Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2748/22.0T9VIS-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: SARA REIS MARQUES
Descritores: INSTRUÇÃO A REQUERIMENTO DO ASSISTENTE
REQUERIMENTO DE ABERTURA DE INSTRUÇÃO
ELEMENTO INTELECTUAL DO DOLO
ELEMENTO SUBJECTIVO DO CRIME
Data do Acordão: 10/25/2024
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU - JUÍZO DE INSTRUÇÃO CRIMINAL DE VISEU - JUIZ 1
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO DECIDIDO EM CONFERÊNCIA
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO AO RECURSO
Legislação Nacional: ARTIGOS 287.º, N.º 1 E 2, 288.º, N.º 4, E 309.º DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
Sumário: I - O elemento intelectual do dolo, embora imperfeitamente alegado, está contido na alegação de que “foi intenção do arguido” de que o comportamento se repercuta negativamente na saúde do ofendido pois esta intenção pressupõe, lógica e necessariamente, que ele tivesse conhecimento do potencial ofensivo do seu comportamento, só pode ser afirmada tendo ele vontade de praticar o facto típico e representando, conhecendo, o facto típico e as suas circunstâncias

II - Esta decisão de vontade exige um correto conhecimento da factualidade típica, pois só se pode exercer a vontade relativamente à realidade de que se tem conhecimento, que se representa.

III - Dizer que o arguido agiu com intenção abarca também a alegação de que o seu comportamento resultou da sua capacidade de autodeterminação, de que agiu livremente.

IV - A descrição do elemento subjetivo no requerimento de abertura de instrução de forma desordenada e segmentada, no entanto passível de ser descortinada, não impede o JIC de, se assim o entender, rearrumar tal descrição, não estando também vinculado ao uso das exactas palavras empregues pelo assistente na descrição da factualidade que imputa ao arguido.


(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Integral: *

Acordam, em conferência, na 5ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:

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I – Relatório

No Juízo Central de Instrução Criminal de Viseu do Tribunal Judicial da Comarca de Viseu foi proferido despacho a rejeitar o requerimento de abertura da instrução apresentado pela assistente AA
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-» Inconformada com tal  despacho que rejeitou o, a assistente interpôs recurso daquele despacho, formulando as seguintes conclusões:

“1º. Do RAI constam os elementos caracterizadores do Dolo, imputado ao arguido.

2º. O dolo é dividido no elemento intelectual, no elemento volitivo e na consciência da ilicitude.

3º. A assistente, ao requerer a abertura da instrução caracterizou convenientemente o elemento intelectual e volitivo do dolo ao dizer que o arguido  praticou factos que eram suscetíveis de repercutir-se negativamente sobre a saúde física ou psíquica da vítima e assume um carácter violento, agressivo – o que era intenção do arguido.
4º. Assim como cumpriu com a descrição da consciência da ilicitude dizendo que aquele tinha plena consciência de que o seu comportamento era proibido e punível com pena de prisão.
Termos em que se pugna pela procedência do recurso interposto, e em consequência deve o Requerimento de Abertura de Instrução ser admitido, para ser o arguido pronunciado a final pela prática do crime de violência doméstica.”

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O MP junto da primeira instância respondeu, pugnando pela improcedência do recurso e formulando as seguintes conclusões (transcrição):
“1 - Não constando do requerimento de abertura de instrução factos que, por preencherem o elemento volitivo dos ilícitos criminais e o princípio da culpa , pudessem fundamentar a aplicação de uma pena ou de uma medida de segurança ao arguido, aquele requerimento só poderia ter sido desde logo rejeitado, como o foi, por inadmissibilidade legal, nos termos do art. 287.º, n.º 3 do CPP, posto que não poderia o sr. juiz de instrução suprir a omissão da imputação dos factos tipificadores dos aludidos ilícitos, sendo certo que também não havia lugar ao convite ao aperfeiçoamento, conforme foi bem decidido;
2 - « Na situação em que o assistente impugna o despacho de arquivamento do inquérito por via de instrução, dado não lhe anteceder uma acusação que delimite o objeto da pronúncia, o RAI deve ser estruturado de acordo com as exigências legais aplicáveis àquela peça acusatória, em obediência ao disposto no n.º 2, do artigo 287.º do Código Processo Penal.
II – A decisão instrutória só pode recair sobre os factos que foram objeto da instrução e resultem do requerimento do assistente, posto que o objeto do processo, no caso de arquivamento do inquérito, fica delimitado pelo conteúdo do mesmo requerimento.
III – A lei comina com nulidade a decisão instrutória que pronuncie o arguido por factos que integrem alteração substancial dos descritos no requerimento para abertura da instrução formulado pelo assistente, nos termos do artigo 309.º, n.º 1, do Código Processo Penal.
IV – A imposição legal de narração dos factos e indicação das disposições legais aplicáveis no RAI formulado pelo assistente resulta das garantias de defesa do arguido e da estrutura acusatória do processo penal, com consagração constitucional no artigo 32.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa.
V – Está excluída a possibilidade de o Juiz de Instrução Criminal permitir que o assistente colmate a omissão de descrição factual detectada no requerimento de abertura de instrução, em consonância com     o Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.º 7/2005.
VI – Neste seguimento, constitui entendimento uniforme da jurisprudência, pese embora ocorram oscilações sobre a qualificação do vício, que a omissão ou deficiência na descrição factual e/ou incriminação verificada em requerimento de abertura de instrução constitui fundamento para a respetiva rejeição, nos termos do artigo 287.º, n.º 3, do Código Processo Penal» - Acórdão da Relação do Porto de 15 de Março de 2023 , Processo n.º 2757/19.6 T9VCD.P1;
3.º- « Não há lugar a convite dirigido ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do disposto no artigo 287.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido » - Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/2005, de 12 de Maio de 2005;
4.º – Seria motivo de rejeição o facto da narrativa fáctica não conter o elemento volitivo;

