Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
40/22.9T8SRT.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FALCÃO DE MAGALHÃES
Descritores: TÍTULOS EXECUTIVOS
ACTO OU CONTRATO REALIZADO PELA CAIXA GERAL DE DEPÓSITOS
Data do Acordão: 04/26/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DA SERTÃ DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO RECORRIDA POR UNANIMIDADE
Legislação Nacional: ARTIGO 9.º, N.º 4, DO DECRETO-LEI N.º 287/93, DE 20 DE AGOSTO E ARTIGO 13.º DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA
Sumário: A norma do n.º 4 do artigo 9.º do Decreto-Lei n.º 287/93, de 20 de Agosto, segundo a qual “os documentos que, titulando acto ou contrato realizado pela Caixa, prevejam a existência de uma obrigação de que a Caixa seja credora e estejam assinados pelo devedor revestem-se de força executiva, sem necessidade de outras formalidades”, é inconstitucional, por violação do artigo 13.º da Constituição.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra1:


I - A) – A Caixa Geral de Depósitos, S.A., com sede em Lisboa, instaurou no Juízo de Competência Genérica da Sertã, em 2/2/2022, contra AA, execução para pagamento de quantia certa, com base num “contrato de empréstimo para consolidação de dívida resultante de operações de crédito pessoal ao consumo e para liquidação de limite de descoberto negociado”, formalizado por documento particular e cuja força executiva fez repousar no  artigo 9.º, n.º 4 do Decreto-Lei n.º 287/93, de 20 de Agosto e na  al. d) do n.º 1 do artigo 703.º do (novo) CPC (doravante, NCPC), aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26 de Junho.
A   Mma.   Juiz,   por   despacho   de   9-2-2022,   indeferiu      liminarmente o requerimento executivo.

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O despacho em que assim se decidiu, tem o seguinte teor, na parte fundamentadora:
«[…] O elenco de títulos executivos previstos na lei é taxativo, prevendo   o artigo 703.º do Código de Processo Civil:
“1 - À execução apenas podem servir de base:
a) As sentenças condenatórias;
b) Os documentos exarados ou autenticados, por notário ou por outras entidades                 ou      profissionais    com     competência para                 tal,     que     importem


constituição ou reconhecimento de qualquer obrigação;
c) Os títulos de crédito, ainda que meros quirógrafos, desde que, neste caso, os factos constitutivos da relação subjacente constem do próprio documento ou sejam alegados no requerimento executivo;
d) Os documentos a que, por disposição especial, seja atribuída força executiva.
2 -  Consideram-se abrangidos pelo título executivo os juros de mora, à    taxa legal, da obrigação dele constante.”
A Lei n.º 41/2013 de 26 de Junho, que aprovou o atual Código de Processo Civil, eliminou assim do elenco dos títulos executivos os documentos particulares,    assinados    pelo   devedor,    que    importem                 constituição   ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, nos termos que se encontravam previstos no artigo 46.º, n.º 1, al. c) do Código de Processo Civil revogado.   O título dado à execução, deste modo, não se encontra expressamente previsto  no                 elenco                 taxativo             de      títulos executivos                   supra referido, constituindo assim simples documento particular, assinado pela executada    e a exequente.
Compete apenas verificar se se poderá o mesmo enquadrar na al. d) do n.º 1 do artigo 703.º, o qual opera uma remissão geral para outra legislação que conceda força executiva a determinados documentos.
Com efeito, o artigo 9.º, n.º 4 do Decreto-Lei n.º 287/93, de 20 de Agosto atribui força executiva a todos os documentos que, titulando ato ou contrato realizado pela Caixa Geral de Depósitos, prevejam a existência de uma obrigação de que a Caixa seja credora e estejam assinados pelo devedor, sem necessidade de outras formalidades.
O Tribunal reconhece que este normativo não foi alterado nem revogado com a entrada em vigor do novo Código de Processo Civil, e reconhece que a jurisprudência ordinária tem maioritariamente decidido no sentido de


