Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
| ||
Relator: | RICARDO MIRANDA PEIXOTO | ||
Descritores: | COBRANÇA COERCIVA DE CRÉDITO PATROCÍNIO JUDICIÁRIO SANAÇÃO ÓNUS DA PROVA | ||
![]() | ![]() | ||
Data do Acordão: | 03/13/2025 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
![]() | ![]() | ||
![]() | ![]() | ||
Sumário: | I. Consideradas as regras do ónus da prova (cfr. artigo 342.º do CC) e a causa de pedir de acção declarativa de cobrança de crédito fundado no incumprimento da obrigação de pagamento do preço da venda de bens, impende sobre o autor o ónus de alegar e provar a realização do fornecimento enquanto prestação contratual que dá origem à obrigação do réu, o preço e a respectiva data de vencimento. II. Por não constituir um facto, mas um juízo que pressupõe a aplicação de regras jurídicas, não pode constar do rol dos factos provados, ou não provados, da sentença proferida na mesma acção que determinadas facturas se encontram em dívida, nem que o valor em dívida é de determinado montante. III. Nas acções em que é obrigatório o patrocínio de advogado, a subscrição da petição / requerimento inicial por pessoa que não possua essa qualidade profissional constitui uma situação de falta de constituição de advogado, regulada no artigo 41.º do CPC, sanável mediante a notificação do demandante para o constituir dentro de prazo certo, sob pena de o réu ser absolvido da instância. IV. Ainda que se não encontrasse preenchido o pressuposto processual da constituição obrigatória de advogado pelo autor, deveria, nos termos previstos pelo n.º 3 do artigo 278.º do CPC, ser proferida decisão de conhecimento de mérito favorável à sua pretensão, em vez da extinção formal da instância, sob pena de se beneficiar o devedor pelo incumprimento de uma regra adjectiva criada para proteger o credor da sua falta de conhecimentos jurídicos para fazer valer em juízo um direito próprio. (Sumário do Relator) | ||
![]() | ![]() | ||
![]() | ![]() | ||
Decisão Texto Integral: | Apelação 67207/23.8YIPRT.E1 Tribunal Judicial da Comarca de Faro, Juízo Local Cível de Loulé - Juiz 1 * SUMÁRIO (artigo 663.º, n.º 7, do CPC): (…)*** * Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora, sendoRelator: Ricardo Miranda Peixoto; 1º Adjunto: Manuel Bargado; 2º Adjunto: Susana Ferrão da Costa Cabral. * I. RELATÓRIO*** * A.Na presente acção especial para cumprimento de obrigação pecuniária, proposta como injunção contra (…), Serviços Médicos, Unipessoal, Lda., veio a Autora 3º (…), Lda. pedir condenação da Ré no pagamento da quantia de € 4.492,18, acrescida de juros de mora vencidos à taxa comercial, que perfazem a quantia de € 576,66 e de juros de mora vincendos até efetivo e integral pagamento, bem como o montante de € 600,00 a título de “outras quantias”. Alega para o efeito que o montante do capital peticionado corresponde ao preço, facturado e não pago, do fornecimento de bens e serviços que, no exercício da sua atividade, prestou à Ré em cumprimento de contrato de fornecimento de bens e serviços entre ambas celebrado. * B.Opôs-se a Ré, defendendo-se por excepção e por impugnação. Excepcionou a ineptidão do requerimento de injunção e o cumprimento defeituoso por parte da Autora, dado que os produtos foram entregues sem a qualidade e sem a necessária certificação, pelo que resultaram parcialmente devolvidos em Maio de 2022. Do montante reclamado é apenas devida a quantia de € 1.010,64. * C.Notificada para o efeito, a Autora respondeu às excepções contidas na oposição, sustentando a sua improcedência e impugnando a matéria de facto na qual se sustentam. * D.Por despacho datado de 24.04.2024, foi a exceção dilatória de ineptidão do requerimento de injunção considerada improcedente. * E.Realizada a audiência de julgamento, foi preferida sentença a 16.09.2024 que para além de ter julgado improcedente a questão da nulidade por falta de ratificação do processado, suscitada pela Ré, conheceu da matéria de facto e de direito, concluindo com o seguinte dispositivo: “(…) julgo a ação parcialmente procedente, por parcialmente provada e, em consequência: (i) condeno a ré (…), Serviços Médicos, Unipessoal, Lda. a pagar à autora 3.º (…), Lda., as seguintes quantias: a) € 4.181,04 (quatro mil e cento e oitenta e um euros e quatro cêntimos), acrescida de juros moratórios legais à taxa comercial desde a data de vencimento de cada uma das faturas até integral e efetivo pagamento. b) € 40,00 (quarenta euros), acrescida de juros de mora desde a citação até efetivo e integral pagamento. (ii) absolvo a ré (…), Serviços Médicos, Unipessoal, Lda. do demais peticionado pela autora 3.º (…), Lda. (…)” * F. Inconformada com o decidido, a Ré interpôs o presente recurso de apelação. Concluiu as suas alegações nos seguintes termos (transcrição parcial, sem itálico e negrito da origem): “(…) A. O tribunal a quo fez uma incorreta apreciação e valoração da prova produzida e errada aplicação do direito. B. Na medida em que, na sentença recorrida, não se encontra na motivação uma separação da convicção do tribunal quanto aos factos dados como provados, nem quanto aos factos dados como não provados, o que torna a decisão ininteligível. C. Não se encontra, nos factos dados como provados, o valor total em divida, apenas constam no ponto 4, dos factos provados, as faturas e os valores das mesmas, e no ponto 5, constam as notas de crédito emitidas, o que seria um facto essencial, uma vez que condenou a autora no pagamento de € 4.181,04. D. Ainda em sede de alegações, a Ré invocou nulidade do processado uma vez que a autora intentou um Requerimento Injuntivo através de Solicitador a dia 16 de junho de 2023, com valor peticionado superior à alçada da 1ª Instância, e apenas juntou aos autos Procuração Forense datada e assinada a 23 de fevereiro de 2023, sem ratificar o processado anterior, após ter sido notificado pelo tribunal a quo para constituição de advogado sob pena de absolvição da instância. No entanto, o tribunal a quo decidiu pela improcedência da nulidade invocada erradamente, considerando pelo facto de a mandatária ter estado presente na audiência, e o autor também, não podendo este invocar o desconhecimento dos atos por esta praticados. E. O tribunal mal andou ao não conhecer da nulidade invocada, uma vez que o requerimento injuntivo não foi praticado pela mandataria, mas sim pelo solicitador e por isso mesmo esta deveria ter ratificado o processado anterior. F. Os solicitadores, apenas têm competência para intentar o requerimento injuntivo, mas a partir do momento em que o processo se transmuta, em processo declarativo devido à oposição da injunção, como foi o caso, sendo obrigatória a constituição de advogado por estarmos perante um valor superior à alçada da 1ª instância, teria obrigatoriamente a advogada ter ratificado o processado anterior. G. Pois não estamos em face de uma mera irregularidade do mandato, mas, antes, de uma nulidade processual insanável, que deverá, salvo melhor opinião, determinar a absolvição da Ré da presente instância. H. Nulidade essa, que, desde já se invoca para todos os efeitos e consequências legais, uma vez que, as nulidades processuais que não sejam as previstas nos artigos 186.º, 187.º, 193.º e 194.º do Código de Processo Civil, quando praticadas na ausência da parte ou do seu mandatário, como foi o caso do requerimento injuntivo, que se transmutou em ação declarativa, podem ser arguidas nos termos previstos no artigo 199.º do mesmo Código, cabendo às partes argui-las perante o Tribunal onde as mesmas foram cometidas, como foi o caso em sede de alegações, sendo que deveria o Tribunal apreciá-las logo que fossem reclamadas, conforme, aliás, se dispõe no n.º 3 do artigo 200.º do mesmo diploma legal, e dar provimento à referida nulidade que obsta ao conhecimento do mérito da causa, pois é à parte de cabia suprir a falta e ratificar o processado, quando esta foi notificada pelo tribunal a quo, a fim de constituir mandatário, e não o tendo feito o mesmo equivale a falta de procuração (porque não existe ratificação do processado anterior), ficando precludido o seu direito de intervir nos autos, uma vez que a procuração da ilustre mandatária, apenas foi junta aos autos e sem ratificação, no dia 22-11-2023. I. Os solicitadores apenas podem patrocinar ações cujo valor não ultrapasse a alçada dos Tribunais de 1ª instância, ou seja, € 5.000,00, sendo o valor peticionado na presente ação € 5.668,84, verifica-se que o solicitador não tinha competência para o ato. J. Importa desde já atender ao previsto no Capitulo IV, atinente às disposições especiais sobre execuções, que se aplica também após requerimentos injuntivos, ressalvando-se desde já o previsto no artigo 58.