Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1886/10.6TBMGR-D.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FONTE RAMOS
Descritores: EMBARGOS DE TERCEIRO
PRAZO DE INSTAURAÇÃO
EMBARGOS PREVENTIVOS
ADJUDICAÇÃO DO BEM PENHORADO AO CREDOR RECLAMANTE
INADMISSIBILIDADE DE EMBARGOS
Data do Acordão: 09/26/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE EXECUÇÃO DE ANSIÃO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 342.º, 1; 344.º, 1 E 2; 345.º; 346.º; 347.º; 350.º, 1 E 2; 368.º, 1; 391.º E SEG.S; 403.º E SEG.S; 581.º, 4 E 620.º, 1, DO CPC
Sumário: 1. Os embargos de terceiro constituem, quando deduzidos contra a penhora (ou outro ato de apreensão ou entrega de bens em processo executivo), uma tramitação declarativa dependente do processo executivo e que corre por apenso a este (art.º 344º, n.º 1, do CPC).
2. O n.º 2 do art.º 344º do CPC impõe ao terceiro que instaure a ação num prazo de 30 dias a contar da data em que a diligência foi efetuada ou em que o embargante teve conhecimento da ofensa; nunca, porém, depois da venda ou adjudicação dos bens.
3. No caso de embargos preventivos, o prazo de 30 dias deve contar-se da data que o embargante teve conhecimento da futura penhora (despacho de arresto ou de apreensão cautelar).
4. O campo de aplicação do art.º 350º, n.º 1, do CPC, é limitado aos atos de penhora (apreensão ou entrega de bens) ordenados em qualquer processo judicial, mas não se confundem com a operação de entrega do bem cuja venda ou adjudicação a favor de terceiro seja realizada no âmbito de processo de executivo.
5. O referido meio de defesa pode ser deduzido antes de ser realizada a entrega de bem no âmbito de ação para entrega de coisa certa, mas não existe motivo algum para equiparar a essa diligência o ato de entrega do bem cuja propriedade tenha sido transmitida ao exequente ou a terceiro no âmbito de ação executiva para pagamento de quantia certa, depois de ter sido realizada a penhora do bem.
6. Efetuada a penhora do imóvel e adjudicada ao credor reclamante/recorrido a sua propriedade, não existe motivo algum para excluir dos embargos com função preventiva a norma geral do art.º 344º, n.º 2, cuja aplicação é ressalvada pelo art.º 350º, n.º 1, da qual deriva a inadmissibilidade dos embargos depois de o bem ter sido adjudicado ou vendido.
Decisão Texto Integral: Relator: Fonte Ramos
Adjuntos: Luís Cravo
                  Rui Moura


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            Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:                    

           

            I. Em 11.01.2023, AA e BB deduziram embargos de terceiro (preventivos) contra Banco 1..., S. A., credor reclamante nos autos (principais) de execução comum - movidos por Banco 2..., S. A., contra CC, para pagamento da quantia de € 18 246,14 -, requerendo que se declare adquirida a propriedade do prédio urbano composto de cave para garagem e arrumos, rés do chão, 1º andar e logradouro, inscrito na matriz Predial sob o art.º ...40 e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...26, por usucapião, pelos requerentes, reconhecendo-se o seu direito de posse sobre o mesmo, devendo consequentemente ordenar-se o cancelamento da aquisição da propriedade do prédio pelo embargado através da AP ...87 de 11.9.2019.

            Alegaram, nomeadamente: são proprietários e possuidores do referido prédio urbano; tendo tomado conhecimento da aquisição do mesmo no âmbito da penhora dos presentes autos vieram deduzir embargos preventivos contra Banco 1..., S. A., credor reclamante; estão em tempo porquanto o prazo definido na 1ª parte do n.º 2 do art.º 344º do Código de Processo Civil (CPC) não é aplicável aos embargos de terceiro com função preventiva; não estão a violar caso julgado formal em virtude dos embargos que correram termos como Apenso B terem sido indeferidos (por extemporâneos).

            Por decisão de 19.01.2023, a Mm.ª Juíza do Tribunal a quo indeferiu liminarmenteo presente incidente”.

Dizendo-se inconformados, os embargantes apelaram[1] formulando as seguintes conclusões:

            1ª - Com estes embargos preventivos, pretendem os recorrentes obter a suspensão da entrega do bem penhorado e vendido ao credor hipotecário/recorrido.