reconhecer força executiva a estes documentos, por caberem no âmbito de previsão do referido artigo 703.º, n.º 1, al. d) e porque o Decreto-Lei n.º 287/93 não foi alterado nem revogado pelo novo Código de Processo Civil. Contudo, salvo todo o devido respeito, discorda-se deste   entendimento.
Na verdade, deve-se denotar que a atribuição desta prerrogativa à Caixa Geral de Depósitos e não aos outros bancos coloca os devedores daquela em nítida desvantagem face aos devedores de qualquer outra instituição bancária, uma vez que estas terão de recorrer ao processo declarativo para ver reconhecido o seu crédito e obter título executivo.
Dispõe o artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa, que prevê o princípio constitucional da igualdade:
“1. Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei.
2. Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual.”
O Tribunal Constitucional, no acórdão n.º 670/2019  de  13  de Novembro  de 2019, decidiu já “Julgar inconstitucional, por violação do artigo 13.º da Constituição, a norma do n.º 4  do artigo 9.º do Decreto-Lei n.º 287/93, de 20 de agosto, segundo a qual se revestem de força executiva os documentos que, titulando ato ou contrato realizado pela B., S.A., prevejam a existência  de uma obrigação de que essa entidade bancária seja credora e estejam assinados pelo devedor, sem necessidade de outras   formalidades.”
Não se tratando ainda de declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral, este Tribunal segue de perto a fundamentação ali expendida e adere aos argumentos avançados pelo Tribunal Constitucional.


O princípio da igualdade não impede a existência de distinções face à lei, mas exige que as mesmas não sejam discriminatórias nem   arbitrárias.
Verifica-se que o Decreto-Lei n.º 287/93 teve como fito a transformação da Caixa Geral de Depósitos num banco detido por capitais públicos,  mas sujeito a regras de direito privado – visando, no fundo, colocar a  Caixa  Geral de Depósitos em situação de igualdade com as restantes entidades bancárias, no âmbito do giro do mercado; desde logo decorrendo  tal intenção do seu preâmbulo, e de outras medidas  assumidas  no  diploma, como seja a aplicação das regras do contrato de trabalho aos funcionários daquela entidade, e a circunstância de a exequente revestir a forma de sociedade anónima (privada), e não de empresa  pública.
Como tal, não se vislumbra qualquer razão de ordem que permita que a  todos os exequentes seja barrada a possibilidade de recurso a um título executivo que, pela sua natureza, confere menor grau de certeza quanto à existência do direito por ela titulado, mas que tal seja permitido à Caixa Geral de Depósitos – v. já neste sentido o Acórdão do Tribunal da Relação  de Évora de 25-02-2021, no proc. 134/14.4T8ENT.E1, disponível em www.dgsi.pt.
Melhor se dizendo, atenta a finalidade que se visa com a atribuição de força executiva a títulos que não sejam a sentença judicial, que é a de possibilitar    a rápida recuperação de crédito quando  existe  documento  que  certifique com acuidade e certeza bastante a existência deste crédito (e, na linha com    o aresto do Tribunal Constitucional que ora se segue, é pela finalidade que    a norma visa alcançar que se deve medir a verificação ou não de  discriminação injustificada perante a Lei Fundamental), não se verifica qualquer motivo que permita colocar os devedores da Caixa Geral de Depósitos em posição mais agravada do que os devedores de qualquer outra entidade  bancária,  quando  a  única distinção de relevo entre a exequente e qualquer outro banco é a propriedade pública ou privada.
Face a todo o exposto, o Tribunal decide não aplicar o artigo 9.º, n.º 4 do Decreto-Lei n.º 287/93 de 20 de Agosto, julgando o mesmo inconstitucional por violação do princípio da igualdade, previsto no artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa.