5.º - Nem o princípio da culpa;
6.º - Assim, e salvo melhor parecer, mantendo-se a douta decisão que rejeitou liminarmente o requerimento de abertura da instrução formulado pela assistente AA farão, Vossas Excelências, como sempre, e mais uma vez, Justiça.”

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O recurso foi admitido, com subida imediata, em separado e efeito devolutivo.

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Uma vez remetido a este Tribunal, o Exmº Senhor Procurador-Geral Adjunto deu parecer no sentido da improcedência do recurso, dizendo que “o despacho recorrido está devidamente fundamentado, e não viola normas legais nem princípios de Direito” e “aderindo à argumentação contida na decisão recorrida e na resposta do Ministério Público”.
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Proferido despacho liminar e colhidos os “vistos”, teve lugar a conferência.

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II – Objeto do recurso

De acordo com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário das Secções do Supremo Tribunal de Justiça de 19.10.1995 (in D.R., série I-A, de 28.12.1995), o âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respetiva motivação, sem prejuízo, contudo, das questões de conhecimento oficioso, designadamente a verificação da existência dos vícios indicados no nº 2 do artigo 410º do Código de Processo Penal.

No caso, a questão trazida à apreciação deste Tribunal prende-se com o cumprimento, ou não, pela assistente dos requisitos legalmente impostos para a formulação de requerimento de abertura de instrução  relativamente ao crime de violência doméstica – que aquela insiste ter cumprido cabalmente, ao contrário do entendimento expresso na decisão recorrida.

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III –Fundamentação:

A instrução, nos termos em que a lei vigente a regula tem sempre carácter facultativo, tem natureza judicial e não de atividade investigatória e visa estabelecer um controlo jurisdicional da acusação ou de arquivamento do inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento – artigo 286.º do Código de Processo Penal, não constituindo um complemento da investigação prévia à fase de julgamento, como já aconteceu no passado – vd. acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 14.10.2010 processo nº 11/09.0PKLSB.L1-9, Relatora: Desembargadora Maria do Carmo Ferreira, acessível em www.dgsi.pt.).

Em conformidade, o artigo 309º, nº 1 do Código de Processo Penal estabelece que a decisão instrutória é nula na parte em que pronunciar o arguido por factos que constituam alteração substancial dos descritos na acusação do Ministério Público ou do assistente ou no requerimento para abertura da instrução.

A estrita vinculação temática do tribunal aos factos alegados, enquanto limitação da atividade instrutória, relaciona-se, assim, com a natureza judicial desta fase processual, sendo uma consequência do princípio da estrutura acusatória do processo penal e constituindo uma garantia de defesa consagrada no artigo 32º, nº 5 da Constituição da República Portuguesa.

Não pode, portanto, pretender-se, através da instrução, alcançar os objetivos próprios do inquérito, sendo outros os meios processuais adequados a esse efeito (veja-se, nomeadamente, as possibilidades permitidas pelos artigos 279º e 277º, nº 2, do Código de Processo Penal).

A admitir-se entendimento diverso, estar-se-ia a transferir para o juiz o exercício da ação penal, contra todos os princípios constitucionais e legais em vigor e a transformar a natureza da instrução que passaria de contraditória a inquisitória - cf. acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 15.09.2010, processo nº 167/08.0TAETR-C1.P1, Relator: Desembargador Vasco Freitas, disponível em  www.dgsi.pt.

Daí que o requerimento de abertura de instrução seja a peça processual, mediante a qual o arguido ou o assistente, expressam as suas razões de divergência com o precedente despacho do Ministério Público, de acordo com o preceituado no artigo 287.º, n.º 1 do Código de Processo Penal.

No caso da instrução ser requerida pelo assistente, que é o que aqui interessa, a mesma apenas pode dizer respeito a factos relativamente aos quais o Ministério Público não tenha deduzido acusação e os mesmos não sejam susceptíveis, como é óbvio, de acusação particular – pois se assim sucedesse bastaria que tal libelo fosse deduzido.