            2ª - Os recorrentes fundamentam a posse do prédio vendido, com a circunstância de terem adquirido o mesmo por usucapião muito antes de qualquer registo da hipoteca.

            3ª - O tribunal a quo, na subsunção que fez, considerou, por um lado, que os presentes embargos eram repressivos, quando não o são, já que o ato que os motivaram foi a ordem judicial de entrega do bem ao comprador com a cominação de recurso ao auxílio das forças policiais para desapossamento forçado, e, por outro lado, que se estava perante um caso julgado material.

            4ª - Os embargos repressivos são uma reação contra diligência já materializada e os preventivos têm como objetivo «evitar o esbulho» tendo «por fundamento o justo receio».

            5ª - O ato que ofende a posse dos recorrentes, é a ordem judicial de entrega do bem e não a venda que, aliás, é passível de invalidade ipso facto ou tout court decorrente da nulidade por venda de bem alheio.

            6ª - No caso de embargos preventivos, não pode exigir-se que a dedução dos embargos seja efetuada antes de os bens serem vendidos ou adjudicados, sendo certo que os embargos com função preventiva podem ser deduzidos depois de ordenada a diligência a que se refere o art.º 342º, in casu a entrega do bem ao agente de execução para que este a entregue ao comprador.

            7ª - É de invocar que quando a posse já conduziu à usucapião – como é o caso –, esta prevalece sempre sobre qualquer registo anterior ao início da posse, dado tratar-se duma forma concreta de aquisição originária da propriedade e, a defesa da inerente posse é suscetível de ser exercida coeva com a defesa da propriedade, portanto, a todo o tempo - art.ºs 1311º e 1315º do Código Civil (CC).

            8ª - O tribunal a quo invocou o caso julgado material, quando é certo que o despacho/sentença que rejeitou os anteriores embargos por extemporaneidade não conheceu do mérito dos mesmos, não sendo, portanto, suficiente para formar caso julgado material, assim se devendo interpretar e aplicar os art.ºs 619º/1 e 620º do CPC.

            9ª - Não assiste razão ao tribunal a quo quando afirma “Os embargantes já tinham vindo propor embargos preventivos que correram termos pelo apenso B, ao abrigo do artigo 350º do Código de Processo Civil”, pois que os anteriores embargos tinham carácter repressivo.

            10ª - Ainda que se julgue como preventivos os anteriores embargos e rejeitados que foram por extemporaneidade, sempre cumpre fazer notar que isso não obsta à dedução dos presentes embargos preventivos, respeitados que sejam os termos a quo e ad quem.

            11ª - Acresce que a decisão proferida naqueloutros embargos, ao considerar os mesmos extemporâneos, deixou incólume a relação material controvertida.

            12ª - Isto na medida em que decidiu da contagem dos prazos de dedução da ação declarativa incidental em que se traduzem aqueloutros embargos, tratando-se, portanto, de questão meramente processual relativa a tal incidente, não do seu objeto mediato, esse, sim, com repercussões de caso julgado na presente execução, o que não sucede no caso sub judice.

            13ª - A extemporaneidade da dedução de embargos não constitui exceção de direito material ou de direito substantivo, mas antes uma mera exceção processual, já que o prazo legalmente estabelecido para a sua dedução não é um prazo dentro do qual deva ser exercido um direito substantivo, que caduque pelo seu não exercício findo ele.

            14ª - Para os embargos preventivos não há prazo fixo, mas sim um termo inicial e um termo final.

            15ª - No caso de que nos ocupamos o termo inicial ocorreu no dia 13.11.2019 quando o tribunal a quo proferiu o despacho ordenando a entrega do prédio ao comprador, despacho esse que foi objeto de recurso julgado improcedente, por questões processuais que nada têm a ver com o mérito destes ou aqueloutros embargos.

            16ª - Por seu turno, o dies ad quem não ocorreu uma vez que o bem não foi entregue, pelo que a apresentação da petição de embargos de terceiros preventivos é tempestiva e deve ser conhecida de mérito.

            17ª - A decisão recorrida violou o disposto nos art.ºs 342º/1 (na parte em que se refere “entrega de bens”) e 350º/1 e 2, do CPC, devendo estas normas serem interpretadas e aplicadas no sentido expresso nas conclusões deste recurso de que são tempestivos os embargos preventivos deduzidos entre o despacho que ordena a entrega do bem vendido com auxílio da força pública e o ato material de entrega.