º do Código de Processo Civil, relativo ao patrocínio judiciário obrigatório em especial em matéria de execuções e injunções que se transmutam em ações declarativas, nos termos do qual se pode ler no n.º 1 o seguinte: “As partes têm de se fazer representar por advogado nas execuções de valor superior à alçada da Relação e nas de valor igual ou inferior a esta quantia, mas superior à alçada do tribunal de 1ª instância, quando tenha lugar algum procedimento que siga os termos do processo declarativo”, como foi o caso. K. A este propósito veja-se o consagrado no Código de Processo Civil Anotado, Volume I, Parte Geral e Ação Declarativa, 3ª edição, António Abrantes Geraldes/ Paulo Pimenta/ Luís Filipe Pires de Sousa, que também referente ao artigo 58.º do Código de Processo Civil, parece perfilhar do mesmo entendimento quando clarifica o seguinte: “A constituição de advogado é obrigatória nas execuções de valor superior à alçada da Relação (€ 30.000,00). Também assim nas execuções que, não excedendo aquele limite, tenham valor superior à alçada do tribunal de 1ª instância (€ 5.000,00), mas aí quando sejam deduzidos embargos de executado ou corra algum procedimento que siga os termos do processo declarativo, como sucede com a liquidação ou com os embargos de terceiro”. L. Nas causas em que não seja obrigatória a constituição de advogado podem as próprias partes pleitear por si ou ser representadas por advogados estagiários ou por solicitadores, ex vi do artigo 42.º do Código de Processo Civil, o que não é o caso dos presente autos, em que é obrigatória a constituição de mandatário face ao valor peticionado, pelo que, impunha-se ao tribunal a quo a declaração de nulidade, o que se requer a V. Exas.. M. O tribunal a quo considerou nos factos não provados no ponto E) “não logrando o contacto presencial com a autora a 17-05-2022, a ré procedeu à devolução dos materiais à autora por correio no valor de € 3.170,40, que foram rececionados e que não foram posteriormente requeridos pela requerente, continuando tais materiais até à data na posse da autora”, acontece que não consta nos factos dados como provados, nem como não provados. N. Apenas considerou na sua motivação, na página 8, que a junção desse documento e o depoimento de (…) “não são suficientes para a prova dos factos alegados na oposição”, o que não partilhamos desse entendimento, uma vez que foi produzida prova em audiência de julgamento e o representante da A., admitiu que recebeu material ao minuto 25:32 “eu admito... foi entregue para a morada do nosso escritório”, pese embora, este desconheça que material foi entregue, uma vez que referiu ao minuto 26:00 quando questionado pela Mma. Juiz, quando questionado se acha improvável que seja este material devolvido, no valor de € 3.500,00, ele respondei “muito improvável, porque é como lhe digo, eu não vinha para tribunal se tivesse recebido o material por parte do cliente”. O. Ainda assim, mesmo que fosse verdade o alegado pela autora, então teria que constar dos factos não provados que o documento da central mensageiro com material entregue a 25-05-2022, não provou a entrega / devolução e material no valor de € 3.500,00. P. No entanto, face à prova produzida em audiência de julgamento, nomeadamente o documento entregue da central mensageiros, e onde consta que foi recebido pela funcionária da autora, Ana Ricardo, na morada que corresponde à sede da empresa até 13-07-2022, conforme consta na certidão comercial da mesma, e conforme conta no documento emitido pelo Infarmed, e das próprias faturas da autora, documentos esses todos existentes nos autos, duvidas não restam que a mercadoria foi efetivamente devolvida, para a Rua (…), a 25-05-2022, pelo que deveria constar nos factos dados como provados que a Ré devolveu a mercadoria através da central mensageiros, no dia 25-05-2022, no valor de € 3.500,00, para a morada da sede da autora à data, Rua (…), tendo sido recebida e assinada, pela funcionária da A., (…). Q. Tendo a Ré feito a prova que lhe incumbia, em como o material foi devolvido e entregue na sede da Autora, à data da entrega, ao contrário do alegado pelo tribunal a quo, na sua motivação. R. Ora tendo, a Autora ficado com o material entregue a 25-05-2022, no valor de € 3.500,00, e ainda receber o valor desse material, tal constitui um enriquecimento sem causa, o que nos termos do artigo 473.º do Código Civil, “é obrigado a restituir aquilo com que injustamente de locupletou”. S. A obrigação de restituir, por enriquecimento sem causa, tem por objeto o que for indevidamente recebido, ou o que for recebido por virtude de uma causa que deixou de existir, como foi o caso, uma vez que a mercadoria foi devolvida. T. Ainda assim sempre se dirá, que uma vez que foi admitido pela A., que o material foi entregue incumbia a este fazer prova que aquele material rececionado pela sua funcionária (…), não correspondia ao material descrito e com o valor € 3.500,00, que já havia sido enviado na carta datada de 17-05-2022, e não o fez. U. O material fornecido pela A., exigia várias medidas de implantes e componentes que se podem colocar sobre cada implante, tudo isto é obrigatoriamente efetuado com o auxílio de chaves especificas em que cada marca tem as suas, deste modo, oferecem sempre um kit de chaves que tem como nome “kit cirúrgico”, e é destinado para colocar implantes, com as ferramentas necessárias, que sem elas não é possível colocar os implantes conforme referido pela testemunha (…) ao minuto 04:19 “algumas chaves podem ser universais, mas não nos foi entregue kits cirúrgicos da marca 3º (…) ... e nos não conseguimos trabalhar... fazer a colocação desses implantes... não conseguimos fazer as cirurgias derivado a isso”, o que se encontra também corroborado pela prova documental junta aos autos, na mensagem enviada a 21 de março, pela Ré, onde refere que lhe falta “chave HE”, “chave cone morse”, “chave 1.2”, “chave 0.9”, “chave quadrada”, “torquimetro”, ferramentas essas conforme dito pela testemunha que seriam essenciais, para dar fim ao produto a que se destina a mercadoria comprada, nomeadamente colocação de implantes. V. De referir ainda, que este kit cirúrgico só é oferta devido ao valor elevado de material comprado pela Ré, pois conforme se contata nas faturas juntas aos autos, com a contestação da A., sob o doc. 2- Fac: …/2021, de 30 de setembro de 2021, onde consta o kit cirúrgico no valor de € 1.200,00, que vem faturado a € 00,00 devido ao avultado volume de compras efetuadas pela Ré. W. Tais peças fundamentais, que faziam parte do kit, eram essenciais para que a Ré pudesse servir-se do material comprado à Autora, sendo esta uma condição essencial, pois sem elas não conseguiam colocar os implantes, de forma a dar o destino final aos bens adquiridos, que sem isso de nada serviam. X. Pelo que deveria o tribunal a quo, como facto provado, que faltava no kit “chave HE”, “chave cone morse”, “chave 1.2”, “chave 0.9”, “chave quadrada”, “torquimetro”, ferramentas essas conforme dito pela testemunha (…), que seriam essenciais, para dar fim ao produto a que se destina a mercadoria comprada, nomeadamente colocação de implantes. Y. O tribunal fez uma errada apreciação e aplicação do direito quanto à matéria de facto, e à reapreciação da prova gravada. “Dispõe o artigo 615.º, n.