Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
5698/16.5T8VIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS RICARDO
Descritores: ÓNUS DA IMPUGNAÇÃO ESPECIFICADA
INTERPRETAÇÃO DE TESTAMENTO
LEGADOS
Data do Acordão: 10/28/2025
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU – VISEU – JUÍZO CENTRAL CÍVEL – JUIZ 2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA PARCIALMENTE
Legislação Nacional: ARTIGOS 2024º, 2026º, 2030º, NºS 1 E 2, 2032º, Nº 1, 2179º E 2187.º DO CÓDIGO CIVIL
ARTIGO 574.º DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Sumário: I – Atento o regime previsto no art. 574º do C.P.C., o réu, ao contestar, deve tomar posição definida sobre os factos que integram a causa de pedir invocada pelo autor, sob pena de se considerar admitido por acordo o acervo factual que não for impugnado.

II – Na interpretação de testamento deve atender-se ao critério plasmado no art. 2187º do Código Civil (vontade real do testador, analisada no contexto em que o testamento foi elaborado e desde que tenha uma correspondência mínima com o respectivo teor).

III – Tendo-se apurado que o testador pretendia instituir como legatários de uma conta bancária (e dos produtos financeiros que lhe estão associados) determinadas pessoas, identificadas no testamento, deverá reconhecer-se o direito de as mesmas integrarem no seu património os bens que constituem o legado.


(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Integral: *

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

I – RELATÓRIO.

AA, BB e CC

instauraram no Juízo Central Cível de Viseu acção comum contra

DD, EE, FF, GG, HH e II,

pedindo que se reconheça aos autores o direito a todos os valores e bens depositados na Banco 1... associados à conta à ordem nº ...00, incluindo os depósitos a prazo, os produtos estruturados e os valores mobiliários.          


**

Para sustentar a pretensão supra aludida, alegaram, em resumo,  o seguinte:

- Por testamento lavrado em 7/7/2014, JJ legou aos autores o saldo total da conta supra referenciada, incluindo os produtos financeiros associados a essa conta;

- Após se terem dirigido à Banco 1... para receber o legado que lhes deixado pela testadora, foi-lhes comunicado que eram apenas legatários do saldo da referida conta, sendo os réus herdeiros dos restantes bens que se encontram depositados junto dessa instituição bancária;

- O entendimento da Banco 1... é abusivo, uma vez que foi intenção da testadora deixar aos autores o saldo da conta em questão e todos os valores que decorrem dos produtos financeiros supra aludidos.


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Os réus contestaram, impugnando, de forma motivada, parte da factualidade vertida no articulado inicial e alegando que os autos devem ser suspensos, em virtude de se encontrar pendente uma acção de anulação do testamento atrás referido.

Paralelamente, sustentaram que os autores deverão diligenciar no sentido de a Banco 1... intervir no presente litígio, na qualidade de ré, com vista a que a sentença a proferir possa produzir o seu efeito útil.


***

Em 23/2/2017, os réus informaram que a acção de anulação do testamento corria termos no Juízo Central Cível de Lisboa (Juiz 15) sob o nº4517/17.....

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Por requerimento apresentado a 3/4/2017, os autores opuseram-se à intervenção a que os réus fazem referência, sendo que em 4/10/2017 foi exarado despacho que não admitiu a intervenção em apreço.

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Por despacho proferido a 5/2/2018, foi determinada a suspensão da instância até ser proferida decisão final, transitada em julgado, na acção que corria termos sob o nº 4517/17.... no Juízo Central Civel de Lisboa (Juiz 15).

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Em 17/7/2018, foi proferida sentença, transitada em julgado em 8/10/2018, que julgou improcedente a acção onde era peticionada a anulação do testamento.

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Cessada a suspensão da instância, foi exarado despacho, em 21/1/2020, que determinou a apensação aos presentes autos da ação que corria termos no Juízo Central Cível de Viseu sob o nº 6256/16.... referida acção foi instaurada por KK e AA contra DD, LL, FF, EE, GG, HH e II,

sendo peticionado, com base no acervo factual melhor descrito na respectiva petição inicial, que:

a) Os réus sejam condenados a reconhecer que as autoras são donas e legítimas possuidoras do saldo total (dinheiro e todas e quaisquer aplicações e/ou produtos conexionados) existente na conta bancária com o número ...01, de que era titular a testadora JJ, sediada no Banco 2..., em ...;

b) Seja declarado, atenta a referida disposição testamentária, que os ora réus não dispõem de qualquer direito sobre os valores depositados na aludida conta bancária, nem sobre as aplicações financeiras (qualquer que seja a sua natureza) relacionadas com tal conta.


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A acção apensada aos presentes autos foi contestada, tendo os réus arguido a ineptidão do articulado inicial, por contradição entre o pedido e a causa de pedir, e impugnado parcialmente, também de forma motivada, a factualidade alegada pelas autoras.

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Na sequência do falecimento do réu EE, foi instaurado o competente incidente de habilitação, sendo habilitados como herdeiros, para com eles prosseguirem os ulteriores termos da demanda, MM, NN, OO e EE.

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Em 1/6/2023, realizou-se audiência prévia, no âmbito da qual foi proferido despacho a identificar o objecto do litígio e a enunciar os temas da prova, tendo-se efectuado, subsequentemente, audiência final, com observância do formalismo legalmente prescrito.