            18ª - Outrossim os art.ºs 619º/1 e 620º do CPC, devem ser interpretados e aplicados no sentido de que a dedução de embargos preventivos não viola o caso julgado formal ou material formado por um anterior despacho que rejeitou uns outros embargos repressivos julgados extemporâneos.

            Rematam pedindo a revogação da decisão recorrida, o recebimento dos embargos e a suspensão da entrega do bem, até ao trânsito em julgado da decisão de mérito dos mesmos.

            O recorrido (credor reclamante e adjudicatário do bem imóvel penhorado nos autos) respondeu concluindo pela improcedência do recurso.

            Atento o referido acervo conclusivo, delimitativo do objecto do recurso, importa apreciar e decidir, principalmente, se estão reunidos os requisitos para o prosseguimento dos embargos.


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            II. 1. Para a decisão do recurso releva o que se descreve no antecedente relatório e o seguinte:[2]

            a) No requerimento executivo, de 19.11.2010, a exequente Banco 2..., S. A., alegou ser legítima portadora da Livrança dada à execução (no valor de € 18 215), subscrita pela executada CC, vencida em 03.11.2010, e não paga.

            b) Em 02.12.2019, dizendo-se “proprietários e possuidores” do prédio urbano composto de cave para garagem e arrumos, rés do chão, 1º andar e logradouro, inscrito na Matriz Predial sob o art.º ...40 e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º ...26, e alegando terem “tomado conhecimento da Aquisição do mesmo no âmbito da penhora dos presentes autos”, os embargantes/recorrentes deduziram “EMBARGOS PREVENTIVOS” contra Banco 1..., S. A., “nos termos do disposto no art.º 350 e 342 e seguintes do CPC”.

            c) Apresentaram, então, arrazoado idêntico ao dos presentes autos[3] e formularam igual pedido de reconhecimento de aquisição originária do prédio penhorado e vendido nos autos (principais) de execução.

            d) Por sentença de 06.10.2020, foram indeferidos liminarmente os embargos de terceiro aludidos em b) e c), por intempestivos, atendendo ao disposto nos art.ºs 345º e 350º do CPC e, nomeadamente, às datas dos diversos requerimentos que os embargantes atravessaram nos autos de execução (anos de 2016, 2018 e 2019) e da respetiva procuração forense.

            e) A penhora efetuada nos autos de execução foi registada em 10.11.2011.

            f) A propriedade do prédio urbano indicado em b) foi inscrita no Registo Predial, em nome da executada CC, na sequência da AP. ...01 de 2009/01/28 (“Aquisição”; “CAUSA – Compra”).

            g) Na sequência da AP. ...89 de 2009/01/30, foi registada hipoteca voluntária a favor de Banco 1..., S. A., sobre o dito prédio urbano, para garantia de empréstimo no valor de € 65 000 concedido à executada CC.

            h) Sobre o mesmo prédio urbano foram registadas (duas) penhoras a favor da Fazenda Nacional e de A..., S. A., e (uma) hipoteca legal a favor do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, a 19.11.2013, 06.4.2015 e 03.02.2014, respetivamente.

            i) No âmbito da execução 547/10.... movida por Banco 1..., S. A. (quantia exequenda de € 69 402,68) contra a aludida CC, foi registada uma penhora em 23.7.2014.

            j) O registo da aquisição (CAUSA – compra em Processo de Execução) a favor da embargada/recorrida, Banco 1..., S. A., foi efetuado em 11.9.2019 (na sequência da AP. ...87), data em que se procedeu ao cancelamento de todos os ónus e encargos que incidiam sobre o mencionado prédio urbano.

            k) Na Escritura de Justificação junta pelos recorrentes, realizada em 31.3.2017, estes disseram que eram donos e proprietários do imóvel penhorado nos autos e que sobre o mesmo se encontravam registadas “uma hipoteca voluntária a favor do Banco 1..., S. A.” e quatro penhoras, uma a favor do Banco 2... S. A.”; concretizaram as respetivas datas e os demais elementos levados ao registo predial.[4]

            l) A Mm.ª Juíza do Tribunal a quo fundamentou assim o decidido (a 19.01.2023):

            «(...) Os embargantes já tinham vindo propor embargos preventivos que correram termos pelo apenso B[5], ao abrigo do artigo 350º do CPC.

