Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
141/23.6GGCVL-D.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: SANDRA FERREIRA
Descritores: ASSISTENTE
TEMPESTIVIDADE
INTERPRETAÇÃO DA LEI
Data do Acordão: 01/22/2025
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: CASTELO BRANCO (JUÍZO CENTRAL CRIMINAL DA COVILHÃ)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 68º, N.º 3, AL. A), DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL; 9º CC
Sumário: I – O ofendido caso pretenda intervir no debate instrutório para defesa dos seus interesses e manter em aberto a possibilidade de recorrer na eventualidade de vir a ser proferido despacho de não pronúncia, deve constituir-se assistente nos autos até ao limite temporal fixado na al. a) do nº 3 do art. 68º do Código de Processo Penal.

II – Nos termos do artº 9º do Código Civil a interpretação não se deve cingir à letra da lei, mas reconstituir o pensamento legislativo, não podendo, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso; na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.

III – Tendo em conta o elemento literal e histórico e presumindo-se que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (art. 9º, nº 3 do Código Civil) a conclusão a retirar é a de que tendo, na alteração legislativa operada através da lei 130/2015 de 04.09, apenas feito menção ao prazo de interposição de recurso de sentença quis o legislador afastar a possibilidade de constituição como assistente no prazo de interposição de recurso de outras decisões que também ponham “termo ao processo”.

IV – A tal interpretação não se opõe a unidade do Sistema Jurídico Português, na medida em que reconhecendo o art. 32º, nº 7 da Constituição da República Portuguesa, ao ofendido o direito a intervir no processo “nos termos da Lei”, confere ao legislador ordinário a possibilidade de modelar essa mesma intervenção, designadamente através da fixação de limites temporais.

V – É, pois extemporâneo o requerimento formulado pela ofendida para constituição como assistente após a leitura do despacho de não pronúncia e apenas com o intuito de deste recorrer.


(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Integral: *

Acordam, em conferência, na 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra:

I-RELATÓRIO

I.1 No âmbito dos autos de instrução registados sob o nº 141/23.... que corre termos pelo Juízo Local Criminal da Covilhã do Tribunal Judicial da Comarca de Castelo Branco, em 13.08.2024 foi proferido o seguinte despacho [transcrição]:

Refª. 3648592:

Veio AA em 04-07-2024 requerer a sua constituição como assistente.

Cumprido o cabal exercício do direito ao contraditório, o Ministério Público não se opôs ao requerido e BB arguido/assistente nos autos pronunciou-se pela sua não admissão por extemporâneo, atento o disposto no art. 68.º, n.º3, al. a), do Código de Processo Penal.

Cumpre apreciar.

A requerente AA, actualmente ofendida nos presentes autos invocou para o efeito que o seu requerimento se atentaria para recorrer da decisão de não pronúncia (o que se pressupõe ser a decisão de não pronúncia por referência ao arguido BB).

Mais sustentou o seu requerimento no entendimento sufragado por Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 15-11-2018, processo n.º 113/17.0GBOVR.P1.

Dispõe o art. 68.º, n.º3, do Código de Processo Penal que: “Os assistentes podem intervir em qualquer altura do processo, aceitando-o no estado em que se encontrar, desde que o requeiram ao juiz: a) Até cinco dias antes do início do debate instrutório ou da audiência de julgamento; b) Nos casos do artigo 284.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 287.º, no prazo estabelecido para a prática dos respectivos actos. c) No prazo para interposição de recurso da sentença”.

Conforme se alcança do compulso dos presentes autos, encontram-se os mesmos, ainda, em fase de instrução, nos termos da qual foi proferido despacho de não pronúncia por referência aos dois sujeitos  processuais, arguidos AA e BB.

Por sua vez, da tramitação da presente fase, AA teve intervenção no debate na qualidade de arguida, porquanto do requerimento de abertura de instrução, BB pretendeu pôr em causa o despacho de acusação deduzido pelo Ministério Público e, bem assim, o despacho de arquivamento, quanto ao ilícito investigado contra AA, tendo requerido, nessa medida da sua constituição como assistente.

Quanto a este aspecto, a lei é clara ao definir as balizas temporais quanto ao momento para que um interveniente nos termos do art. 68.º, n.º1, do Código de Processo Penal possa requerer ao Juiz a sua intervenção da qualidade de sujeito processual como assistente.

