de gestação e da viabilidade da sua interrupção, nesse mesmo dia 3 de agosto de 2011, e pelo menos as arguidas BB e CC levaram a ofendida KK ao Serviço de Urgência do Hospital ..., vindo-se a confirmar uma gestação de 22 semanas, a impossibilitar a referida interrupção.

Tendo-se já corrigido os factos vertidos em 39, 40 e 41, restam apenas os factos vertidos em 37, 38 e 42.

E quanto a estes últimos factos os arguidos não lograram apresentar prova que impusesse decisão diversa, mormente que fossem dados por não provados.

Apresentam os recorrentes argumentos vários que fomos demonstrando não serem aptos a impor decisão diversa nos moldes por estes pretendidos.

Aliás, os recorrentes querem pura e simplesmente que se dê todo o manancial fáctico como não provado, incluindo a existência dos vários ofendidos na vida dos arguidos, quando a própria arguida BB admitiu que os conhecia (à excepção do tal OO) e que consigo conviveram, ficando apenas os resultados das buscas que só por si impõe conclusões que não são compatíveis com a “não prova” dos factos impugnados.

Pois não faz qualquer sentido que documentos pessoais, como bilhetes de identificação, cartões de cidadão, caderneta bancárias e até PIN’s estivessem na exclusiva posse dos arguidos e não com os respectivos titulares.

Concluída esta incursão na matéria de facto, vejamos, agora o próximo item.

V) Da violação do princípio in dibio pro reo:

Entendem ainda os recorrentes que o Tribunal a quo violou o princípio in dúbio pro reo uma vez que “não logrou identificar os factos em concreto praticados por cada um dos arguidos pelo que, na dúvida sobre os factos a provar ou sobre a autoria”, o tribunal a quo teria de ter decidido a favor dos arguidos.

Vejamos.

O princípio do in dúbio pro reo foi transposto para o processo penal a partir do consagrado no artº 32º da Constituição da República Portuguesa que, subordinada à epígrafe “garantias do processo criminal”, diz o seguinte:

“1. O processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso.
2. Todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação, devendo ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa.
3. O arguido tem direito a escolher defensor e a ser por ele assistido em todos os actos do processo, especificando a lei os casos e as fases em que a assistência por advogado é obrigatória.
4. Toda a instrução é da competência de um juiz, o qual pode, nos termos da lei, delegar noutras entidades a prática dos actos instrutórios que se não prendam directamente com os direitos fundamentais.
5. O processo criminal tem estrutura acusatória, estando a audiência de julgamento e os actos instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do contraditório.
6. A lei define os casos em que, assegurados os direitos de defesa, pode ser dispensada a presença do arguido ou acusado em actos processuais, incluindo a audiência de julgamento.
7. O ofendido tem o direito de intervir no processo, nos termos da lei.
8. São nulas todas as provas obtidas mediante tortura, coacção, ofensa da integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações.
9. Nenhuma causa pode ser subtraída ao tribunal cuja competência esteja fixada em lei anterior.
10. Nos processos de contra-ordenação, bem como em quaisquer processos sancionatórios, são assegurados ao arguido os direitos de audiência e defesa.”

Ou seja, existindo uma séria dúvida sobre determinado facto, essa dúvida deve ser resolvida a favor do arguido, atento o princípio da presunção da sua inocência.

Ou, conforme muito bem explicitado no Acórdão do STJ de 12-03-2009, cujo relator é Soreto de Barros:

“III- O princípio do in dubio pro reo constitui uma imposição dirigida ao julgador no sentido de se pronunciar de forma favorável ao arguido, quando não tiver certeza sobre os factos decisivos para a decisão da causa; como tal, é um princípio que tem a ver com a questão de facto, não tendo aplicação no caso de alguma dúvida assaltar o espírito do juiz acerca da matéria de direito.
IV- Este princípio tem implicações exclusivamente quanto à apreciação da matéria de facto, quer seja nos pressupostos do preenchimento do tipo de crime, quer seja nos factos demonstrativos da existência de uma causa de exclusão da ilicitude ou da culpa.
V- Não existindo um ónus de prova que recaia sobre os intervenientes processuais e devendo o tribunal investigar autonomamente a verdade, deverá este não desfavorecer o arguido sempre que não logre a prova do facto; isto porque o princípio in dubio pro reo, uma das vertentes que o princípio constitucional da presunção de inocência (art. 32.º, n.º 2, 1.ª parte, da CRP) contempla, impõe uma orientação vinculativa dirigida ao juiz no caso da persistência de uma dúvida sobre os factos: em tal situação, o tribunal tem de decidir pro reo.
VI- Daqui se retira que a sua preterição exige que o julgador tenha ficado na dúvida sobre factos relevantes e, nesse estado de dúvida, tenha decidido contra o arguido. Já o saber se, perante a prova produzida, o tribunal deveria ter ficado em estado de dúvida é uma questão de facto que não cabe num recurso restrito à matéria de direito, mesmo que de revista alargada.
 VII - A apreciação pelo STJ da eventual violação do princípio in dubio pro reo encontra-se dependente de critério idêntico ao que se aplica ao conhecimento dos vícios da matéria de facto: há-de ser pela mera análise da decisão que se deve concluir pela violação deste princípio, ou seja, quando, seguindo o processo decisório evidenciado através da motivação da convicção, se chegar à conclusão de que o tribunal, tendo ficado num estado de dúvida, decidiu contra o arguido, ou quando a conclusão retirada pelo tribunal em matéria de prova se materialize numa decisão contra o arguido que não seja suportada de forma suficiente, de modo a não deixar dúvidas irremovíveis quanto ao seu sentido, pela prova em que assenta a convicção.” – sublinhado nosso

No caso em apreço, o Tribunal a quo não manifestou qualquer dúvida ao fixar a matéria de facto.
           
Sendo certo que, apenas da simples análise do texto do acórdão recorrido, sem ponderar os elementos de prova, não se chega à conclusão de que o Tribunal a quo deveria ter ficado com dúvida, pelo que nunca poderia estar em causa um erro notório na apreciação da prova no que tange a este princípio.

Não tendo o Tribunal a quo revelado qualquer dúvida insanável e, no âmbito da mesma, ter decidido contra os arguidos, não se verifica o vício apontado por estes no seu recurso.

E, da cuidada análise do acórdão ora sob escrutínio não se constata que o Tribunal a quo tivesse alguma dúvida, que se confrontasse com a possibilidade dos recorrentes poderem não ter cometido um (ou vários) crime(s) e, mesmo assim, decidisse contra si.

Sendo certo que, onde nós entendemos haver dúvida corrigimos a respectiva matéria de facto, mormente no que tange aos ofendidos HH, II e a então menor LL saindo estes ofendidos do cardápio de crimes imputados aos arguidos.

VI) Do erro na qualificação jurídica do crime imputável aos arguidos:

Entendem ainda os recorrentes que o Tribunal a quo andou mal ao imputar-lhes a prática, em co-autoria, dos crimes pelos quais foram condenados e que, quando muito havendo um crime de burla relativa a trabalho ou emprego o mesmo já se encontra prescrito.

Antes de entrarmos na análise desta questão vejamos, primeiro, o que consta do acórdão recorrido no que tange ao respectivo enquadramento dos factos nos crimes pelos quais os recorrentes foram condenados.

D) O Direito.
Aos arguidos é imputada em co-autoria e concurso real a prática, em concurso efectivo, de 6 crimes de tráfico de pessoas p.e p. pelo art. 160º/1-a), b), c) e d) e 7 e 1 crime de tráfico agravado p. e p. pelo art. 160º/1-a), b), c), d) e e), 2 e 3, em concurso aparente com o crime de escravidão, p. e p. pelo art. 159-a), todos do CP; 7 crimes de burla relativa a trabalho ou emprego, p. e p. pelo art. 222º/1 CP; 7 crimes de sequestro p. e p. pelo art. 158º/1 CP.
É ainda imputada a prática ás arguidas BB e CC, cada uma, em autoria material e concurso real, de 4 crimes de coação p. e p. pelo art. 154º/1 CP e ao arguido AA a prática de um mesmo crime de coacção.
Imputa-se ainda á arguida CC a prática de um crime de aborto, na forma tentada, p. e p. pelo art. 140º/1, 22º e 23º do CP.
Deve desde já notar-se que da factualidade provada nada de relevante se apurou em relação ao 7º arguido, que por isso deverá ser absolvido.
O crime de escravidão da al. a) do art. 159º, que não sofreu qualquer alteração, pune a conduta de “quem reduzir outra pessoa ao estado ou à condição de escravo”. Já o crime de tráfico de pessoas sofreu forte evolução e alargamento do seu tatbestand; assim, até á Lei 59/2007 de 4.9 era a seguinte a redacção:
“Artigo 169.º
Quem, por meio de violência, ameaça grave, ardil ou manobra fraudulenta, levar outra pessoa à prática em país estrangeiro da prostituição ou de actos sexuais de relevo, explorando a sua situação de abandono ou de necessidade, é punido com pena de prisão de 2 a 8 anos”.

Com a Lei 59/2007 passou a ser a seguinte a redacção típica do tráfico de pessoas, que passou a constar do art. 160º CP:
“Artigo 160.º
Tráfico de pessoas
1 - Quem oferecer, entregar, aliciar, aceitar, transportar, alojar ou acolher pessoa para fins de exploração sexual, exploração do trabalho ou extracção de órgãos:
a) Por meio de violência, rapto ou ameaça grave;
b) Através de ardil ou manobra fraudulenta;
c) Com abuso de autoridade resultante de uma relação de dependência hierárquica, económica, de trabalho ou familiar;
d) Aproveitando-se de incapacidade psíquica ou de situação de especial vulnerabilidade da vítima; ou
e) Mediante a obtenção do consentimento da pessoa que tem o controlo sobre a vítima;
é punido com pena de prisão de três a dez anos.
2 - A mesma pena é aplicada a quem, por qualquer meio, aliciar, transportar, proceder ao alojamento ou acolhimento de menor, ou o entregar, oferecer ou aceitar, para fins de exploração sexual, exploração do trabalho ou extracção de órgãos.
3 - No caso previsto no número anterior, se o agente utilizar qualquer dos meios previstos nas alíneas do n.º 1 ou actuar profissionalmente ou com intenção lucrativa, é punido com pena de prisão de três a doze anos.
4 - Quem, mediante pagamento ou outra contrapartida, oferecer, entregar, solicitar ou aceitar menor, ou obtiver ou prestar consentimento na sua adopção, é punido com pena de prisão de um a cinco anos.
5 - Quem, tendo conhecimento da prática de crime previsto nos n.º 1 e 2, utilizar os serviços ou órgãos da vítima é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.
6 - Quem retiver, ocultar, danificar ou destruir documentos de identificação ou de viagem de pessoa vítima de crime previsto nos n.º 1 e 2 é punido com pena de prisão até três anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal”.