***

Em 23/2/2025, foi proferida sentença que julgou a acção improcedente, sendo os réus absolvidos dos pedidos.

***

Não se conformando com a decisão proferida, os autores AA, BB e CC interpuseram o competente recurso, no qual formulam as seguintes conclusões:       

1ª.

O presente recurso vem interposto da Sentença proferida pelo Tribunal “a quo”, que julgou improcedente a ação e absolveu os Réus dos pedidos.

2ª.

A presente ação é uma ação de interpretação de Testamento, mais concretamente de interpretação de uma única deixa testamentária a título de legado e consubstancia-se como uma ação de reconhecimento de direitos.

3ª.

Na verdade, a autora da sucessão JJ, falecida no dia ../../2016, sem ascendentes e sem descendentes, outorgou Testamento somente com Legados e sem nomear herdeiros testamentários e, numa das deixas legatárias, declarou o seguinte: “Que lega também a AA, residente em ..., CC, residente em ... e BB, residente em ..., o saldo total da sua conta bancária número ...00 da Banco 1...”.

4ª.

Na Banco 1... tinha as seguintes quantias e bens financeiros (ver facto provado 4 da Sentença):

- Conta à Ordem nº ...00, com um saldo de € 19.313,41

- Conta a prazo nº ...20, no valor de € 80.000,00

- Conta nº ...34, Produtos Estruturados, no valor de € 240.000,00

- Conta nº ...44, Valores Mobiliários (sem valor conhecido), mas com os

seguintes Produtos

4.114,45709000 Unidades de Participação em Fundos

1.368,38684000 Unidades de Participação em Fundos

10.218,91831008 Unidades de Participação em Fundos

20.295,51185073 Unidades de Participação em Fundos.


5ª.

Os autores na sua petição inicial alegaram e mantém que o saldo total da conta indicada no Testamento inclui também o saldo das contas e aplicações financeiras depositadas ou aplicadas na Banco 1..., pedindo no final da sua petição inicial que o Tribunal “reconheça aos autores o direito a todos os valores e bens depositados na Banco 1... associados à conta à ordem nº ...00, incluindo os Depósitos da Prazo, os Produtos Estruturados e os Valores Mobiliários”.


Na Sentença aqui em crise, o Tribunal “a quo” além de julgar improcedente a ação absolveu os réus do pedido, não reconhecendo assim aos autores o direito a todos os valores e bens depositados na Banco 1....

7ª.

Após este pequeno interlúdio, cumpre primacialmente impugnar parte da matéria de facto não provada, o que modestamente e de seguida se fará.
1. IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO NÃO PROVADA
8ª.
Na Sentença aqui em apreciação, o Tribunal “a quo” deu como não provado o seguinte facto: “Foi vontade de JJ legar aos Autores qualquer outra quantia monetária além da que se encontrava depositada nas contas bancárias cujo concreto número identificou no testamento referido em 2-, dos factos provados, concretamente, quaisquer quantias monetárias ou valores financeiros relativos a outras contas bancárias, de depósito à ordem ou a prazo, ou de contas de aplicações financeiras, produtos estruturados/participação em fundos, ainda que associadas à conta de depósito à ordem”.
9ª.
Para justificar esta decisão consta na Sentença, na parte denominada “Convicção do Tribunal”, que tal se deve à “ausência de prova da sua verificação, seja por as testemunhas ouvidas as não terem confirmado ou não o terem feito de uma forma considerada credível, inexistindo nos autos qualquer outro elemento probatório que os tenha comprovado”.
10ª.
Entendem os recorrentes que este facto foi incorretamente julgado, não somente por este facto não ter sido impugnado pelos réus mas, outrossim, por ter sido provado em julgamento, bem como por se extrair do texto e do contexto do testamento que era essa a vontade da testadora.
11ª.
Assim, de seguida irão ser apreciados cada um dos fundamentos para a impugnação da decisão do Tribunal “a quo” sobre o julgamento deste facto e, consequentemente, para a sua demonstração, a saber:
1.1. Admissão deste facto por não impugnação especificada;
1.2 Prova deste facto pela reapreciação da prova gravada e/ou por documento;
1.3 Prova deste facto pela interpretação do artº 2187º, do Código Civil, e da deixa testamentária.


1.1. Admissão deste facto por não impugnação especificada


12ª.

Na sua petição inicial os autores invocaram, como causa de pedir, que todos os valores associados à conta à ordem da Banco 1... com o nº ...00, incluindo o depósito a prazo, os produtos estruturados e os valores mobiliários faziam parte da deixa legatária em apreciação (artigos 10º, 11º a 23º da Petição Inicial).

13ª.

Os autores não receberam os valores de todas as contas devido, exclusivamente, a uma interpretação da Banco 1..., como se encontra alegado nos artigos 19º a 22º, da PI, porque esta instituição financeira entendeu que os autores só tinham direito aos valores depositados exclusivamente na conta à ordem.

14ª.

Os réus solicitaram na sua Contestação a intervenção provocada da Banco 1..., porque na realidade foi a única entidade a fazer uma interpretação diferente do testamento, mas, tal intervenção não foi admitida e a interpretação perpetrada pela Banco 1... deixou de ter validade por não estar sustentada na posição de nenhuma das partes processuais.