Por sua vez, segundo o disposto no artigo 287.º, n.º 2 do mesmo diploma “o requerimento não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito, de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, só espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto no artigo 283.º, n.º 3, alíneas b) e c).…”.

Neste último segmento normativo estipula-se que “a acusação contém, sob pena de nulidade: “b) A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada; c) A indicação das disposições legais aplicáveis”.

Ou seja, tratando-se de uma instrução requerida pelo assistente, que visa sempre a pronúncia do arguido, acresce ainda mais um requisito, devendo tal requerimento conter ainda a narração própria de uma acusação, mediante a descrição dos factos integradores de um crime e a indicação da correspondente disposição legal que o tipifica.

É o conteúdo do requerimento de abertura de instrução que vai definir as bases de facto (e de direito) da questão a submeter ao juiz e, consequentemente, que vai estabelecer os limites do objecto do processo, ou seja, que vai condicionar e limitar a actividade do juiz e a decisão instrutória constituindo, substancialmente uma acusação alternativa.

A descrição factual deverá, assim, conter os factos concretos susceptíveis de integrar todos os elementos objectivos e subjectivos do tipo criminal que o assistente considere ter sido preenchido.

 (neste sentido depõe a generalidade da jurisprudência, de que são exemplo, os Acs. da RG de 21.05.2018 processo nº 1553/16.7T9BRG.G1, Relatora: Ausenda Gonçalves, da RL de 22-11-2022, Processo: 295/19.6PAVFC-A.L1-5, Relator: Sandra Oliveira Pinto, da RC de   22-05-2024, Processo: 574/20.0T9ACB.C1, Relator:           José Eduardo Martins)

E os factos que constituem o «objeto do processo» têm que ter a concretização suficiente para poderem ser contraditados e deles se poder defender o arguido e, consequentemente, serem objeto de prova.

É compreensível que assim seja, porquanto é esse requerimento que, ao reproduzir uma acusação, fixa o objecto do processo, limitando os poderes de cognição do juiz de instrução (cfr. artigos 288.º, n.º 4, 307.º a 309.º do Código de Processo Penal) e possibilita o direito do arguido defender-se das imputações que lhe são feitas (artigos 61.º, n.º 1, als. b) e f) do Código de Processo Penal  e 32.º Constituição da República Portuguesa).

Tal injunção passa pelo arguido ser informado, em detalhe, dos factos que lhe são imputados e os termos em que tal é feito, conforme decorre do disposto no art. 6.º da DEDH, no seguimento da jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, que vê neste preceito o direito do acusado poder desde logo preparar a sua defesa, sendo para o efeito suficiente, mas necessário, uma breve descrição dos factos, mormente a data e o lugar de tal ocorrência e a identidade da alegada vítima, e das disposições legais que lhe são imputadas – veja-se o caso Pelissier c. França, de 1999/Mar./25  e  Matoccia c. Itália de 1999/ Nov./03, ambos citados no Ac. RP de   21-06-2006, n.º documento: JTRP00039331e disponíveis in https://hudoc.echr.coe.int/#{%22itemid%22:[%22001-58226%22]})

(cfr ainda os Ac do STJ de 17-06-2004, Processo: 04P908, Relator: Santos Carvalho e de 2-07-2008, Processo: 07P3861, Relator: Raul Borges)

 Nesta conformidade, o requerimento de abertura de instrução apresentado pela assistente deve sempre descrever, de modo autónomo, os factos imputados ao arguido, indicando ainda os tipos legais de crime que os mesmos integram.

Actualmente, aliás, o entendimento de que o requerimento para abertura da instrução formulado pelo assistente deve corresponder a uma acusação é unânime na jurisprudência.

E as omissões de que padeça  não podem ser corrigidas oficiosamente pelo tribunal pois que o juiz não pode substituir-se ao assistente, colocando por iniciativa própria os factos em falta, pois tal representaria uma alteração substancial dos factos, tal como descrita no artigo 1º al. f) do Código Processo Penal, para além de colocar em causa a estrutura acusatória do processo penal e do direito de defesa do arguido - cfr. neste sentido, o acórdão da RE de 2017-07-13, Processo: 203/14.0T9ENT.E1, Relator: CLEMENTE LIMA, da RC de 21.03.2012, Processo: 597/11.0T3AVR.C1, Relator: BELMIRO ANDRADE, disponível em www.dgsi.pt.

Por outro lado, e na sequência do Acórdão n.º 7/2005, foi uniformizada jurisprudência no sentido de que “Não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do artigo 285.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamenta a aplicação de uma pena ao arguido”.

Não obstante, segundo anota Maia Costa, Código de Processo Penal Comentado, 3ª ed. revista, Almedina, 2021, pág. 967., “O assistente ou o arguido devem ser convidados a aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, faltando algum ou alguns dos seus requisitos. Excetua-se, porém, a falta de narração dos factos no requerimento do assistente, que constitui o elemento definidor do âmbito temático da instrução. Nessa situação, o requerimento terá de ser indeferido, não podendo ser renovado.”