                Tais embargos foram julgados extemporâneos, por sentença já transitada em julgado.

            O que se denota da fundamentação ora alegada é que os embargantes discordam da forma como foi contado o prazo de 30 dias previsto no art.º 344º do CPC e a que ali se entendeu ser aplicável ao art.º 350º do CPC.

                (...)

                Ora, as decisões judiciais podem ser impugnadas por meio de recursos – art.º 627º, n.º 1 do CPC.

                Consequentemente, este não é o meio próprio para atacar da bondade ou não do decidido no Apenso B.

                Nos termos do art.º 620º, n.º 1 do CPC “as sentenças e os despachos que recaiam unicamente sobre a relação processual têm força obrigatória dentro do processo”.

                E, nos termos da I parte do artigo 621º do CPC “a sentença constitui caso julgado nos precisos limites e termos em que julga”.

                Assim, a exceção do caso julgado pode assentar em decisão de mérito proferida num processo anterior ou em decisão anterior proferida sobre a relação processual.

                 (...) para se verificar a exceção dilatória do caso julgado, a lei exige a verificação de uma identidade tríplice: sujeitos, pedidos e causa de pedir.

                Quanto aos sujeitos é manifesta a existência de identidades entre os sujeitos das duas ações.

                No que respeita ao pedido e causa de pedir, existe identidade – reconhecimento de aquisição originária do prédio penhorado e vendido nos autos de execução.

                Assim atentos os fundamentos acima explanados, conclui-se pela verificação de exceção dilatória do caso julgado, insuprível – art.ºs 576º, n.º 1 e 2, 577º, alínea i), 578º e 580º do CPC.

                Ainda que assim não se entendesse, note-se que o alegado bem que os Embargantes dizem ser seu, para efeitos do que aqui se discute, cinge-se ao bem penhorado e vendido e como tal, os embargos não podem ser entendidos como preventivos.

                Na verdade, os embargos de terceiro em relação a ato posterior à penhora são embargos repressivos, pois o ato ofensivo do pretenso direito do embargante é a penhora e não a entrega efetiva do bem que é só um reflexo do primeiro ato (...),

                A este propósito pode ler-se no Ac. do STJ de 30/3/17, dgsi “Na verdade, o campo de aplicação do art.º 350º, n.º 1, é limitado aos atos de penhora, apreensão ou entrega de bens ordenados em qualquer processo judicial, mas não se confundem com a operação de entrega do bem cuja venda ou adjudicação a favor de terceiro seja realizada no âmbito de processo de executivo”.

                Tal meio de defesa pode ser deduzido antes de ser realizada a entrega de bem no âmbito de ação para entrega de coisa certa, mas não existe motivo algum para equiparar a essa diligência o ato de entrega do bem cuja propriedade tenha sido transmitida ao exequente ou a terceiro no âmbito de ação executiva para pagamento de quantia certa, depois de ter sido realizada a penhora do bem.”

                (…)

                Deste modo, sendo os embargos repressivos e não preventivos, é extemporânea a sua dedução, uma vez que já foi concretizada a transmissão do bem penhorado, através da sua venda ao credor Reclamante em fase de negociação particular. (...)»    

            2. Apreciando.

       Relativamente à oposição mediante embargos de terceiro, preceitua o CPC[6]:

       Se a penhora, ou qualquer ato judicialmente ordenado de apreensão ou entrega de bens, ofender a posse ou qualquer direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência, de que seja titular quem não é parte na causa, pode o lesado fazê-lo valer, deduzindo embargos de terceiro (art.º 342º, n.º 1).

       Os embargos são processados por apenso à causa em que haja sido ordenado o ato ofensivo do direito do embargante (art.º 344º, n.º 1). O embargante deduz a sua pretensão, mediante petição, nos 30 dias subsequentes àquele em que a diligência foi efetuada ou em que o embargante teve conhecimento da ofensa, mas nunca depois de os respetivos bens terem sido judicialmente vendidos ou adjudicados, oferecendo logo as provas (n.º 2).