º 1, alínea c), do CPCivil que «1 - É nula a sentença [Acórdão] quando: (…) c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível». Entre a fundamentação da sentença e a decisão não pode haver contradição lógica, isto é, a fundamentação fáctico jurídica tem de ser coerente, não se poderá partir de uma premissa e concluir pelo seu contrário, cfr. Lebre de Freitas, Montalvão Machado, Rui Pinto, in Código De Processo Civil Anotado, Volume II, pág. 670. Esta situação é diversa daquela que poderá resultar do erro na subsunção jurídica, ou do erro na interpretação, que conduzem ao erro de julgamento; como diversa é a situação que nos é colocada, a qual constitui um erro no julgamento de facto, porquanto na tese dos Autores a prova obtida à materialidade impugnada – pontos 15 e 27 – conduziria, no seu entendimento, à obtenção de diferentes respostas. Ora, estes erros consubstanciados numa má e/ou errada avaliação das provas obtidas que conduzem a uma deficiente apreciação da matéria de facto, não são integráveis no vício da nulidade da sentença aludido na alínea c) do n.º 1 do artigo 655.º, sendo este um vício de forma e não uma iniquidade da decisão de facto a se, cujo julgamento está arredado do perímetro apreciativo do Supremo Tribunal de Justiça”. Z. Pelo que não deveria o tribunal a quo ter condenado a Ré no pagamento de € 4.181,04 acrescido de juros de mora. Impunha-se e impõe-se a absolvição da Ré no valor peticionado pela autora, pese embora se admita o pagamento de € 1.010,74, referente ao material utilizado pela Ré. (…)”. * G.A Recorrida não contra-alegou. * H. Foi proferido despacho pela Sr.ª Juíza de 1ª instância, considerando infundada a alegada nulidade da sentença. * I. Colheram-se os vistos dos Ex.mos Srs. Juízes Desembargadores Adjuntos. * J. Questões a decidir O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações do Recorrente, sem prejuízo da possibilidade da sua ampliação a requerimento dos Recorridos (artigos 635.º, n.º 4, 636.º e 639.º, n.ºs 1 e 2, do CPC). Não é, assim, possível conhecer de questões nelas não contidas, salvo se forem do conhecimento oficioso (artigo 608.º, n.º 2, parte final, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, parte final, ambos do CPC). Também está vedado o conhecimento de questões novas (que não tenham sido objecto de apreciação na decisão recorrida), uma vez que os recursos são meros meios de impugnação de questões prévias judiciais, destinando-se, por natureza, à sua reapreciação e consequente confirmação, anulação, alteração e/ou revogação. No caso vertente, são as seguintes as questões suscitadas pelo recurso: 1. Se a sentença proferida é nula por violação das alíneas c) ou d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC; 2. Se deve ser aditada ou alterada a matéria de facto provada e não provada da sentença recorrida; 3. Se ocorre nulidade processual decorrente de preterição da ratificação do processado anterior à junção de procuração forense; e 4. Se, em função das alterações à matéria de facto provada, deve ser revogada a sentença na parte em que reconheceu à Autora direito de crédito sobre a Ré de montante superior a € 1.010,64. * II. FUNDAMENTAÇÃO*** * A. De facto*** * Reprodução integral dos factos provados e não provados da decisão da matéria de facto como constam da sentença sob recurso (sem negrito e itálico da origem):“(…) IV.1. Factos Provados (…) 1. A autora é uma sociedade que tem por objeto o comércio, comércio eletrónico, comércio em feiras e unidades móveis de venda, exportação e importação de uma grande variedade de produtos nomeadamente de produtos médicos e dentários tais como implantes e próteses dentárias, biomateriais, equipamentos dentários, consumíveis, materiais cirúrgicos, dispositivos médicos, vestuário, calçado médico e hospitalar, produtos de higiene, saúde e limpeza; representação e exploração de marcas; formação; organização, promoção e gestão de eventos; consultoria para os negócios e a gestão. 2. A ré é uma sociedade que se dedica à prestação de serviços médicos e dentários. 3. No exercício da sua atividade, a 30 de julho de 2021, a 30 de setembro de 2021, a 29 de outubro de 2021, a 10 de novembro de 2021 e 9 de dezembro de 2021, a autora, a pedido da ré, procedeu ao fornecimento de material dentário no valor total € 4.492,18 (quatro mil e quatrocentos e noventa e dois euros e dezoito cêntimos). 4. O fornecimento do material dentário pela autora à ré encontra-se especificado e quantificado nas faturas n.º FAC 2021/625, datada de 30/07/2021, no valor de € 165,36, com a data de vencimento de 30/07/2021; FAC 2021/811, datada de 30/09/2021, no valor de € 826,80, com a data de vencimento de 30/09/2021; FAC 2021/814, datada de 30/09/2021, no valor de € 1.101,17, com a data de vencimento de 30/09/2021; FAC 2021/927, datada de 29/10/2021, no valor de € 826,80, com data de vencimento de 29/10/2021; FAC 2021/928, datada de 29/10/2021, no valor de € 1.101,17, com data de vencimento de 29/10/2021; FAC 2021/974, datada de 10/11/2021, no valor de € 343,68, com data de vencimento de 10/11/2021; FAC/1087, datada de 09/12/2021, no valor de € 127,20, com data de vencimento de 9/12/2021. 5. Em 04/02/2022, foram emitidas, a favor da ré, pela autora, as notas de crédito n.º 8, 9 e 10 com os seguintes valores: € 127,20, € 120,96 e € 62,98. 6. Em 16/06/2023, a autora apresentou no Balcão Nacional de Injunções o requerimento de injunção. (…) IV. 2. Factos não provados (…) A) O material relativo a implantes dentários fornecido pela autora no âmbito da sua atividade profissional tinha pouca qualidade. B) O material relativo a implantes dentários fornecido pela autora à ré no âmbito da sua atividade profissional não continha o certificado dos implantes que é obrigatório. C) Os clientes da ré ficaram descontentes com a falta de certificado nos implantes dentários fornecidos pela autora. D) A ré reclamou junto da autora a sua insatisfação e disse que iria devolver os produtos, tendo a autora aceitado proceder à devolução. E) Não logrando o contacto presencial com a autora, em 17/05/2022, a ré procedeu à devolução dos materiais à autora, por correio, no valor de no valor de € 3.170,40, (a acrescer o iva), que foram rececionados e não foram posteriormente devolvidos pela Requerente, continuando tais materiais até à data na posse da autora. (…)”. * Da nulidade da sentença por omissão de pronúncia, ambiguidade ou obscuridade *** * Invoca a Ré / Recorrente a nulidade da sentença recorrida, embora sem concretizar ao abrigo de qual norma jurídica, sustentando que na motivação da sentença recorrida não se encontra:- uma separação da convicção do tribunal quanto aos factos dados como provados, nem quanto aos factos dados como não provados, o que torna a decisão ininteligível. - nos factos dados como provados, o valor total em dívida, o que seria um facto essencial, uma vez que condenou a autora no pagamento de € 4.181,04. Apenas constam do rol da matéria provada: no ponto 4, as faturas e os valores das mesmas; e no ponto 5, as notas de crédito emitidas. * Prevê o n.º 1 do artigo 615.º do CPC que “é nula a sentença quando:a) Não contenha a assinatura do juiz; b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão; c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível; d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento; e) O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido. As nulidades da sentença taxativamente previstas no artigo 615.º, n.º 1, alíneas a) a e), do CPC, são vícios formais e intrínsecos, designados como error in procedendo, respeitando apenas à estrutura ou aos limites da decisão. Como refere José Lebre de Freitas, “os casos das alíneas b) a e) do n.º 1 constituem, rigorosamente, situações de anulabilidade da sentença, e não de verdadeira nulidade. Respeitam eles à estrutura ou aos limites da sentença. Respeitam à estrutura da sentença os fundamentos das alíneas b) (falta de fundamentação) e c) (oposição entre os fundamentos e a decisão). Respeitam aos seus limites os das alíneas d) (omissão ou excesso de pronúncia) e e) (pronúncia ultra petitum).”