15ª.

Na sua Contestação os réus não impugnaram especificamente nenhum dos factos alegados pelos autores relativos à interpretação da deixa legatária em causa nestes autos e, outrossim, não alegaram razões de direito para se fazer outra interpretação da deixa testamentária em causa.

16ª.

E nem sequer há impugnação por desconhecimento ou por não saberem se essa era a vontade da testadora, porque a contestação dos réus assenta exclusivamente nos factos que serviram de causa de pedir da ação de anulação do testamento.

17ª.

Na parte final da Contestação pode ler-se a seguinte alegação dos réus: “103º Resulta que a testadora foi coagida a testar nos termos em que o fez, beneficiando os AA., pelo que a questão jurídica se reporta ao vício da vontade da testadora aquando da outorga do testamento e menos a saber se existe um mínimo de correspondência entre o texto do testamento e a vontade declarada pela testadora no mesmo no que à conta da Banco 1... se refere.”

18ª.

Para os réus e na sua Contestação só estava em causa a coação da testadora e a anulação do testamento.

19ª.

Os réus não colocaram em causa nem impugnaram que existe correspondência entre o texto do testamento e a vontade declarada pela testadora no que diz respeito à totalidade dos saldos existentes nas contas da Banco 1....

20ª.

É na contestação que deve ser deduzida toda a defesa (artº 573º/1, do CPC) e onde o réu deve “expor as razões de facto e de direito por que se opõe à pretensão do autor” (alínea b) do artº 572º, do CPC).

21ª.

Além disso, o réu deve também de tomar posição sobre as razões de direito, quando tal se imponha, sendo certo que neste processo estava e está em causa a interpretação do artº 2187º do CC e a interpretação de uma deixa testamentária.

22ª.

Nos termos do nº 2, do artº 574º, do CPC, “consideram-se admitidos por acordo os factos que não forem impugnados”.

23ª.

Assim sendo, e salvo melhor opinião, e por força da não impugnação deste facto pelos réus e de não o terem expressamente negado, tem de ser dado como provado que o saldo total da conta bancária da Banco 1..., deixada em legado aos autores, inclui a totalidade dos valores depositados nessa instituição bancária à data do óbito, ou seja, a conta a prazo com o nº ...20, a conta de Produtos Estruturados com o nº ...34 e a conta de Valores Mobiliários com o nº ...44.

24ª.

Esta conclusão e admissão assentam ainda no princípio do dispositivo, no princípio do contraditório, no princípio da equidade e no princípio da igualdade de armas.

25ª.

Como consta do Ac. do STJ de 10-09-2015, Proc. 819/11, no novo processo civil, desde a reforma de 1997, “Atribui-se ao juiz um poder mais interventor, sem que tal signifique, porém, o fim do princípio dispositivo e a sua substituição pelo princípio inquisitório. Na verdade, continua a caber às partes a definição do objecto do litígio, através da dedução das suas pretensões e da alegação dos factos que integram a causa de pedir ou suportam a defesa (art. 264º/1 do ACPC- 5º do NCPC).”

26ª.

Por sua vez, o princípio do contraditório plasmado no nº 3 do artº 3º, do CPC, tem de ser entendido, modernamente, “como uma garantia de participação efetiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, mediante a possibilidade de, em plena igualdade, influírem em todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação com o objeto da causa e que em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão.” (Ac. Do TRC de 10-072019, Proc. 249/19).

27ª.

Por outro lado, no Ac. do TRL de 30-03-2023, Proc. 15052/21, foi decidido que “I. O princípio do dispositivo é a tradução processual do princípio constitucional do direito à propriedade privada e da autonomia da vontade. Subjacente ao processo civil está um litígio de direito privado, em regra disponível, pelo que são as partes que têm o exclusivo interesse na sua propositura em tribunal e sobre os exactos limites do seu objecto.”

28ª.

Por outro lado, o princípio de igualdade de armas pressupõe que autor e réu se encontrem em paridade de condições, que tenham direitos processuais idênticos e estejam sujeitos também a deveres, ónus e cominações idênticas, sempre que a sua posição no processo seja equiparável.

29ª.

O processo equitativo, no sentido de processo justo, "fair trial", "due process", supõe a conjugação de elementos orgânicos e elementos funcionais relativos ao tribunal e elementos propriamente processuais ou intra-processuais.

30ª.

Como consta do Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, 15-02-2024, Proc. 4774/21: “A consagração constitucional do direito a um processo equitativo (artigo 20.º, nº4 da Constituição da República Portuguesa) envolve a opção por um processo justo em cada uma das suas fases, constituindo o direito fundamental à prova uma das dimensões em que aquele se concretiza. Como se escreveu no Acórdão do Tribunal Constitucional de 11/11/2008, “o direito à tutela jurisdicional efetiva para defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, genericamente proclamado no artigo 20.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa (CRP), implica um direito a uma solução jurídica dos conflitos, a que se deve chegar em prazo razoável e com observância de garantias de imparcialidade e independência, possibilitando-se, designadamente, um correto funcionamento das regras do contraditório, em termos de cada uma das partes poder deduzir as suas razões (de facto e de direito), oferecer as suas provas, controlar as provas do adversário e discretear sobre o valor e resultados de umas e outras””.