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Face ao assim decidido, verifica-se que o título dado à execução não se encontra previsto no elenco legal.
Acresce que não tem aplicação ao caso dos autos a doutrina exarada pelo Acórdão n.º 408/2015 do Tribunal Constitucional, que veio no sentido de reconhecer a força executiva dos documentos particulares emitidos em data anterior à entrada em vigor da Lei n.º 41/2013, uma vez que o documento em causa foi emitido já no ano de 2019.
A manifesta falta de título executivo representa fundamento de indeferimento liminar da execução, nos termos do artigo 726.º, n.º 2, al. a) do Código de Processo Civil.
E a manifesta falta verifica-se quando o título dado à execução não integra    o elenco do artigo 703.º do Código de Processo Civil, nem sequer por força da remissão geral operada pela al. d) do n.º 2 do normativo em   análise.
Por todo o exposto, indefere-se liminarmente o requerimento   executivo.
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Custas pela exequente, nos termos do artigo 527.º do Código de Processo Civil, fixando-se à causa o valor de 10.187,92€, correspondente à quantia exequenda, já contabilizados os juros de mora pedidos pela exequente (artigo 297.º do Código de Processo Civil).  […]».
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B) - Inconformada com tal decisão, dela veio apelar a Exequente, que, a findar a respectiva alegação recursiva, ofereceu as seguintes conclusões:
«1. Nos presentes autos de execução foi apresentado como título executivo um documento particular outorgado no dia 27 de novembro de 2019 e dado como perfeito na mesma data, o qual se mostra assinado pela executada/devedora, pelo que, é este um título executivo válido e eficaz, por força do disposto no artigo 703.º n.º 1 al. d) do Código de Processo Civil, conjugado com o disposto no artigo 9.º, n.º 4 do Decreto-Lei 287/93 de 20 de Agosto.
2. A norma constante do artigo 9.º n.º 4 do Decreto-Lei n.º 287/93 de 20 de Agosto, ao não ser expressamente revogada, leva a que se esteja perante um quadro normativo estável que cria na credora/exequente a confiança da sua exequibilidade.
3. Outro entendimento violará o princípio da confiança ínsito no Estado de direito democrático consagrado no art.º 2.º da Constituição da República Portuguesa.
4. Foram violados, entre outros, os artigos 703.º n.º 1 al. d) do Código de Processo Civil, o artigo 9.º, n.º 4 do Decreto-Lei 287/93 de 20 de Agosto e o artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa. […]».
Terminou requerendo que se revogasse o despacho recorrido, ordenando o prosseguimento da execução.
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II - As questões:
Em face do disposto nos art.ºs 635º, nºs 3 e 4, 639º, nº 1, ambos do NCPC, o objecto dos recursos delimita-se, em princípio, pelas  conclusões  dos recorrentes, sem prejuízo do conhecimento das questões que cumpra apreciar oficiosamente, por imperativo do art.º 608º, n.º 2, “ex vi” do art.º 663º, nº 2, do mesmo diploma legal.
Não haverá, contudo, que conhecer de questões cuja decisão se veja prejudicada pela solução que tiver sido dada a outra que antecedentemente
se haja apreciado, salientando-se que, “questões”, para efeito do disposto no n.º 2 do artº 608º do NCPC, são apenas as que se reconduzem aos pedidos deduzidos, às causas de pedir, às excepções invocadas e às excepções de que oficiosamente cumpra conhecer, não podendo  merecer  tal  classificação  o que meramente são invocações,  “considerações,  argumentos,  motivos, razões ou juízos de valor produzidos pelas partes”2 e que o  Tribunal,  embora possa abordar para um maior esclarecimento das partes, não está obrigado a apreciar.
A Apelante centra a sua alegação de recurso, sustentando que “A norma constante do artigo 9.º n.º 4 do Decreto-Lei n.º 287/93 de 20 de Agosto, ao não ser expressamente revogada, leva a que se esteja perante um quadro normativo estável que cria na credora/exequente a confiança da sua exequibilidade…”, pelo que “Outro entendimento violará o princípio da confiança ínsito no Estado de direito democrático consagrado no art.º 2.º da Constituição da República Portuguesa…”
Contudo, assim colocando a questão, a Apelante não ataca a verdadeiro “ratio decidendi” do indeferimento liminar, pois que este, embora escorando-se na manifesta falta de título executivo, fundou essa falta, não, propriamente, na revogação, ou na não vigência, do artigo 9.º n.º 4 do Decreto-Lei n.º 287/93 de
20 de Agosto, mas antes, na inaplicabilidade de tal norma, por inconstitucionalidade, resultante de violação do princípio da igualdade, previsto no artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa.
E é essa questão de inconstitucionalidade normativa que, desde já, cumpre aqui abordar.3
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III - A) - O circunstancialismo processual e os factos a considerar na decisão a proferir são os enunciados em I supra.
B)  –  Como intróito, antecipa-se já, que o nosso entendimento quanto à inconstitucionalidade da norma do artigo 9.º n.º 4 do Decreto-Lei n.º 287/93 de 20 de Agosto, não diverge daquele que se expressou no despacho recorrido e, consequentemente, sendo o título dado à execução, um documento particular desprovido de força executiva, a consequência a extrair relativamente ao requerimento executivo, não pode ser outra senão a do respectivo indeferimento liminar.