Em 2013, com a Lei 60/2013 de 23.8, a redacção típica sofreu nova alteração e passou a prever que:
“Artigo 160.º
Tráfico de pessoas
1 - Quem oferecer, entregar, recrutar, aliciar, aceitar, transportar, alojar ou acolher pessoa para fins de exploração, incluindo a exploração sexual, a exploração do trabalho, a mendicidade, a escravidão, a extração de órgãos ou a exploração de outras atividades criminosas:
a) Por meio de violência, rapto ou ameaça grave;
b) Através de ardil ou manobra fraudulenta;
c) Com abuso de autoridade resultante de uma relação de dependência hierárquica, económica, de trabalho ou familiar;
d) Aproveitando-se de incapacidade psíquica ou de situação de especial vulnerabilidade da vítima; ou
e) Mediante a obtenção do consentimento da pessoa que tem o controlo sobre a vítima;
é punido com pena de prisão de três a dez anos.
2 - A mesma pena é aplicada a quem, por qualquer meio, recrutar, aliciar, transportar, proceder ao alojamento ou acolhimento de menor, ou o entregar, oferecer ou aceitar, para fins de exploração, incluindo a exploração sexual, a exploração do trabalho, a mendicidade, a escravidão, a extração de órgãos, a adoção ou a exploração de outras atividades criminosas.
3 - No caso previsto no número anterior, se o agente utilizar qualquer dos meios previstos nas alíneas do n.º 1 ou actuar profissionalmente ou com intenção lucrativa, é punido com pena de prisão de três a doze anos.
4 - As penas previstas nos números anteriores são agravadas de um terço, nos seus limites mínimo e máximo, se a conduta neles referida:
a) Tiver colocado em perigo a vida da vítima;
b) Tiver sido cometida com especial violência ou tenha causado à vítima danos particularmente graves;
c) Tiver sido cometida por um funcionário no exercício das suas funções;
d) Tiver sido cometida no quadro de uma associação criminosa; ou
e) Tiver como resultado o suicídio da vítima.
5 - Quem, mediante pagamento ou outra contrapartida, oferecer, entregar, solicitar ou aceitar menor, ou obtiver ou prestar consentimento na sua adopção, é punido com pena de prisão de um a cinco anos.
6 - Quem, tendo conhecimento da prática de crime previsto nos n.º 1 e 2, utilizar os serviços ou órgãos da vítima é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.
7 - Quem retiver, ocultar, danificar ou destruir documentos de identificação ou de viagem de pessoa vítima de crime previsto nos n. 1 e 2 é punido com pena de prisão até três anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.
8 - O consentimento da vítima dos crimes previstos nos números anteriores não exclui em caso algum a ilicitude do facto”.
Como se vê, a cada nova alteração ao tipo legal de tráfico de pessoas, correspondeu o apertar das malhas da punibilidade, abarcando cada vez maior nº de condutas através, designadamente, de uma antecipação mais intensa da tutela penal.
Tal é particularmente visível na alteração de 2007, em que o crime de tráfico de Pessoas passou de crime de resultado (este integra o tipo) a crime de resultado/cortado (há intenção de produção de um resultado que, todavia, não faz parte do tipo legal – Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, I, p. 330) e daí falarmos em antecipação da tutela.
Além disso, perde em 2007, dois traços que, até então, estruturavam o respetivo tipo-de-ilícito: deixou de ser necessário o tráfico ou tráfego para um “país estrangeiro”; a finalidade do tráfico deixou de ser exclusivamente de natureza sexual (prática da prostituição e/ou de actos sexuais de relevo), passando a abarcar e também a exploração laboral e deixa de ter relevo autónomo a deslocação entre países.
A circunstância de até 2007 o tráfico de pessoas não abranger a exploração laboral tem muito interesse nos presentes autos, não tanto para os 1º, 2º 3º arguidos no caso concreto (pois em relação e estes, como veremos, os factos anteriores à Reforma de 2007, atinentes aos ofendidos HH, KK e II, integram o crime de escravidão, em relação ao qual o tráfico estaria sempre numa relação de concurso aparente, posto que aqueles levaram a cabo as actividades de aliciamento e de exploração/sujeição) mas bem para os 5º e 6º arguidos no que toca à ofendida KK (não em relação as ofendidos II e HH, pois quanto a estes nenhuma actuação dos 5º e 6º arguidos se provou), uma vez que, quanto a eles, provou-se apenas o aliciamento (em acordo com os 1, 2 e 3 arguidos) da ofendida KK através de falsa promessa de boas condições de trabalho em Espanha e assim a levaram a aceitar acompanhá-los, enganada que foi com tal ardil, actuando aqueles com o propósito de obtenção de benefícios e de causarem, como causaram, prejuízo patrimonial à ofendida correspondente ao trabalho não remunerado (bastando o início do trabalho).
Como a exploração laboral não integrava o tipo do art. 169º à data dos factos, sendo certo que estes ocorreram no ano 2000, o crime que poderiam ter cometido seria o de burla relativa a trabalho ou emprego p. e p., á data dos factos e agora, pelo art. 222º/1 CP, o qual pune a conduta de “quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, causar a outra pessoa prejuízo patrimonial através de aliciamento ou promessa de trabalho ou emprego no estrangeiro”.
Só que tal crime era e é punido com prisão até 5 anos, pelo que lhe cabia e cabe o prazo de prescrição de 10 anos nos termos do art. 118º/1/b) CP e tal prazo já decorreu, uma vez que não houve nenhuma causa de interrupção ou suspensão da prescrição, nem podia, uma vez que os presentes autos só se iniciaram em 2011 estando, pois, extinto o procedimento criminal quanto a tal crime e já o estava quando foi instaurado o inquérito.
A questão não tem relevância no que toca à 4ª arguida, pois nesta parte nenhuma atuação daquela se provou.
A questão poderia ter relevo no que toca aos 1º, 2º e 3º arguidos, uma vez que aliciaram a KK juntamente com os 5º e 6º arguidos e os ofendidos HH e II, só que, como se verá, e por maioria de razão, ocorre concurso meramente aparente entre o de escravidão e o do art. 222º.
Como se disse, enquanto o crime de tráfico sofreu alterações profundas, o crime de escravidão manteve-se intocado, pelo que estava em vigor à data da prática dos primeiros factos (meados de 2000).
Se, mercê da redacção então vigente do art. 169º CP, os 1º, 2º e 3º arguidos não podiam cometer o crime de tráfico de pessoas relativamente aos ofendidos HH, KK e II, cabe indagar se preencheram os elementos típicos do crime de escravidão e que também lhes é imputado, e a questão coloca-se porque tais arguidos não se contentaram em aliciar tais ofendidos, tendo-os ainda explorado, obrigando-os a trabalhar e retendo-lhes as remunerações e, no caso das ofendidas II e KK, obrigando-as a trabalhar como empregadas domésticas sem lhes pagar.
Como se disse, a resposta é positiva.
Com efeito, para além do que se acabou de dizer, mais se demonstrou que, além disso, decidiram sujeitar os referidos ofendidos ao seu domínio, controlo e total dependência, confiscando-lhes os documentos de identificação pessoal, controlando-lhes as contas bancárias a que tinham total acesso e de que podiam dispor através do exercício de violência física e psíquica e quase absoluta privação da liberdade de movimentos, obrigando ainda as ofendidas II e KK, para além dos trabalhos agrícolas, a efectuar trabalho doméstico.
O artigo 159º CP não define o que deva entender-se por escravidão, pelo que se trata de uma norma penal em branco.
Para o seu preenchimento, lança-se mão de instrumentos jurídicos internacionais, designadamente da Convenção sobre a Escravatura de 25/9/1926 (Decreto com força de lei n.º 14046 de 21/6/27 e Carta do PR de 26/8/27) e da Convenção Suplementar relativa à Abolição da Escravatura e Condições Análogas de 1956.
Aquela dá uma definição da escravatura como um estado ou condição de um indivíduo sobre o qual se exercem todos e quaisquer atributos do direito de propriedade (art. 1º/1 da Convenção) enquanto esta se refere ás instituições e práticas análogas á escravidão “onde quer que subsistam, quer lhes seja ou não aplicável a definição de escravatura contida no artigo 1.º da Convenção relativa à escravatura, assinada em Genebra a 25 de Setembro de 1926” e que são, essencialmente, situações reconduzíveis ao estado o condição de servo, definindo a servidão como “a condição de qualquer vítima que seja obrigada tanto pela lei, pelo costume ou por acordo, a viver e trabalhar numa terra pertencente a outra pessoa e obrigada a fornecer a essa mesma pessoa, contra qualquer tipo de remuneração, determinados serviços sem poder mudar a sua condição servil” (artigo 1º, n.º2, da Convenção) – podendo tratar-se de servidão por dívidas ou de servidão da gleba entre outras.
Como se vê, decorridos cerca de 30 anos sobre a Convenção de 1926, fez-se sentir a necessidade de alargar o âmbito da proibição, passando a considerar-se como materialmente análogas á escravidão instituições jurídicas e práticas baseadas em costumes ou contratos não previstas inicialmente e que vêm complementar a noção de escravidão ocorrendo equiparação – sendo indiferente que tais instituições ou práticas caiam no âmbito da definição da escravidão do art. 1º da Convenção de 1926.
Tal Convenção suplementar nasceu da constatação, como do respectivo Preâmbulo consta que “a escravatura, o tráfico de escravos e as instituições e práticas análogas à escravatura ainda não foram eliminados em todas as partes do Mundo” e sido “decidido, em consequência, que a Convenção de 1926, ainda em vigor deve agora ser completada por uma convenção suplementar destinada a intensificar as medidas que, tanto na ordem interna como na internacional, levem à abolição da escravatura, do tráfico de escravos e das instituições e práticas análogas à escravatura”.
Pois bem.
Decorridos mais de 60 anos sobre a Convenção suplementar e face á evolução das sociedades modernas assiste-se por um lado, ao fim da escravidão de jure (ou clássica – chattel - que é a definida pelo art. 1º da Convenção de 1926 e corresponde também ás situações jurídicas ou socialmente aceites baseadas em costumes e acordos: as análogas) e em sentido inverso a manifestações fácticas de novos meios e mais subtis de escravidão (a moderna).
Assim, segundo um estudo realizado pela consultora Verisk Maplecroft (Verisk Maplecroft integrates global risk analytics, expert insight and user centric platforms to help organisations build resilience and unlock competitive and reputational advantage), que avaliou 198 países, com base na força das suas leis, a eficácia das suas aplicações e a gravidade das violações, os riscos da escravidão moderna aumentaram quase em três quartos, nos Estados-Membros da UE no último ano.
E, de acordo com a segunda edição do Índice de Escravidão Moderna (MSI), os cinco países da UE em que este risco mais se verificou são a Roménia, a Grécia, a Itália, Bulgária e Chipre – que constituem pontos de entrada para os emigrantes. Segundo o estudo, Portugal é um dos países onde o risco do aumento de escravidão moderna é uma realidade, assim como na Alemanha, Finlândia, Suécia e Polónia.
Daí que se considere “imperiosa a manutenção do tipo e imprescindível que o mesmo funcione” (Pereira e Lafayette Código Penal Anotado e Comentado. Legislação Complementar e Conexa, 2ª Edição, Quid Juris Sociedade Editora, 2014, p. 465), até pela “necessidade de proteção de emigrantes portugueses” – Código Penal, Actas e Projectos da Comissão de Revisão, 1993, p. 241, Ministério da Justiça.
Por isso que, e como resulta do art. 8º do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, a escravidão existe “sob várias formas” e é por isso que o art. 159º/a) CP é construído como um tipo de crime de execução livre e não vinculada.