31ª.

O princípio da igualdade das partes é fonte do subprincípio do contraditório e encontra consagração no artigo 4.º, do CPC, que dispõe que o tribunal deve assegurar, ao longo de todo o processo, um estatuto de igualdade substancial das partes, designadamente no exercício de faculdades, no uso de meios de defesa e na aplicação de cominações ou de sanções processuais.

32ª.

Por sua vez, o princípio da igualdade de armas impõe o equilíbrio entre as partes ao logo de todo o processo, na perspetiva de permitir às partes idênticas oportunidades para expor as suas razões e convencer o tribunal a proferir uma decisão que lhes seja favorável.

33ª.

Os réus tiveram oportunidade, na Contestação, de se pronunciar e defender impugnando, ainda que por negação, a versão dos autores no que diz respeito à interpretação do Testamento, mas optaram por não o fazer, optando por outro tipo de defesa que assentava exclusivamente na anulação do Testamento.

34ª.

Esta opção dos réus tem consequências processuais, em particular e a prevista no nº 2, do artº 574º, do CPC, postulando que “consideram-se admitidos por acordo os factos que não forem impugnados”.

35ª.

Assim sendo, e sem mais delongas, e porque os réus não impugnaram as razões de facto e de direito alegadas pelos autores sobre a interpretação da deixa testamentária, tem de se considerar errada a decisão do Tribunal “a quo” de dar como não provado o facto em apreciação e, assim sendo, tem de se dar como provado que: “Foi vontade de JJ legar aos Autores qualquer outra quantia monetária além da que se encontrava depositada nas contas bancárias cujo concreto número identificou no testamento referido em 2-, dos factos provados, concretamente, quaisquer quantias monetárias ou valores financeiros relativos a outras contas bancárias, de depósito à ordem ou a prazo, ou de contas de aplicações financeiras, produtos estruturados/participação em fundos, ainda que associadas à conta de depósito à ordem”.

1.2. Prova deste facto pela reapreciação da prova gravada e/ou por documento;


36ª.

Noutra perspetiva, mas sem conceder e por mera cautela de patrocínio, sempre se acrescenta que foi dado como provado, pelos depoimentos de duas testemunhas e pelas declarações de parte da ré HH, que a vontade da testadora é a alegada e defendida pelos autores.

37ª.

Entendeu o Tribunal a “quo” e consta na Sentença, na parte sobre a “Convicção do Tribunal”, que “No que se refere aos factos dados como não provados, resultaram os mesmos da ausência de prova da sua verificação, seja por as testemunhas ouvidas os não terem confirmado ou não o terem feito de uma forma considerada credível, inexistindo nos autos qualquer outro elemento probatório que os tenha comprovado, ...”.

38ª.

Não concordam os autores e ora recorrentes com este entendimento, não somente porque durante a audiência de julgamento testemunhas confirmaram este facto, assim como tal se extrai das declarações de parte da HH e, outrossim, existe um documento que tem força probatória para o dar como provado e se extrai das regras da experiência de que tem contas bancárias da existência de correlação entre todas as contas com a conta à ordem.

39ª.

Durante a audiência de julgamento foram ouvidas como testemunhas as duas pessoas que foram igualmente testemunhas do Testamento e, assim sendo, pessoas da confiança da testadora, a PP e a QQ.

40ª.

Além disso, prestou declarações de parte a ré HH, o que também releva não somente por ser parte mas, outrossim, por ter conhecimento de alguns factos relevantes para a interpretação da deixa testamentária em causa.

41ª.

No que diz respeito às testemunhas acima indicadas e também testemunhas do Testamento, a PP e a QQ, foram ouvidas pelo Tribunal no dia 17-10-2023, juntando-se em anexo as respetivas transcrições, feitas por empresa qualificada, que aqui se dão por conhecidas e reproduzidas.

42ª.

Assim, sobre o depoimento da testemunha PP, ouvida em Audiência de Julgamento no dia 17/10/2023, conforme “ACTA DE AUDIÊNCIA DE JULGAMENTO” (Refª Citius nº 93938826), ficamos a saber pelo depoimento que a mesma era amiga da Testadora, conforme transcrição acima feita.

43ª.

E sobre as contas na Banco 1... e o entendimento sobre a deixa testamentária, disse a PP que a testadora quis sempre saber junto da gestora da Banco 1... se o capital das aplicações estava “ligado” ou associado à conta à ordem e foi-lhe sempre respondido que sim, ou seja, a testadora sabia, quando o outorgou, que as contas das aplicações estavam “ligadas” ou associadas à conta à ordem.

44ª.

Esta testemunha tem conhecimento direto destes factos, porque além de ser amiga da Testadora e ter sido testemunha no Testamento, foi com a testadora à sucursal da Banco 1..., tudo conforme transcrição acima plasmada.

45ª.

Relativamente ao depoimento ou testemunho da QQ, ouvida em Audiência de Julgamento no dia 17/10/2023, conforme “ACTA DE AUDIÊNCIA DE JULGAMENTO” (Refª Citius nº 93938826), e que foi igualmente testemunha no Testamento, tem de se concluir que as declarações do Testamento foram lidas em voz alta, pausadamente, que foi feita a explicação de cada deixa testamentária, que a testadora não tinha dúvidas sobre essas mesmas deixas e que o Testamento era bastante completo e que o mesmo representava o que a testadora queria, conforme transcrição acima feita.