[1] São vícios a apreciar em função do texto da sentença, do discurso lógico nele desenvolvido, não se confundindo com erros de julgamento (error in judicando – que são erros quanto à decisão de mérito constante da sentença), decorrentes de errada consideração da realidade factual (error facti) e/ou na aplicação do Direito (error juris) à matéria de facto, levando a que o decidido não corresponda à realidade ôntica ou normativa, com a errada aplicação das normas jurídicas aos factos. * i.Apreciando o primeiro argumento de nulidade invocado – ininteligibilidade por falta de separação da convicção do tribunal quanto aos factos dados como provados e quanto aos factos dados como não provados – que nos remete para a ocorrência de “…alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível” (cfr. alínea c) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC), devemos ter presente que, como referem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Filipe Pires de Sousa “a decisão judicial é obscura quando contém algum passo cujo sentido seja ininteligível e é ambígua quando alguma passagem se preste a interpretações diferentes. Em STJ 20-5-21, 69/11 e STJ 8-10-20, 1886/19, decidiu-se que a ambiguidade ou obscuridade prevista na alínea c) só releva quando torne a parte decisória ininteligível, o que ocorre quando um declaratário normal, nos termos dos artigos 236.º, n.º 1 e 238.º, n.º 1, do CC, não possa retirar da decisão um sentido unívoco, mesmo depois de recorrer à fundamentação para a interpretar.”[2] Percorrida a fundamentação da matéria de facto provada e não provada da sentença, constata-se que é perfeitamente clara quanto às razões que presidiram à formação da convicção do tribunal, distinguindo entre factos não provados e provados. No que respeita aos provados, dá conta de que: - os números 1 e 2 estão provados por certidão; - os números 3 e 4, por não terem sido impugnados pela Ré; - o número 5, nos termos desenvolvidos no penúltimo parágrafo da motivação que nos escusamos de aqui reproduzir, mas que apontam no sentido das três notas de crédito juntas aos autos, emitidas pela Autora em 04.02.2022, no valor total de € 311,14 e do aviso de vencimento redigido pela Autora (documento 1.1 da oposição) em que o valor em dívida figura como de € 4.181,04, conjugados com as explicações do legal representante da Autora que deu conta de que eram emitidas notas de crédito quando os produtos objecto da troca eram de valor inferior aos inicialmente fornecidos; e, por fim, - o número 6, no último parágrafo da mesma motivação, através da análise do articulado do requerimento de injunção, o qual foi apresentado pelo sistema Citius, estando certificada a data de entrada. Relativamente aos factos não provados: - referentes à falta de qualidade e ausência de certificação do material dos implantes dentários – A) a D) – a sentença dedica-lhe um desenvolvido parágrafo, do qual resulta evidente que as razões da convicção do tribunal se encontram na junção, pela Autora, do “…certificado CE que atesta que os produtos fornecidos à autora estão em conformidade com as normas jurídicas da União Europeia (…)” para além de que o legal representante da Autora confirmou em julgamento que todo o material fornecido à Ré estava certificado pela UE (tendo inclusive aposta a marcação CE) e que parte do material fornecido ficou com o certificado CE suspenso a partir de Dezembro de 2021 (como foi comercializado antes dessa data, a Ré poderia utilizar o material, não tendo sido praticada qualquer ilegalidade por parte da Autora), o que resultou confirmado pelo Infarmed, em resposta a ofício que lhe foi remetido pelo tribunal (cfr. acta de 11.07.2024 e ofício de 22.08.2024), concluindo que “em face da prova produzida e do teor do ofício do Infarmed, entende-se que a ré não logrou provar a existência de qualquer irregularidade/ defeito/ desconformidade com o material fornecido – este foi solicitado pela ré e entregue pela autora nos termos legalmente estabelecidos”; - no que concerne à alegada devolução de material – E) –, são vários e extensos os parágrafos da motivação que explicam, diferenciadamente, de forma criteriosa, sem ambiguidade ou obscuridade que, note-se, tampouco a Recorrente identifica, as razões que formaram a convicção do tribunal a quo. Deste modo evidente se mostra a total inconsistência da alegada ininteligibilidade da motivação da decisão da matéria de facto provada e não provada sentença recorrida. * ii.Rege supracitada alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, que a omissão de pronúncia ocorre perante a ausência de posição ou de decisão do tribunal sobre matérias em que a lei imponha que o juiz tome posição expressa. A norma em apreço conjuga-se com o n.º 2 do artigo 608.º do CPC que impõe ao juiz o dever de “…resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; (…)”. A omissão de pronúncia só se verifica quando o juiz deixa de se pronunciar sobre questões que lhe foram submetidas pelas partes e que, por isso, tem de abordar e resolver, ou de que deve conhecer oficiosamente, entendendo-se por questões os dissídios ou problemas concretos a decidir e não as razões, no sentido de simples argumentos, opiniões, motivos, ou doutrinas expendidos pelos interessados na apresentação das respectivas posições, na defesa das teses em presença. Considera a Recorrente que a sentença carece de um facto essencial, traduzido na afirmação de quais as facturas em dívida ou do valor da dívida de € 4.181,04, a pagar pela Ré. Sem razão, porém. Não cabe na decisão da matéria de facto a declaração de quais as facturas em dívida ou qual(ais) o(s) valor(es) em dívida. Ambas são conclusões, reservadas à fundamentação jurídica da sentença e que hão-se obter-se a partir dos factos provados. Quais factos? Consideradas as regras do ónus da prova previstas no artigo 342.º do Código Civil e a causa de pedir da presente acção, constituída pelo incumprimento da obrigação de pagamento do preço do fornecimento de produtos médicos: - o cumprimento da prestação contratual pela Autora que dá origem à obrigação e que consiste no fornecimento dos bens e respectivo preço, mais devendo ser referida a data do respectivo vencimento, a cargo da Autora que invoca o direito de crédito fundado no contrato; e - qualquer circunstância impeditiva, extintiva ou modificativa da sua obrigação, como o pagamento, a eventual emissão de notas de crédito, os vícios dos bens fornecidos, entre outros, a cargo da Ré, demandada. Constando da matéria de facto provada (cfr. factos provados números 3 e 4) que o valor total dos fornecimentos facturados ascende a € 4.492,18 e, bem assim (cfr. facto provado número 5) que em 04.02.2022, foram emitidas, a favor da Ré, pela Autora, as notas de crédito n.º 8, 9 e 10 com os seguintes valores parcelares € 127,20, € 120,96 e € 62,98, o que perfaz um total de € 311,14, o apuro do montante em dívida por conta dos fornecimentos realizados pela Autora, a efectuar em sede de fundamentação jurídico-conclusiva, decorre da simples operação aritmética que segue: € 4.492,18 (valor dos fornecimentos) – € 311,14 (valor das notas de crédito emitidas a favor da Ré) = € 4.181,04 (saldo favorável à Autora). Quanto à imputação das notas de crédito, o artigo 784.º do Código Civil define o regime a que se encontra sujeita, caso da matéria de facto provada não resultem as concretas facturas a que respeitam. Não é, por isso, um facto essencial da causa de pedir. É, assim, manifesto que a sentença não deveria conter, no elenco dos factos, as conclusões sugeridas pela Recorrente e que se mostra suficiente a matéria de facto descrita no elenco dos factos provados para permitir a decisão sobre qual o remanescente em dívida pela Ré à Autora. * Improcede, assim, a invocada nulidade da sentença recorrida (cfr. alíneas c) e d) do n.º 1 do artigo 615.º do Código Civil).* Do recurso da decisão da matéria de facto*** * Vem o presente recurso interposto também da matéria de facto da decisão de primeira instância, considerando a Recorrente que:Deveriam ser aditados à matéria de facto provada, os factos: «A ré devolveu o material à autora através da Central mensageiros no dia 22-05-2022, tendo o mesmo sido rececionado pela funcionaria da A. (…), para a morada Praceta (…), lote 25, 2A, 8100-616 Loulé.» «A Autora teve a sua sede na Praceta (…), lote 25, 2A, 8100-616 Loulé, até 13-07-2022.» «Faltavam no kit: “chave HE”, “chave cone morse”, “chave 1.2”, “chave 0.9”, “chave quadrada”, e “torquimetro”». Foi incorrectamente julgada a matéria incluída na alínea E) dos factos não provados: «Não logrando o contacto presencial com a autora a 17-05-2022, a ré procedeu à devolução dos materiais à autora por correio no valor de € 3.170,40, que foram rececionados e que não foram posteriormente requeridos pela requerente, continuando tais materiais até à data na posse da autora». * Prevê o artigo 640.