Esclarecendo que “B”, no texto abaixo transcrito, representa a ora Apelante “Caixa Geral de Depósitos, S.A”, vejamos o que se disse, essencialmente, sobre  o assunto, no Acórdão do Tribunal Constitucional nº 670/2019, de 13 de Novembro de 2019, que julgou «inconstitucional, por violação do artigo 13.º da Constituição, a norma do n.º 4 do artigo 9.º do Decreto-Lei n.º 287/93, de 20 de agosto, segundo a qual se revestem de força executiva os documentos que, titulando ato ou contrato realizado pela B., S.A., prevejam a existência de uma obrigação de que essa entidade bancária seja credora e estejam assinados pelo devedor, sem necessidade de outras formalidades»:
«[…] A questão de constitucionalidade colocada nos presentes autos incide sobre o n.º 4 do artigo 9.º do Decreto-Lei n.º 287/93, de 20 de agosto, que dispõe o seguinte:
«Os documentos que, titulando ato ou contrato realizado pela B., prevejam a existência de uma obrigação de que a B. seja credora e estejam assinados pelo devedor revestem-se de força executiva, sem necessidade de outras formalidades [ênfase acrescentado].»
Este preceito conjuga-se com o disposto na alínea d) do n.º 1 do artigo 703.º do Código de Processo Civil, que inclui no elenco dos títulos executivos a categoria residual «[d]os documentos a que, por disposição especial, seja atribuída força executiva». A atribuição de força executiva significa que a lei dispensa a B., nas condições muito amplas nela previstas (qualquer ato ou contrato assinado pelo devedor), de propor ação declarativa contra o devedor. O documento assinado pelo devedor é, neste aspeto, um sucedâneo da sentença condenatória, eximindo o credor do ónus de demonstrar o seu crédito num processo declarativo, regulado pelos princípios do contraditório e da igualdade de armas, e sujeitando o devedor à imediata ablação do seu património, mormente através da penhora de bens. Sem prejuízo da real magnitude da diferença depender das particularidades do processo de execução, o certo é que o regime especial consagrado no n.º 4 do artigo 9.º do Decreto-Lei n.º 287/93, de 20 de agosto, constitui, quando comparado com o regime-regra que faz depender a execução de prévio reconhecimento judicial, uma vantagem para o credor e uma desvantagem para o devedor.
De acordo com o quadro legal em vigor, os demais credores, designadamente as outras instituições de crédito que não a B., não gozam de tal vantagem, e os correlativos devedores não sofrem a desvantagem simétrica. Com efeito, ao contrário do «velho» Código de Processo Civil, na versão que resultou da aprovação do Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de dezembro, o «novo» Código de Processo Civil, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, não atribui força executiva à generalidade dos documentos particulares assinados pelo devedor. A Proposta de Lei n.º 113/XII, que esteve na origem do diploma que aprovou o novo regime processual civil, esclarece os motivos da opção legislativa de restringir a classe dos títulos executivos
(…)
7. Sobre o alcance do princípio geral da igualdade enquanto norma de controlo judicial do poder legislativo, escreveu-se no Acórdão n.º 409/99:
«O princípio da igualdade, consagrado no artigo 13º da Constituição da República Portuguesa, impõe que se dê tratamento igual ao que for essencialmente igual e que se trate diferentemente o que for essencialmente diferente. Na verdade, o princípio da igualdade, entendido como limite objetivo da discricionariedade legislativa, não veda à lei a adoção de medidas que estabeleçam distinções. Todavia, proíbe a criação de medidas que estabeleçam distinções discriminatórias, isto é, desigualdades de tratamento materialmente não fundadas ou sem qualquer fundamentação razoável, objetiva e racional. O princípio da igualdade enquanto princípio vinculativo da lei, traduz-se numa ideia geral de proibição do arbítrio.»
Trata-se precisamente de sindicar a racionalidade da vantagem de que goza a B. e da desvantagem simétrica que sofrem os seus devedores, quando comparados com a classe geral dos credores e devedores, ou mesmo com a classe menos extensa das instituições de crédito e respetivos devedores.
(…)
O problema de constitucionalidade identificado na decisão recorrida não se prende com a opção do legislador de, restringindo mais ou menos intensamente direitos fundamentais em matéria processual, atribuir força executiva a certa classe de títulos, abstraindo da qualidade dos respetivos sujeitos. Prende-se com o facto, que releva do princípio da igualdade, de ter atribuído a títulos de determinado sujeito a força executiva que as regras gerais negam à generalidade dos títulos da mesma natureza. Para que esta opção seja racional – para que não viole a proibição do arbítrio –, é necessário que se identifique uma qualidade do sujeito privilegiado pelo legislador em virtude da qual seja plausível afirmar-se que os documentos assinados pelo devedor que titulam os créditos daquele possuem uma vocação de acertamento diferenciada. Ora, tal qualidade não parece existir.
(…)