Ora, no dia 04-07-2024, tinha já sido realizado debate instrutório, inexistindo, por ora, previsão para a realização de audiência de julgamento, porquanto foi proferido despacho de não pronúncia.

Nos casos do art. 284.º e da alínea b), n.º1, do art. 287.º, também se revela extemporâneo, porquanto já não estamos em fase de inquérito.

Ora, nos termos da alínea c), “no prazo para interposição de recurso da sentença”, não se poderá daí extrair que sentença também significaria decisão instrutória ou decisão que ponha termo ao processo.

Com efeito, o art. 68.º, n.º3, do Código de Processo Penal foi criada com a Lei n.º 130/2015, de 04/09 que alterou o Código Processo Penal visando a implementação do Estatuto da Vitima e para resolver a querela existente que tinha originado o Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.º 12/2016, in Diário da República n.º 191/2016, I Série, de 04/10/2016: “Após a publicação da sentença proferida em 1.ª Instância, que absolveu o arguido da prática de um crime semipúblico, o ofendido não pode constituir-se assistente, para efeitos de interpor recurso dessa decisão, tendo em vista o disposto no artigo 68.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, na redacção vigente antes da entrada em vigor da Lei n.º 130/2015, de 04.09”.

Pelos motivos expostos supra, indefere-se o requerimento de constituição de assistente de AA, por extemporâneo.

Notifique.”

I.2 Recurso da decisão

Inconformada com tal decisão veio AA interpor recurso, com os fundamentos expressos na respetiva motivação, da qual extraiu as seguintes conclusões [transcrição]:

“CONCLUSÕES:

I. Vem o presente recurso interposto do douto despacho proferido nos autos, o qual indeferiu o Requerimento de constituição de assistente por extemporâneo e, consequentemente não admitiu o recurso da decisão instrutória que deu entrada por ilegitimidade da recorrente.

II. Foi proferida decisão instrutória de não pronúncia do arguido BB no dia 03.07.2024.

III. A 04.07.2024, e portanto dentro do prazo de recurso, a ora recorrente dirigiu aos autos requerimento de constituição de assistente com vista à interposição do recurso daquela decisão.

IV. A este respeito sustentou que tal requerimento estava em tempo consoante a argumentação aduzida no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 15/11/2018, argumentação esta que se dá como integralmente reproduzida para todos os devidos e legais efeitos. (https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/711db2beb069fdd6802583910043f72b )

V. Resumidamente tal decisão jurisprudencial conclui que “Assim, nos crimes públicos e semi-públicos é sempre admissível a constituição de assistente até ao trânsito em julgado da decisão que colocar termo ao processo, aceitando-o o titular do direito no estado em que se encontrar.”

VI. “(…) o ofendido, mesmo sem intervenção no debate ou julgamento, poderá requerer a constituição de assistente posteriormente para intervir na respectiva fase de recurso, ou seja, do debate ou do julgamento.”

VII. A 01.08.2024 a recorrente deu entrada do recurso de decisão de não pronúncia do arguido (pois apesar de não ter sido ainda notificada do (in)deferimento da constituição de assistente continuava a correr prazo de recurso.)

VIII. Por despacho de 13.08.2024, o douto tribunal a quo indeferiu o requerimento de constituição de assistente e, consequentemente não admitiu aquele recurso do despacho de não pronúncia.

IX. Não podemos aceitar que perante uma decisão final desfavorável, a vítima não possa constituir-se assistente interpor o respectivo recurso, pois tal premissa coloca em causa a unidade do sistema jurídico português

X. Face ao exposto, a decisão recorrida violou de forma manifesta o disposto nos arts. 68/1, 3 a) b) e c) e 401º/1 b), do CPP, razão pela qual não deve ser mantida.

Termos em que, e nos melhores de direito, que Vs. Exs. Doutamente suprirão, deve ser dado provimento ao presente recurso e, em consequência, ser o douto despacho recorrido revogado e substituído por outro que admita a recorrente como assistente , e bem assim, concludentemente, admita o recurso da decisão de não pronúncia interposto pela recorrente

FAZENDO-SE, ASSIM, A HABITUAL E NECESSÁRIA JUSTIÇA


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Foi admitido o recurso, nos termos do despacho proferido a 19.09.2024, tendo na mesma data sido admitida a reclamação do despacho que não admitiu o recurso interposto pela ofendida do despacho de não pronúncia.