º do C.P.C.:“1 – Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) – Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) – Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) – A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. 2 – No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte: a) – Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição, do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes; b) – Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.” * A Recorrente incidiu o seu recurso da matéria de facto, concretizando os factos provados que deseja ver aditados, indicando, para cada um deles, a redacção que deve ser consagrada. Também indica os meios de prova que, relativamente a cada um dos factos impugnados, justificam, em sua opinião, a alteração da decisão de 1ª instância, fazendo-o por referência aos documentos juntos com os articulados e em audiência de julgamento, à certidão do registo comercial da Autora, às declarações do legal representante da Autora, aos testemunhos de (…) e de (…) com a transcrição e a indicação dos momentos da gravação quanto aos meios de prova pessoal registados em audiência de julgamento.Mostram-se, assim, cumpridos os requisitos previstos nas alíneas a) a c) do n.º 1 do artigo 640.º do CPC. * Nos termos do disposto no artigo 662.º, n.º 1, do C.P.C., cuja epígrafe é “modificabilidade da decisão de facto”, “a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”.Neste particular, o tribunal de recurso, sem embargo da atendibilidade da prova plena que resulte dos autos, deve verter o que emergir da apreciação crítica e livre dos demais elementos probatórios e usar, se for o caso, as presunções judiciais que as circunstâncias justificarem, designadamente a partir dos factos instrumentais, como decorre do n.º 4 do artigo 607.º e da alínea a) do n.º 2 do artigo 5.º, ambos do CPC[3], tanto mais que a anulação de uma sentença deve confinar-se aos casos em que, como previsto na alínea c) do n.º 2 do artigo 662.º do CPC, não constem “…do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto”. Como se refere no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 10.07.2024, relatado pelo Desembargador Jorge Martins Ribeiro no processo n.º 99/22.9T8GDM.P1 [4], para reapreciar a decisão de facto impugnada, o Tribunal da Relação “…tem de, por um lado, analisar os fundamentos da motivação que conduziu a primeira instância a julgar um facto como provado ou como não provado e, por outro, averiguar, em função da sua própria e autónoma convicção, formada através da análise crítica dos meios de prova disponíveis e à luz das mesmas regras de direito probatório, se na elaboração dessa decisão e na sua motivação ocorre, por exemplo, alguma contradição, uma desconsideração de qualquer um dos meios de prova ou uma violação das regras da experiência comum, da lógica ou da ciência – elaboração, diga-se, que deve ser feita à luz de um cidadão de normal formação e capacidade intelectual, de um cidadão comum na sociedade em questão – sem prejuízo de, independentemente do antes dito, poder chegar a uma decisão de facto diferente em função da valoração concretamente efetuada em sede de recurso.” Ainda sobre a intervenção da Relação na decisão da matéria de facto decidida em 1ª instância, será pertinente invocar a fundamentação clara do acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 02.11.2017, relatado pela Desembargadora Maria João Matos no processo n.º 212/16.5T8MNC.G1,[5] “…quando os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insuscetível de ser destruída por quaisquer outras provas, a dita modificação da matéria de facto – que a ela conduza – constitui um dever do Tribunal de Recurso, e não uma faculdade do mesmo (o que, de algum modo, também já se retiraria do artigo 607.º, n.º 4, do C.P.C., aqui aplicável ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do mesmo diploma). Estarão, nomeadamente, aqui em causa, situações de aplicação de regras vinculativas extraídas do direito probatório material (regulado, grosso modo, no C.C.), onde se inserem as regras relativas ao ónus de prova, à admissibilidade dos meios de prova, e à força probatória de cada um deles, sendo que qualquer um destes aspectos não respeita apenas às provas a produzir em juízo. Quando tais normas sejam ignoradas (deixadas de aplicar), ou violadas (mal aplicadas), pelo Tribunal a quo, deverá o Tribunal da Relação, em sede de recurso, sanar esse vício; e de forma oficiosa. Será, nomeadamente, o caso em que, para prova de determinado facto tenha sido apresentado documento autêntico – com força probatória plena – cuja falsidade não tenha sido suscitada (artigos 371.º, n.º 1 e 376.º, n.º 1, ambos do CPC), ou quando exista acordo das partes (artigo 574.º, n.º 2, do CPC), ou quando tenha ocorrido confissão relevante cuja força vinculada tenha sido desrespeitada (artigo 358.º do CC e artigos 484.º, n.º 1 e 463.º, ambos do CPC), ou quando tenha sido considerado provado certo facto com base em meio de prova legalmente insuficiente (v. g. presunção judicial ou depoimentos de testemunhas, nos termos dos artigos 351.º e 393.º, ambos do CPC). Ao fazê-lo, tanto poderá afirmar novos factos, como desconsiderar outros (que antes tinham sido afirmados).” * Tendo presentes estes considerandos, vejamos quais os concretos pontos da matéria de facto que a Recorrente pretende ver alterados.* I. Aditamento de facto provado e eliminação do facto não provado E): Pretende a Recorrente o aditamento do seguinte facto ao elenco dos provados: “A ré devolveu o material à autora através da Central mensageiros no dia 22-05-2022, tendo o mesmo sido rececionado pela funcionaria da A. (…), para a morada Praceta (…), lote 25, 2A, 8100-616 Loulé.” E, simultaneamente, a eliminação do facto não provado, relacionado com a mesma matéria: “E) Não logrando o contacto presencial com a autora a 17-05-2022, a ré procedeu à devolução dos materiais à autora por correio no valor de € 3.170,40, que foram rececionados e que não foram posteriormente requeridos pela requerente, continuando tais materiais até à data na posse da autora.” Argumenta para o efeito que: a) Foi junto aos autos documento, em audiência de julgamento, da Central Mensageiros, em que a Ré explicou que o material havia sido devolvido por aqui, e não por via CTT, o que demonstra que a Ré devolveu o material à Autora através da Central Mensageiros no dia 22.05.2022, tendo o mesmo sido recepcionado pela funcionária da A. (…), para a morada Praceta (…), lote 25, 2A, 8100-616 Loulé; b) Tal conclusão é corroborada pela certidão do registo comercial da Autora, da qual consta que esta teve a sua sede na morada aludida no parágrafo anterior até 13.07.2022, data em que foi alterada para a Rua (…), Ed. (…), loja 65, 8100-579 Loulé, bem como de documento junto aos autos pela Infarmed, cujo último parágrafo da última página refere: “a entidade (…), Lda., NIPC (…), com sede social em Praceta (…), lote 25, 2A, 8100-616 Loulé...”, do documento 1.1 junto com a oposição, onde constam as facturas em dívida com a suprarreferida morada e das declarações do próprio legal representante da Autora (minuto 23:22); c) Foram confusas as declarações do legal representante da Autora que disse ter recebido material referente a devoluções, pese embora não aceite devoluções mas sim trocas, baralhando os factos e os conceitos a fim de criar confusão ao tribunal, desconhecendo o material que foi recebido. Analisando os argumentos apresentados: a) Os documentos juntos em audiência de julgamento do dia 11.07.2024, constituem “Print Screen” do sítio do serviço de entregas da “Central Mensageiro”. Fazem referência à entrega, em Maio de 2022, de uma embalagem com peso até um quilograma, remetida pela Ré à Autora. Todavia, os documentos em apreço não fazem referência ao conteúdo da embalagem. Deste modo, a entrega da embalagem em apreço à Autora não é, em si mesma, demonstrativa da devolução de material no valor de € 3.170,40, sustentada pela Ré. Note-se que, contrariamente ao que resulta da conclusão “T.” do recurso, é sobre a Ré que impende o ónus de provar, como facto constitutivo da excepção que alegou, que entregou à Autora os materiais no valor de € 3.170,40, não bastando para o efeito a prova de que