       Sendo apresentada em tempo e não havendo outras razões para o imediato indeferimento da petição de embargos, realizam-se as diligências probatórias necessárias, sendo os embargos recebidos ou rejeitados conforme haja ou não probabilidade séria da existência do direito invocado pelo embargante (art.º 345º).

       A rejeição dos embargos, nos termos do disposto no artigo anterior, não obsta a que o embargante proponha ação em que peça a declaração da titularidade do direito que obsta à realização ou ao âmbito da diligência, ou reivindique a coisa apreendida (art.º 346º).

       Os embargos de terceiro podem ser deduzidos, a título preventivo, antes de realizada, mas depois de ordenada, a diligência a que se refere o art.º 342º, observando-se o disposto nos artigos anteriores, com as necessárias adaptações (art.º 350º, n.º 1, sob a epígrafe “embargos de terceiro com função preventiva”). A diligência não será efetuada antes de proferida decisão na fase introdutória dos embargos e, sendo estes recebidos, continuará suspensa até à decisão final, podendo o juiz determinar que o embargante preste caução (n.º 2).

       As sentenças e os despachos que recaiam unicamente sobre a relação processual têm força obrigatória dentro do processo (art.º 620º, n.º 1, sob a epígrafe “caso julgado formal”).  

            3. Atualmente e desde a reforma processual de 1995 (DL n.º 329-A/95, de 12.12), os embargos de terceiro visam defender não apenas a posse (como acontecia na anterior versão do CPC de 1961 – art.º 1037º) mas também qualquer direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência, de que seja titular quem não é parte na causa; permite-se que o embargante possa invocar e defender qualquer direito que esteja a ser atingido ilegalmente pela penhora ou outro acto de apreensão judicial de bens.

            Os embargos de terceiro são, pois, usados como incidente para reagir a diligência de penhora considerada ilegal.[7]

            4. Os embargos de terceiro podem ser definidos, a título perfunctório, como o incidente pelo qual quem não é parte no processo pede a extinção de penhora, apreensão ou entrega judiciais ofensivas de posse ou direito seus.

            A estrutura dos embargos de terceiro é a de uma ação, cuja finalidade é verificar a existência dum direito ou duma posse.[8]

            O embargante/terceiro deve apresentar “posse ou qualquer direito incompatível de que seja titular”; deve alegar e demonstrar a titularidaderectius, o facto de aquisição da titularidade – da posse ou do direito ofendidos, a qual determina, ao mesmo tempo, legitimidade e causa de pedir.

            Trata-se de um meio de defesa perante uma penhora ou apreensão subjetivamente ilegais e que não se cinge aos estritos limites de uma ação executiva; permite a um terceiro intervir numa causa para fazer valer, no confronto de ambas as partes, um direito próprio, total ou parcialmente incompatível com as pretensões por aquelas deduzidas.[9]

            Na verdade, a sua necessidade pode colocar-se na execução de uma qualquer medida processual de ingerência material na esfera jurídica de um terceiro, como, entre outras, as providências cautelares de arresto e arrolamento (cf. art.ºs 391º e seguintes e 403º e seguintes).[10]     

            5. De sublinhar, ainda, que o que ofende o direito de terceiro não é a venda executiva, mas a “penhora[11] ou, fora da execução para pagamento de quantia certa, “qualquer ato judicialmente ordenado de apreensão ou entrega de bens”.

            O desiderato (indireto) dos embargos de terceiro é reduzir o objeto da penhora à sua justa medida subjetiva, sem que o direito à execução pelo credor atropele os direitos legítimos de terceiro.[12]

            6. No plano do objeto imediato, o pedido de embargos pode cumprir uma função preventiva ou cumprir uma função de remédio (art.º 350º).

            Na função preventiva (embargos de terceiro preventivos), o terceiro quer evitar a ofensa ao seu direito ou à sua posse, mantendo-os íntegros – a revogação do ato ou despacho de penhora, arresto ou apreensão é pedida antes da consumação plena da diligência, mas depois de ordenada; deste modo, não se pode deduzir embargos preventivos se a diligência já teve início, embora ainda não concluída.

            Na função de remédio (embargos de terceiro repressivos) a revogação é pedida depois da consumação da penhora.[13]

            7. Atento o disposto no art.º 342º, o terceiro terá ao seu dispor causas de pedir alternativas: tanto pode alegar e demonstrar o seu direito incompatível, como pode alegar e demonstrar a posse respetiva.