E, nas nossas sociedades modernas o meio mais frequente de redução de uma pessoa a escravo é a escravidão laboral, desde logo porque, por pressupor uma subordinação jurídica, constitui um meio particularmente insidioso de exploração, mormente através do trabalho forçado ou obrigatório.
Por trabalho forçado entende-se todo o trabalho ou serviço exigido a uma pessoa sob a ameaça de sanção e para o qual o dito indivíduo não se tenha oferecido espontaneamente (art. 2º da Convenção da OIT nº 29 sobre o Trabalho Forçado de 1930).
Deve notar-se que se fala em “espontaneamente” e não em “voluntariamente” porque pode existir trabalho forçado por um trabalhador que se ofereceu inicialmente para o trabalho de forma voluntária mas com a vontade extorquida por coacção ou constrangimento ou que não vem a dispor posteriormente da possibilidade de abandonar por sua livre vontade.
Significa que, no caso de aceitação voluntária do trabalho que resulte de burla relativa a promessa de trabalho ou emprego, ainda assim, se pode falar em trabalho forçado porquanto a aceitação não foi espontânea, foi antes induzida pela burla.
Não sendo porém suficiente a existência de trabalho forçado para caracterizar a escravidão, é necessário que ele seja acompanhado de outros elementos que permitam concluir pela desumanização da vítima, de forma que se possa dizer que ela é vista como mero instrumento ou objeto por banda do agente.
Quanto a isso o Tribunal Penal Internacional para a Ex-Jugoslávia assumiu que o conceito tradicional de escravidão evoluiu para englobar várias formas contemporâneas de escravidão desde que baseadas no exercício de qualquer um dos poderes associados ao direito de propriedade, considerando que disso são indicadores: a restrição ou eliminação da autonomia e da liberdade de movimento; a busca de benefício ao ofensor; a ausência de consentimento ou o consentimento viciado por abuso e violência; a exploração da vítima designadamente pela obrigatoriedade de trabalho, prostituição, entre outras formas…(Caso Prosecutor vs. Dragoljub Kunarac, Radomir Kovac e Zoran Vukovic, aresto de 22.10.2016).
Para o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH) não sendo a exploração laboral, mormente por trabalho forçado ou obrigatório, em si mesma considerada, equivalente a escravidão, deve ser acompanhada do controlo de movimentos, violência e/ou coacção para ser havida como a forma moderna de troca de escravos (Ac. Rantsev v. Chipre e Rússia n.º 25965/04 de 7/1/2010).
Entre nós, a doutrina (Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, p. 429, 2008), sustenta que para se poder falar em escravidão laboral seria necessário, mas suficiente o preenchimento de dois requisitos cumulativos: primeiro, a vítima não ter poder de decisão quanto ao nº de horas de trabalho ou tipo de trabalho que pretende prestar; e segundo, não dispor da retribuição pelos serviços/trabalhos prestados.
A ausência desse poder de decisão pressupõe, em regra, uma relação de domínio e de controlo por parte do agente através de um ambiente de medo.
Servem como identificadores, para o TEDH (no ac. citado) desse controlo e domínio por parte do agente os seguintes factores, que no fundo funcionam como factos-indícios: a retenção dos documentos do trabalhador, o confinamento a espaços, o desconhecimento da língua, a sujeição a maus tratos, mormente físicos, a ameaça.
Em jeito de súmula, e acompanhando o Ac. do T. Rel. Porto de 27/11/2013, proc. nº 322/04.1TAMLG.P1, relator Augusto Lourenço, podemos dizer que são traços característicos da servidão “trabalho forçado ou obrigatório mediante a prática de ameaça de qualquer tipo de castigo ainda que ab initio o trabalho resulte de burla relativa a promessa de trabalho ou emprego; o exercício do direito de propriedade sobre a pessoa escravizada por parte do agente recorrendo a castigos ou ameaça da sua prática; a limitação da liberdade de movimentos; e a desumanização”.
Na aferição dessa desumanização, cremos (acompanhando o Ac. T Rel. Porto de 08.07.2015, processo nº 1480/07.9PCSNT.G1.P1., dgsi) que o período temporal durante o qual a actividade se prolongar tem um peso decisivo – uma actividade que se prolongue durante períodos consideráveis, sem retribuição, num ambiente de coação e medo, cria uma tremenda dependência e estado de sujeição, pois, pela natureza das coisas, o ofensor tenderá cada vez mais a ver o ofendido como um instrumento ou um objeto de direitos patrimoniais e outros para si (ofensor) enquanto o ofendido se resignará e cada vez mais á sua condição até a encarar como a normalidade.
Até por outra ordem de razões:
Sendo o crime da art. 160º de resultado cortado, a exploração laboral não tem que ocorrer, bastando a intenção – pelo que objeto da punição é uma actividade precursora iluminada por um especial propósito.
Sendo evidente que o mesmo agente pode levar a cabo não só a actividade precursora como a própria consumação da exploração – o certo é que inexiste agravação pelo resultado, pelo que ao nível da punição há total equiparação entre as actividades precursoras e as de exploração.
Só que as actividades precursoras, punidas enquanto tais (porque iluminadas pelo propósito de sujeição a exploração) não são, por natureza, de execução permanente – pois se o fossem era sinal que já estava em execução a própria a exploração e esta sim é de execução permanente.
Ou seja, quando o mesmo agente pratica os actos precursores e também os actos de exploração, o crime de tráfico de pessoas assume natureza permanente, cuja consumação só cessa com o último acto, aplicando-se a lei vigente nessa data a toda a infracção desde a sua incriminação.
O bem jurídico protegido no tipo de crime de escravidão é complexo, pois abarca não só a liberdade pessoal, não só corporal, como e sobretudo todas as manifestações de liberdade que integram o direito de personalidade, que fazem do homem um ser-livre em todas as suas dimensões e são refração da eminente dignidade da pessoa – a dignidade da pessoa humana não é em si mesma um bem jurídico, pelo que o que se tutela são todas as projecções da personalidade jurídica.
Tratando-se de bens jurídicos eminentemente pessoais, há tantos crimes quantos os ofendidos.
Ainda que de forma menos intensa e ampla, também no crime de tráfico estão em causa bens jurídicos eminentemente pessoais, tais como a liberdade “pessoal, liberdade de acção e saúde e integridade corporal da vítima” – Miguez Garcia e Castela Rio, CP Geral e Especial com Notas e Comentários, p. 665.
Vendo os factos provados, é de concluir que relativamente aos ofendidos HH, KK e II, os 1º, 2º e 3º arguidos cometeram o crime de escravidão, explorando-os laboralmente, enganando-os logo de início, aproveitando-se da sua vulnerabilidade, e prometendo-lhes condições que nunca foi sua intenção cumprirem, antes lhes retendo as remunerações que faziam suas, obrigando ainda as ofendidas a trabalharem como empregadas domésticas sem nunca lhes pagarem, tudo em ambiente de opressão, exercendo sobre eles um controlo e domínio, sujeitando-os á sua total dependência, retendo-lhes toda a documentação de identificação e outra oficial, quer portuguesa quer espanhola, e a bancária, que controlavam e de que tinham total disponibilidade, exercendo coacção e violência física sobre eles e na prática anulando-lhe o jus ambulandi, pois fechavam-nos á chave de noite e tal prolongou-se pelo menos por 10 longos anos.
Actuaram em co-autoria, porque mediante plano conjunto e em execução conjunta, com dolo directo e persistente.
Surpreendem-se aqui todas as características da escravidão supra enunciadas, incluindo a desumanização, face ao período temporal em causa.
Claro que ao assim actuarem também preencheram os tipos legais de crime do já referido art. 222º (mas como já se viu, ocorreria concurso aparente e há prescrição quanto a este crime como vimos) e do art. 158º/1 do CP (incrimina o sequestro, i. é, qualquer forma – crime de execução de privação da liberdade – “quem detiver, prender, mantiver presa ou detida outra pessoa ou de qualquer forma a privar da liberdade” – os ofendidos ficavam fechados á chave, de noite; anote-se que tratando-se de crime permanente, a contagem do prazo prescricional só se iniciava com a cessação da referida privação – art. 119º/2-a) CP – pelo que não ocorre prescrição) ocorrendo porém relação de concurso legal ou aparente entre este e o crime de escravidão, como crime meio com âmbito de tutela mais restrito.
Não se percebe bem a imputação dos crimes de coacção, de forma autónoma e em autoria singular, quando, tirando o episodio do hospital, os restantes factos são imputados a título de coautoria.
Não que os arguidos não hajam cometido (e repetidas vezes) o crime de coacção – art. 154º/1 CP – só que em concurso legal por relação de consumpção com a escravidão.
O mesmo já não ocorre quanto ao crime de aborto tentado (Artigo 140º/1 CP “Quem, por qualquer meio e sem consentimento da mulher grávida, a fizer abortar é punido com pena de prisão de 2 a 8 anos”, ocorrendo tentativa – a agressão física na barriga é acto idóneo: al. b) do nº 2 do art. 22º – e punível: art. 23º/1 CP) pois que o bem jurídico tutelado abrange para alem da integridade física da grávida a vida intrauterina e pode ser cometido por qualquer meio – cf. Miguez Garcia e Castela Rio, CP Geral e Especial com Notas e Comentários, p. 636 e ss.
Provou-se que a arguida CC agrediu a KK, grávida – e por isso a agrediu – de 24 semanas, com o propósito (“decidiu cometer”) de lhe provoca aborto, o que só não ocorreu por razões alheias à sua vontade pelo que cometeu o crime.
Quanto aos ofendidos MM e NN, e vistos os factos provados, dúvidas não há quanto ao seu aliciamento, através de ardil (prometendo determinadas prestações que nunca quiseram cumprir como nunca cumpriram) e de aproveitamento da sua especial vulnerabilidade (mormente no caso do NN), com a especial resolução de os virem a explorar, como o fizeram , não recebendo quaisquer remunerações, sendo obrigados a trabalhar, ficando fechados á noite…Face á ausência de agressões físicas e face ao período de tempo em que perdurou a actuação, verifica-se com facilidade que estamos perante casos de gravidade bastante inferior ao dos ofendidos KK, II e HH e, destarte, que será de incluir no tráfico de pessoas e não na escravidão.
O caso da LL é mais problemático, por ser menor e por ter sido sujeita a agressões físicas.
Pondera-se, porém que face á factualidade provada não está suficientemente caracterizado o estado/condição de escravidão, sendo de realçar e tal assume especial significado, que o período temporal porque perdurou a sua exploração laboral só se iniciou em 2010 – tomar conta da criança da DD, quando estava em idade escola e sem contrapartidas – perdurou por tempo bem inferior ao dos ofendidos KK e HH, justificando a sua inclusão no crime de tráfico do art. 160º/2 CP – “a mesma pena é aplicada a quem, por qualquer meio, aliciar, transportar, proceder ao alojamento ou acolhimento de menor, ou o entregar, oferecer ou aceitar, para fins de exploração sexual, exploração do trabalho ou extracção de órgãos”; note-se que a circunstancia de já estar alojada é irrelevante, pois o que interessa é que os arguidos continuassem, como foi o caso, a alojá-la com o propósito (com dolo directo), que passaram a ter, de a explorarem, sendo certo que não se torna necessário o aliciamento.
Por causa disso, porque a criança de que a ofendida LL tomava conta (a YY) era filha da DD e porque esta nisso anuiu, acabou por beneficiar da utilização daquela pelo que cometeu o crime de utilizadora, do nº 5 do art. 160º/5 CP (à data dos factos; actual nº 6).
Uma vez que os 1º, 2º e 3º arguidos exploraram laboralmente os ofendidos NN e JJ, cremos que os de sequestro (privação da liberdade) e de coacção estarão numa relação de concurso aparente com o de tráfico e o mesmo ocorre relativamente ao crime de burla na obtenção de emprego do art. 222º do CP já referido.”