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I.3 Respostas ao recurso

Efetuada a legal notificação, admite-se porque a secção instruiu o apenso D indevidamente com o recurso interposto do despacho de não pronúncia (que não foi admitido) o Ministério Público respondeu a este último recurso, não tendo apresentado resposta ao recurso que ora se aprecia.

O arguido/assistente BB não apresentou resposta.


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I.4 Parecer do Ministério Público

Remetidos os autos a este Tribunal da Relação, nesta instância o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no seguinte sentido [transcrição]:

“Salvo melhor opinião, o recurso interposto pela ofendida AA foi correctamente admitido e subiu nos termos e com os efeitos legalmente previstos, nada obstando a que seja apreciado.[1]

Visto o alegado em tal recurso, considera-se não dever merecer provimento a pretensão aí formulada.

Com efeito, tal como se julga ser entendimento dominante na nossa jurisprudência[2], o teor do nº 3 do art. 68º sempre demonstrou, independentemente das sucessivas alterações de redacção que aí foram sendo introduzidas até 2015, que o legislador pretende condicionar a possibilidade de intervenção processual do assistente em cada uma das fases processuais posteriores ao Inquérito à sua constituição como tal no início dessa mesma fase – só assim fazendo sentido que, apesar de a lei referir que tal intervenção poderá ter lugar em qualquer altura do processo, aceitando-o o assistente “no estado em que se encontrar”, se exija simultaneamente que o requerimento para constituição como assistente seja formulado em momentos determinados da tramitação processual.

Dentro desta ordem de ideias, também a alteração efectuada pela Lei 130/2015, de 4-9, que introduziu nesse nº 3 a sua actual alínea c), deverá ser interpretada como visando alargar a possibilidade de constituição como assistente à fase de recurso, ainda que o requerente não tenha tido intervenção como tal na fase de julgamento, mas apenas se o recurso a interpor disser respeito duma “sentença”.

Com efeito, tendo para além do mais em conta o teor literal da disposição constante desta alínea c) e a história do preceito legal no qual a mesma foi inserida, dúvidas não poderá haver de que a extensão do(s) prazo(s) legalmente impostos para a constituição como assistente que aí foi consignada apenas abrangerá a possibilidade intervenção em sede de recurso duma sentença, no sentido previsto na alínea a) do nº 1 do art. 97º do Código de Processo Penal – não havendo qualquer razão para crer que o legislador se tenha enganado ao utilizar o termo “sentença” quando efectuou a referida alteração, ou que a circunstância de não ter previsto a possibilidade de constituição como assistente para interposição de recurso de outras decisões que também ponham “termo ao processo” gere, de algum modo, uma lacuna a integrar pelo julgador.

2 Assim, não devendo considerar-se legalmente admissível a constituição como assistente, no decurso da fase de instrução, após o momento fixado na alínea a) do nº 3 do art. 68º do Código de Processo Penal, não poderia ter sido outra a decisão proferida pelo Tribunal recorrido – não devendo por isso, segundo nos parece, ser acolhida a pretensão formulada no recurso interposto pela ofendida.”


*

I.5. Resposta

Pese embora tenha sido dado cumprimento ao disposto no artigo 417º, n.º 2, do Código de Processo Penal, não foi apresentada resposta ao sobredito parecer.


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I.6. Concluído o exame preliminar, prosseguiram os autos, após os vistos, para julgamento do recurso em conferência, nos termos do artigo 419.º do Código de Processo Penal.

Cumpre, agora, apreciar e decidir.


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II- FUNDAMENTAÇÃO

II.1- Poderes de cognição do tribunal ad quem e delimitação do objeto do recurso:

Conforme decorre do disposto no n.º 1 do art.º 412.º do Código de Processo Penal, bem como da jurisprudência pacífica e constante [designadamente, do STJ[3]], são as conclusões apresentadas pelo recorrente que definem e delimitam o âmbito do recurso e, consequentemente, os poderes de cognição do Tribunal Superior, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso a que alude o artigo 410º do Código de Processo Penal[4].