A decisão que convidasse o assistente a apresentar novo requerimento para abertura de instrução – não deixando de consubstanciar o exercício pelo juiz de instrução de uma faculdade inquisitória e de exercício de acção penal que no actual quadro legal processual penal não lhe assiste – contrariaria o princípio da estrutura acusatória do processo penal, consagrado no Art. 32º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa (neste sentido, Germano Marques da Silva, op. cit., Acórdão da Relação de Coimbra de 31.10.2001, podendo ver-se o respectivo sumário em www.trc.pt/index1.htlm, Acórdãos da Relação de Lisboa de 09.02.2000, CJ, I, 153, de 03.10.2001 e de 31.01.2001, cujos sumários podem ler-se em http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf; cfr. também Acórdãos da Relação do Porto de 23.05.2001, CJ, III, 239; da Relação de Lisboa de 11.10.2001, CJ, IV, 141, e de 11.04.2002, CJ, II, 147; da Relação de Lisboa de 15.05.2003, 19.03.2003, 11.12.2002, 17.12.2002, 19.12.2002, 14.01.2003 e de 13.03.2003, cujos sumários podem ler-se em http://www.pgdlisboa.pt (jurisprudência - sumários - área criminal).

A falta de narração de factos na acusação conduzem à sua nulidade, por ser destituída dos requisitos enunciados no artigo 287.º, n.º 2 parte final, conjugado com o artigo 283.º, n.º 3, alíneas b) e c), ambos do Código de Processo Penal e à rejeição, por ser de reputar de manifestamente infundada, nos termos dos artigos 283.º, n.º 3, alínea b), e 311.º, n.os 2, alínea a), e 3, alínea b), do CPP.

É amplamente aceite na jurisprudência que a inadmissibilidade da instrução abrange as situações em que o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente não contenha a narração, ainda que sintética, dos factos que imputa ao arguido e pelos quais pretende que este venha a ser pronunciado. (cfr., por todos, Ac RE de  07-11-2023, Processo:741/22.1GBABF.E1, Relator: MARIA CLARA FIGUEIREDO s acórdãos, da Relação de Coimbra, de 2 de Novembro de 2005 (proc. n.º 2791/05), da Relação de Lisboa, de 14 de Janeiro de 2003 (C. J. , ano XXVIII, 1, pág.124) e de 4 de Março de 2004 (C. J. , ano XXIX, 2º, pág.125), da Relação do Porto, de 23 de Maio de 2001( C.J., ano XXVI, 3, pág.239), e da Relação de Guimarães, de 5 de Maio de 2005 (proc. n.º 1272/04-2 , www.dgsi.pt).

Recordamos ainda que, tendo sido chamado a apreciar a conformidade com a Constituição do mencionado entendimento do artigo 287.º do Código de Processo Penal, o Tribunal Constitucional, no seu Acórdão n.º 636/2011, de 20.12, decidiu:

Não julgar inconstitucional a norma contida conjugadamente nos n.ºs 2 e 3 do artigo 287.º do CPP, na interpretação segundo a qual, não respeitando o requerimento de abertura de instrução as exigências essenciais de conteúdo impostas pelo n.º 2 do artigo 287.º do CPP, e não ocorrendo nenhuma das causas de rejeição previstas no n.º 3 do mesmo preceito, cabe rejeição imediata do requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente (não devendo antes o assistente ser convidado a proceder ao seu aperfeiçoamento para suprir as omissões/deficiências constatadas)

Diga-se ainda que o Tribunal pode exigir menor formalidade descritiva e aproveitar o descrito quando estamos perante situações simples ou menos facticamente complexas de tal modo que todos os elementos da acção típica e ilícita sejam claros e ressaltem sem sombra de dúvida do texto do RAI, mas já não quando os factos são complexos, imprecisos ou duvidosos ficando sem se saber a que factos o requerente atribui relevância jurídica tornando a descrição que eventualmente ali é feita complexa ou indutora em erro dos demais sujeitos processuais e seus destinatários, ou quando não existe essa descrição fáctica.

No caso dos autos, o requerimento para a abertura da instrução foi rejeitado pelos seguintes fundamentos:

no requerimento de abertura de instrução limita-se a alegar alguns elementos objetivos do tipo em causa e o elemento subjetivos relativo à consciência da ilicitude.

Contudo, tal requerimento é omisso no que tange ao dolo, sendo o facto alegado em 11 verdadeiramente conclusivo.

Os factos alegados são insuficientes para permitir a pronúncia do arguido, pelo crime em causa, faltando, inclusive a descrição do dolo.

A factualidade alegada é insuficiente para que alguém possa ser condenado.

O requerimento de abertura de instrução não contém os factos integradores do crime em causa.

Tal requerimento não constituiu substancialmente uma verdadeira acusação. O mesmo não imputa factos concretos ao arguido que sejam suscetíveis de constituir crime, nomeadamente não descreve a totalidade do elemento subjetivo do tipo.