Antes de mais, convém referir que a matéria de facto impugnada pelos recorrentes não foi alterada nos termos por estes pretendidos, pois, pese embora se tenha dado redacções diferentes a alguns dos factos, afinando-os, e ainda que se tenha, em relação a alguns factos, os suprimido ou suprimido em parte, tais alterações, não levam à absolvição de todos os arguidos conforme por estes pretendido.

Apenas em relação à arguida DD é que a imputação penal sofre uma drástica alteração como infra veremos melhor.

Dito isto, entremos agora na análise da qualificação jurídica dos crimes imputados aos recorrentes.

Comecemos por referir que, tendo sido dado como não provados os factos referentes aos ofendidos HH, II e LL automaticamente caem os crimes associados a estas “vítimas”, quer sejam de escravidão, quer sejam de tráfico de pessoas.

Pelo que, quando muito, estarão em causa crimes praticados contra os ofendidos KK, JJ e NN.

Como a 4ª arguida DD foi condenada apenas por um crime de tráfico de pessoas p. e p. pelo artº 160º nº 5 do Código Penal em relação à então menor LL, claro se torna ver, em face da alteração da matéria de facto supra operada, que esta condenação tem de ser revogada e a arguida DD absolvida deste crime o que ora se determina.

Em relação aos ofendidos JJ e NN o Tribunal a quo imputou aos 1º, 2ª e 3ª arguidos a prática de dois crimes de tráfico de pessoas p. e p. pelo artº 160º nº 1 als. b) e d) do Código Penal.

Em relação à ofendida KK o Tribunal a quo imputou aos 1º, 2ª e 3ª arguidos a prática de um crime de escravidão p. e p. pelo artº 159º nº 1 al. b) do Código Penal, sendo que, em relação à 3ª arguida, CC ainda lhe imputou a prática de um crime de aborto na forma tentada p. e p. pelos artºs 140º nº 1, 23º nº2 e 73º nº 1 als. a) e b) todos do Código Penal.
Vejamos.

Em relação à ofendida KK o Tribunal a quo concluiu que não seria possível imputar aos arguidos o crime de tráfico de pessoas uma vez que a exploração laboral não integrava o respectivo tipo legal à data dos factos, que fixa em 2000, sendo que a redacção que hoje ainda conhecemos do artº 160º do Código Penal foi dada pela Lei nº 57/2007 de 04-09.

Antes de mais, e salvo o devido respeito, afigura-se-nos que o Tribunal a quo labora em erro uma vez que a ofendida KK foi sujeita à autoridade e abuso dos arguidos até ao momento do seu resgate em Novembro de 2011.

É certo que, em 2000, quando a KK foi “aliciada” pelos 1ª, 2ª e 3ª arguidas para trabalhar em Espanha onde auferiria um salário, comida e dormida, a redacção do crime de tráfico, previsto no artº 169º do Código Penal de então, era a seguinte:

“Quem, por meio de violência, ameaça grave, ardil ou manobra fraudulenta, levar outra pessoa à prática em país estrangeiro da prostituição ou de actos sexuais de relevo, explorando a sua situação de abandono ou de necessidade, é punido com pena de prisão de 2 a 8 anos.”

Somente com a Lei nº 59/2007 de 04-09 é que o crime de tráfico de pessoas passou a assumir contornos maiores tendo passado para o artº 160º do Código Penal com a seguinte redacção:
“1 - Quem oferecer, entregar, aliciar, aceitar, transportar, alojar ou acolher pessoa para fins de exploração sexual, exploração do trabalho ou extracção de órgãos:
a) Por meio de violência, rapto ou ameaça grave;
b) Através de ardil ou manobra fraudulenta;
c) Com abuso de autoridade resultante de uma relação de dependência hierárquica, económica, de trabalho ou familiar;
d) Aproveitando-se de incapacidade psíquica ou de situação de especial vulnerabilidade da vítima; ou
e) Mediante a obtenção do consentimento da pessoa que tem o controlo sobre a vítima;
é punido com pena de prisão de três a dez anos.
2 - A mesma pena é aplicada a quem, por qualquer meio, aliciar, transportar, proceder ao alojamento ou acolhimento de menor, ou o entregar, oferecer ou aceitar, para fins de exploração sexual, exploração do trabalho ou extracção de órgãos.
3 - No caso previsto no número anterior, se o agente utilizar qualquer dos meios previstos nas alíneas do n.º 1 ou actuar profissionalmente ou com intenção lucrativa, é punido com pena de prisão de três a doze anos.
4 - Quem, mediante pagamento ou outra contrapartida, oferecer, entregar, solicitar ou aceitar menor, ou obtiver ou prestar consentimento na sua adopção, é punido com pena de prisão de um a cinco anos.
5 - Quem, tendo conhecimento da prática de crime previsto nos n.os 1 e 2, utilizar os serviços ou órgãos da vítima é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.
6 - Quem retiver, ocultar, danificar ou destruir documentos de identificação ou de viagem de pessoa vítima de crime previsto nos n.os 1 e 2 é punido com pena de prisão até três anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.”

E, em 2013, com a Lei nº 60/2013 de 23-08, passou o artº 160º do Código Penal a ter a seguinte redacção:
“1 - Quem oferecer, entregar, recrutar, aliciar, aceitar, transportar, alojar ou acolher pessoa para fins de exploração, incluindo a exploração sexual, a exploração do trabalho, a mendicidade, a escravidão, a extração de órgãos ou a exploração de outras atividades criminosas:
a) Por meio de violência, rapto ou ameaça grave;
b) Através de ardil ou manobra fraudulenta;
c) Com abuso de autoridade resultante de uma relação de dependência hierárquica, económica, de trabalho ou familiar;
d) Aproveitando-se de incapacidade psíquica ou de situação de especial vulnerabilidade da vítima; ou
e) Mediante a obtenção do consentimento da pessoa que tem o controlo sobre a vítima;
é punido com pena de prisão de três a dez anos.
2 - A mesma pena é aplicada a quem, por qualquer meio, recrutar, aliciar, transportar, proceder ao alojamento ou acolhimento de menor, ou o entregar, oferecer ou aceitar, para fins de exploração, incluindo a exploração sexual, a exploração do trabalho, a mendicidade, a escravidão, a extração de órgãos, a adoção ou a exploração de outras atividades criminosas. 3 - No caso previsto no número anterior, se o agente utilizar qualquer dos meios previstos nas alíneas do n.º 1 ou actuar profissionalmente ou com intenção lucrativa, é punido com pena de prisão de três a doze anos.
4 - As penas previstas nos números anteriores são agravadas de um terço, nos seus limites mínimo e máximo, se a conduta neles referida:
a) Tiver colocado em perigo a vida da vítima;
b) Tiver sido cometida com especial violência ou tenha causado à vítima danos particularmente graves;
c) Tiver sido cometida por um funcionário no exercício das suas funções;
d) Tiver sido cometida no quadro de uma associação criminosa; ou
e) Tiver como resultado o suicídio da vítima.
5 - Quem, mediante pagamento ou outra contrapartida, oferecer, entregar, solicitar ou aceitar menor, ou obtiver ou prestar consentimento na sua adopção, é punido com pena de prisão de um a cinco anos.
6 - Quem, tendo conhecimento da prática de crime previsto nos n.os 1 e 2, utilizar os serviços ou órgãos da vítima é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.
7 - Quem retiver, ocultar, danificar ou destruir documentos de identificação ou de viagem de pessoa vítima de crime previsto nos n.os 1 e 2 é punido com pena de prisão até três anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.
8 - O consentimento da vítima dos crimes previstos nos números anteriores não exclui em caso algum a ilicitude do facto.”

Ora, se é verdade que o início da intervenção dos arguidos junto de KK começou em 2000, quando não existia incriminação de tráfico de pessoas aplicável ao caso, a sujeição da KK aos 1º, 2ª e 3ª arguidas continuou, de forma ininterrupta, até ../../2011.

Ou seja, desde 2000 e até finais de 2011 a ofendida KK viu o seu esforço laboral consumido pelos 1ª, 2ª e 3ª arguidos que lhe ficavam com tudo quanto ganhava, estando sujeita ao controlo dos mesmos, quer quando laborava para fora, nos trabalhos agrícolas, quer quando laborava em casa com as lides domésticas.

A aceitação da KK, para trabalhar, por parte dos arguidos, continuou ininterruptamente até Novembro de 2011.

A manutenção da KK nas várias habitações dos arguidos, em Portugal e em Espanha, para exploração laboral da mesma, tendo por base o aproveitamento das claras fragilidades socio-económicas, psicológicas e emocionais da KK, continuou ininterruptamente até Novembro de 2011.

Assim, se em 2000, quando muito – e isso seria para não deixar a situação da KK num vazio legal – poderia estar em causa um crime de burla relativa a trabalho em emprego, p. e p. pelo artº 222º do Código Penal vigente ao tempo, a partir da entrada em vigor da nova redacção dada ao artº 160º do Código Penal[24], introduzida pela Lei nº 59/2007, ou seja, a partir de Setembro de 2007 a situação da ofendida KK passou a estar abrangida pelo crime de tráfico de pessoas, uma vez que a KK continuou a ser acolhida e alojada pelos ditos arguidos, para exploração do seu trabalho (quer o prestado na agricultura, quer directamente aos arguidos nas lides domésticas) que assim (continuaram) a aproveitar-se da sua situação de especial vulnerabilidade (al. d) do nº 1 do artº 160º do CP).

Note-se que apenas os actos de aliciamento ou recrutamento ocorreram em 2000. Contudo o tráfico de pessoas basta-se com o acolhimento, aceitação ou transporte, actos que continuaram a ser executados pelos 1º, 2ª e 3ª arguidas em 2007 e até 2011.

Assim, passou a existir a prática do crime de tráfico de pessoas, em relação à ofendida KK, a partir de Setembro de 2007, crime esse que apenas cessou em 2011.

Estamos, na realidade perante o que a jurisprudência do STJ apelida de crime de tracto sucessivo ou crime prolongado, uma vez que, por o crime de tráfico de pessoas tutelar bens iminentemente pessoais, não é possível considerar-se um crime na forma continuada como determina o artº 30º nº 2 do Código Penal.
 