entregou uma embalagem cujo conteúdo se desconhece. Por outro lado, no artigo 7º da oposição, a Ré alegou ter devolvido no dia 17.05.2022 a mercadoria no valor de € 3.170,40, nos termos descritos no documento 2.3 junto com aquele articulado. Sucede que naquela data apenas foi remetida uma carta pelos CTT (cfr. documentos 9 e 10 do requerimento de 10.04.2024) cujo envelope não poderia conter a mercadoria em apreço. Assim, para além de não fazerem menção ao conteúdo da embalagem, os “prints” da “Central Mensageiro” juntos em audiência de julgamento do dia 11.07.2024, divergem da versão que a própria Ré carreou aos autos na contestação, quer quanto à data da entrega, quer quanto ao meio usado para o efeito. Como se alude na sentença de 1ª instância, o documento 2.3 junto com a oposição, elaborado por computador, contendo uma listagem da mercadoria, também refere que o material foi devolvido via CTT através do aviso de receção (…) quando ficou demonstrado que isso não aconteceu, o que desacredita o seu conteúdo, nomeadamente quanto aos bens aí identificados como sendo objecto de devolução. Não deixa, ainda, de se constatar que, tendo a Ré, comprovadamente, remetido à Autora uma carta registada datada de 12.05.2022 (menos de duas semanas antes da alegada devolução da mercadoria), junta com a contestação aperfeiçoada, em resposta à carta registada com a/r que a Autora, por sua vez, lhe havia enviado com data de 06.04.2022, (fixando o prazo de 10 dias para a Ré proceder ao pagamento do montante de € 4.181,04 em dívida de material fornecido), na mesma não tenha identificado quais os materiais que pretende devolver, nem os respectivos montantes, limitando-se a aludir à existência de problemas com as entregas de material, com o comercial, com embalagens diferentes / danificadas, com material errado ou sem stock, com kits cirúrgicos incompletos e com faltas injustificadas a compromisso agendado. Acresce que, como a testemunha (…) e o legal representante da Autora disseram em juízo, sem serem contrariadas por outros elementos de prova, ocorria, no decurso da relação comercial mantida pelas partes, a remessa de embalagens pela Ré à Autora para a troca consentida de materiais, das quais resultavam, por vezes emitidas notas de crédito (cfr. facto provado número 6) quando o saldo das trocas era favorável a Ré. b) Quanto à certidão do registo comercial comprovativa da morada da sede da Autora, assim como da sua referência em facturas e outros documentos emitidos pela mesma, nenhuma relevância apresenta para suprir a insuficiência probatória vinda de descrever no precedente parágrafo, no qual, note-se, se assume por realizada a entrega da embalagem em apreço aos cuidados da Autora, independentemente de o ter sido na morada da sua sede fiscal (e residência do sócio-gerente) ou na morada dos respectivos escritórios. Como aí se disse, a questão não é saber se a embalagem foi entregue, mas sim a prova de que o seu conteúdo é condicente com a versão da Ré. c) Relativamente às declarações do legal representante da Autora, não subscrevemos a conclusão da Recorrente no sentido de que foram confusas. Foram, antes, consistentes, do início ao fim, na negação de que a Autora tivesse aceitado e recebido devoluções no valor alegado pela Ré (superior a € 3.000,00) ou, sequer próximo do mesmo, admitindo apenas, como se disse já, que houve trocas de produtos no decurso da sua relação comercial que originaram, nuns casos a emissão de notas de crédito a favor da Ré e, noutro casos, a emissão de factura pelo custo acrescido, mas sempre de montantes muito inferiores. Em qualquer caso, reitera-se, a Autora é que não logrou, pelas razões aludidas em a) e que lhe são quase exclusivamente imputáveis, apresentar prova documental coerente e bastante da versão que trouxe aos autos, sendo a prova testemunhal por si produzida, exclusivamente assente no testemunho de (…) que, para além de ser a pessoa que vive em união de facto com o legal representante da Ré, não constituiu contributo relevante nesta matéria por ser fortemente dependente daquilo que lhe foi transmitido pelo seu companheiro. * Razões suficientes para concluir pela insubsistência dos fundamentos da impugnação da Recorrente no que à matéria dos factos em apreço respeita.* II.Entende ainda a Recorrente que devem ser aditados à matéria de facto provada os seguintes factos: a) «A Autora teve a sua sede na Praceta (…), lote 25, 2A, 8100-616 Loulé, até 13-07-2022» b) «Faltavam no kit: “chave HE”, “chave cone morse”, “chave 1.2”, “chave 0.9”, “chave quadrada”, e “torquimetro”». a) Começando pela sede da Autora na Praceta (…), lote 25, 2A, 8100-616 Loulé, até 13-07-2022, trata-se de facto que, não sendo sequer passível de controvérsia pois decorre de prova documental autêntica (certidão do registo comercial da Autora), não apresenta, no entanto, qualquer relevância como causa de pedir da presente demanda, nem como fundamento de excepção invocada pela Ré. Na verdade, a matéria controvertida de excepção que se impunha apurar era saber se a Ré procedeu à devolução da mercadoria no valor de € 3.170,40. Os factos inscritos na certidão do registo comercial da Autora são meros elementos de prova indirecta daquele facto, com relevo limitado à questão, já aflorada, da entrega à Autora da mercadoria contida na embalagem transportada pelo serviço de entregas da “Central Mensageiro”. Deste modo, não merece acolhimento o pretendido aditamento do facto em apreço à matéria de facto provada. b) Mantém, ainda, a Recorrente que deve ser aditado à matéria de facto provada, o facto: “Faltavam no kit: “chave HE”, “chave cone morse”, “chave 1.2”, “chave 0.9”, “chave quadrada”, e “torquimetro”.”. Alega para o efeito que tal decorre da prova produzida em julgamento, nomeadamente do referido pela testemunha (…) ao minuto 04:19 e da mensagem enviada pela Ré a 21 de Março, onde esta refere que aquele material está em falta. Sobre tais meios de prova, convém também ter presente que: foi dito pelo legal representante da Autora e decorre da factura n.º 811/2021, de 30 de Setembro de 2021, junta aos autos, que o “kit” em apreço era uma oferta da Autora à Ré, cuja entrega a primeira fez condicionar ao pagamento, pela segunda, do preço em falta, correspondente à mercadoria fornecida; e a Ré não estava impedida de adquirir as ferramentas em apreço. Isto significa que a prova produzida revela um enquadramento factual mais amplo que o facto cujo aditamento vem proposto pela Recorrente omite, por lhe não ser favorável. Sucede que, percorrida a oposição / contestação da Ré, em parte alguma se mostra alegada a matéria de facto em apreço ou que a recusa de pagamento dos materiais fornecidos pela Autora se tenha devido à não entrega de ferramentas do “kit” de oferta. O que vem invocado na contestação como razão da insatisfação e reclamação da Ré (cfr. artigos 2º e 3º da oposição) é apenas falta de qualidade e de certificação dos materiais fornecidos, não o incumprimento da obrigação de entrega pela Autora. Tenha-se presente que não estamos perante um facto instrumental, mas sim essencial, da defesa por excepção da Ré, na medida em que constitui uma nova e distinta causa de incumprimento contratual imputada à Autora. Num processo civil que tem como estruturante o princípio do dispositivo pelo qual “às partes cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as exceções invocadas” (cfr. artigo 5.º, n.º 1, do CPC) e em que a possibilidade de o juiz fundar a sua decisão noutros factos essenciais resultantes da instrução e discussão da causa, depende de estes serem complemento ou concretização de outros que as partes hajam alegado e de ter sido dada às partes oportunidade de se pronunciarem sobre os mesmos factos, de molde a evitar a prolação de decisão-surpresa (alínea b) do n.º 2 do artigo 5.º da actual redacção do CPC), a consideração do facto em apreço na decisão recorrida estaria dependente da sua alegação pela Ré ou de o tribunal a quo o ter considerado complementar / concretizador da restante defesa por excepção e advertido as partes da sua intenção de o incluir na decisão da matéria de facto, circunstâncias que tampouco se verificaram. Assim, seja pela prova produzida em julgamento, seja pela não verificação dos pressupostos jurídico-processuais necessários ao aditamento do facto, também não assiste fundamento a esta parte da impugnação da matéria de facto. * Matéria de facto provada:* Em consequência da apreciação vinda de expor, mantém-se intocada a matéria de facto constante da sentença de 1ª instância, razão pela qual limitar-nos-emos a remeter para a reprodução que da mesma fizemos supra.