A matéria factual constante do requerimento de abertura de instrução é manifestamente insuficiente para que o arguido possa ser pronunciado, não podendo este Tribunal, como já vimos- mesmo que durante as diligências de instrução concluísse pela existência de indícios da prática dos factos denunciados-pronunciar o arguido por esses factos, na medida em que tal consubstanciaria uma nulidade.

Assim sendo, temos de concluir que o requerimento da assistente, ao não conter todos os elementos subjetivos do tipo pelo qual se pretende a pronúncia do arguido é legalmente inadmissível e, como tal, só pode conduzir à rejeição do respetivo requerimento.”

A questão reside, pois, em saber se efetivamente o requerimento apresentado pela assistente não continha a descrição de factos que permitam imputar ao arguido a prática de um crime p. e p. pelo art.º 152º do CP e  de um crime p. e p. pelo art.º 153º do CP, como pretende a assistente.

Atentemos que a assistente, no seu requerimento alega os seguintes factos:

“1- Denunciante e denunciado foram casados segundo o regime de separação de bens entre 27 de julho de 2007 e 8 de setembro de 2022, data em que, na procedência do pedido de divórcio formulado pela denunciante no processo n.º 2380/21.5T8VlS, cessou o vínculo matrimonial.

2- O divórcio suprarreferido foi promovido na sequência de comportamentos que configuraram a prática do crime de violência doméstica, pelo denunciado, que correu termos no proc.º 44/21.....

3- No dia 2 de Outubro de 2022, a denunciante encontrava-se no bar/ discoteca "..." e quando deu conta tinha o denunciado à frente dela, apesar deste estar sujeito à medida de coação de afastamento decretada no proc. 0 44/21.....

4 - Encontrava-se parado diante da denunciante, com as mãos dentro dos bolsos, de cabeça erguida enquanto a olhava orgulhosa e ostensivamente em modo desafiador.

5- Por se sentir ameaçada e sentir perigo para a sua integridade física procurou um segurança do espaço a quem expôs o sucedido para que este demovesse o arguido do seu comportamento intimida tório, e se retirasse.

6-  No entanto, o arguido, depois de abordado pelo segurança do espaço, começou a proferir insultos dirigidos à vítima.

7 - Quando se encontrava na antecâmara do estabelecimento, insultou-a, proferindo as seguintes palavras que lhe dirigiu: "a culpa é destas putas, é por causa de gajas como estas, que agora não posso estar nos sítios onde quero" (referindo-se à vitima e à irmã), afirmando ainda conhecer a restrição que sobre si impendia mas que não iria cumprir, tendo ainda afirmado "se quiserem pode, chamar a policia", demonstrando a sua intenção de ficar no estabelecimento o.

8 - Logo de seguida, quando a vítima saiu temporariamente pata relatar o sucedido à equipa de vigilância e à Polícia de Segurança Pública, e eventualmente o arguido ser retirado do espaço eeste seguiu-a para fora do estabelecimento.

9 - A porta do estabelecimento, onde a encarou e ameaçou com gritos e postura intimidatória, o

denunciado disse, inclusivamente 'que se lhe voltassem a fazer aquilo (como se ele é que fosse a vítima) que era ele quem chamaria a polícia.

10-  Disse ainda que lhes 'ia foder a vida".

11- O comportamento do denunciado é idóneo, tal como foi sua intenção, a repercutir-se negativamente sobre a saúde física ou psíquica da vítima e assume um carácter violento, agressivo.

12 -  Tendo ainda provocado, para além de um regresso às inapagáveis  memórias de todas as ofensas e insultos que o denunciado já lhe dirigiu, vergonha, medo, transtorno psicológico e temor pela própria vida.

13 - O denunciado é ex-marido da denunciante, casamento que acabou com divórcio litigioso e, por factos decorridos durante o casamento, com a condenação do denunciado pela prática do crime de violência doméstica.

14 - Durante todo o processo-crime foram várias as vezes que o denunciado mostrou não querer assumir a gravidade da sua conduta, o que se vinha a agravar com o decurso do tempo.

15- Durante todo processo a denunciante sentiu-se perseguida, inclusivamente pelo facto de o aparelho de sinalização da vigilância denunciar a presença do arguido inúmeras vezes.

16 -  O que se tinha vindo a agravar, levando a vítima a temer pela sua vida e pela sua saúde física e psíquica, pois sabe que o denunciado não tem escrúpulos, e mesmo depois da sua condenação continua a maltratá-la, como aconteceu neste dia cujos factos se denunciam.

17 - O denunciado, com a sua conduta, tem plena consciência de que o seu comportamento é proibido e punível com pena de prisão, tanto que foi condenado pela prática do crime de violência doméstica no âmbito do proc.0 44/21.... por ter adotado condutas semelhantes.

18 -Existe medo por parte da vítima que o denunciado a ataque fisicamente, ao ponto mesmo de chegar a tirar-lhe a vida.