Assim, face às conclusões extraídas pelo recorrente da motivação do recurso interposto nestes autos, a questão a apreciar e decidir é a seguinte:
® Da admissibilidade da constituição de assistente em crime de natureza pública após a prolação de despacho de não pronúncia com o intuito de dele recorrer.

II. 1 - Apreciação do recurso

Com relevo para a questão em apreciação importa salientar alguma da tramitação processual levada a cabo (necessária à compreensão da mesma).

- A 17.04.2024 (refª citius 37098014) foi proferido nos autos despacho de arquivamento parcial, concernente a factos denunciados no inquérito que constitui o apenso B e foi deduzida acusação, em processo comum e para julgamento em tribunal singular, contra BB, imputando-lhe a prática, como autor e na forma consumada, de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, alíneas b) e n.º 2, alínea a), e nºs. 4 e 5, do Código Penal.

 - A 20.05.2024 (refª citius 3599489) BB, requereu a sua constituição como assistente e, nessa qualidade e na de arguido, requereu a abertura de instrução, pugnando que a final fosse:

A) - Proferido despacho de pronúncia da arguida AA, como autora, pela prática do crime de violência doméstica previsto e punível pelo art. 152º, nº 1, al. b) e nº 2 do Código Penal;

B) Proferido despacho de não pronúncia do arguido/queixoso ordenando-se o arquivamento dos autos quanto aos factos atinentes ao mesmo.

- Por despacho de 27.05.2024 (refª citius 37269367) foi BB admitido a intervir nos autos na qualidade de assistente e foi declarada aberta a instrução.

- A 03.07.2024 (refª citius 37426510) foi lida a decisão instrutória, composta por despacho de não pronúncia relativamente à arguida AA e relativamente ao arguido BB.

- A 05.07.2024 (refª citius 3648592) veio AA requerer a sua constituição como assistente com o objetivo de recorrer da decisão de não pronúncia proferida a 03.07.2024.

- A 02.08.2024 (refª citius 3672488)  veio AA interpor recurso do despacho de não pronúncia.

- Por despacho de 13.08.2024 (refª citius 37524848) foi indeferida a constituição de AA como assistente – o despacho recorrido.

- Por consequência, não foi  o requerimento de interposição de recurso da decisão proferida, apresentado por AA, por se entender que  a mesma não tinha legitimidade para o efeito.

           - A 26.08-2024 (refª citius 3684910) veio AA interpor recurso do despacho exarado a 13.08.2024 que indeferiu o seu requerimento de constituição como assistente.

           - A 26.08.2024 (Refª citius 3685281) veio também AA não se conformando com o douto despacho de 13.08.2024 (Refª citius 37524848) que não admitiu o recurso interposto pela mesma, veio interpor reclamação desta não admissão nos termos do disposto no art. 405º do Código de Processo Penal.

           - Por despacho de 19.09.2024 (refª citius 37605633) foi admitido o recurso interposto do despacho que não admitiu a constituição de AA como assistente a subir de imediato, em separado e com efeito devolutivo (organizando-se para o efeito o presente apenso D).

           Foi também admitida a reclamação deduzida nos termos do disposto no art. 405º do Código de Processo Penal.

- Tal reclamação, que constitui o apenso C, foi alvo de despacho exarado neste Tribunal da Relação de Coimbra a 30.09.2024 (Refª citius 11602024) que devolveu os autos à 1ª Instância com o seguinte fundamento: “Como resulta do teor da reclamação, a reclamante faz uso deste meio processual por mera cautela, pois se o recurso interposto quanto à questão da constituição de assistente proceder, a consequência lógica será a admissibilidade do recurso.

Verifica-se, por conseguinte, que não pode ser proferida ainda decisão sobre a matéria desta reclamação porque está dependente da decisão que venha a ser tomada relativamente ao recurso relativo à admissão da reclamante como assistente.

Sendo assim a reclamação deve manter-se na 1.ª instância esperando o resultado deste recurso.

Justifica-se a remessa à 1.ª instância porque sem se saber o resultado do recurso não é possível decidir a reclamação, razão pela qual é prematura a sua remessa a  esta Relação, porquanto não tem efeito útil (ainda não é tempo de decisão).”