            Se invocar direito incompatível, deverá alegar e demonstrar os factos de aquisição da titularidade do direito (o “facto jurídico” de que deriva o direito real – art.º 581º, n.º 4), enquanto que se invocar posse incompatível, deverá alegar e demonstrar os factos de aquisição da posse.[14]

            E a posse incompatível com a realização da penhora é, desde logo, aquela que, sendo exercida em nome próprio, constitui presunção da titularidade dum direito incompatível: enquanto esta presunção não for ilidida, mediante a demonstração de que o direito de fundo radica no executado, o possuidor em nome próprio é admitido a embargar de terceiro.[15]

            8. Os embargos de terceiro apresentam uma dupla estrutura procedimental: uma fase cautelar, dita “introdutória” no art.º 345º, e uma fase declarativa ou contraditória, depois daquela.[16]

            A fase de feição introdutória vai desde a sua dedução até ao despacho de recebimento ou de rejeição dos embargos; a fase de estrutura predominantemente contraditória segue-se à prolação do despacho de recebimento, e assume a natureza de uma verdadeira ação declarativa, a tramitar segundo os termos do processo comum (art.ºs 347º e seguinte).

            No âmbito da aludida primeira fase ocorre tão só uma avaliação de probabilidade séria da existência do direito  invocado (a efetuar em função dos termos da petição inicial, e cabendo ao embargante o ónus de alegar matéria de facto favorável à sua legitimidade e à viabilidade e tempestividade da ação), utilizando o legislador no art.º 345º, in fine, a mesma fórmula empregue em sede de procedência das providências cautelares (art.º 368º, n.º 1/probabilidade séria da existência do direito).[17] 

            9. Os embargos de terceiro constituem, quando deduzidos contra a penhora (ou outro ato de apreensão ou entrega de bens em processo executivo), uma tramitação declarativa dependente do processo executivo e que corre por apenso a este (art.º 344º, n.º 1).

            O n.º 2 do art.º 344º impõe ao terceiro que instaure a ação num prazo de 30 dias a contar da data em que a diligência foi efetuada ou em que o embargante teve conhecimento da ofensa; nunca, porém, depois da venda ou adjudicação dos bens.

            No caso de embargos preventivos, o prazo de 30 dias deve contar-se da data que o embargante teve conhecimento da futura penhora (despacho de arresto ou de apreensão cautelar).[18]

            10. O campo de aplicação do art.º 350º, n.º 1, é limitado aos atos de penhora (apreensão ou entrega de bens) ordenados em qualquer processo judicial, mas não se confundem com a operação de entrega do bem cuja venda ou adjudicação a favor de terceiro seja realizada no âmbito de processo de executivo.

            O referido meio de defesa pode ser deduzido antes de ser realizada a entrega de bem no âmbito de ação para entrega de coisa certa, mas não existe motivo algum para equiparar a essa diligência o ato de entrega do bem cuja propriedade tenha sido transmitida ao exequente ou a terceiro no âmbito de ação executiva para pagamento de quantia certa, depois de ter sido realizada a penhora do bem.

            Nestas situações o ato que em abstrato poderia ser invocado pelos terceiros embargantes seria o ato de penhora, na medida em que pusesse em causa a posse ou algum direito incompatível com a sua realização.[19]

            11. Decorre do alegado na p. i., conjugado com a descrita factualidade [cf. II. 1., supra] e a explanação que antecede, que será de acolher a consequência ditada pela decisão recorrida.

            Na verdade, relativamente aos embargos - designados, de “índole preventiva” -, por decisão de 06.10.2020, e em enquadramento adjetivo que permite afirmar a tríplice identidade de sujeitos, pedido e causa de pedir, foi já declarada a respetiva intempestividade [cf., sobretudo, II. 1. alíneas b), c) e d), supra], resposta ou solução, transitada em julgado, que tem força obrigatória dentro do processo (art.º 620º, n.º 1), sendo que, como se referiu, se trata de tramitação declarativa dependente do (mesmo) processo executivo.

            Importa assim afirmar e respeitar o caso julgado.

