Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
654/11.2TBSLV-E.E1
Relator: ALBERTINA PEDROSO
Descritores: EMBARGOS DE TERCEIRO
REJEIÇÃO
ACÇÃO DECLARATIVA
COMPETÊNCIA
Data do Acordão: 03/23/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
I - A rejeição liminar dos embargos de terceiro - à semelhança do indeferimento liminar da petição inicial por vício que não seja a manifesta improcedência do pedido -, não tem qualquer repercussão sobre o mérito do direito que o embargante pretendia fazer valer na causa, implicando apenas o normal prosseguimento dos termos da execução de que aqueles eram dependência quanto aos bens cuja titularidade ou direito incompatível com a respectiva apreensão o embargante invocara.
II - Tendo ocorrido rejeição liminar dos embargos de terceiro, a possibilidade de o terceiro que embargou propor acção para reconhecimento do direito que não viu apreciado em sede de embargos, significa apenas e tão só que tal rejeição dos embargos não tem eficácia preclusiva relativamente ao direito de fundo oposto pelo embargante, o que sempre decorreria naturalmente do alcance do caso julgado previsto no artigo 621.º do CPC que se refere à decisão do mérito.
III - Porém, para que dúvidas não subsistissem quanto à inexistência de qualquer preclusão desse direito de acção quando os embargos deduzidos com tal finalidade tivessem sido rejeitados, afirmou-se expressamente no artigo 346.º do CPC o direito do embargante propor nova acção em que peça a declaração do direito que não viu apreciado em consequência da rejeição liminar dos embargos.
IV - A acção a que este artigo se refere é uma acção declarativa autónoma da executiva, significando isto que não corre por apenso a esta, ao contrário dos embargos de terceiro relativamente aos quais o artigo 344.º, n.º 1, expressamente estatui que correm por apenso à execução.
V - Nem o princípio da economia processual nem o da adequação formal podem ser usados para derrogar as normas de atribuição de competência.
VI - A competência declarativa do juiz de execução apenas lhe está conferida para os embargos de terceiro e já não para a acção declarativa subsequente que o embargante que viu rejeitados os embargos deduzidos venha a instaurar para declaração da titularidade do direito que em seu entender obsta à realização ou ao âmbito da diligência ofensiva daquele, ou ainda para a reivindicação da coisa apreendida.
VII - A instauração da presente acção declarativa por apenso à executiva em que os embargos foram rejeitados, configura violação das regras atributivas de competência material, determinando a declaração de incompetência absoluta do Tribunal.
Decisão Texto Integral:
Processo n.º 654/11.2TBSLV-E
Tribunal Judicial da Comarca de Faro[1]
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Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora[2]:

I – Relatório
1. M..., Unipessoal, Lda. veio propor a presente acção declarativa contra a Caixa de Crédito ..., com fundamento no disposto no artigo 346.º do Código de Processo Civil[3], peticionando o reconhecimento do direito da Requerente ao arrendamento sobre o imóvel a cuja venda se procedeu na acção executiva supra identificada.

2. Por despacho proferido em 16-05-2016, foi decidido indeferir liminarmente o presente incidente, aduzindo-se que a Secção de Execução é materialmente incompetente para conhecer do mérito da presente acção.

3. Não se conformando como despacho proferido, a autora apresentou o presente recurso de apelação, concluindo a respectiva minuta nos seguintes termos:
«I.- O despacho recorrido assenta os fundamentos, para indeferir liminarmente acção em causa, que não é, pelo facto da norma (artigo 346.º do C.P.Civil) se encontrar enquadrada em sede processual no âmbito da – “Oposição dos embargos de terceiro” – Subsecção III da Secção III – Oposição – que confere a sua competência, para que em sede executiva tramite a respectiva acção;
Acrescentando, que ”decorre de forma assaz clara do disposto na norma citada que a Requerente deverá propor uma acção declarativa regular”
Para concluir – “é consabido, nas Secções De Execução não se afere ou reconhece a titularidade de qualquer direito.”
II.- Ao contrário, do que se afirma, em sede do despacho recorrido.