8. Como bem assinala o Ministério Público, a solução legal contestada nos presentes autos tem a sua origem no artigo 61.º do Decreto-Lei n.º 48953, de 5 de abril de 1969, que aprovou um novo regime orgânico da então denominada B., Crédito e Previdência, definida no artigo 2.º como «uma pessoa coletiva de direito   público, dotada de autonomia  administrativa e financeira, com  património próprio, competindo-lhe o exercício das funções de instituto de crédito do Estado e a administração das instituições a que se referem os artigos 4.º [B. e Montepio de Servidores do Estado] e 5.º [Caixa Nacional de Crédito].» O artigo 3.º dispunha que, «[c]omo instituto de crédito do Estado, incumbe à B. colaborar na realização da política de crédito do Governo e, designadamente, no incentivo e mobilização da poupança para o financiamento do desenvolvimento económico e social, na ação reguladora dos mercados monetário e financeiro e na distribuição seletiva do crédito.» E a respeito dos funcionários da B., preceituava o n.º 2 do artigo 31.º que, «[o] referido pessoal continua sujeito ao regime jurídico do funcionalismo público, com as modificações exigidas pela natureza específica da atividade da B. como instituição de crédito, de harmonia com o disposto no presente diploma e nos restantes preceitos especialmente aplicáveis ao estabelecimento.»
Entretanto, o diploma em que se insere a norma cuja aplicação foi recusada na decisão recorrida – o Decreto-Lei n.º 287/93, de 20 de agosto – transformou   a
B. numa sociedade anónima de capitais exclusivamente públicos, com o propósito expresso de a colocar em igualdade de circunstâncias com as demais instituições de crédito que operam no sistema financeiro português.
(…)
Atenta a natureza que a lei então atribuiu à B., aproximando-a das demais instituições de crédito, submetendo-a a regras de direito privado e aplicando ao seu pessoal o regime do contrato individual de trabalho, nada justifica a conclusão de que os documentos abrangidos pelo artigo 9.º do Decreto-Lei n.º 287/93, de 20 de agosto, possuem um grau diferenciado de idoneidade de acertamento dos créditos neles representados.
A B. alega que é ainda uma empresa pública destinada a servir o interesse público, ao contrário das instituições de crédito privadas, que «têm como prioridade de gestão criar valor para os acionistas». Porém, não se vê de que modo tal influi no juízo sobre a maior ou menor vocação de acertamento dos documentos que titulam os seus créditos, o tertium comparationis relevante para se determinar se a solução legal é arbitrária. Na verdade, decisiva não é a finalidade prosseguida pela B., mas a forma escolhida para o efeito; sob esse ponto de vista, nada distingue os documentos a que se refere o artigo 9.º do Decreto-Lei n.º 287/93, de 20 de agosto, de documentos particulares homólogos detidos por outras instituições de crédito, e aos quais o legislador processual civil veio a negar, com a aprovação do «novo código», força executiva.
Sublinhe-se, por último, que os documentos aqui em causa carecem da força probatória que decorreria do reconhecimento de uma especial fé pública em que estivessem investidos os funcionários da B. que os outorgam – fé pública essa que poderia justificar uma analogia com os documentos autênticos ou autenticados referidos na alínea b) do n.º 1 do artigo 703.º do Código de Processo Civil, dado que a exequibilidade destes, por comparação com os equivalentes documentos particulares simples constitutivos de obrigações e assinados pelo devedor, aos quais atualmente não é reconhecida exequibilidade, radica precisamente numa especial qualidade do sujeito que os outorga ou que os certifica.
Ora, para que se pudesse falar de fé pública – ou qualidade equivalente – seria indispensável que a mesma integrasse o estatuto dos funcionários da B.. Não é esse o caso: o estatuto dos trabalhadores da B. não os distingue, nos termos da lei, dos trabalhadores das instituições de crédito
privadas. Do facto de a B., enquanto sociedade anónima de capitais exclusivamente públicos, estar adstrita à prossecução do interesse público, não se segue que os seus funcionários, designadamente aqueles que intervêm na outorga dos documentos a que se refere o artigo 9.º do Decreto-Lei n.º 287/93, de 20 de agosto, gozem de uma qualquer fé pública, suscetível de comunicar aos
contratos abrangidos pela norma sindicada um grau de acertamento do direito exequendo que justifique a sua exequibilidade imediata, em contraste com contratos da mesma natureza celebrados por outros credores, designadamente as demais instituições de crédito.
Por tudo quanto se disse, resta concluir que a norma sindicada nos presentes autos é inconstitucional, por violar o princípio da igualdade consagrado no artigo 13.º da Constituição. […]».
Ora, concordando nós, plenamente, com o entendimento exarado no Acórdão do TC acima citado, temos de julgar inconstitucional, por violação do artigo 13.º da Constituição, a norma do n.º 4 do artigo 9.º do Decreto-Lei n.º 287/93, de 20 de Agosto e, como tal, recusando a aplicação de tal norma, entender que o documento particular em que se alicerça a presente execução é destituído de força executiva, daí resultando, por manifesta falta de título, o indeferimento liminar do requerimento inicial executivo “sub judice” (artº 726º, nº 2, a), do NCPC).
Assim, confirma-se o despacho recorrido e julga-se a Apelação improcedente.
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IV - Em face de tudo o exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a Apelação improcedente e confirmar a decisão recorrida.