            12. Corroborando o entendimento expresso na 1ª instância, acrescenta-se que os embargantes/recorrentes há muito tiveram conhecimento do ato (alegadamente) ofensivo do seu pretenso direito e posse, além de que já se procedeu à venda do bem em causa, na execução dos autos principais [cf., sobretudo, II. 1. alíneas e), g), j) e k), supra], pelo que, ante a limitação de ordem adjetiva/processual prevista no n.º 2 do art.º 344º, não vemos como seja possível a “reiterada” interposição de embargos (de terceiro) cuja extemporaneidade é por demais evidente (e conhecida dos próprios embargantes)![20]

            No caso em análise foi efetuada a penhora do imóvel e foi adjudicada ao credor reclamante/recorrido a sua propriedade, não havendo assim motivo algum para excluir dos embargos com função preventiva a norma geral do art.º 344º, n.º 2, cuja aplicação é ressalvada pelo art.º 350º, n.º 1, da qual deriva a inadmissibilidade dos embargos depois de o bem ter sido adjudicado ou vendido. [21]

            Na verdade, visando os embargos definir a titularidade do direito sobre o bem penhorado ou apreendido com vista a satisfazer o crédito do exequente, obstando ao prosseguimento da execução quanto aos mesmos até à decisão sobre o mérito, não faria qualquer sentido que pudessem ser deduzidos depois de tais bens terem sido vendidos ou adjudicados no âmbito do processo executivo.[22]

            Dada a extemporaneidade da ação de embargos preventivos após a venda judicial ou a adjudicação dos bens sobre os quais recaía a posse que a penhora ameaçava ofender[23], inelutável, pois, a rejeição liminar dos embargos de terceiro (indeferimento da petição de embargos), com o consequente prosseguimento da ação executiva.

            13. Tendo a petição de embargos sido liminarmente rejeitada com o aludido fundamento, evidentemente que não se chegou a proferir sentença de mérito que constituísse caso julgado quanto à existência e titularidade do direito invocado pelos embargantes, nos termos gerais.

            Restará, porventura, lançar mão da ação declarativa comum, autónoma, prevista no art.º 346º.[24]

            14. Soçobram, desta forma, todas as “conclusões” da alegação de recurso, não se mostrando violadas quaisquer disposições legais.


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            III. Pelo exposto, acorda-se em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.

            Custas pelos embargantes/apelantes.


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26.9.2023


[1] Recurso admitido «com subida imediata, nos próprios autos (apenso), e com efeito suspensivo da decisão».
[2] Na base dos documentos que integram as certidões de 06.7.2023 e 14.9.2023.
[3] Os factos alegados neste apenso sob os art.ºs 9º a 57º reproduzem o aduzido na petição daqueles embargos (art.ºs 1º a 56º - todo o articulado, excluída a parte referente à “inversão do contencioso”).
   Na petição dos presentes autos, sob o enquadramento “Prolegómenos”, acrescentam-se oito (novos) artigos aludindo à problemática do prazo para a instauração dos embargos e à notificação, pelo Agente de Execução, “de que se iria proceder à entrega do bem no próximo dia 13.01.2023 ao comprador Banco 1...”.
   Em ambas as petições se alegou que o embargado “pretende a entrega do prédio na sequência do seu registo de aquisição” (art.ºs 47º e 46º, dos 2ºs e 1ºs embargos, respetivamente), “agendada para o próximo dia 13.01.2023” (acrescento do art.º 47º da petição dos 2ºs embargos...).
[4] Na sequência da AP. ...75 de 2017/07/06 foi registada a aquisição (“CAUSA – Usucapião”) do aludido prédio a favor dos embargantes.
[5] Sublinhado nosso, como o demais a incluir no texto.
[6] Diploma a que pertencem as disposições doravante citadas sem menção da origem.
[7] Vide, nomeadamente, C. Lopes do Rego, Comentários ao CPC, Vol. I, 2ª edição, 2004, Almedina, págs. 324 e seguinte (comentando idêntica disposição do CPC de 1961 - art.º 351º -, após a reforma de 1995/96) e, de entre vários, o acórdão do STJ de 06.12.2016-processo 1129/09.5TBVRL-H.G1.S2, publicado no “site” da dgsi.
[8] Vide J. Lebre de Freitas, A Ação Executiva, 6ª edição, Coimbra Editora, 2014, pág. 341.
[9] Vide Amâncio Ferreira, Curso de Processo de Execução, 4ª edição, pág. 233.

[10] Vide Rui Pinto, A Ação Executiva, AAFDL Editora, Lisboa, 2018, págs. 700 e 710.