46ª.

No que diz respeito à apreciação e avaliação das Declarações de Parte da Ré HH, ouvida em Audiência de Julgamento no dia 15/10/2024, conforme “ACTA DE AUDIÊNCIA DE JULGAMENTO” (Refª Citius nº 96397784), tem primacialmente de se considerar que a mesma ré é jurista, como consta do início das suas declarações de parte, acima transcritas.

47ª.

E das declarações de parte fica claro que a Testadora não deixou nenhuma conta bancária a esta ré ou a qualquer um dos outros réus.

48ª.

Contudo, igualmente importante é a expressão da reação desta ré quando leu o testamento, após o falecimento da testadora, e tomou conhecimento que a conta bancária da Banco 1... tinha sido deixada aos autores, dizendo “a minha primeira reação foi: “Estava-se mesmo a ver. Impressionante! Mais uma vez isto a acontecer.”

49ª.

Ou seja, quando leu o testamento esta ré percebeu, perfeitamente, que a Testadora deixou a totalidade dos valores existentes na Banco 1... aos autores, daí ter ficado desencantada, surpreendida e impressionada.

50ª.

Aliás, no Testamento de 28/05/2009, que corresponde ao 9º Testamento (doc. 9 da Contestação), a Testadora deixava às rés HH e II, “o saldo total da sua conta bancária número ...00 ...00) da Banco 1...)”.

51ª.

Se este Testamento se tivesse mantido estas rés não defendiam, como não defendem e não consta da sua Contestação, que o “saldo total” não incluía todas as contas associadas à conta à ordem.

52ª.

Esta ré sabia que o saldo total da conta à ordem da Banco 1... incluía todos os valores depositados ou aplicados na Banco 1....

53ª.

Assim, tendo em consideração as transcrições acima feitas, dos dois depoimentos e das declarações de parte da ré HH, pode desde logo concluir-se o seguinte:

• que a testadora teve sempre a preocupação de saber que as contas bancárias da Banco 1..., das aplicações financeiras e outras, estavam associadas ou ligadas à conta à ordem;

• que a testadora não nomeou herdeiros testamentários e que a sua intenção foi de deixar a totalidade do património em legados;

• Que a ré HH sabia que a intenção da testadora era deixar o património todo em legados;

• Que a testadora não deixou nenhuma conta bancária ou valor pecuniário a qualquer um dos réus;

• Que a ré HH ficou impressionada quando leu o testamento e percebeu que a conta bancária da Banco 1... e todos os valores associados à mesma foi deixada em legado aos autores.


54ª.

Por outro lado, e no que diz respeito ao Banco 2..., foi solicitado judicialmente a esta instituição financeira um “Pedido de Informação” (Refª Citius nº 94010395, de 25/20/2023) para que informasse “se as aplicações que um titular de uma conta porventura tenha feito, se pressupõem a abertura de uma nova conta, por parte do titular ou se o regime no banco lhe atribui automaticamente um número diverso em parte e no momento do vencimento da aplicação, os dividendos e o capital resultante dessa aplicação onde são creditados”.

55ª.

Em resposta, o Banco 2... enviou documento para o Tribunal (Refª Citius nº 6946574, de 12/12/2024), onde consta o seguinte:

“1 – Todas as aplicações financeiras têm uma conta de Depósitos à Ordem de suporte;

2 – Toda a movimentação decorrente das aplicações financeiras, está refletida na respetiva conta Depósitos à Ordem de suporte, ...”


56ª.

Esta resposta do Banco 2... corresponde ao mesmo regime da Banco 1..., onde as contas das aplicações estão associadas à Conta à Ordem, que lhes serve de suporte, porquanto é nesta que caem os juros remuneratórios e, no final das aplicações, o capital das mesmas vai para a Conta à Ordem.

57ª.

Na Banco 1... não é possível fazer aplicações financeiras ou outras sem ter conta bancária à ordem, de onde provêm o dinheiro para essas aplicações e para onde vai o dinheiro quando as mesmas terminam ou são desmobilizadas.

58ª.

Assim sendo, ou seja, se as contas das aplicações financeiras estão associadas à Conta à Ordem, que lhes serve de suporte, então, a relação entre estas contas é inequívoca e funcionam como se o capital que consta de uma e das outras fosse um património único.

59ª.

Por força destes testemunhos e das declarações de parte, do documento do Banco 2... e do conhecimento que se tem das contas bancárias, tem de se dar como provado que: “Foi vontade de JJ legar aos Autores qualquer outra quantia monetária além da que se encontrava depositada nas contas bancárias cujo concreto número identificou no testamento referido em 2-, dos factos provados, concretamente, quaisquer quantias monetárias ou valores financeiros relativos a outras contas bancárias, de depósito à ordem ou a prazo, ou de contas de aplicações financeiras, produtos estruturados/participação em fundos, ainda que associadas à conta de depósito à ordem”.
1.2. Prova deste facto pela interpretação do artº 2187º, do Código Civil, e da deixa testamentária

60ª.

Ainda que não se aceite o acima alegado sobre o ónus da impugnação e sobre a prova produzida em julgamento, o que não se concede, tem então de se apurar a intenção da testadora, enquanto matéria de facto, através da interpretação da lei e do Testamento.