Custas pela Apelante (artºs 527º, nºs 1 e 2, 607º, nº 6, 663º, nº 2, todos do NCPC).


26/4/20224


(Luiz José Falcão de Magalhães)
(António Domingos Pires Robalo)
(Sílvia Maria Pereira Pires)

1 Segue-se a grafia anterior ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, respeitando-se, em caso de transcrição, a grafia do texto original.

2 Acórdão do STJ, de 06 de Julho de 2004, Revista nº 04A2070, embora versando a norma correspondente da legislação processual civil pretérita, à semelhança do que se pode constatar, entre outros, no Ac. do STJ de 13/09/2007, proc. n.º 07B2113 e no Ac. do STJ de 08/11/2007, proc. n.º 07B3586, todos estes arestos consultáveis em “http://www.dgsi.pt/jstj.nsf?OpenDatabase”.

3 Note-se que, se o Tribunal “a quo” tivesse dissentido do juízo de inconstitucionalidade da norma, expresso no Acórdão nº 670/2019 do TC, aplicando tal norma, a decisão que aí fosse proferida estaria abarcada na hipótese de recurso obrigatório do Ministério Público, para o Tribunal Constitucional, prevista na al. g) do nº 1 do artº 70º e nº 3 do artº 73º, da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional - Lei 28/82, de 15 de Novembro.

4 Processado e revisto pelo Relator.