Não se entende aceitável integrar os comportamentos dos referidos arguidos no crime de burla relativa a trabalho em emprego p. e p. pelo artº 222º do Código Penal uma vez que este tipo legal fica muito aquém daquilo que foi infligido à respectiva vítima.

Veja-se o teor do artº 222º do Código Penal:

“1 - Quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, causar a outra pessoa prejuízo patrimonial, através de aliciamento ou promessa de trabalho ou emprego no estrangeiro, é punido com pena de prisão até cinco anos ou com pena de multa até 600 dias.
2 - Com a mesma pena é punido quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, causar a pessoa residente no estrangeiro prejuízo patrimonial, através de aliciamento ou promessa de trabalho ou emprego em Portugal.
3 - É correspondentemente aplicável o disposto nos n.os 2 e 3 do artigo 206.º e no n.º 2 do artigo 218.º”

No caso da ofendida KK, bem como no dos outros dois ofendidos, JJ e NN, não estava somente em causa um enriquecimento ilícito por parte dos arguidos com a mera produção do prejuízo patrimonial na esfera dos ofendidos.

Todos eles foram sujeitos ao domínio e controlo dos 1º, 2ª e 3ª arguidos, viram a sua documentação confiscada e mantida na exclusiva posse dos referidos arguidos, viram a sua liberdade ambulatória altamente limitada e, em muitas ocasiões, verdadeiramente impedida.
O caso da KK é ainda mais gritante porquanto a mesma foi sujeita a agressões físicas e viu a sua maternidade em relação à sua filha altamente limitada, o que a inibia ainda mais pois era ameaçada, pelo menos, pelas arguidas BB e CC que se fosse embora não levaria a filha consigo.

Isto nada tem a ver com burla na angariação de trabalhadores.

Estas três vítimas não só foram enganadas pelos referidos arguidos, como foram submetidos à vontade e caprichos dos mesmos, e não se diga que também foram sustentados, vestidos e albergados pelos recorrentes porquanto essa situação, além de ter sido escolha dos próprios arguidos, que poderiam simplesmente ter recrutado pessoas para trabalharem sem as albergar em casa, utilizaram essa situação para manter pessoas psicologicamente frágeis e economicamente debilitadas sob o seu domínio.

Ainda que se aceitasse que os arguidos poderiam ter recebido uma percentagem daquilo que os ofendidos ganhavam nos trabalhos agrícolas em Espanha e mesmo cá em Portugal em troca de dormida e comida, nunca essa percentagem poderia implicar a consumpção total dos respectivos ganhos por aqueles trabalhadores.

Não só porque isso não fez parte do acordo original, pois a comida e dormida estavam já incluídas a par do salário que iriam auferir, pelo menos no que tange aos ofendidos KK e JJ, como as condições pouco dignas em que tais pessoas se encontravam – a dormirem no chão sem higiene adequada – nunca poderia corresponder ao valor dos salários prometidos e eventualmente pagos.

Por fim, estas três vítimas em concreto, e mesmo a menor LL, viram a sua liberdade ambulatória altamente restringida o que ultrapassa o bem jurídico tutelado no crime de burla relativa a trabalho e emprego.

Assim, dúvidas não nos restam de que este crime não é aplicável à situação dos 1º, 2ª e 3ª arguidos e, consequentemente, nenhuma prescrição é operável em relação ao mesmo.

Mas também se nos afigura que o crime de escravidão, pelo qual o Tribunal a quo enveredou no que tange à ofendida KK, também não se mostra preenchido.

Vejamos.

O crime de escravidão vem previsto no artº 159º do Código Penal que determina o seguinte:
“Quem:
a) Reduzir outra pessoa ao estado ou à condição de escravo; ou
b) Alienar, ceder ou adquirir pessoa ou dela se apossar com a intenção de a manter na situação prevista na alínea anterior;
é punido com pena de prisão de 5 a 15 anos.”

Afigura-se-nos que o Tribunal a quo integrou os factos relativos à ofendida KK no crime de escravidão por entender que não os podia imputar pelo tipo legal de tráfico de pessoas.

E se é certo que os referidos arguidos consumiram todos os recursos pertencentes à ofendida KK, não deixa, também, de ser verdade que tanto a KK, como a filha LL, comiam à mesma mesa dos arguidos e a mesma comida que estes consumiam, sendo que nas declarações para memória futura da KK esta diz que até à situação da gravidez as coisas até corriam bem.

E se a submissão da KK aos arguidos revela o seu frágil estado psíquico e emocional, a verdade é que se retira das suas declarações que a mesma não tinha para onde ir, não havia quem lhe facultasse suporte, ainda que económico, motivo pelo qual também aceitou a sua situação, estando, até, de certa forma, reconhecida aos arguidos por a terem acolhido a si e à filha.

Ora, o crime de escravidão tem ínsito a ideia de que a vítima é “uma coisa” ou “um objecto”, algo sobre o qual se exerce um direito de propriedade.

No caso da KK não conseguimos vislumbrar esse aspecto pese embora a mesma fosse utilizada para angariar verba para os arguidos e para lhes fazer o trabalho doméstico, a verdade é que a situação se configura mais como uma exploração de trabalho característico do tráfico de pessoas.

Assim, aos arguidos deve ser imputada a prática de um crime de tráfico de pessoas p. e p. pelo artº 160º nº 1 al. d) do Código Penal no que tange à KK, e dois crimes de tráfico de pessoas p. e p. pelo artº 160º nº 1 als. b) e d) do Código Penal no que toca aos ofendidos JJ e NN.

Quanto à arguida CC, esta ainda vem acusada de um crime de aborto na forma tentada p. e p. pelos artºs 140º nº 1 e 23º nº 2 do Código Penal.

Insurgem-se os recorrentes quanto a este crime uma vez que entendem que não ficou provado que a arguida CC quisesse fazer a KK abortar uma vez que entendem que “o que resulta provado é que a arguida CC e a KK envolveram-se em agressões.”

Ora, não só essa prova não se fez, como já tivemos ocasião de analisar, pelo que se mantiveram os factos vertidos em 26, 27 e 41, como não resulta dos factos de que dispomos que a arguida CC alguma vez tivesse “desistido” como parece resultar da argumentação expendida no recurso na página 144 do mesmo (fls. 4250 dos autos).

Mais alegam os recorrentes que a KK “estava grávida após a luta que travou com a arguida CC. O que quer que tenha acontecido entre ambas não foi apto a produzir o resultado típico.”

Ora, esta conclusão alcançada pelos recorrentes não encontra suporte na matéria de facto provada, tanto mais que, tendo ficado assente que ao tempo a KK estaria grávida de quase 6 meses, as agressões perpetradas no abdómen desta poderiam provocar contracções uterinas.

O aborto não ocorreu por motivos que são completamente alheios à vontade da arguida.

Por isso, há que manter a condenação da arguida CC pela prática do referido crime, embora na forma tentada.

Por fim, e ainda neste capítulo, os recorrentes insurgem-se contra o acórdão recorrido por entenderem que “para haver co-autoria material não basta a execução conjunta, é também indispensável uma decisão conjunta e além disso o domínio funcional do facto” – cfr. página 158 do recurso, fls. 4257 vº dos autos.

Vejamos.

Conforme resulta do disposto no artº 26º do Código Penal subordinado à epígrafe “autoria”:

“É punível como autor quem executar o facto, por si mesmo ou por intermédio de outrem, ou tomar parte directa na sua execução, por acordo ou juntamente com outro ou outros, e ainda quem, dolosamente, determinar outra pessoa à prática do facto, desde que haja execução ou começo de execução.” – sublinhado nosso

Como explanado no Acórdão do STJ de 19-02-2014[25]:
“Quando vários arguidos realizam, em comum, um facto ilícito, todos são autores (a própria lei denomina neste caso os intervenientes como «co-autores»). A co-autoria também se baseia no domínio do facto. Porém, a partir do momento em que na sua execução intervêm vários autores o domínio do facto tem de ser comum, cada co-autor domina o processo total em união com outra ou outras pessoa, consistindo assim numa «divisão de trabalho», que torna possível o facto ou que facilita o risco e requer, no aspecto subjectivo, que os intervenientes se vinculem entre si mediante uma una resolução comum sobre o facto, assumindo cada qual, dentro do plano conjunto uma tarefa parcial mas essencial que o apresenta como co-titular da execução de todo o processo.”

Ora, no caso em apreço, afigura-se-nos que não há dúvida sobre a participação dos 1º, 2ª e 3ª arguidos uma vez que, além dos três viverem na mesma casa (os outros arguidos viviam em casas diferentes embora no mesmo bairro) – facto vertido em 1 – e de partilharem o mesmo telemóvel, diferente dos restantes arguidos – facto vertido em 2 – da prova produzida, até das declarações da própria arguida BB, resulta claro que os primeiros três arguidos sempre agiram conjuntamente.

Era a arguida CC que, por norma, contactava as pessoas sabendo das suas condições difíceis.

A arguida BB além de ficar em casa onde as pessoas eram albergadas, era co-titular da conta bancária da ofendida KK, e o arguido AA, além de conduzir as pessoas até Espanha, também era co-titular de várias contas de terceiros.

Resulta claro da análise da prova na sua globalidade que os três primeiros arguidos, mais do que qualquer outro, formavam uma unidade familiar apertada onde as tarefas individuais eram assumidas de forma natural para o bem comum, tanto que não entra na trama em foco o arguido GG, que foi absolvido de todos os crimes imputados, a arguida EEEE só foi condenada pela prática de um crime em relação à ofendida LL, e em relação a quem determinamos a respectiva absolvição e aos arguidos EE e FF o Tribunal a quo imputou-lhes a prática de crime de burla relativa ao trabalho que julgou prescrito.

Isto revela à saciedade que o Tribunal a quo soube distinguir os vários graus de participação, tanto que, à arguida DD, além de lhe imputar apenas um crime de tráfico de pessoas, fê-lo pelo nº 5 do artº 160º do Código Penal aplicando, consequentemente, uma pena muito menor que até suspendeu na sua execução.

Não há a menor dúvida que a arguida CC, de todos os filhos dos 1º e 2ª
 arguidos, que são casados entre si, foi quem mais participou activamente no esquema de explorar os ofendidos em causa.


A ofendida KK fala principalmente nas 2ª e 3ª arguidas, BB e CC, cujas actuações por si descritas aparecem quase sempre em conjunto, até no que tange à descoberta da sua gravidez, tendo sido as arguidas BB e CC quem a levaram ao Hospital ... – presume-se que quem as conduziu foi o 1º arguido, uma vez que a enfermeira VV mencionou uma terceira pessoa que, contudo, não conseguiu identificar.

O JJ nas suas declarações para memória futura diz claramente que foi abordado por ambas as arguidas BB e CC e que foram elas quem lhe propuseram ir trabalhar para Espanha.

Aliás, as 2ª e 3ª arguidas abordaram apenas o JJ com quem foram ter especificamente a ... – cfr. fls. 2085 vº.

Ora, os recorrentes perguntam porque motivo não se incluiu a QQ que até era co-tiutlar das contas bancárias esquecendo-se que a QQ não foi sequer acusada.