* B. De direito *** * Da nulidade processual por falta de ratificação do processado* O primeiro argumento jurídico apresentado pela Recorrente consiste na discordância relativamente à apreciação da nulidade por falta de ratificação do processado, na sequência da tardia junção de procuração forense.Previamente à prolação da sentença, foi apreciada, nos seguintes termos, a nulidade invocada nas alegações da Ré: “Em sede de alegações, veio a ré invocar a nulidade do processado uma vez que a autora apenas juntou aos autos procuração forense a favor da mandatária sem ratificação do processado. Cumpre apreciar. Compulsados os autos, verifica-se que: a) O requerimento de injunção foi apresentado por (…), solicitador. b) O valor peticionado pela autora no requerimento de injunção é de valor superior à alçada da 1ª instância. c) Por despacho datado de 26/10/2023, foi a autora notificada para juntar aos autos procuração a favor do solicitador que subscreveu o requerimento de injunção e, por o valor da ação obrigar à constituição de advogado, foi também a autora notificada para juntar aos autos procuração forense, sob pena de absolvição da parte contrária da instância. d) Em 26/10/2023, a autora veio juntar procuração a favor do solicitador. e) Por despacho datado de 17/11/2023, determinou-se a notificação da autora para vir juntar aos autos procuração forense a favor de advogado (devendo a autora ser notificada através da morada indicada nos autos). f) Em 22/11/2023, a A., através da mandatária Dra. (…), veio juntar procuração forense a seu favor. g) Mais se verifica que o legal representante da A. esteve presente em Audiência de Julgamento. No caso em apreço, constata-se que a autora, numa primeira fase, era representada pelo solicitador (…). Posteriormente, após notificação pelo tribunal (que remeteu expressamente carta para a sede da autora), veio juntar procuração a favor da Dra. (…), advogada. Nestes termos, entendemos que não estamos perante um caso de um advogado que subscreve um requerimento de injunção e que, apenas em data posterior, é passada procuração a seu favor. Também se verifica que o legal representante da autora esteve presente em Audiência de Julgamento não podendo assim ser invocado qualquer desconhecimento dos atos que foram praticados pela mandatária a quem passou procuração forense (eram materialmente abusivo considerar a nulidade procedente em face da situação do caso concreto). Em face de todo o exposto, e uma vez que se verifica que foram concedidos à ilustre mandatária da autora os necessários poderes forenses, improcede a nulidade invocada. (…)”. Considera a Recorrente que o despacho não fez a melhor aplicação do direito porque o vício em apreço constitui nulidade insanável que deve determinar a absolvição, não mera irregularidade do mandato, argumentando para o efeito que os solicitadores apenas podem patrocinar acções cujo valor não ultrapasse a alçada dos Tribunais de 1ª instância – ou seja, € 5.000,00 – pelo que, sendo o valor peticionado na presente acção de € 5.668,84, o solicitador não tinha competência para o acto. Vejamos se lhe assiste razão. No caso vertente, o que ocorreu foi a subscrição do requerimento inicial por solicitador de execução, em causa cujo valor, por ser superior a € 5.000,00, reclama o patrocínio obrigatório de advogado, nos termos previstos pela alínea a) do n.º 1 do artigo 40.º do CPC e n.º 1 do artigo 4.º da Lei da Organização do Sistema Judiciário, aprovada pela Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto. Estamos, por isso, perante uma clara situação de falta de constituição de advogado numa acção em que seria obrigatória. Tais situações são regidas pela disposição legal do artigo 41.º do CPC, nos seguintes termos: “se a parte não constituir advogado, sendo obrigatória a constituição, o juiz, oficiosamente ou a requerimento da parte contrária, determina a sua notificação para o constituir dentro de prazo certo, sob pena de o réu ser absolvido da instância, de não ter seguimento o recurso ou de ficar sem efeito a defesa.” Como referem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Filipe Pires de Sousa, “o conhecimento da exceção de falta de patrocínio judiciário obrigatório deverá ocorrer logo que seja detetada, embora não exista qualquer efeito preclusivo (…). Detetada a falha, o tribunal ordena a notificação da parte, com a menção expressa das consequências legais. A sanação satisfaz-se com a simples intervenção posterior do respetivo mandatário judicial, sem que haja a possibilidade de repetir atos cujo prazo legal já tenha expirado. (…) As consequências do não suprimento da exceção dilatória no prazo fixado dependem das circunstâncias de ordem subjetiva e objetiva: se a falta de patrocínio judiciário respeitar ao autor, gera a absolvição da instância; se respeitar ao réu, é dada sem efeito a defesa apresentada pelo mesmo (…). Em qualquer dos casos, importa ponderar, na perspetiva do autor ou do réu, o disposto no artigo 278.º, n.º 3.” (sublinhados nossos).[6] * A situação dos autos – de falta de constituição de mandatário – distingue-se da prevista no artigo 48.º do CPC que, por sua vez, rege para os casos de “falta, insuficiência e irregularidade do mandato”. O artigo 48.º do CPC visa as situações em que alguém que pode ser advogado, intervém no processo sem poderes de representação da parte por não estar munido da competente procuração, ou em que esta não contenha poderes suficientes ou padeça de irregularidades para esse efeito. São situações relativamente comuns, entre outras, aquelas em que o advogado age processualmente, subscrevendo e submetendo peças processuais em nome da parte, sem apresentar procuração subscrita pelo mandante ou fazendo-o com procuração que não confira poderes forenses de representação judicial, ou padeça de erro na identificação do advogado, ou do mandante, entre outras vicissitudes passíveis de inquinar o mandato. Diversamente dos casos em que não há, de todo, intervenção de advogado no processo em que é obrigatória a sua presença, nos casos de representação sem poderes por falta, insuficiência ou irregularidade do mandato podemos estar na presença de alguém que, sendo advogado ou pessoa profissionalmente habilitada a fazê-lo, intervém nos autos com essa qualidade mas sem os necessários poderes de representação do mandante / parte. Como se trata de uma situação de representação sem poderes, o artigo 48.º do CPC, em conformidade com o disposto no artigo 268.º, n.º 1, do Código Civil, impõe ao mandante a ratificação do processado anterior realizado pelo mandatário sem poderes ou com poderes insuficientes / irregulares, ratificação esta que é condição de eficácia perante o mandante dos actos praticados pelo mandatário anteriormente à sanação do vício. No caso vertente, o Sr. Solicitador de Execução subscritor do r.i., pese embora tenha juntado aos autos procuração emitida pela Autora, conferindo-lhe os necessários poderes de representação, não dispunha de condição profissional para intervir processualmente nos autos, por tal estar reservado a advogado, vício que constitui falta de constituição obrigatória de advogado pela Autora, e não de representação sem poderes. Por isso, a sanação do vício verificado nos presentes autos – a falta de constituição de advogado –, faz-se mediante o cumprimento da imposição do artigo 41.º do CPC que é a intervenção posterior de advogado na condição de mandatário judicial legalmente habilitado, não fazendo sentido a ratificação pela Autora / mandante de actos que o advogado não praticou nos autos, já que quem interveio anteriormente foi o sr. solicitador. A Sr.ª Juíza de 1ª instância considerou, e bem, não estar perante um caso de advogado que subscreve o requerimento de injunção e que, em data posterior, recebe poderes de representação forense por procuração a seu favor. Consequentemente, por despacho datado de 17.11.2023, notificado às partes por expediente de 20.11.2023 (ref.