Vejamos então:

Sempre sob à égide da matriz constitucional encontramos no nº 7 do art. 32º da Lei Magna a consagração da participação do ofendido na ação penal, ali se estatuindo que este “ (…) tem o direito de intervir no processo, nos termos da lei”.

A ampliação do art. 32º da CRP, operada com a revisão constitucional introduzida pela lei 1/97 de 20.09, traduz nas palavras de Guilherme da Costa Câmara[5] “a consagração de um processo penal mais plural e participativo, em que de algum modo vêm-se resgatadas e revaloradas as ideias de repersonalização da vítima e de conflituosidade (esta vista sob um prisma tridimensional, isto é, sem recuo do Estado, porquanto sequer acenou-se em direção a uma imponderada e acrítica privatização do jus puniendi, como também constitui uma orientação mais consequente e imparcial em relação à defesa dos direitos humanos – que não podem ser perspetivados de forma unilateral – dos direitos das vítimas”.

Na decorrência daquele dispositivo constitucional encontramos o art. 113º, nº 1 do Código Penal que define o ofendido como “o titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação”. Prevendo, em paralelo, a al. a), do nº 1 do art. 68º do Código de Processo Penal – normativo que embora não consagrando uma definição de assistente define a sua posição e atribuições no processo – que se consideram ofendidos “os titulares dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação desde que maiores de 16 anos”.

Porém, são estabelecidos, pelo legislador ordinário, prazos e marcos para a constituição do ofendido como assistente.

Assim, nos termos do disposto no art. 68º, nº 3 al. a) do Código de Processo Penal: “Os assistentes podem intervir em qualquer altura do processo, aceitando-o no estado em que se encontrar, desde que o requeiram ao juiz:

a) Até cinco dias antes do início do debate instrutório ou da audiência de julgamento;

b) Nos casos do artigo 284.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 287.º, no prazo estabelecido para a prática dos respectivos actos.

c) No prazo para interposição de recurso da sentença.”

Entende a recorrente, sustentando a sua posição no decidido no Acórdão do TRP de 15.11.2018 [Processo nº 113/17.0GBOVR.P1, disponível in www.dgsi.pt] que nos crimes públicos e semipúblicos é sempre admissível a constituição como assistente até ao trânsito em julgado da decisão que colocar termo ao processo, aceitando-o o titular do direito no estado em que se encontrar.

A questão não é isenta de controvérsia, estando pendente recurso para fixação de jurisprudência, como bem salienta o Digno Procurador Geral Adjunto no parecer emitido no presente recurso.

Vejamos:

Do disposto no citado art. 68º, nº 3 al. a) do Código de Processo Penal decorre que o ofendido não poderá intervir no debate instrutório se não requereu a sua constituição como tal no prazo ali estabelecido  (até cinco dias antes do debate instrutório). Realizado aquele debate, prosseguindo os autos para a fase de julgamento poderá ainda o ofendido requerer a sua constituição como assistente até cinco dias antes do julgamento e, com a introdução da alínea c), operada pela lei nº 130/2015 de 4 de setembro, no prazo de interposição de recurso da sentença.

Na verdade, o legislador com a redação da Lei nº 130/2015 de 4 de setembro, incluiu nesta alínea c) do nº 3 apenas a sentença, isto é a decisão final proferida em fase de julgamento – art. 97º, nº 1 do Código de Processo Penal -, não mencionando expressamente o despacho de não pronúncia, nem efetuando qualquer alteração às antecedentes alíneas.

Resulta do artº 9º do Código Civil que a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada (nº 1), não podendo, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso (nº 2); na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (nº 3).

   Afirma Batista Machado[6]: “ O art. 9.º deste Código, que à matéria se refere, não tomou posição na controvérsia entre a doutrina subjectivista e a doutrina objectivista. Comprova-o o facto de se não referir, nem à "vontade do legislador", nem à "vontade da lei", mas apontar antes como escopo da actividade interpretativa a descoberta do "pensamento legislativo" (art. 9.º, 1.º). Esta expressão, propositadamente incolor, significa exactamente que o legislador não se quis comprometer. [...]

Começa o referido texto por dizer que a interpretação não deve cingir-se à letra mas reconstituir a partir dela o "pensamento legislativo". Contrapõe-se letra (texto) e espírito (pensamento) da lei, declarando-se que a actividade interpretativa deve - como não podia deixar de ser - procurar este a partir daquela.