Por tais factos, o assistente imputa ao arguido a prática de um crime de violência doméstica, p. e p. no art.º 152º do Código Penal

Diz-nos este normativo, no seu n.º 1 que incorre na prática do referido crime:

1 - Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade, ofensas sexuais ou impedir o acesso ou fruição aos recursos económicos e patrimoniais próprios ou comuns:

a) Ao cônjuge ou ex-cônjuge;

b) A pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação;

c) A progenitor de descendente comum em 1.º grau; ou

d) A pessoa particularmente indefesa, nomeadamente em razão da idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que com ele coabite;

e) A menor que seja seu descendente ou de uma das pessoas referidas nas alíneas a), b) e c), ainda que com ele não coabite;

A Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência contra as Mulheres e a Violência Doméstica, adotada em Istambul, a 11 de maio de 2011 (ratificada por Portugal em 2013), no seu artigo 3º, alínea b) estabelece que, para os respetivos efeitos, «Violência doméstica» abrange todos os atos de violência física, sexual, psicológica ou económica que ocorrem na família ou na unidade doméstica ou entre cônjuges ou ex-cônjuges, ou entre companheiros ou ex-companheiros, quer o agressor coabite ou tenha coabitado, ou não, com a vítima.

  Na esteira de PLÁCIDO CONDE FERNANDES, “Violência Doméstica – novo quadro penal e processual penal”, Revista do CEJ, nº 8, pág. 305, entendemos que o preenchimento do tipo legal não se basta com qualquer ofensa à saúde física, psíquica e emocional ou moral da vítima: «O bem jurídico, enquanto materialização directa da tutela da dignidade da pessoa humana, implica que a norma incriminadora apenas preveja as condutas efectivamente maltratantes, ou seja, que coloquem em causa a dignidade da pessoa humana, conduzindo à degradação pelos maus tratos».

Se da imagem global dos factos não resultar este quadro de maus tratos que justifiquem aquela especial tutela e punição agravada, a situação integrará a prática de um ou dos vários crimes em causa e que de outra forma seriam consumidos por aquele.

Como se lê no Ac RL de 10 de janeiro de 2023, Relatora: Sandra Oliveira Pinto, Processo nº 122/21.4SXLSB.L1:

“Assim, aceitando os critérios propostos por Nuno Brandão , entendemos ser exigível que a análise - fazendo apelo essencial à «imagem global do facto» - se debruce, no pólo objectivo, pela existência de uma agressão ou ofensa que revele o mínimo de violência sobre a pessoa, intensidade ou reiteração; subjectivamente e da parte do agressor uma motivação para a agressão, ofensa, achincalhamento, menosprezo; da parte da vítima o reflexo negativo e sensível na sua dignidade, por via de uma ofensa na sua saúde física, psíquica ou emocional, ou na sua liberdade de autodeterminação pessoal ou sexual.

Por último, e no que toca ao elemento subjectivo do tipo legal de crime, importa salientar que se exige que o agente tenha actuado com dolo, enquanto elemento subjectivo geral da ilicitude (conhecimento da factualidade típica e da vontade de realização do tipo legal de crime), em qualquer das suas formas (directo, necessário ou eventual), em conformidade com o disposto no art. 14º do CP, ao que acresce como elemento emocional, a indiferença ou oposição da vontade do agente aos valores protegidos pela norma (tipo de culpa doloso).

Não se exige, pois, um dolo específico.

 (cfr. Ac RC de 28-02-2023, Processo: 49/18.7GDFAR.E1,Relator:MOREIRA DAS NEVES e da RE de 28-02-2023, Processo: 3308/22.0T8STR-A.E1).

Seguindo de perto os ensinamento de Figueiredo Dias sobre a construção do ilícito criminal, in Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, Coimbra Editora, pg 332 a 334, notamos -  por ser essencial para a decisão da questão em apreço -  que o dolo do tipo é conceitualizado pela doutrina dominante como “conhecimento e vontade de realização do tipo objetivo de ilícito”, ou seja,  contém um elemento intelectual, a que se liga um elemento volitivo, “a indiciar uma posição ou atitude do agente contrária ou indiferente à norma  de comportamento e a consequente possibilidade do agente ser punido a título de dolo” .

O momento intelectual do dolo significa que só podemos afirmar um comportamento doloso quando o “agente conhece tudo quanto é necessário para a correta orientação da sua consciência ética para o desvalor jurídico que concretamente se liga à acção intentada, para o seu carácter ilícito; porque tudo isso é indispensável para se poder afirmar que o agente detém, ao nível da sua consciência intencional ou psicológica, o conhecimento necessário para que a sua consciência ética ou dos valores se ponha e resolva corretamente o problema da ilicitude do comportamento”

Assim, não existindo essa representação ou sendo a representação errónea, o dolo terá de ser negado.

A punição do agente a título de dolo exige ainda uma decisão de vontade dirigida à sua realização (o elemento volitivo), conexa com o elemento intelectual e que serve também para indicar uma posição ou atitude do agente contrária ou indiferente à norma de comportamento.

Esta decisão de vontade exige um correto conhecimento da factualidade típica, pois só se pode exercer a vontade relativamente à realidade de que se tem conhecimento, que se representa.