61ª.

Porquanto “constitui matéria de facto da exclusiva competência das instâncias determinar a intenção do testador” (Assento de 19/10/1954, Diário do Governo, 1ª Série, nº 247, de 5/11).

62ª.

Assim, neste segmento do recurso vai apreciar-se a intenção da testadora, ao abrigo do previsto no artº 2187º, do CC, em particular o que seja o “mínimo de correspondência” previsto no seu nº 2, e ainda o que seja o “contexto do testamento”, previsto no seu nº 1, com aplicação e interpretação da deixa testamentária ao abrigo da interpretação desta norma legal.

63ª.

Como é doutrina e jurisprudência constante e uniforme o Código Civil consagra uma interpretação subjetivista dos testamentos (neste sentido veja-se entre outros o Ac. do STJ, de 13/01/2005, Processo 04B3607, em www.dgsi.pt).

64ª.

Na interpretação de um testamento tem de se considerar, primacialmente, a vontade subjetiva do testador, mas, essa interpretação tem de ter um sentido mínimo de correspondência com o texto da declaração, por força do previsto no nº 2, do artº 2187º, do CC, porque “ não pode interpretar-se a vontade do testador com um sentido que não tenha no texto do testamento um mínimo de correspondência, ainda que imperfeitamente expressa” (Ac. do STJ de 13/01/2005, Proc. Nº 04B3607).

65ª.

Acresce que, citando o Ac. do STJ, de 24-02-2011, Proc. Nº 1611/06.6TBGDM.PL.S1, “a doutrina e a jurisprudência têm assinalado, que do que se trata é de um mínimo de correspondência. A lei (artigo 2187º, nº 2 do CC) basta-se com uma qualquer correspondência. O que é fundamental é o respeito pela vontade do testador. Esta, uma vez determinada, só não produzirá efeitos se de todo em todo não tiver nenhum ponto de contacto com o contexto do testamento” (Ac. do STJ, de 24-02-2011, Proc. Nº 1611/06.6TBGDM.PL.S1).

66ª.

Assim, essa “intenção só será considerada irrelevante se não encontrar nenhum ponto de apoio no aludido contexto» (ver o mesmo Acórdão, em citação do Ac. do STJ de 03-12-1997).

67ª.

E essa correspondência extrai-se do facto de haver ligação entre todas as contas bancárias, através do número 3164, e da expressão saldo total usada no Testamento.

68ª.

Na verdade, há um mínimo de correspondência entre a conta bancária nº ...00 e as contas nº ...20, ...34 e ...44.

69ª.

Todas as contas acima identificadas têm o mesmo número identificador da conta à ordem, ou seja, todas as contas têm o número de conta “3164”, que é a correspondência entre todas.

70ª.

A Conta à Ordem por sua vez termina em 500, a conta a Prazo termina em 220, a conta dos Produtos Estruturados termina em 434 e a conta dos Valores Mobiliários termina em 844, que são números identificadores do tipo de conta.

71ª.

Como bem questiona o STJ, em douto Acórdão proferido para uma situação análoga, “se é o número completo identificador da conta à ordem que consta do testamento, como defender que a vontade da testadora (...) não tem no contexto do testamento um mínimo de correspondência ainda que imperfeitamente expressa?” (Ac. STJ, de 24-02-2011, Proc. nº 1611/06.6TBGDM.PL.S1, em www.dgsi.pt).

72ª.

Em consequência, há um denominador comum ou uma correspondência entre todas as contas, o número de conta 3164, que exprime uma associação ou ligação entre todas as contas.

73ª.

Por outro lado, quando a testadora declara que deixa o “saldo total” de uma conta bancária sedeada num determinado Banco, tem de se entender que esse saldo total abrange todos os valores pecuniários e financeiros associados a essa conta.

74ª.

Na verdade, a testadora declarou “o saldo total da sua conta bancária” e não o saldo da sua conta bancária à ordem.

75ª.

Como consta deste Acórdão do STJ, de 24-02-2011 e em citação, tem de se considerar que o Testamento ao referir o total do valor do saldo, “indicia uma realidade composta, e não apenas o saldo da conta, como seria normal se se referisse ao montante depositado numa conta”.

76ª.

A testadora previu o saldo total, o que implica mais do que o saldo específico da conta à ordem, porque se trata de um saldo múltiplo ou complexo, incluindo os depósitos a prazo, as aplicações e outras subscrições financeiras foram feitos com dinheiro dessa conta à ordem e, quando desmobilizados ou vendidos os respetivos produtos ou aplicações, vão voltar para essa conta à ordem.

77ª.

A vontade da testadora, ainda que possamos considerar imperfeitamente expressa, tem um mínimo de correspondência com a vontade de deixar aos autores o saldo de todos os valores financeiros da sua conta bancária da Banco 1..., incluindo o depósito a prazo, os Produtos Estruturados e os Valores Mobiliários, que se extrai do facto de haver um número de conta bancária que é comum a todas as contas e da expressão “saldo total” utilizada no testamento.

78ª.

Em consequência, e pela interpretação do nº 2, do artº 2187º, do CC, tem de se concluir que há um mínimo de correspondência entre todas as contas bancárias da Banco 1..., como aliás consta do Ac. do STJ, de 13-01-2005, já citado.