Bastará, para tanto, nos termos e ao abrigo do artigo 342.º do C.P.C, verificar quais sãos pressupostos legais e processuais do fundamento dos embargos de terceiro. Para concluirmos, que os mesmos se destinam, exclusivamente, para defender a titularidade de um direito, que seja, -“… incompatível com a realização ou o âmbito da diligência ” -;
É pacífico na nossa Jurisprudência e Doutrina firmadas, que os embargos de terceiro apesar de se encontrarem processualmente configurados, como incidente de instância, em sede executiva;
Os embargos de terceiro tem uma estrutura de uma acção declarativa, tramita em sede executiva, destinam-se a reconhecer a titularidade de um direito, conforme resulta claramente dos artigos 348.º e 349.º do C.P.Civil;
III.- O artigo 346.º do C.P.Civil, encontra-se, conforme já se alegou, sistematicamente, inserido no âmbito dos embargos de terceiro. Não decorre do mesmo e da sua respectiva interpretação, que se possa, concluir, ao contrário do douto despacho recorrido, que acção a propor, não possa correr os seus termos, no âmbito da execução. No corpo do artigo 346.º, nada se refere, ou se possa concluir, que acção em causa tenha que ser proposta nos meios comuns; Ou nas palavras do despacho recorrido: -“ deverá propor uma acção declarativa regular ”;
Antes pelo contrário, deverá ser na sede processual executiva, pois é, a aqui, aonde se manifesta ofensa do direito que se pretende ver reconhecido. Bem como, por razões de economia, processual.
IV.- O douto despacho recorrido viola os artigos 346.º, 348.º e 349.º do C.P.Civil. Decidindo, em total oposição/contradição, aos fundamentos legais e processuais, que a Lei Processual lhe permite, na situação em apreço.
Faz uma interpretação e aplicação do regime constante do artigo 346.º do C.P.Civil, ambígua, já que, a conclusão, retira da aplicação, de tal artigo não decorre, nem consta do mesmo; O que constitui uma nulidade da decisão do despacho recorrido, constante do artigo 615.º, n.º1 al. c) do C.P.Civil.
V.- O douto despacho recorrido, deverá ser substituído por outro, que ordene a tramitação da presente acção, no âmbito do respectivo processo executivo, aonde foi apresentado.».

4. Não foram apresentadas contra-alegações.

5. Ao abrigo do disposto no artigo 652.º, n.º 1, alínea d), do CPC, a ora Relatora determinou que fosse solicitada à primeira instância a remessa aos presentes autos do PDF extraído do sistema Citius, correspondente ao requerimento inicial de embargos de terceiro e ao despacho que os indeferiu, a que o despacho recorrido faz alusão.

6. Dispensados os vistos, cumpre decidir.
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II. O objecto do recurso.
Com base nas disposições conjugadas dos artigos 608.º, n.º 2, 609.º, 635.º, n.º 4, 639.º, e 663.º, n.º 2, todos do Código de Processo Civil, é pacífico que o objecto do recurso se limita pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo evidentemente daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, não estando o Tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos produzidos nas conclusões do recurso, mas apenas as questões suscitadas, e não tendo que se pronunciar sobre as questões cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.
Assim, vistos os autos, a única questão colocada no presente recurso de apelação é a de saber se, face aos elementos constantes dos autos, a presente acção deve ou não correr os respectivos termos por apenso ao processo executivo.
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III – Fundamentos
III.1. – De facto:
Para além do que já consta no relatório supra, importa ainda considerar na decisão do presente recurso que:
1 - Por requerimento apresentado em 15-04-2016, veio a ora autora deduzir por apenso à acção executiva supra identificada embargos de terceiro, pedindo «nos termos e ao abrigo dos artigos 1285.º, 1277.º, 336.º, ambos do C.Civil, que seja reconhecido o legítimo direito por parte da embargante do recurso acção directa, a fim de defender a posse em nome alheio, titulada perlo contrato de cedência do arrendamento do prédio rústico (…) Bem como seja judicialmente reconhecido a existência legal do arrendamento que foi cedido a ora embargante».
2 - No dia 20-04-2016, foi proferido despacho de indeferimento liminar do referido requerimento, decidindo-se que: «quanto ao bem ora objecto de embargo, já o mesmo foi adjudicado à Exequente, por decisão proferida (sendo que o Ilustre Mandatário da aqui Embargante bem o sabe, pois estava presente na diligência) pelo Tribunal em 6/1/2016, isto é, há mais de três meses.
Desde tal momento que está vedado a qualquer terceiro vir defender qualquer alegado direito através de embargos de terceiro.
Destarte e uma vez que a pretensão da Embargante viola o disposto no n.º 2 do art. 344.º do C.P.C., por ser posterior à adjudicação do bem, decido rejeitar liminarmente os presentes embargos de terceiro».