E quanto aos filhos EE e AA o Tribunal a quo viria considerar que os mesmos não tinham o mesmo grau de participação, por esse mesmo motivo imputou àquela um crime de menor gravidade que, entretanto, declarou prescrito e absolveu este último.
Conclui-se, assim, não haver qualquer dúvida que os 1º, 2ª e 3ª arguidos agiram conjuntamente para o mesmo fim, devendo ser condenados como co-autores no que tange aos três crimes de tráfico de pessoas.

VII)  Das Penas:

Todos os recorrentes, à cautela, impugnam as penas concretamente aplicadas por considerarem as mesmas exageradas, e pugnam pela atenuação especial das mesmas ao abrigo do artº 72º nº 2 al. d) do CP, por ter decorrido já muito tempo sobre a respectiva prática dos factos, mantendo os recorrentes boa conduta, atenuação essa com a qual pretendem ver aplicadas penas que permitem a suspensão da respectiva execução, ainda que sujeito a regime de prova.

Antes de entrarmos nesta última parte da nossa análise vejamos, primeiro, o que disse o Tribunal a quo quando fixou as penas concretas de cada arguido.

“Vejamos agora as penas.

Para tanto há que atender à culpa do agente (suporte e limite axiológico de toda a pena), às exigências de prevenção e a todas as circunstâncias que, não sendo típicas, militem contra ou a seu favor (art. 70º C. Penal).
Como é sabido, o nosso Direito Penal tem uma concepção funcional e relativa da pena, que não encontra justificação em si mesma, mas sempre por referência à protecção de bens jurídicos e à reintegração do agente na sociedade, sendo por isso estas as finalidades da punição.
Com a Reforma de 2017, os factores de determinação da pena mantiveram-se intocados, havendo apenas alterações quanto ás penas substitutivas.
As penas não sofreram alterações.
Há um elemento comum a todos os arguidos, que tem que ver com o tempo entretanto já decorrido sobre a data dos factos, no caso, cerca de 9 anos, e que atenua em muito as exigências de prevenção geral (positiva, de integração), mau grado a repulsa que aqueles crimes causam e o já referido supra acerca do incremento da exploração laboral
Por isso que o limiar mínimo de defesa do ordenamento jurídico (abaixo do qual se colocaria em causa a crença da comunidade na efectiva protecção/tutela dos bens jurídicos) se situa num nível moderado, o que favorece os arguidos.
A culpa assume um grau muito intenso (dolo directo) e persistente, impressionando a período temporal de manutenção da exploração/escravidão pelo que o ponto máximo da moldura consentido pela culpa é elevado, o que os prejudica.
Também os prejudica fazerem da referida actividade fonte principal de obtenção de receitas.
A ilicitude dos factos, não obstante ser elevadíssima em si mesma considerada, é normal dentro da pressuposta pelos crimes, o que se apresenta como factor neutro.
Favorecem os arguidos a ausência de antecedentes criminais, a inserção social e profissional.
Tudo ponderado, cremos adequadas as seguintes penas parcelares para cada um dos 1º, 2º e 3º arguidos (não havendo razões ponderosas para distinguir entre 1º e 2º arguidos; quanto á 3ª, se é certo que joga a seu favor a idade á data dos factos, não o é menos que era a mais violenta, justificando-se a equiparação das penas): 5 anos e 6 meses para cada um dos 3 crimes de escravidão; 3 anos e 6 meses de prisão para cada um dos 3 crimes de tráfico de pessoas.
Acresce a pena parcelar relativa ao aborto tentado, no que toca à CC e que, dentro da moldura especialmente atenuada da tentativa (arts. 23º/2 e 73º/1-a) e b) ambos do CP: 1 mês a 5 anos e 4 meses) e ponderando o supra já referido e ainda um grau de ilicitude significativo dado o modus operandi, se julga adequado fixar em 10 meses.
Em cúmulo jurídico, ponderando em conjunto a globalidade dos factos, sua gravidade, tempo considerável entretanto decorrido, ausência de antecedentes e inserção social, cremos adequada uma pena única de 8 anos de prisão para cada um dos 1º e 2º arguidos e de 8 anos e 6 meses para a 3º arguida.
Quanto á arguida DD, militam a seu favor a idade, á data dos factos (21 anos feitos); a integração social e profissional, ausência de antecedentes e, contra o grau de culpa, e numa moldura que varia entre os 1 e 5 anos de prisão, cremos adequada uma pena de 2 anos.
Quanto a esta arguida já ganha maior acuidade a questão da lei no tempo, face á reforma de 2017 do CP, e cremos que, não sendo obrigatório o regime de prova, deverá ser aplicado para acompanhar o processo de ressocialização da arguida e não vendo razão parta fixar um prazo de suspensão inferior ao da pena, temos que a pena seria a mesma á luz de uma qualquer das leis sucessivas: 2 anos de prisão suspensa por igual prazo e mediante regime de prova.
Esta arguida tinha menos de 30 anos de idade à data da prática dos factos, mas não beneficia da Lei 38-A/2023 de 2-8 (Perdão de Penas e Amnistia), quer porque o crime cometido é exceptuado da aplicação daquela Lei (art. 7º/1-a) iv)), quer porque a pena de prisão suspensa na sua execução com regime de prova não é, enquanto tal, objecto do perdão (art. 3º/2-d) da citada Lei).
Quanto ao apreendido:
Os documentos pessoais e os demais docs. oficiais portugueses ou espanhóis porque caducados deverão ser devolvidos ás entidades emitentes para destruição ou para os efeitos tidos por convenientes, deixando copia.
Os docs bancários e restantes deverão ser restituídos se reclamados no prazo legal sob pena de perdimento a favor do Estado.
De igual modo se fará quanto aos telemóveis, posto que na acusação a sua utilização não vem caracterizada como essencial – nem tal decorreu da audiência – sendo de salientar que, e como se acentua no ac. STJ de 29/2/2012, P. 999/10.9TALRS.S1 (dgsi), a perda de bens não tem uma natureza jurídica unitária, assumindo carácter próximo da sanção penal quando se dirige contra o autor, ou participante, ao qual pertencem os objectos e, neste caso, serve, simultaneamente para a defesa da colectividade, para a prevenção geral para expressar a ideia da perda da propriedade sobre os instrumentos do delito e para influir em sede de prevenção especial, sobre o agente, que mediante a perda pode ficar afectado com maior dureza que pela própria pena, pelo que deve ser proporcional á gravidade do crime e da pena, através dum juízo sobre a sua essencialidade para o cometimento do crime, e tal não é o caso.”


Vejamos agora o caso dos autos, olhando, primeiro, o que diz o quadro legal, doutrinal e jurisprudencial aplicável ao caso sub iudice.

O artº 40º do Código Penal (CP), cuja epígrafe é "finalidades das penas e das medidas de segurança" dispõe o seguinte:

"1. A aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.
2. Em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa.
3. A medida de segurança só pode ser aplicada se for proporcionada à gravidade do facto e à perigosidade do agente."

O artº 70º do CP, cuja epígrafe é "critério de escolha da pena" dispõe o seguinte:
"Se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição."

E o artº 71º CP, subordinado à epígrafe "determinação da medida da pena" diz o seguinte:
"1. A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.
2. Na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de criem, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando, nomeadamente:
a) O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente;
b) A intensidade do dolo ou da negligência;
c) Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram;
d) As condições pessoais do agente e a sua situação económica;
e) A conduta anterior ao facto e posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime;
f) A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.
3. Na sentença são expressamente referidos os fundamentos da medida da pena."
           
Em termos doutrinais, ensina-se nos Figueiredo Dias[26] que "as finalidades de aplicação de uma pena residem primordialmente na tutela dos bens jurídicos e, na medida possível, na reinserção do agente na comunidade. Por outro lado, a pena não pode ultrapassar, em caso algum, a medida da culpa. Nestas duas proposições reside a fórmula básica de resolução das antinomias entre os fins das penas; pelo que também ela tem de fornecer a chave para a resolução da medida da pena."

Como se afirma no Acórdão do STJ de  08-01-2014[27], cujo relator é o Exmº Sr. Juiz Conselheiro Souto Moura:
“Assim, a partir da moldura legal do crime, haverá que formar uma submoldura para o caso concreto, limitada, no máximo, pelo ponto ótimo da satisfação das necessidades de prevenção geral positiva, e, no mínimo, pela medida ainda ajustável àquelas necessidades. As exigências de prevenção especial ditarão a pena concreta, tudo, evidentemente, sem ultrapassar o grau de censura que o agente pode suportar, ou seja a sua culpa.”

Tem sido jurisprudência pacífica que o Tribunal de recurso só deve alterar as medidas concretas das penas que se revelem ilegais ou que se desviem do padrão de penas comumente aplicado em iguais circunstâncias.[28]

Conforme se esclarece no Acórdão da Relação de Coimbra de 16-02-2022[29]:
“Quanto aos limites de controlabilidade da determinação da pena em sede de recurso deve prevalecer o entendimento doutrinal e jurisprudencial segundo o qual é suscetível de revista a correção das operações de determinação ou do procedimento, a indicação de fatores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, a falta de indicação de fatores relevantes, o desconhecimento pelo tribunal ou a errada aplicação dos princípios gerais de determinação, mas a determinação do quantum exato de pena só pode ser objeto de alteração perante a violação das regras da experiência ou a desproporção da quantificação efetuada.”

Tendo o STJ estabelecido, há vários anos, por exemplo através do seu acórdão de 15-11-2006 [30]que:

“VIII. Todos estão hoje de acordo em que é susceptível de revista a correcção do procedimento ou das operações de determinação, o desconhecimento pelo tribunal ou a errónea aplicação dos princípios gerais de determinação, a falta de indicação de factores relevantes para aquela, ou, pelo contrário, a indicação de factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis. Não falta, todavia, quem sustente que a valoração judicial das questões de justiça ou de oportunidade estariam subtraídas ao controlo do tribunal de revista, enquanto outros distinguem: a questão do limite ou da moldura da culpa estaria plenamente sujeita a revista, assim como a forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção, mas já não a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto de pena, para controlo do qual o recurso de revista seria inadequado. Só não será assim, e aquela medida será controlável mesmo em revista, se, v.g., tiverem sido violadas regras da experiência ou se a quantificação se revelar de todo desproporcionada.” – sublinhado nosso

E, continua tal acórdão, concluindo que:

“IX - Se, sindicada a decisão recorrida, se verifica que:
- a mesma equaciona devidamente a determinação do fim das penas, no caso e na sua tríplice dimensão de justa retribuição da culpa; de contribuição para a reinserção social do arguido em sede de prevenção especial, e meio de neutralizar os efeitos negativos da prática do crime em sede de prevenção;
- estão elencados os elementos fácticos relevantes para individualização penal;
- está patente, de forma razoável, consciente e suficiente, a conexão intelectual entre aqueles elementos de facto e os fins das penas; é manifesto que se encontram correctamente definidos os parâmetros dentro dos quais tem lugar a fixação da medida concreta da pena, pelo que não se vislumbra qualquer razão para colocar em causa a decisão recorrida no que concerne às penas parcelares e à pena conjunta.”