A letra (o enunciado linguístico) é, assim, o ponto de partida. Mas não só, pois exerce também a função de um limite, nos termos do art. 9.º, 2: não pode ser considerado como compreendido entre os sentidos possíveis da lei aquele pensamento legislativo (espírito, sentido) "que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso".

Pode ter de proceder-se a uma interpretação extensiva ou restritiva, ou até porventura a uma interpretação correctiva, se a fórmula verbal foi sumamente infeliz, a ponto de ter falhado completamente o alvo. Mas, ainda neste último caso, será necessário que do texto "falhado" se colha pelo menos indirectamente uma alusão àquele sentido que o intérprete venha a acolher como resultado da interpretação. Afasta-se assim o exagero de um subjectivismo extremo que propende a abstrair por completo do texto legal quando, através de quaisquer elementos exteriores ao texto, descobre ou julga descobrir a vontade do legislador. Não significa isto que se não possa verificar a eventualidade de aparecerem textos de tal modo ambíguos que só o recurso a esses elementos externos nos habilite a retirar deles algum sentido. Mas, em tais hipóteses, este sentido só poderá valer se for ainda assim possível estabelecer alguma relação entre ele e o texto infeliz que se pretende interpretar.

 Ainda pelo que se refere à letra (texto), esta exerce uma terceira função: a de dar um mais forte apoio àquela das interpretações possíveis que melhor condiga com o significado natural e correcto das expressões utilizadas. Com efeito, nos termos do art. 9.º, 3, o intérprete presumirá que o legislador "soube exprimir o seu pensamento em termos adequados". Só quando razões ponderosas, baseadas noutros subsídios interpretativos, conduzem à conclusão de que não é o sentido mais natural e directo da letra que deve ser acolhido, deve o intérprete preteri-lo.

Desde logo, o mesmo n.º 3 destaca outra presunção: "o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas". (sublinhado nosso).

Ora, concatenando o nº 2 e as alíneas do nº 3 do art. 68º do Código de Processo Penal verificamos que neles são regulados os concretos momentos em que a constituição como assistente é admissível, estabelecendo-se especificamente para a fase de instrução que o pode fazer em simultâneo com o requerimento de abertura de instrução (art. 68º, nº 3 al. b) e 287º, nº 1 al. b) do Código de Processo Penal) ou até 5 dias antes do debate instrutório ( arts. 68º, nº 3, al. a) do Código de Processo Penal).

Na fase de julgamento até cinco dias antes da audiência ( art. 68º, nº 3 al. a) do Código de Processo Penal) ou na fase de recurso da sentença nos termos da al. c) do nº 3 do referido art. 68º do Código de Processo Penal, e portanto restrita a esta fase do processo.

Na exposição de motivos da proposta de lei nº 343/XII que serviu de fundamento à mencionada Lei nº 130/2015 de 4 de setembro [disponível em https://app.parlamento.pt/webutils/docs/doc.pdf?path=rnEhQ5jpO%252bNEVjt0m5QbbtbQ8wEs7CbcW96XT7No2WEkaO%252bmgsr4%252f8OYhSo53UyxEE9LOee6tmp3Wkt3qdE02N] escreveu-se: “A definição de um estatuto homogéneo para as vítimas de crimes tem enfrentado a dificuldade assente na existência de vários enquadramentos legais, pois as vítimas podem ser sujeitos processuais se assumirem as vestes de assistentes ou demandantes civis, em ordem a sustentar uma acusação ou formular um pedido de indemnização civil, respetivamente, ou podem ter apenas intervenção no processo, neste caso como denunciantes e testemunhas. Todas estas vertentes se podem cumular, em virtude de serem complementares, mas encerram distintos regimes jurídicos: aos assistentes e aos demandantes civis, por terem a qualidade de sujeitos processuais, é facultada a apresentação de peças processuais, a participação na audiência de julgamento através de advogado por si constituído, bem como a interposição de recurso relativamente às decisões que lhes sejam desfavoráveis; já as demais vítimas têm tão somente os direitos reconhecidos às testemunhas, o que significa que apesar de se poderem fazer acompanhar por um advogado, este não pode intervir na audiência de julgamento em sua representação (artigo 132.º, n.º 4, a contrario, do Código de Processo Penal), e, apesar de poderem solicitar verbalmente o arbitramento de uma indemnização na audiência, não lhes assiste legitimidade para interporem recurso da decisão que eventualmente não fixe essa indemnização, nem, aliás, da decisão que eventualmente absolva o acusado (artigo 401.º, n.º 1, alíneas b) e c), a contrario, do Código de Processo Penal).