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III.2. – O mérito do recurso
Invoca a Recorrente a nulidade do despacho recorrido prevista no artigo 615.º, n.º 1, al. c), do CPC, por, a seu ver, ter decidido em total oposição aos fundamentos legais e processuais constantes do que vem regulamentado nos artigos 346.º, 348.º e 349.º do CPC, e em clara contradição, do que legal e processualmente, lhe é permitido em face destes normativos, fazendo uma interpretação e aplicação ambígua do regime constante do artigo 346.º do CPC, já que a conclusão que retira da aplicação de tal artigo não decorre nem consta do mesmo.
Diz a Recorrente que, nos termos deste artigo, e em resultado do indeferimento dos embargos de executado, propôs, por apenso ao processo executivo, a presente acção declarativa contra a exequente, na qual vem pedir que esta reconheça a existência legal da titularidade de um arrendamento das instalações onde tem instalado o seu estaleiro, e que invoca ter tomado de arrendamento, por força de cedência do anterior contrato, insurgindo-se contra a afirmação expressa no despacho recorrido de que “é consabido, nas Secções De Execução não se afere ou reconhece a titularidade de qualquer direito”, quando é exactamente, o contrário, do que se afirma, bastando, para tanto, nos termos e ao abrigo do artigo 342.º do CPC, verificar quais são os pressupostos legais e processuais do fundamento dos embargos de terceiro.
Discorrendo seguidamente sobre o facto de os embargos de terceiro terem uma estrutura de uma acção declarativa, tramitada em sede executiva, e destinando-se a reconhecer a titularidade de um direito, conforme resulta claramente dos artigos 348.º e 349.º do CPC, conclui que não decorre do artigo 346.º do CPC, apesar de se encontrar sistematicamente inserido no âmbito dos embargos de terceiro, e da sua respectiva interpretação, que se possa concluir, ao contrário do douto despacho recorrido, que acção a propor, não possa correr os seus termos, no âmbito da execução. Antes pelo contrário, - prossegue -, deverá ser na sede processual executiva, pois é, aqui, aonde se manifesta ofensa do direito que se pretende ver reconhecido, isto não só pelas razões já apontadas, como por razões de economia processual.
Apreciemos, pois.
Atento o disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, a sentença é nula quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão.
Esta causa de nulidade da sentença é facilmente compreensível se atentarmos que os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão estão intrinsecamente ligados, impondo-se consequentemente que a decisão proferida seja o corolário lógico dos respectivos fundamentos.
Assim, se as premissas em que assentou a fundamentação estiverem em contradição com o silogismo judiciário que das mesmas devia decorrer, existe a referida contradição, fulminando a decisão com a nulidade pelo invocado fundamento.
Ora, no caso em apreço, basta uma leitura minimamente atenta do despacho de indeferimento liminar recorrido, para se concluir que não existe a apontada contradição entre os fundamentos e a decisão, já que, conforme decorre da fundamentação que o Senhor Juiz ali expendeu, a questão está em que a autora vem propor uma acção declarativa por apenso a uma execução, na sequência do indeferimento liminar, por extemporaneidade, dos embargos que havia deduzido.
Como visto, a recorrente discorda desse entendimento. Porém, essa discordância não configura nulidade, enquadrando-se (quando muito ou eventualmente) antes no erro de julgamento, já que aquilo que a mesma pretende salientar é que a decisão tomada pelo julgador está errada, não sendo a arguição de tal nulidade que justifica a discordância quanto ao que foi decidido[4].
No caso vertente, o raciocínio exposto no despacho recorrido quanto à fundamentação de facto e de direito, conduz de forma lógica à decisão proferida nos autos, porquanto, entendendo o Senhor Juiz que a secção de execução não é competente para tramitar a presente acção declarativa, com fundamento nas pertinentes normas legais invocadas, decidiu em conformidade, donde concluímos que a mesma não enferma da invocada nulidade por contradição entre os fundamentos e a decisão.
Deste modo, a questão suscitada pela Recorrente, será objecto de apreciação para aquilatarmos se se verifica ou não o invocado erro de direito.
Conforme é consabido, a acção executiva “tem por fim exigir o cumprimento duma obrigação estabelecida em título bastante, ou a substituição da prestação respectiva por um valor igual do património do devedor”[5], sendo consequentemente, nos termos do artigo 2.º do CPC, a acção adequada a realizar coercivamente o direito que o título executivo em que assenta, confere ao exequente, uma vez que, somente a concretização da penhora retira da esfera de disponibilidade material e jurídica do devedor os bens necessários a tornar efectiva a obrigação exequenda, que aquele voluntariamente não cumpriu.