Voltando ao caso em apreço, e tendo a arguida DD sido absolvida, há apenas que determinar a validade das penas fixadas aos 1º, 2ª e 3ª arguidos, sendo que os três cometeram, em co-autoria, 3 crimes de tráfico de pessoas p. e p. pelo artº 160º nº 1 do Código Penal, tendo a arguida CC ainda cometido, em autoria material, o crime de aborto na forma tentada, p. e p. pelo artº 140º nº 1 e 23º nº 2 do Código Penal.

Comecemos pelo crime de tráfico de pessoas.

A moldura penal prevista no artº 160 nº 1 do Código Penal é de 3 a 10 anos de prisão.

Uma vez que em relação à ofendida KK o Tribunal a quo enveredou pelo crime de escravidão, cuja moldura penal é de 5 a 15 anos de prisão, não é possível manter a pena parcelar determinada pelo crime contra esta ofendida, que foi fixada em 5 anos e 6 meses de prisão.

E, em relação aos ofendidos JJ e NN, o Tribunal a quo fixou a cada arguido e por cada um dos ofendidos uma pena de 3 anos e 6 meses.

Pugnam os recorrentes pela atenuação especial nos termos do artº 73º nº 2 al. d) do Código Penal.

Vejamos.

Diz o artº 72º do Código Penal, subordinado à epígrafe “atenuação especial da pena” o seguinte:
“1 - O tribunal atenua especialmente a pena, para além dos casos expressamente previstos na lei, quando existirem circunstâncias anteriores ou posteriores ao crime, ou contemporâneas dele, que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena.
2 - Para efeito do disposto no número anterior, são consideradas, entre outras, as circunstâncias seguintes:
a) Ter o agente actuado sob influência de ameaça grave ou sob ascendente de pessoa de quem dependa ou a quem deva obediência;
b) Ter sido a conduta do agente determinada por motivo honroso, por forte solicitação ou tentação da própria vítima ou por provocação injusta ou ofensa imerecida;
c) Ter havido actos demonstrativos de arrependimento sincero do agente, nomeadamente a reparação, até onde lhe era possível, dos danos causados;
d) Ter decorrido muito tempo sobre a prática do crime, mantendo o agente boa conduta.
3 - Só pode ser tomada em conta uma única vez a circunstância que, por si mesma ou conjuntamente com outras circunstâncias, der lugar simultaneamente a uma atenuação especialmente prevista na lei e à prevista neste artigo.”

Ora, os factos cessaram em ../../2011, quando os ofendidos KK e JJ foram resgatados, sendo que para o ofendido NN tinham já cessado em 2010 quando este se veio embora.

O inquérito viu o seu início em 21-03-2011 com a informação de serviço prestada pela PJ na sequência da queixa apresentada pelo HH.

A acusação só foi deduzida contra os arguidos em 30-06-2017, ou seja, quase 6 anos após o resgate da KK e JJ.
O julgamento só se iniciou em 2018 tendo o primeiro acórdão sido prolatado em 08-03-2020, ou seja, 9 anos após o início do inquérito.

Entretanto, com a interposição de recurso, as sucessivas baixas para a 1ª instância, eis que estamos em Dezembro de 2024 a decidir as penas aplicáveis aos arguidos.

Decorreram 13 anos sobre a prática dos factos e 24 anos sobre o início da trama que trouxe este pedaço de vida à barra do tribunal.

Ora, os arguidos não são responsáveis pela demora anormal na tramitação dos presentes autos, sendo para nós incompreensível o motivo pelo qual levou 6 (seis) anos a deduzir uma acusação, quando ao processo não foi sequer atribuído uma especial complexidade.

Ora, os arguidos não têm quaisquer antecedentes criminais, sendo que desde Novembro de 2011 até hoje não lhes são conhecidos quaisquer comportamentos ilícitos, mostrando-se os mesmos devidamente inseridos em sociedade.

E, em relação à arguida CC sabemos do facto vertido em 44 que:

44) A 3ª arguida desde muito cedo e por desmotivação na aprendizagem ingressou no mundo laboral tendo então concluído e apenas a 4ª classe, passando a ajudar os pais e ora 1º e 2º arguidos.
Veio, no entanto, e já em idade adulta a obter equivalência ao 9º ano de escolaridade ao abrigo do programa Novas Oportunidades.
A contar de 2013, passou a viver em união de facto com um companheiro, nas .../..., em casa arrendada, tendo, no entanto, há cerca de 2 anos, comprado, juntamente com aquele, uma vivenda, na aldeia  de ..., concelho ..., de tipologia T4, com boas condições de habitabilidade e conforto e com terreno de cultivo contíguo ao imóvel.
Desde Agosto de 2015 que trabalha para a S. Casa da Misericórdia num Lar de Idosos (...) como ajudante familiar/domiciliário, auferindo o salário mínimo.
É tida como uma trabalhadora responsável, assídua e empenhada, mantendo um muito bom relacionamento com os utentes; ajuda ainda o companheiro na pastorícia de um rebanho de gado ovino, usufruindo o casal de uma situação económica remediada.
É tida por pessoa afável e educada.
Não tem antecedentes criminais.

Ou seja, já após os factos e mesmo antes de ser alvo de censura no âmbito deste processo a 3ª arguida reorganizou a sua vida em todos os campos, mostrando-se inserida familiar, laboral e socialmente.

O 1º arguido AA está prestes a fazer 72 anos (pois nasceu a ../../1952) e a 2ª arguida BB, por ter nascido a ../../1950, tem 74 anos.

Ambos padecem de graves problemas de saúde atento o teor dos factos vertidos em 43.

Afigura-se-nos que os recorrentes reúnem as condições legais para poderem beneficiar da atenuação especial da pena prevista no citado artº 72º nº 2 al. d) do CP.

Assim, e no que tange ao crime de tráfico de pessoas, na moldura penal, por força do disposto no artº 73º do Código Penal, o limite máximo é reduzido de um terço e o limite mínimo, por ser de 3 anos, é reduzido a um quinto.

Pelo que a moldura penal especialmente atenuada passa a ser de 7 (sete) meses e 6 (seis) dias a 6 (seis) anos e 8 (oito) meses.

Considerando que:
- a ilicitude é mediana no que tange aos ofendidos JJ e NN mas já é elevada no que tange à KK, quer pelo maior tempo implicado, quer pelas agressões físicas a que fora sujeita;
- a culpa é elevada porquanto os crimes foram praticados com dolo directo, contudo afigura-se-nos que, em relação à arguida CC, por ser filha e dependente dos 1º e 2ª arguidos ao tempo, que seguramente teriam uma ascendência sobre si enquanto pais, a sua culpa revela-se menos vincada;
- as necessidades de prevenção geral mostram-se mitigadas com o lapso de tempo decorrido;
- as necessidades de prevenção especial mostram-se reduzidas quer porque nenhum dos arguidos tem antecedentes criminais, porque se mostram todos devidamente inseridos na sociedade;

Assim, em face de todos estes elementos e porque se nos afigura que a situação da KK, por ser muito mais grave que a situação do JJ e NN, deve ser distinguida, bem como a da CC que terá um grau de culpa ligeiramente inferior aos dos pais fixam-se as seguintes penas:

Para os arguidos AA e BB:
- em relação aos ofendidos JJ e NN, uma pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses para cada ofendido;
- em relação à ofendida KK uma pena de 4 (quatro) anos.

Em cúmulo jurídico, e considerando que a moldura concursal é de 4 (quatro) a 9 (nove) anos de prisão (cfr. artº 77º nº 2 do Codigo Penal), considerando ainda que nos termos do nº 1 do artº 77º do Código Penal, além dos factos há que tomar em consideração a personalidade dos arguidos o que, no caso concreto, vem revelado nos factos vertidos em 43, afigura-se-nos que a ambos os 1º e 2ª arguidos deve ser fixada uma pena única de 5 (cinco) anos de prisão.

Para a arguida CC:
- em relação aos ofendidos JJ e NN, uma pena de 2 (dois) anos para cada ofendido;
- em relação à ofendida KK uma pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses.

Considerando, ainda, o crime de aborto na forma tentada também imputada a esta arguida há que previamente determinar a respectiva moldura penal e correspondente pena, sendo que, o crime na sua forma tentada já beneficia de uma atenuação especial, pelo que não há que operar uma segunda atenuação.

Assim, o crime de aborto p. e p. pelo artº 140º nº 1 do Código Penal é punido com prisão de 2 (dois) a 8 (oito) anos.

Pelo que, nos termos do artº 73º do CP, o limite máximo da moldura penal é reduzida de um terço enquanto que o limite mínimo, por ser inferior a 3 anos, é reduzido para o mínimo legal que, nos termos do artº 41º nº 1 do CP, é de um mês.

Assim, a nova moldura penal é de 1 (um) mês a 5 (cinco) anos e 4 (quatro) meses.

 No que tange a este crime afigura-se-nos que o Tribunal a quo, ao fixar uma pena de 10 (dez) meses de prisão, fixou uma pena justa e adequada não só à culpa da arguida, que neste crime se revela vincada, considerando, ainda, que a própria ofendia acabou por voluntariamente pôr termo à gravidez em momento posterior.
Assim, em cúmulo jurídico, e considerando que a moldura concursal é de 3 (três) anos e 6 (seis) meses a 8 (oito) anos e 4 (quatro) meses, e porque a arguida CC soma mais um crime do que os 1º e 2ª arguidos, também se nos afigura adequada uma pena única de 5 (cinco) anos de prisão.

Nos termos do disposto no artº 50º do Código Penal:
“1 - O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
2 - O tribunal, se o julgar conveniente e adequado à realização das finalidades da punição, subordina a suspensão da execução da pena de prisão, nos termos dos artigos seguintes, ao cumprimento de deveres ou à observância de regras de conduta, ou determina que a suspensão seja acompanhada de regime de prova.
3 - Os deveres e as regras de conduta podem ser impostos cumulativamente.
4 - A decisão condenatória especifica sempre os fundamentos da suspensão e das suas condições.
5 - O período de suspensão é fixado entre um e cinco anos.”

Dado tudo quanto temos vindo a considerar, mormente que desde a prática dos factos, ocorrida há 13 anos, não mais os arguidos voltaram a prevaricar, sendo que antes da prática dos factos também não possuíam quaisquer antecedentes criminais e dado o longo lapso de tempo sem que os arguidos tenham voltado a cometer crimes, permite-nos, com segurança, concluir que a simples ameaça da pena é suficiente para cumprir as finalidades da punição.

Os arguidos revelam estarem inseridos social e familiarmente.

A arguida CC organizou a sua vida em todos os campos mostrando-se uma pessoa normativamente integrada na sociedade.

O mesmo se diga em relação aos 1º e 2ª arguidos, os quais, devido à idade e problemas de saúde já não trabalham continuando, contudo, a ser vistos de forma positiva.

Por isso, se nos afigura que as respectivas penas únicas devem todas ser suspensas na sua execução pelo período de 3 (três) anos.

Deve ainda a suspensão da pena ser sujeita a regime de prova nos termos do artº 53º do Código Penal, com oportuna elaboração de plano de reinserção social, pela respectiva equipa técnica, nos termos do artº 54º do Código Penal, a fim de acompanhar os arguidos durante a suspensão.