ª Citius 130280296), concedeu à Autora a possibilidade de vir constituir nos autos advogado, o que esta fez em 22.11.2023, através de requerimento (ref.ª Citius 47206923) notificado electronicamente à Ré, juntando aos autos procuração forense, datada de 23 de Fevereiro de 2023, emitida a favor da Dra. (…), advogada. O vício ficou, por isso, sanado nos termos determinados pela Sra. Juíza de 1ª instância, em respeito pela previsão legal do artigo 41.º do CPC. Note-se, ainda, que a Ré não esboçou qualquer oposição ou invocou nulidade, fosse no seguimento do despacho de 17.11.2023 proferido pela Sra. Juíza, fosse quando a Ré juntou a procuração a favor de mandatária forense, apesar de ambos os actos processuais lhe terem sido oportunamente notificados. Por fim, como prevê o n.º 3 do artigo 278.º do CPC, “as exceções dilatórias só subsistem enquanto a respetiva falta ou irregularidade não for sanada, nos termos do n.º 2 do artigo 6.º; ainda que subsistam, não tem lugar a absolvição da instância quando, destinando-se a tutelar o interesse de uma das partes, nenhum outro motivo obste, no momento da apreciação da exceção, a que se conheça do mérito da causa e a decisão deva ser integralmente favorável a essa parte.” (sublinhados nossos). Como referem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Filipe Pires de Sousa, «este n.º 3 consagra, pois, o princípio da prevalência da decisão de mérito, pressupondo uma distinção entre pressupostos processuais dispensáveis (v.g. falta de capacidade judiciária, falta de interesse processual, exceção de litispendência) e indispensáveis (v.g. falta de competência absoluta, caso julgado) (…), de modo que se “não se encontra preenchido um pressuposto processual destinado a proteger interesses das partes, importa verificar se o conhecimento de mérito pode ser favorável à parte que seria beneficiada com a proteção que resultaria do preenchimento do pressuposto” (Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 2ª ed., pág. 85) (…). Assim, se, malgrado a incapacidade judiciária ativa ou a falta de constituição obrigatória de patrocínio judiciário por parte do autor, a questão de fundo puder ser decidida de modo que lhe seja inteiramente favorável (…), deve optar-se por esta última decisão, em vez da extinção formal da instância, já que, em tais circunstâncias, as referidas exceções dilatórias visam fundamentalmente proteger o autor contra atuações inábeis ou prejudiciais que afinal se mostraram, em concreto, irrelevantes (…)” (sublinhados nossos). Ora, sem conceder relativamente ao entendimento de que a falta de constituição obrigatória de advogado pela Autora se encontra devidamente sanada, ainda que assim não fosse, sempre o normativo do n.º 3 do artigo 278.º do CPC, imporia, no caso vertente, que se considerasse dever a Sra. Juíza optar pela prolação da decisão de mérito, como ocorreu, em vez de absolver da instância por falta de um pressuposto adjectivo – a obrigatoriedade do patrocínio forense – que tem como escopo primordial a defesa do interesse da parte representada que, neste caso, é a Autora, a quem, já depois de haver constituído advogado, a sentença proferida reconheceu o direito peticionado na quase totalidade e que se conformou com a decisão do tribunal a quo. De outro modo, estar-se-ia a beneficiar o devedor pelo hipotético incumprimento de uma regra adjectiva criada para proteger o credor da sua falta de conhecimentos jurídicos para fazer valer em juízo um direito próprio. * Termos em que fenecem os argumentos invocados pela Recorrente em abono da tese da nulidade processual em apreço.* Do direito de crédito da Autora*** * A discordância da Recorrente relativamente à parte da sentença recorrida que reconheceu à Autora um direito de crédito sobre a Ré no montante de € 4.181,04 (quatro mil e cento e oitenta e um euros e quatro cêntimos), acrescida de juros, mostra-se dependente das alterações por si propugnadas quanto à decisão a matéria de facto.Não tendo os factos provados da decisão da 1ª instância sofrido qualquer alteração e mostrando-se adequado o enquadramento jurídico que aí lhes é dado, remete-se aqui para os respectivos termos, de que se reproduz o seguinte excerto que merece a nossa adesão: «O contrato de fornecimento de bens é um contrato atípico que pode ser definido como aquele em que uma parte se obriga à entrega ou disponibilização de bens ou de prestação de serviços, mediante uma contrapartida pecuniária pela outra parte. Nos termos suprarreferidos, a autora celebrou com o(a) ré(u) um contrato para fornecimento de bens: a autora ficaria obrigada ao fornecimento de material dentário ao(à) ré(u). Por sua vez, o(a) ré(u) ficaria obrigado(a) ao pagamento de um preço, nos termos contratualmente estipulados, pelo fornecimento de tais bens. Nos termos do artigo 406.º do Código Civil “o contrato deve ser pontualmente cumprido, e só pode modificar-se ou extinguir-se por mútuo consentimento dos contraentes ou nos casos admitidos na lei” (…) Decorre da factualidade dada como provada que a autora forneceu os bens solicitados pela ré. Assim sendo, verifica-se que a autora cumpriu com a obrigação à qual se encontrava adstrita. E verifica-se que a ré não procedeu ao pagamento da quantia respeitante aos bens fornecidos – no valor de € 4.181,04 (quatro mil e cento e oitenta e um euros e quatro cêntimos) – valor peticionado com dedução dos valores constantes das notas de crédito. Não foi ainda demonstrado qualquer cumprimento defeituoso por parte da autora. Constando da matéria de facto dada como provada que o valor em dívida é de € 4.181,04 (preço dos bens fornecidos pela autora e não pagos pela ré), considera-se provado que a ré é devedora deste montante, com fundamento em incumprimento contratual. De acordo com o artigo 817.º do Código Civil, “Não sendo a obrigação voluntariamente cumprida, tem o credor o direito de exigir judicialmente o seu cumprimento e de executar o património do devedor, nos termos declarados neste código e nas leis de processo” – pode assim a autora exigir o cumprimento da obrigação em falta.» Assim, nenhum reparo merece a subsunção dos factos ao direito realizada pelo tribunal a quo. * Aqui chegados, verificado que a sentença recorrida realizou a correcta decisão da matéria de facto e procedeu à boa aplicação do direito aos factos, resta concluir pela manutenção do segmento decisório da sentença recorrida.* Custas *** * Não havendo norma que preveja isenção (artigo 4.º, n.º 2, do RCP), o presente recurso está sujeito a custas (artigo 607.º, n.º 6, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, ambos do CPC).No critério definido pelos artigos 527.º, n.ºs 1 e 2 e 607.º, n.º 6, ambos do CPC, a responsabilidade pelo pagamento dos encargos e das custas de parte assenta no critério do vencimento ou decaimento na causa, ou, não havendo vencimento, no critério do proveito. No caso, a Recorrente não obteve vencimento no recurso, pelo que deve suportar as respectivas custas. * III. DECISÃO*** * Nestes termos, acordam os Juízes Desembargadores que compõem o coletivo da 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora em:1. Julgar improcedente a apelação e, em consequência, confirmar a sentença recorrida. 2. Condenar em custas a Recorrente. Notifique. * Évora, 13 de Março de 2025*** Ricardo Miranda Peixoto (Relator) Manuel Bargado (1º Adjunto) Susana Ferrão da Costa Cabral (2ª Adjunta) __________________________________________________ [1] In “Código de Processo Civil Anotado”, volume 2º, Coimbra Editora, 2001, anotação 3 ao então artigo 668.º, pág. 669. [2] In “Código de Processo Civil Anotado”, volume I, 3.ª edição, Coimbra, Almedina, 2023, anotação 11 ao artigo 615.º, págs. 793 e 794. [3] Neste sentido, António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, in Op. Cit., vol. I, 3.ª edição, Coimbra, Almedina, 2023, pág. 30. [4] Disponível na ligação: https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/5c62d7680bfd396180258b8500342396?OpenDocument [5] Disponível na ligação: https://www.dgsi.pt/jtrg.nsf/86c25a698e4e7cb7802579ec004d3832/60b3c297e4f932ed8025820f0051557d?OpenDocument [6] In Op. Cit., anotações 1 e 2 ao artigo 41.º, pág. 79. |