Daí que, nos termos do artigo 735.º, n.º 1 do CPC, estejam sujeitos à execução todos os bens do devedor susceptíveis de penhora que, nos termos da lei substantiva, respondam pela dívida exequenda.
Ora, tendo a acção executiva por base um dos títulos executivos previstos no artigo 703.º, n.º 1, do CPC, ou aqueles documentos a que, por disposição especial, seja atribuída força executiva, conforme previsto no respectivo n.º 2, prossegue os seus legais termos com vista à obtenção do referido fim, sem prejuízo de à mesma poderem ser deduzidos embargos pelo executado nos prazos assinalados nos artigos 728.º e 856.º do CPC, com os fundamentos previstos nos artigos 729.º a 731.º e 857.º do CPC, consoante estejamos perante processo ordinário ou sumário, conforme estatuído no artigo 550.º do CPC, que rege sobre a forma de processo comum para pagamento de quantia certa.
Porém, atenta a força executiva do respectivo título, mesmo quando os embargos são recebidos, o prosseguimento da execução só se suspende nos casos configurados nos artigos 733.º e 856.º, n.º 5, do CPC.
Na verdade, conforme é sabido, apesar de bastar ao credor estar munido do título executivo para poder lançar mão da acção executiva, tal não significa que a sua existência garanta em absoluto a existência do crédito, já que o direito de acção executiva é autónomo e independente do direito substancial[6].
Por isso mesmo, a lei permite ao executado fazer valer as eventuais divergências do título com a realidade substancial, bem como eventuais vícios processuais ou substantivos procedentes da formação do título, por via da dedução de oposição à execução, por embargos, com os fundamentos actualmente previstos nos artigos 728.º e 731.º do CPC, quando a execução não seja fundada em sentença ou em requerimento de injunção ao qual tenha sido aposta a fórmula executória.
Trata-se de processo que decorre com contraditório pleno, configurando-se como uma verdadeira acção declarativa enxertada na executiva, cujo julgamento compete ao juiz da acção executiva. De facto, “a propositura da demanda de oposição implica a constituição de uma nova relação processual autónoma, não reconduzível a uma fase da relação processual executiva, por poder apresentar pressupostos próprios e se delinear como uma relação processual de cognição, com a estrutura de processo normal de declaração, enquanto a relação executória jamais conduz a um provimento decisório. Os actos das duas relações processuais são distintos, com trajectórias independentes, não se configurando, portanto, os actos processuais respeitantes à oposição como actos de execução”[7].
Assim, como claramente resulta dos n.ºs 4 e 5 do artigo 732.º do CPC, a oposição à execução mediante embargos é dependência do processo executivo, daí que a procedência dos embargos extinga a execução, no todo ou em parte, constituindo a decisão de mérito proferida nos embargos à execução, nos termos gerais, caso julgado quanto à existência, validade e exigibilidade da obrigação exequenda.
Acresce que, prevendo a possibilidade de a penhora, a apreensão ou a entrega de bens judicialmente ordenados no âmbito do processo executivo, ofenderem a posse ou qualquer outro direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência, de um terceiro relativamente à causa, diz-nos o artigo 342.º, n.º 1, do CPC, que pode esse lesado fazer valer o direito que se arroga, deduzindo embargos de terceiro, que são processados por apenso à causa em que haja sido ordenado o acto ofensivo do respectivo direito, e deduzidos nos 30 dias subsequentes àquele em que a diligência foi realizada ou em que o embargante dela teve conhecimento, mas nunca depois de os bens terem sido vendidos ou adjudicados, conforme expressamente previsto no artigo 344.º do CPC.
O regime actual corresponde ao delineado nos artigos 351.º e seguintes, na alteração introduzida ao CPC-95/96, explicado por Lopes do Rego[8] como sendo decorrente da «eliminação das acções possessórias do elenco dos processos especiais», daí «a decisão de ampliar os pressupostos de admissibilidade dos embargos de terceiro – que deixam de estar necessariamente ligados à defesa da posse do embargante, configurando-se como meio processual idóneo para este efectivar qualquer direito incompatível com a subsistência de uma diligência de cariz executório, judicialmente ordenada», e a respectiva inserção sistemática.