A acrescer a esses elementos temos o tal elemento emocional, traduzido na atitude de indiferença, contrariedade ou sobreposição da vontade do agente aos valores protegidos pela norma, que integra o tipo de culpa doloso.

Ora, no caso dos autos, considerando tudo o que acima foi dito, entendemos que, embora não o faça de uma forma perfeita,  o requerimento impugnado descreve os elementos objetivos e subjetivos do tipo de ilícito e, ainda, do tipo de culpa.

De facto, consta do requerimento de abertura da instrução que “foi intenção” do arguido que o seu comportamento se repercutisse negativamente na saúde física e psíquica da vítima (art.º 11º) e que o “arguido tem plena consciência de que o seu comportamento é proibido e punível com pena de prisão” (isto é, que agiu conscientemente, sabendo que a sua  conduta é proibida e punida por lei).

Foram pois inegavelmente alegados os factos integrantes da consciência da ilicitude, enquanto dolo da culpa, como tinham de ser.

E a descrição feita contém factos que integram o elemento volitivo do dolo (direto), traduzido na vontade do agente de praticar o facto.

Já em relação ao elemento intelectual do dolo, que é o ponto da discórdia, a assistente alegou que o arguido agiu de forma consciente, ou seja, sabendo o que estava a fazer, tendo no entanto omitido a menção de que o fez livremente, com conhecimento das circunstâncias da factualidade típica (dos elementos integrantes do tipo). Contudo, parece-nos que tal elemento intelectual está contido na alegação de que “foi intenção do arguido” que o seu comportamento se repercutisse negativamente na saúde física e psíquica da vítima (art.º 11º), pois esta intenção pressupõe, lógica e necessariamente, que ele tivesse conhecimento do potencial ofensivo do seu comportamento.

 Sabemos que o que releva é o conhecimento (previsão ou representação), por parte do agente, actuando voluntariamente, das circunstâncias do facto, ou, por outras palavras, o conhecimento (ou representação ou, ainda, consciência em sentido psicológico) de todas as circunstâncias do facto, dos elementos materiais constitutivos do tipo objectivo do ilícito e que a repercussão negativa na saúde da ofendida, pretendida pelo arguido, pode ser uma consequência da conduta mas não é elemento do crime.

No entanto, reitera-se, a intenção do arguido de que o comportamento se repercutisse negativamente na saúde do ofendido só pode ser afirmada tendo ele vontade de o praticar e representando, conhecendo, o facto típico e as suas circunstâncias.

(neste sentido, Ac. RE de05-12-2023, Processo:155/22.3GESLV.E1, disponível in www.dgsi.pt)   

Ou seja, não há omissão de alegação do elemento intelectual do dolo

Mas vemos também que do requerimento de abertura da instrução não consta a fórmula sacramental da indicação da livre determinação do agente.

Contudo, a assistente dá conta da existência dessa liberdade quando diz que o “o comportamento do denunciado é idóneo, tal como foi sua intenção, a repercutir-se negativamente sobre a saúde física ou psíquica da vítima” e que “com a sua conduta tem plena consciência de que o seu comportamento é proibido e punível com pena de prisão”.

Ou seja, considerando que agiu com intenção, o seu comportamento resultou da sua capacidade de autodeterminação.

(cfr Ac. RE de 2018-07-12, Processo nº 115/14.8NJLSB.E1, de 07-01-2016, Processo: 49/15.9PATVR.E1 e da RG de 19 Junho 2017, Processo: 430/15.3GEGMR.G1

Em suma:  o requerimento da assistente descreve - minimamente é certo, mas ainda assim, suficientemente -  o elemento subjetivo do tipo de ilícito.

A descrição, para além do mais, desordenada e segmentada, no entanto passível de ser descortinada no requerimento de abertura de instrução e o JIC pode, se assim o entender, rearrumá-lo, não estando também vinculado ao uso das exactas palavras empregues pelo assistente na descrição da factualidade que imputa ao arguido.

Tudo para concluir pela improcedência do recurso

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IV – Decisão

Pelo exposto, acordam as Juízas deste Tribunal da Relação de Coimbra em julgar procedente o recurso interposto pela assistente, revogando-se a decisão recorrida que deverá ser substituída por outra que declare aberta a instrução relativamente ao crime de violência doméstica p. e p. pelo art.º 152 do CP.

Sem custas.

                                                          
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                                                                 Coimbra,

 (texto processado e integralmente revisto pela relatora – artigo 94º, nº 2 do Código de Processo Penal)

Sara Reis Marques

(Juíza Desembargadora Relatora)

Ana Carolina Cardoso – voto de vencido

(Juíza Desembargadora Adjunta)

Maria da Conceição Miranda

 (Juíza Desembargadora Adjunta)

Voto vencida, por entender não se encontrar alegado de forma minimamente suficiente o elemento subjetivo do crime, nas suas dimensões intelectual e volitiva, não se podendo extrair dos factos objetivos a vontade do agente em praticar o facto e o conhecimento de todas as circunstâncias do facto (não bastando a alegação foi intenção). Na verdade, tem razão de ser a fórmula usualmente utilizada nas peças acusatórias: o arguido agiu livre (o agente podia agir de modo diverso, podia determinar a sua ação), voluntária ou deliberada (o arguido quis realizar o facto criminoso) e conscientemente (representando todas as circunstâncias do facto), sabendo que a sua conduta é proibida e punida por lei (a consciência da proibição, ou da ilicitude) - afastando-se deste modo as causas de exclusão da culpa: erro sobre as circunstâncias do facto, erro sobre a ilicitude, inimputabilidade.