79ª.

Acresce que, para a interpretação da deixa legatária tem também de se considerar o contexto do testamento, ou seja, a totalidade do mesmo, como previsto no nº 1, do artº 2187º, do CC.

80ª.

Pela leitura do testamento temos de concluir que o mesmo só contém legados, é bastante completo no que diz respeito ao património da testadora, e que não foram instituídos herdeiros testamentários.

81ª.

Assim, deixou em legados todos os seus bens imóveis, todos os seus bens móveis de relevo, os totais das suas contas bancárias no Banco 3..., do Banco 4..., do Banco 2..., do Banco 5... e, claramente, também da Banco 1....

82ª.

Com a particularidade de, relativamente às contas bancárias, o fazer sempre por referência às contas à ordem.

83ª.

O que denuncia ou faz presumir que a testadora quis prever no seu testamento e deixar todos os seus bens relevantes em legados, como bem declarou e entendeu a própria ré HH nas suas declarações de parte.

84ª.

A Conta à Ordem da Banco 1... nº ...00 tinha um saldo, à data do óbito, de 19.313.41 €, e o depósito a prazo e os produtos estruturados tinham um valor de 320.000,00 €.

85ª.

Considerando os valores totais da conta da Banco 1..., não é crível que a testadora não previsse a atribuição em legado de mais de 320.000,00 €.

86ª.

Não faz sentido que uma pessoa “com um nível cultural acima da média” e com “elevada literacia financeira” (nas palavras do Tribunal “a quo”), tenha atribuído aos autores em legado um montante mais reduzido e não tenha previsto deixar em legado valores muito mais elevados.

87ª.

Foi dado como provado pelo Tribunal “a quo”, no respetivo facto 8 da Sentença, que “JJ era uma pessoa com um nível cultural acima da média, esclarecida e opinativa, que discutia e ponderava as opções relativas a aplicações financeiras que ia fazendo, tendo perfeita noção do seu património e dos valores que se encontravam depositados e aplicados em produtos financeiros nas instituições bancárias”.

88ª.

Se a testadora tinha noção do seu património e dos valores depositados, cabe perguntar porque é que não deixou um montante superior a 320.000,00 € em legado no seu testamento?

89ª.

Não faz sentido que uma pessoa tão esclarecida não tenha previsto estes valores no seu testamento, pelo que, tem de se considerar que, na realidade, o fez com a deixa testamentária em apreciação.

90ª.

Acresce que, a testadora não institui legatários todos os réus, não deixou dinheiro em legado a nenhum dos réus e não fez nenhuma deixa testamentária pela qual nomeou herdeiros testamentários.

91ª.

A única sobrinha-neta que foi contemplada com legados foi a ré HH, que foi ouvida em Tribunal, mas, mesmo essa, tinha uma relação atribulada com a testadora, como se constata da leitura da Sentença da ação de anulação e das suas declarações juntas com a Transcrição.

92ª.

Todos os outros réus não tinham qualquer relação com a testadora, em particular os réus DD (ou os seus habilitados), que nunca constaram em nenhum dos 12 testamentos outorgados pela testadora.

93ª.

Assim, com a interpretação do Testamento feita pelo Tribunal “a quo”, o 1º, 2º, 3º, 4º e 6º réus, ou os seus descendentes (devido a habilitações), passam a ser contemplados como se fossem herdeiros legais, com um valor superior a 320.000,00 €.

94ª.

Desta forma, todos estes réus recebem pela janela o que não lhes foi concedido receber pela porta, passe a expressão, tudo por força de uma interpretação do testamento que nada tem a ver com o contexto do mesmo, nem sequer com o seu texto.

95ª.

Por outro lado, tem de se considerar que a partir do 8º Testamento, de 15/09/2005 (doc. 8 da Contestação), a testadora deixou de instituir herdeiros testamentários e que o último Testamento em que instituiu herdeiros testamentários foi o de 18/10/2000 (doc. 7 da Contestação) e, nesse testamento, os herdeiros instituídos foram exatamente os autores mais a KK (e não os réus).

96ª.

Como consta do Acórdão do STJ, “deve ter-se presente que quando a lei (artigo 2187º do CC) fala em contexto do testamento e não em texto do testamento, isto só poderá́ querer dizer que a interpretação do testamento não pode ficar-se por uma interpretação de cada palavra, de cada disposição, isoladamente consideradas, mas que todas as disposições têm de ser analisadas vendo o testamento no seu todo”, ao contrário do defendido pelo Tribunal “a quo”.

97ª.

Assim sendo, tem de se concluir que a intenção da testadora foi deixar a totalidade do património relevante em legados.

98ª.

Ainda no que respeita a este facto em concreto, ou seja, à definição da vontade da testadora, tem de se considerar o nº 3, do artº 8º, do código Civil, que com a devida vénia se reproduz: “3. Nas decisões que proferir, o julgador terá em consideração todos os casos que mereçam tratamento análogo, a fim de obter uma interpretação e aplicação uniformes do direito”.

99ª.

Esta é uma norma de direito material e não de direito processual que, salvo melhor opinião, prevê que as decisões a proferir sejam sempre uniformes na interpretação das normas legais e em todos os casos análogos e, consequentemente, segundo se entende, devem as decisões a proferir ter em consideração decisões anteriormente proferidas não só pelo próprio Tribunal, mas, outrossim, por instâncias superiores.