Recentemente o Supremo Tribunal de Justiça pronunciou-se nos seguintes termos: «com a Reforma do Código de Processo Civil de 1995/96, eliminadas as acções possessórias do conjunto dos processos especiais, foi ampliado o âmbito dos embargos de terceiro, agora desligados, exclusivamente, da defesa da posse ameaçada ou ofendida por diligência processual ordenada judicialmente (excepto a apreensão em processo de falência), sendo-lhes conferido um âmbito mais lato [constitui um incidente de intervenção de terceiros], tornando possível a sua aplicação para reagir a penhora, apreensão ou entrega de bens, ou a quaisquer actos incompatíveis com a diligência ordenada judicialmente, que possam afectar direitos de quem não é parte no processo executivo, quem em relação a tal processo, seja terceiro»[9].
Acrescenta aquele Ilustre Autor que «em termos estruturais, o que realmente caracteriza os “embargos de terceiro” (…) não é tanto o carácter “especial” da tramitação do processo através do qual são actuados – que se molda essencialmente pela matriz do processo declaratório, com a particularidade de nele ocorrer uma fase introdutória de apreciação sumária da viabilidade da pretensão do embargante – mas a circunstância de a pretensão do embargante se enxertar num processo pendente entre outras partes e visar a efectivação de um direito incompatível com a subsistência dos efeitos de um acto de agressão patrimonial, judicialmente ordenado no interesse de alguma das partes em causa, e que terá atingido ilegitimamente o direito invocado pelo terceiro embargante. (…)
O problema da admissibilidade dos embargos de terceiro, aparece, deste modo, ligado, não apenas à qualificação do embargante como “possuidor”, mas também à averiguação da titularidade de um direito que, ponderada a sua natureza e regime jurídico-material, não possa ser legitimamente atingido pelo acto de apreensão judicial de bens em causa, por ser oponível aos interessados que promoveram ou a quem aproveita a diligência judicialmente ordenada».
Efectua-se este pequeno enquadramento para significar que, considerando a referida estrutura dos embargos de terceiro, não há qualquer dúvida que, correndo por apenso ao processo executivo em que ocorre a diligência que atinge o direito que invocaram, e pese embora a referida matriz de processo declaratório, a competência para a respectiva tramitação e decisão cabe ao juiz da acção executiva, o que bem se compreende já que a decisão atinente à titularidade do direito alegadamente afectado pela diligência de cariz executório, quando procedente, se repercute no universo dos bens dados à execução que podem, a final, responder pela dívida exequenda. Daí a estreita conexão estabelecida por lei entre ambos os processos, com a especialidade, no caso dos embargos de terceiro na comparação com os de executado, de o respectivo recebimento determinar de imediato a suspensão do processo executivo em que se inserem quanto aos bens a que dizem respeito, assim paralisando os efeitos subsequentes à invocada ofensa do património do embargante (artigo 347.º do CPC).
Revertendo ao caso em apreço, temos que os embargos deduzidos pela ora Recorrente por apenso à execução foram rejeitados por extemporaneidade, isto porque foram deduzidos mais de três meses depois da adjudicação do prédio ao exequente, diligência, aliás, presenciada pelo Ilustre mandatário da embargante e ora Recorrente.
De facto, visando os embargos, como sobredito, definir a titularidade do direito sobre o bem penhorado ou apreendido com vista a satisfazer o crédito do exequente, obstando ao prosseguimento da execução quanto aos mesmos até à decisão sobre o mérito, não faria qualquer sentido que pudessem ser deduzidos depois de tais bens terem sido vendidos ou adjudicados no âmbito do processo executivo.
Ora, na situação vertente, tendo a petição de embargos sido liminarmente rejeitada com este fundamento, evidentemente que não se entrou na apreciação do mérito da causa, ou seja, não se chegou a proferir sentença de mérito que constituísse caso julgado quanto à existência e titularidade do direito invocado pela embargante, nos termos gerais.
Se tal tivesse acontecido, em face do disposto no artigo 349.º do CPC, a sentença de mérito proferida no âmbito do processo de embargos impediria a discussão em acção posterior da titularidade do direito invocado pelo embargante, talqualmente acontece com os efeitos do caso julgado consagrados para o processo declaratório no artigo 621.º do CPC[10].