Na presente proposta de lei, entendeu-se autonomizar o conceito de vítima no Código de Processo Penal, mantendo todavia os conceitos de assistente e demandante civil, precisamente porque todos se revestem de utilidade prática no espectro de proteção da vítima que se pretende reforçado. Não obstante, introduziu-se na presente proposta de lei uma alteração que se considera significativa no regime do assistente e que se prende com a possibilidade de requerer a atribuição desse estatuto no prazo de interposição de recurso da sentença.” (sublinhado nosso).

Como se refere no voto de vencido apresentado no Acórdão do TRP de 15.11.2018 (acima mencionado):  “Tal norma é específica daquela fase processual (de recurso diria) da sentença, e como tal deve ser considerada.

Poder-se-á argumentar estarmos perante um lugar paralelo.

Todavia, creio que o legislador teve oportunidade de resolver essa questão e não o fez, mantendo a regulação específica para a fase de instrução e aditando uma norma nova para fase de recurso subsequente a julgamento e prolação de sentença.

Em face dessa norma, se fosse outra a sua intenção, o legislador até devia ter revogado, senão totalmente pelo menos parcialmente a al. a) do nº 3 do artº 68º CPP, o que não fez, pelo que, pelo menos, no que respeita à fase de instrução deve considerar-se que mantém plena eficácia, no pressuposto legal de que o legislador “consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados” – artº 9º 3 CC.

Aliás a própria “exposição de motivos” da proposta de lei é clara e limitativa à fase de recurso da sentença: “Não obstante, introduziu-se na presente proposta de lei uma alteração que se considera significativa no regime do assistente e que se prende com a possibilidade de requerer a atribuição desse estatuto no prazo de interposição de recurso da sentença” o que é inequívoco no seu sentido e vontade e foi plasmado na norma em causa, mostrando-se o seu pensamento perfeitamente expresso.”.

Também neste sentido se pronunciou o Acórdão do TRG de 09.04.2018 [processo nº 916/15.0T9GMR.G1, disponível in www.dgsi.pt], onde se escreveu: “Certo é também que, não obstante um despacho de não pronúncia e uma sentença serem decisões que podem pôr termo ao processo, são decisões diversas e com diferentes estruturas, pelo que se o legislador quisesse abranger o despacho de não pronúncia tê-lo-ia feito constar expressamente da alínea c) do nº3 do artigo 68º, do Código de Processo Penal quando procedeu à alteração operada pela Lei nº130/2015, de 4 de setembro, e não o fez, sendo esta a opção do legislador, não se vislumbrando que a mesma fira o princípio da igualdade ou outro princípio constitucional.

Com efeito, não se diga que, desta forma, o ofendido (que dispunha de legitimidade para intervir nos autos como assistente se assim o tivesse requerido) vê coartado o acesso ao direito, assegurado no nº 1 do art. 20º da Constituição da República Portuguesa. É certo que a lei fundamental lhe reconhece o direito de intervir no processo, mas condiciona tal intervenção aos “termos da lei”, cometendo a tarefa da sua modelação à lei ordinária nos termos do nº 7 do art. 32º da Constituição da República Portuguesa, não tendo cabimento chamar à colação para este efeito a norma do nº 1 deste mesmo art.32º, que se refere aos direitos de defesa do arguido em processo penal, pois que é admissível que o legislador condicione a intervenção do ofendido à sua prévia constituição como assistente em limites temporais bem definidos”. [Também neste sentido se pronunciou o acórdão deste Tribunal da Relação de Coimbra proferido no âmbito do processo nº 248/17.9GLSNT-B.C1 (não publicado) e no âmbito do qual foi interposto o já mencionado recurso para fixação de jurisprudência].