Procede, assim, em parte o recurso dos recorrentes.

Decisão:

Em face do acima exposto, os Juízes Desembargadores da Secção Penal da Relação de Guimarães, julgando PARCIALMENTE PROCEDENTE o recurso dos arguidos, decidem:

I) Julgar parcialmente procedente a impugnação da matéria de facto, pelo que determinam a alteração dos factos nos termos determinados supra no corpo deste acórdão.

II) Em consequência dessa alteração da matéria de facto:
a) Absolvem a arguida DD da prática de um crime de tráfico de pessoas p. e p. pelo artº 160º nº 5 do Código Penal, na pessoa de LL, mantendo a absolvição que já constava do acórdão recorrido em relação aos restantes crimes.
b) Absolvem os arguidos AA, BB e CC do crime de escravidão p. e p. pelo artº 159º al. b) do Código Penal na pessoa de HH;
c) Absolvem os arguidos AA, BB e CC do crime de escravidão p. e p. pelo artº 159º al. b) do Código Penal na pessoa de II;
d) Absolvem os arguidos AA, BB e CC do crime de escravidão p. e p. pelo artº 159º al. b) do Código Penal na pessoa de KK;
           
III) Condenam:
A) O arguido AA:
i) Em co-autoria material pela prática de um crime de tráfico de pessoas p. e p. pelo artº 160º nº 1 al. d) do Código Penal na pessoa de KK na pena de 4 (quatro) anos de prisão;
ii) Em co-autoria material pela prática de um crime de tráfico de pessoas p. e p. pelo artº 160º nº 1 als. b) e d) do Código Penal na pessoa de JJ na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão;
iii) Em co-autoria material pela prática de um crime de tráfico de pessoas p. e p. pelo artº 160º nº 1 als. b) e d) do Código Penal na pessoa de NN na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão;
iv) Em cúmulo jurídico na pena única de 5 (cinco) anos de prisão cuja execução suspendem por 3 (três) anos sujeito a regime de prova nos termos do artsº 53º e 54º do Código Penal.

B) A arguida BB:
i) Em co-autoria material pela prática de um crime de tráfico de pessoas p. e p. pelo artº 160º nº 1 al. d) do Código Penal na pessoa de KK na pena de 4 (quatro) anos de prisão;
ii) Em co-autoria material pela prática de um crime de tráfico de pessoas p. e p. pelo artº 160º nº 1 als. b) e d) do Código Penal na pessoa de JJ na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão;
iii) Em co-autoria material pela prática de um crime de tráfico de pessoas p. e p. pelo artº 160º nº 1 als. b) e d) do Código Penal na pessoa de NN na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão;
iv) Em cúmulo jurídico na pena única de 5 (cinco) anos de prisão cuja execução suspendem por 3 (três) anos sujeito a regime de prova nos termos do artsº 53º e 54º do Código Penal.

C) A arguida CC:
i) Em co-autoria material pela prática de um crime de tráfico de pessoas p. e p. pelo artº 160º nº 1 al. d) do Código Penal na pessoa de KK na pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão;
ii) Em co-autoria material pela prática de um crime de tráfico de pessoas p. e p. pelo artº 160º nº 1 als. b) e d) do Código Penal na pessoa de JJ na pena de 2 (dois) anos de prisão;
iii) Em co-autoria material pela prática de um crime de tráfico de pessoas p. e p. pelo artº 160º nº 1 als. b) e d) do Código Penal na pessoa de NN na pena de 2 (dois) anos de prisão;
iv) Em autoria material pela prática de um crime de aborto na forma tentada p. e p. pelos artºs 140º nº 1 e 23º do Código Penal na pessoa de KK na pena de 10 (dez) meses de prisão;
v) Em cúmulo jurídico na pena única de 5 (cinco) anos de prisão cuja execução suspendem por 3 (três) anos sujeito a regime de prova nos termos do artsº 53º e 54º do Código Penal.

IV) Em todo o mais confirmam o acórdão recorrido.

Sem custas, atenta a parcial procedência do recurso dos arguidos.
Guimarães, 18 de Dezembro de 2024.

Florbela Sebastião e Silva (Relatora)
Pedro Freitas Pinto (1º Adjunto)
Júlio Pinto (2º Adjunto)
Ana Teixeira (Presidente da Secção Penal)


[1] Ouvida na sessão realizada em 20-02-2018, cujo depoimento ficou devidamente consignado na ata dessa sessão das 11:44:03 às 12:09:16, encontrando-se registadas em Cd áudio àquelas horas, aos minutos 01:00 a 25:12.
[2] Ouvido na sessão realizada em 20-02-2018, cujo depoimento ficou devidamente consignado na ata dessa sessão das 12:09:17 às 13:01:12, encontrando-se registadas em Cd áudio àquelas horas, mencionou, sobre esta matéria, o seguinte [aos minutos 05:00 a 51:54].
[3] Ver a nota 1 do acórdão da RC de 21/01/2009, relatado por Gabriel Catarino, no proc. 45/05.4TAFIG.C2, in www.dgsi.pt, que reproduzimos: “Cfr. Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 05.12.2007; proferido no proc. nº 1378/07, disponível in Sumários do Supremo Tribunal de Justiça; www.stj.pt. “O objecto do recurso é definido e balizado pelas conclusões extraídas da respectiva motivação, ou seja, pelas questões que o recorrente entende sujeitar ao conhecimento do tribunal de recurso aquando da apresentação da impugnação – art. 412.º, n.º 1, do CPP –, sendo que o tribunal superior, tal qual a 1.ª instância, só pode conhecer das questões que lhe são submetidas a apreciação pelos sujeitos processuais, ressalvada a possibilidade de apreciação das questões de conhecimento oficioso, razão pela qual nas alegações só devem ser abordadas e, por isso, só assumem relevância, no sentido de que só podem ser atendidas e objecto de apreciação e de decisão, as questões suscitadas nas conclusões da motivação de recurso, questões que o relator enuncia no exame preliminar – art. 417.º, n.º 6, do CPP –, a significar que todas as questões incluídas nas alegações que extravasem o objecto do recurso terão de ser consideradas irrelevantes. Cfr. ainda Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 24.03.1999, CJ VII-I-247 e de 20-12-2006, processo 06P3661 em www.dgsi.pt) no sentido de que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas [Ressalvando especificidades atinentes à impugnação da matéria de facto, na esteira do doutrinado pelo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17-02-2005, quando afirma que :“a redacção do n.º 3 do art. 412.º do CPP, por confronto com o disposto no seu n.º 2 deixa alguma margem para dúvida quanto ao formalismo da especificação dos pontos de facto que no entender do recorrente foram incorrectamente julgados e das provas que impõem decisão diversa da recorrida, pois que, enquanto o n.º 2 é claro a prescrever que «versando matéria de direito, as conclusões indicam ainda, sob pena de rejeição» (...), já o n.º 3 se limita a prescrever que «quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar (...), sem impor que tal aconteça nas conclusões.” -proc 04P4716, em www.dgsi.pt; no mesmo sentido o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16-06-2005, proc 05P1577,] (art.s 403º e 412º do Código de Processo Penal), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (art. 410º nº 2 do Código de Processo Penal e Acórdão do Plenário das secções criminais do STJ de 19.10.95, publicado no DR Iª série A, de 28.12.95).”.
[4] O acrescento da “KK” visou, apenas, suprir a um ostensivo lapso cometido no texto original do primitivo acórdão.
[5] O acrescento de “quando” visou a mesma finalidade da nota anterior.
[6] A eliminação da 2ª nota constante do acórdão primitivo – referente à validade das buscas e das declarações para memória futura e sua consequente valoração – deve-se, evidentemente, ao facto de sobre tais matérias incidir caso julgado, no sentido da sua validade e possibilidade de valoração, na sequencia do douto acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães proferido nos presentes autos a 10-05-2021.
[7] Consultável em:
http://www.gde.mj.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/975e421cfd8f6bda80258975005970b4?OpenDocument
[8] Consultável em:
https://jurisprudencia.pt/acordao/191823/
[9] Consultável em:
https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20230893.html
[10] In Código de Processo Penal Anotado, Vol. 2, Editora Rei dos Livros, p. 514 e 515.
[11] Ac. Relação do Porto de 24-04-2013, procº nº 1800/10.9TAVLG.P1, in www.dgsi.pt.
[12] Ac. Relação de Évora de 20-06-2006, procº nº 717/06.1, in www.dgsi.pt.
[13] Procº nº 502/08.0GEALR.S1 in “Diário da República Electrónico”.
[14] Acórdão do STJ de 27-04-2017, procº nº 452/15.4JAPDL.L1.S1, in “Diário da República Electrónico”.
[15] Consultável em:
https://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/8fe0e606d8f56b22802576c0005637dc/2234acfc5e60c1ad80257d7800385384?OpenDocument
[16] Ac. Rel. Évora de 28-05-2013 no procº nº 166/11.4IDFAR.E1 in dgsi.pt.
[17] In www.dgsi.pt.
[18] In “Comentário do Código de Processo Penal”, 4ª edição actualizada, reimpressa na Universidade Católica em 2018, página 1144.
[19] Visitas essas por norma programadas como confirmou a referida testemunha, o que permitiria aos arguidos “preparar” a habitação e esconder as pessoas a mais.
[20] Ainda hoje os 1º e 2ª arguidos vivem em tal casa camarária, sendo que a 3ª arguida passou a residir em habitação própria conforme facto vertido em 44.
[21] https://www.biologianet.com/curiosidades-biologia/sindrome-de-estocolmo.htm
[22] O acrescento da “KK” visou, apenas, suprir a um ostensivo lapso cometido no texto original do primitivo acórdão.
[23] O acrescento de “quando” visou a mesma finalidade da nota anterior.
[24] Até a entrada em vigor da Lei nº 59/2007 o artº 160º do Código Penal estava dedicado ao crime de rapto.
[25] Localizável em:
https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/-/4B7E548FDD821CE280257CB6003EF674
[26] In Direito Penal Português As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas Editorial Notícias, p. 227 e ss.
[27] Localizável em:
https://dre.pt/dre/detalhe/acordao/221-2014-90006375
[28] A título meramente exemplificativo veja-se o Acórdão da Relação de Coimbra de 05-04-2017 (procº nº 47/15.2IDLRA.C1 consultável em
http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/8fe0e606d8f56b22802576c0005637dc/662e82df607198c380258105004915d3?OpenDocument):
“I - No quadro da moldura penal abstracta, a fixação [da pena] estabelece-se entre o mínimo, em concreto imprescindível à estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada, e o máximo que a culpa do agente consente: entre estes limites satisfazem-se as necessidades da prevenção especial positiva ou de socialização.
II - Relativamente à determinação do quantum exacto de pena [só] será objecto de alteração se tiver ocorrido violação das regras da experiência ou se se verificar desproporção da quantificação efectuada.”
[29] Consultável em:
https://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/8fe0e606d8f56b22802576c0005637dc/237c1e10c9102d7a802587f3004a8fd3?OpenDocument
[30] Consultável em:
https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/9b61edbdfa035287802572db00449149?OpenDocument