Lopes do Rego[11] esclarece a respeito do caso julgado nos embargos de terceiro que «como consequência da ampliação do âmbito dos embargos, de modo a facultar a discussão – por iniciativa inclusivamente do próprio embargante – da titularidade de um direito de fundo, incompatível com o acto de apreensão de bens, e do reforço das garantias das partes – traduzido em se seguirem os termos do processo declaratório, ordinário ou sumário – forma-se caso julgado sobre o “thema decidendum”, nos termos gerais.
Tal solução era, aliás, a já sustentada pela doutrina nos casos em que, por iniciativa do embargado, houvesse sido suscitada e decidida a questão do “direito de propriedade” sobre os bens apreendidos nos termos da alínea b) do artigo 1042.º do Código de Processo Civil; e é a que se afigura consentânea e coerente com a subsunção do instituto dos embargos de terceiros ao quadro normativo da oposição espontânea».
Porém, não tendo existido apreciação do mérito da causa e sendo os embargos liminarmente rejeitados, diz-nos o artigo 346.º do CPC, que a rejeição dos embargos, neste caso, não obsta a que o embargante proponha acção em que peça a declaração da titularidade do direito invocado ou mesmo que reivindique a propriedade da coisa apreendida.
Compreende-se bem a diferença de regimes, expressamente consagrada no âmbito da alteração do CPC de 95/96 pelo artigo 355.º do CPC.
A rejeição liminar dos embargos - à semelhança do indeferimento liminar da petição inicial por vício que não seja a manifesta improcedência do pedido -, não tem qualquer repercussão sobre o mérito do direito que o embargante pretendia fazer valer na causa, implicando apenas o normal prosseguimento dos termos da execução de que aqueles eram dependência quanto aos bens cuja titularidade ou direito incompatível com a respectiva apreensão o embargante invocara, daí não ter eficácia preclusiva relativamente ao exercício daquele direito numa outra acção.
Porém, para que dúvidas não se suscitassem quanto à inexistência de qualquer preclusão desse direito de acção quando os embargos deduzidos com tal finalidade tivessem sido rejeitados, afirmou-se expressamente no indicado preceito o direito do embargante propor nova acção em que peça a declaração do direito que não viu declarado em consequência da rejeição liminar dos embargos.
Assim, a questão que o caso em apreço convoca é a de saber se, como pretende a Recorrente, esta acção, - necessariamente declarativa, para reconhecimento da titularidade do direito primeiramente invocado como fundamento dos embargos -, corre por apenso à acção executiva ou, como entendeu o Senhor Juiz, é uma acção autónoma.
Atento o enquadramento supra efectuado não podemos obviamente deixar de concluir que a acção a que o artigo 346.º do CPC se refere é uma acção autónoma da executiva, significando isto que não corre por apenso a esta, ao contrário dos embargos de terceiro relativamente aos quais o artigo 344.º, n.º 1, expressamente refere que correm por apenso à execução. E assim é atento o directo reflexo que com a sua dedução se pretende obter na mesma: a paralisação do prosseguimento da execução quanto ao bem penhorado cuja titularidade ou direito incompatível o embargante reclama.
Assim, tendo ocorrido rejeição liminar dos embargos, a expressa afirmação no artigo 346.º do CPC da possibilidade de o terceiro que embargou de propor acção para reconhecimento do direito que não viu apreciado em sede de embargos, significa apenas e tão só que tal rejeição dos embargos não tem eficácia preclusiva relativamente ao direito de fundo oposto pelo embargante, o que sempre decorreria naturalmente do alcance do caso julgado previsto no artigo 621.º do CPC que se refere à decisão do mérito, mas que o legislador entendeu assim esclarecer.
Deste modo conclui-se que os efeitos da rejeição de embargos declarados no artigo 346.º do CPC significam apenas que o embargante «poderá perfeitamente vir a propor acção autónoma em que se reconheça e efective a titularidade do direito de fundo que esteve na base da dedução de embargos»[12], mas já não que tal acção corra por apenso à execução, conforme pretende a Recorrente.
De facto, ao contrário do afirmado, a acção não é proposta com fundamento no artigo 346.º do CPC, mas sim com fundamento na titularidade do direito de fundo com que o embargante pretendeu ver paralisada a execução, e que não foi apreciado nos embargos, daí que, afirme aquele preceito que a rejeição não obsta a que, numa outra acção, o embargante que viu rejeitados os embargos, possa ver reconhecido o direito que naqueles pretendeu exercer, sem que tivesse ali logrado obter uma decisão de mérito.