Salientamos, ainda, por inteiramente pertinente o referido pelo Digno Procurador Geral Adjunto no seu parecer quando escreve: “Com efeito, tendo para além do mais em conta o teor literal da disposição constante desta alínea c) e a história do preceito legal no qual a mesma foi inserida, dúvidas não poderá haver de que a extensão do(s) prazo(s) legalmente impostos para a constituição como assistente que aí foi consignada apenas abrangerá a possibilidade intervenção em sede de recurso duma sentença, no sentido previsto na alínea a) do nº 1 do art. 97º do Código de Processo Penal – não havendo qualquer razão para crer que o legislador se tenha enganado ao utilizar o termo “sentença” quando efectuou a referida alteração, ou que a circunstância de não ter previsto a possibilidade de constituição como assistente para interposição de recurso de outras decisões que também ponham “termo ao processo” gere, de algum modo, uma lacuna a integrar pelo julgador.

A tal interpretação não se opõe a unidade do Sistema Jurídico Português, na medida em que, reconhecendo o art. 32º, nº 7 da Constituição da República Portuguesa ao ofendido o direito a intervir no processo “nos termos da lei”, confere ao legislador ordinário a possibilidade de modelar essa intervenção, designadamente através da fixação de limites temporais.

Deste modo, ponderando os elementos interpretativos acima mencionados e designadamente o elemento literal e histórico, e os critérios interpretativos estabelecidos no art. 9º do Código Civil, cremos que a interpretação feita pelo despacho recorrido de que a al. c) do nº 3 do art. 68º do Código de Processo Penal  não abrange o despacho de não pronúncia não merece censura e, consequentemente, também a não merece, a decisão de considerar extemporâneo o requerimento formulado para constituição de assistente por AA, após a leitura do despacho de não pronúncia proferido nestes autos.

Em suma, a ofendida caso pretendesse intervir no debate instrutório para defesa dos seus interesses e manter em aberto a possibilidade de recorrer na eventualidade de vir a ser proferido despacho de não pronúncia, deveria ter -se constituído assistente nos autos até ao limite temporal fixado na al. a) do nº 3 do art. 68º do Código de Processo Penal. Não o tendo feito sujeitou-se a ver precludida em definitivo a sua possibilidade de intervenção, no caso de o arguido não vir a ser pronunciado, como ocorreu na situação presente.

E, assim, nenhuma censura merece a decisão recorrida, impondo-se negar provimento ao recurso interposto.


***


III – DISPOSITIVO

Pelo exposto, acordam as Juízas da 5.ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra em negar provimento ao recurso interposto e, consequentemente, manter o despacho recorrido nos seus precisos termos.

Custas pela recorrente, fixando a taxa de justiça em 3 UCS .

Notifique.


*

Coimbra, 22 de janeiro de 2025

[Texto elaborado e revisto pela relatora - artigo 94.º, n.º 2, do Código de Processo Penal]

As Juízas Desembargadoras

Sandra Ferreira

Sara Reis Marques

Cristina Branco


[1]  Note-se que, tal como resulta do despacho de admissão constante do presente Apenso D, datado de 19-9-2024, o recurso que aqui deverá ser apreciado e quanto ao qual será emitido Parecer é o interposto em 26-8-2024, visando impugnar a decisão, proferida em 13-8-2024, que indeferiu a constituição como assistente da ora recorrente.

Quanto ao recurso da decisão instrutória que foi interposto pela mesma ofendida em 1-8-2024 (indevidamente junto ao presente Apenso D e ao qual o Ministério Público em 1ª instância parece ter respondido), verifica-se ter sido decidido não o admitir, nesse mesmo despacho datado de 13-8-2024 (decisão que terá, entretanto, sido objecto de reclamação para este Venerando Tribunal).
[2] Ainda que a matéria seja efectivamente controvertida, estando neste momento pendente no STJ recurso para uniformização de jurisprudência quanto à mesma.
[3] Indicam-se, a título de exemplo, os Acórdãos do STJ, de 15/04/2010 e 19/05/2010, in http://www.dgsi.pt.
[4] Conhecimento oficioso que resulta da jurisprudência fixada no Acórdão do STJ n.º 7/95, de 28 de dezembro, do STJ, in DR, I Série-A, de 28/12/95.

[5] Programa de Política Criminal, Orientado para a Vítima de Crime, Coimbra 2008, pág. 285.
[6] Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, 12.ª reimpressão, Coimbra, 2000, pp. 175-192;