   Na lição de J. Lebre de Freitas (in A Ação Executiva, ob. cit., págs. 320 e 321), os bens de terceiro (relativamente à execução), isto é, de pessoa que não seja exequente nem executado, não são penhoráveis. Mas já são penhoráveis os bens do executado que estejam em poder de terceiro, ainda que este deles seja possuidor em nome próprio.

[11] Cf. acórdão da RP de 17.6.1997-processo 9720694 [constando do sumário: «A penhora é que pode constituir o acto de ofensa da posse de terceiro. Os factos sucessivamente praticados após a penhora nenhuma ofensa podem acrescentar à decorrente daquela.»], publicado no “site” da dgsi.
[12] Vide Rui Pinto, A Ação Executiva, cit., págs. 712 e seguinte.
[13] Ibidem, págs. 748 e seguinte.
[14] Ibidem, pág. 734.
[15] Vide J. Lebre de Freitas, A Acção Executiva, cit., pág. 332.
[16] Vide Rui Pinto, A Ação Executiva, cit., pág. 701.
[17] Cf. acórdão da RL de 08.02.2018-processo 2768/15.0T8CSC-A.L1-6, publicado no “site da dgsi.
[18] Vide Rui Pinto, A Ação Executiva, cit., págs. 751 e seguinte e J. Lebre de Freitas, A Acção Executiva, cit., págs. 336 e seguinte.

[19] Cf. acórdão do STJ de 30.3.2017-processo 149/09.4TBGLG-E.E1-A.S1 (citado na decisão recorrida), publicado no “site” da dgsi.

[20] Como bem se refere na resposta à alegação de recurso, “pelo menos desde 31/3/2017, os recorrentes tinham conhecimento da Hipoteca Voluntária a favor do recorrido e da penhora efetuada nos presentes autos, conforme expressamente o disse na referida Escritura de Justificação”.

[21] Cf., ainda, o cit. acórdão do STJ de 30.3.2017-processo 149/09.4TBGLG-E.E1-A.S1.

   Em idêntico sentido, cf., de entre vários, acórdão da RP de 11.7.2012-processo 801-B/2002.P1 [concluindo-se que «embora o prazo de caducidade previsto no art.º 353º, n.º 2, do CPC (344º, n.º 2, do atual CPC) não seja aplicável aos embargos de terceiro com função preventiva, já se lhes aplica a parte final do mesmo normativo, por força do n.º 1 do art.º 359º daquele Código (art.º 350º, n.º 1, do atual CPC), sendo de negar a possibilidade de embargar preventivamente a entrega de bens móveis ou imóveis depois deterem sido judicialmente vendidos ou adjudicados.»], publicado no “site” da dgsi.

[22] Neste sentido, cf. acórdão da RE de 23.3.2017-processo 654/11.2TBSLV-E.E1, publicado no “site” da dgsi.

[23] Também com o entendimento de que na execução para pagamento de quantia certa o ato ofensivo da posse é a penhora e não a entrega do bem imóvel ao adquirente em venda executiva, cf., por exemplo, acórdão do STJ de 07.9.2021-processo 956/04.4TCSNT-C.L1.S1 [com o sumário: «I - Os embargos de terceiro com função de prevenção, não podem ser requeridos nem antes de ordenada a diligência judicial, nem após a realização dessa mesma diligência. II - Os embargos de terceiro com função preventiva restringem-se à oposição a ato de penhora ou qualquer ato judicialmente ordenado de apreensão ou entrega de bens. III - O fundamento dos embargos de terceiro é o ato judicialmente ordenado de apreensão de bens, que na execução para pagamento de quantia certa se consuma no ato de ordenar a penhora e efetivação desta. IV - Em processo de execução para pagamento de quantia certa, o ato ofensivo da posse é a penhora (que implica a preensão do bem) e não “o arrombamento/entrega do bem imóvel” a quem o adquiriu em ato de venda judicial. V - Não se compreenderia que uma atuação preventiva se prolongasse no tempo para além da possibilidade de reação repressiva.»], publicado no “site” da dgsi.
[24] Vide, nomeadamente, Rui Pinto, A Ação Executiva, cit., págs. 768 e seguintes e cit. acórdão da RE de 23.3.2017-processo 654/11.2TBSLV-E.E1.