Porém, já não o poderá fazer por apenso à execução.
Como vimos, por apenso à execução correm os embargos que com o respectivo prosseguimento e âmbito estão directamente ligados.
Ora, tendo a ora Recorrente deduzido por apenso à execução oposição mediante embargos de terceiro, que foram rejeitados, por extemporaneidade, a acção executiva prossegue os seus regulares termos até final.
Deste modo, resta-lhe exercer o direito que pretende ver reconhecido em acção declarativa autónoma da execução, pela simples mas evidente razão que no âmbito desta não pode já ter quaisquer efeitos.
Efectivamente, a proceder a interpretação do artigo 346.º do CPC propugnada pela Recorrente, tal significaria a completa derrogação da norma legal relativa à dedução dos embargos nos trinta dias subsequentes àquele em que a diligência foi efectuada ou em que o embargante teve conhecimento da ofensa, mas nunca, sublinhe-se depois de os bens terem sido judicialmente vendidos ou adjudicados.
A ser possível, por razões de economia processual, como diz a Recorrente, que a acção declarativa em causa corresse por apenso à acção executiva, então tal significaria que se permitiria, em violação do prazo previsto no artigo 344.º, n.º 2, do CPC, enxertar naquela uma acção declarativa com obtenção do resultado não conseguido por via dos embargos rejeitados, precisamente por extemporaneidade.
Ora, nem o princípio da economia processual nem o princípio da gestão processual ou da adequação formal podem ser usados para o fim pretendido pela Recorrente, já que, para além do referido, tal significaria ainda a derrogação das normas de atribuição de competência.
Efectivamente, se a todo o direito corresponde uma acção adequada a fazê-lo reconhecer em juízo, conforme estatui o artigo 2.º, n.º 2, do CPC, no caso em apreço esse direito podia ter sido reconhecido por via de embargos de terceiro tempestivamente deduzidos por apenso à acção executiva. Não tendo tal direito sido exercido no prazo peremptório assinalado no artigo 344.º, n.º 2, do CPC, e tendo consequentemente sido rejeitados os embargos, só pode ser actuado por via de acção declarativa autónoma e esta já não é da competência do juiz da execução.
De facto, a competência declarativa do juiz de execução apenas lhe está conferida para os embargos de terceiro e já não para a acção declarativa subsequente que o embargante que viu rejeitados os embargos deduzidos venha a instaurar para declaração da titularidade do direito que em seu entender obsta à realização ou ao âmbito da diligência ofensiva daquele, ou ainda para a reivindicação da coisa apreendida.
Ora, a aplicação dos poderes do juiz que o princípio da gestão processual tutela, dirige-se designadamente às diligências necessárias ao normal prosseguimento da acção, não sendo um poder absolutamente discricionário que lhe permita postergar as normas legais expressamente consagradas para o exercício de um determinado direito.
Deste modo, encontrando-se tabelada pelos artigos 342.º e 344.º do CPC, a dedução de embargos de terceiro como forma adequada a fazer exercer em juízo a pretensão de reconhecimento da existência e titularidade de um direito incompatível com a diligência que o ofendeu levada a cabo na execução, não pode tal forma de acautelar o exercício desse direito ser alterada designadamente por via de despacho judicial que admitisse a dedução por apenso à acção executiva de acção que não configure a dedução de embargos com o figurino legalmente previsto.
Na verdade, as secções de execução têm competência especializada, competindo-lhes apenas, e para o que ora importa, por força do disposto no n.º 1 do artigo 129.º da LOSJ, aprovada pela Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto «exercer, no âmbito dos processos de execução de natureza cível, as competências previstas no Código de Processo Civil».
Assim sendo, é manifesto o infundado da pretensão da Recorrente, sufragando-se a afirmação efectuada na decisão recorrida, de que não é «a circunstância de a norma (refere-se ao artigo 346.º do CPC) estar contida no capítulo atinente à regulação dos embargos de terceiro que confere competência às Secções de Execução para a sua tramitação». E, diga-se, foi neste contexto que ali se afirmou que as mesmas não têm competência declarativa, o que devidamente interpretado significa apenas que não têm competência para tramitar outras acções que declarem direitos que não as expressamente previstas a correr termos por apenso à acção executiva, como é o caso dos embargos de terceiro.
Nestes termos, conclui-se, como no despacho recorrido, ser «manifesto que a presente acção reveste natureza declarativa e não executiva, devendo assim ser tramitada na Secção Genérica com competência para o efeito e não nesta Secção de Execução.