As dimensões do elemento subjetivo carecem de ser expressamente relatadas na peça acusatória (ou no requerimento de abertura de instrução do assistente, se pretende obter a pronúncia do arguido), não podendo extrair-se da expressão “foi intenção do arguido” que ele tenha agido de forma livre e tivesse efetivo conhecimento do potencial ofensivo do seu comportamento: tratar-se-ia de presunção de factos baseados noutros que não é permitida na fixação do objeto do processo, sob pena de se violar o princípio da vinculação temática do juiz e os direitos de defesa do arguido.

Neste mesmo sentido, o AUJ n.º 1/2015 mpõe que “A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjetivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no artigo 358º do Código de Processo Penal”.

Consta da fundamentação do AUJ o seguinte: “a acusação, enquanto delimitadora do objeto do processo, tem de conter os aspetos que configurem os elementos subjetivos do crime, nomeadamente os que caraterizem o dolo, quer o dolo do tipo, quer o dolo da culpa (…), englobando a consciência ética ou consciência dos valores e a atitude de indiferença pelos valores tutelados pela lei criminal, ou seja: a determinação livre do agente pela prática do facto, podendo ele agir de modo diverso; o conhecimento ou representação de todas as circunstâncias do facto, tanto as de caráter descritivo como as de cariz normativo, e a vontade ou intenção de realizar a conduta típica, apesar de conhecer todas aquelas circunstâncias ou, na falta de intenção, a representação do evento como consequência necessária (dolo necessário) ou a representação desse evento como possível, conformando-se o agente com a sua produção (dolo eventual), atuando, assim, conscientemente contra o direito”.

Para além, deste, no AUJ n.º 7/2005 é referida a impossibilidade de o juiz se substituir ao assistente na descrição do objeto do processo, colmatando a falta de narração dos factos (nas dimensões objetiva e subjetiva que pressupõem o juízo de condenação pressuposto da pronúncia pedida), por resultar numa função do juiz de caráter indagatório, num certo pendor investigatório, que poderia ser acoimado e não isento, imparcial e objetivo, mais próprio de um tipo processual de feição inquisitória, já ultrapassado (…), colocando, ao fim e ao cabo, nas mãos do juiz o estatuto de acusado do arguido, deferindo-se-lhe, contra legem, a titularidade do processo penal, violando o juiz o princípio da acusação, por passar o juiz a delimitar o objeto do processo, contra o disposto no art. 311º, n.º 3, al. b), do Código de Processo Penal – que estatui ser vedado ao juiz convidar o Ministério Público a completar o elenco factual acusatório.

No mesmo Acórdão n.º 7/2005, cita-se o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 358/2004, que se transcreve por relevante: “A estrutura acusatória do processo penal português, garantia de defesa que consubstancia uma concretização no processo penal de valores inerentes a um Estado de direito democrático, assente no respeito pela dignidade da pessoa humana, impõe que o objeto do processo seja fixado com rigor e a precisão adequados em determinados momentos processuais, entre os quais se conta o momento em que é requerida a abertura da instrução (…)

Assim, o assistente tem de fazer constar do requerimento para a abertura de instrução todos os elementos mencionados nas alíneas referidas do n.º 3 do artigo 283º do Código de Processo Penal. Tal exigência decorre (…) de princípios fundamentais de processo penal, nomeadamente das garantias de defesa e da estrutura acusatória”.

A falta de descrição do elemento subjetivo do crime é insuscetível de reparação (Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.º 7/2005, de 12 de maio de 2005, citado).

Esta a posição que já assumimos nos Acórdãos de 5.6.2024 (proc. 578/21.5GCVIS-A.C1, em www.dgsi.pt), de 22.5.2024 (proc. 22/23.3PAMGR.C1), de 28.9.2022 (procs. 111/19.9T9NLS.C1 e 110/21.0T9CTB.C1), 2.11.2019 (proc. 196/17.2GBCLD.C1), e de 15.10.2020 (proc. 7/19.4T9LRA.C1), entre outros. Neste mesmo sentido, os Acs. desta RC de 7.3.2018, rel. Orlando Gonçalves, de 15.5.2019 e 29.4.2015, rel. Vasques Osório, de 23.8.2018, rel. Maria José Nogueira, de 1.5.2013, rel. Jorge Jacob, entre outros, todos em www.dgsi.pt.

Por estas razões, confirmaria a decisão recorrida.

Ana Carolina Cardoso