A violação das regras atributivas de competência material importa a declaração de incompetência absoluta do Tribunal, a qual é de conhecimento oficioso e o indeferimento liminar do incidente, conforme decorre do disposto nos arts. 96, a), 97.º, n.º 1 e 99.º, n.º 1, 2.ª parte, todos do CPC».
Pelo exposto, e sem necessidade de maiores considerações, improcede o presente recurso, sendo de confirmar pelas sobreditas razões, o despacho recorrido.
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III.3. Síntese conclusiva:
I - A rejeição liminar dos embargos de terceiro - à semelhança do indeferimento liminar da petição inicial por vício que não seja a manifesta improcedência do pedido -, não tem qualquer repercussão sobre o mérito do direito que o embargante pretendia fazer valer na causa, implicando apenas o normal prosseguimento dos termos da execução de que aqueles eram dependência quanto aos bens cuja titularidade ou direito incompatível com a respectiva apreensão o embargante invocara.
II - Tendo ocorrido rejeição liminar dos embargos de terceiro, a possibilidade de o terceiro que embargou propor acção para reconhecimento do direito que não viu apreciado em sede de embargos, significa apenas e tão só que tal rejeição dos embargos não tem eficácia preclusiva relativamente ao direito de fundo oposto pelo embargante, o que sempre decorreria naturalmente do alcance do caso julgado previsto no artigo 621.º do CPC que se refere à decisão do mérito.
III - Porém, para que dúvidas não subsistissem quanto à inexistência de qualquer preclusão desse direito de acção quando os embargos deduzidos com tal finalidade tivessem sido rejeitados, afirmou-se expressamente no artigo 346.º do CPC o direito do embargante propor nova acção em que peça a declaração do direito que não viu apreciado em consequência da rejeição liminar dos embargos.
IV - A acção a que este artigo se refere é uma acção declarativa autónoma da executiva, significando isto que não corre por apenso a esta, ao contrário dos embargos de terceiro relativamente aos quais o artigo 344.º, n.º 1, expressamente estatui que correm por apenso à execução.
V - Nem o princípio da economia processual nem o da adequação formal podem ser usados para derrogar as normas de atribuição de competência.
VI - A competência declarativa do juiz de execução apenas lhe está conferida para os embargos de terceiro e já não para a acção declarativa subsequente que o embargante que viu rejeitados os embargos deduzidos venha a instaurar para declaração da titularidade do direito que em seu entender obsta à realização ou ao âmbito da diligência ofensiva daquele, ou ainda para a reivindicação da coisa apreendida.
VII - A instauração da presente acção declarativa por apenso à executiva em que os embargos foram rejeitados, configura violação das regras atributivas de competência material, determinando a declaração de incompetência absoluta do Tribunal.
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IV - Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação, em julgar improcedente o presente recurso, confirmando o despacho recorrido.
Custas pela Recorrente.
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Évora, 23 de Março de 2017
Albertina Pedroso [13]
Tomé Ramião
Francisco Xavier
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[1] Silves - Instância Central – 2.ª Secção de Execução - Juiz 1
[2] Relatora: Albertina Pedroso;
1.º Adjunto: Tomé Ramião;
2.º Adjunto: Francisco Xavier.
[3] Doravante abreviadamente CPC, na redacção introduzida pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, integralmente aplicável ao caso em apreço porquanto estamos em presença de acção apresentada em juízo em 12-05-2016.
[4] Cfr., Abrantes Geraldes, in Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2014, pág. 139.
[5] Cfr. Eurico Lopes Cardoso, in Manual da Acção Executiva, 3.ª edição, pág. 22.
[6] Cfr. Amâncio Ferreira, ob. cit, págs. 20 e 21.
[7] Cfr. Amâncio Ferreira, in Curso de Processo de Execução, 13.ª Edição, Almedina, 2010, pág. 182.
[8] In Comentários ao Código de Processo Civil, vol. I, 2.ª edição, 2004, págs. 324 e 325.
[9] Cfr. Ac. STJ de 06-12-2016, proferido no processo n.º 1129/09.5TBVRL-H.G1.S2, disponível em www.dgsi.pt.
[10] Veja-se o caso em apreciação no citado aresto do STJ.
[11] Ob. cit., pág. 331.
[12] Cfr. Lopes do Rego, ob. cit., pág. 328.
[13] Texto elaborado e revisto pela Relatora.