100ª.

Ora, como acima se alegou, o Supremo Tribunal de Justiça, no que diz respeito à interpretação do artº 2187º, do CC, fez uma interpretação do que seja “um mínimo de correspondência” no contexto do testamento (Ac. do STJ de 13-01-2005, acima indicado).

101ª.

E esse entendimento do STJ indica que “a doutrina e a jurisprudência têm assinalado, que do que se trata é de um mínimo de correspondência. A lei (artigo 2187º, nº 2 do CC) basta-se com uma qualquer correspondência”.

102ª.

Além disso, a interpretação do que seja o “saldo total” também foi decidida pelo mesmo Acórdão do STJ, no sentido de que “indicia uma realidade composta, e não apenas o saldo da conta, como seria normal se se referisse ao montante depositado numa conta”.

103ª.

Seja pelo mínimo de correspondência, pela letra do testamento ou pelo contexto do testamento, é manifesto que a vontade da testadora foi deixar aos autores o saldo total de todos os valores da Banco 1..., incluindo todas as contas que estão associadas à conta à Ordem nº ...00, ou seja, a conta a prazo, as contas com produtos estruturados e a conta dos produtos financeiros.

104ª.

Face ao acima alegado, e em qualquer circunstância, deve ser dado como provado que: “Foi vontade de JJ legar aos Autores qualquer outra quantia monetária além da que se encontrava depositada nas contas bancárias cujo concreto número identificou no testamento referido em 2-, dos factos provados, concretamente, quaisquer quantias monetárias ou valores financeiros relativos a outras contas bancárias, de depósito à ordem ou a prazo, ou de contas de aplicações financeiras, produtos estruturados/participação em fundos, ainda que associadas à conta de depósito à ordem”.


***

Os réus DD, FF, NN e MM contra-alegaram, concluindo nos seguintes termos:

1. A matéria alegada nos artigos 11º, 24º e 25º da petição inicial foi impugnada, nomeadamente, nos artigos 4º, 83º, 84º, 85º e 102º da contestação, pelo que não faz qualquer sentido falar em falta de impugnação da matéria de facto e em admissão por acordo.

2. Desde a entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 329/95, de 12 de dezembro, que deixou de haver obrigatoriedade de impugnação especificada, razão pela qual não tem pertinência a tese dos Recorrentes a este propósito.

3. Diversamente do que é sustentado pelos Recorrentes, no direito processual, não existe a figura da impugnação da matéria de direito.

4. A não admissão da intervenção principal provocada da Banco 1... decorreu do facto de esta não ser titular de um direito próprio, paralelo ao dos Autores ou dos Réus, nada mais podendo ser inferido de tal decisão.

5. As declarações da testemunha PP são insusceptíveis de fundamentar qualquer alteração da matéria de facto, conforme o referido pelo Tribunal a quo, uma vez que “foi ostensiva a falta de isenção e intenção de favorecer os Autores dos autos principais, com prejuízo para a espontaneidade do depoimento e para a verdade”.

6. A testemunha QQ limitou-se a relatar que o testamento foi lido em voz alta e que, na sua opinião, o mesmo exprime a vontade da testadora.

7. As declarações da Ré HH consubstanciam uma mera opinião de que não havendo herdeiros nomeados, a testadora pretendeu distribuir todo o seu património em legados. Aliás, esta interpretação não tem correspondência com a realidade, já que, além dos bens descritos no testamento, a testadora era, ainda, titular de trinta e sete contas bancárias em diversas instituições financeiras.

8. O número da conta bancária indicado na deixa testamentária corresponde a uma conta de depósitos à ordem, não sendo feita qualquer alusão, no contexto do testamento, às outras contas bancárias sediadas na Banco 1..., nomeadamente a prazo, de produtos estruturados ou valores mobiliários, que são realidades diversas e independentes entre si.

9. A testadora utilizou a expressão “saldo total” querendo referir-se à totalidade do montante existente na conta que expressamente indicou.

10. Tendo ficado provado que a testadora era uma pessoa com um nível cultural acima da média, esclarecida e opinativa quanto a questões financeiras e patrimoniais, caso pretendesse legar aos Recorrentes outros valores para além dos constantes na conta à ordem, tê-lo-ia manifestado de forma clara e objectiva, bastando para tal instituí-los seus herdeiros universais ou herdeiros do remanescente da herança ou identificando, expressamente, os números das contas bancárias pretendidas.

11. Quando a testadora pretendeu deixar todos os valores existentes numa concreta entidade bancária, o que ocorreu nos testamentos que outorgou em 12.01.1999, em 18.10.2000 e em 15.09.2005, utilizou sempre a expressão “lega o dinheiro que à sua morte se encontrar depositado” num determinado banco.”.


***

Os réus HH, II e GG

 também apresentaram contra-alegações, concluindo nos seguintes moldes:

a) Existiu impugnação na contestação, desde logo nos artigos 4º, 83º, 84º, 85º e 102º da contestação.

b) A obrigatoriedade da impugnação especificada deixou de vigorar com as alterações decorrentes do Decreto-Lei nº 329/95 de 12 de dezembro.

c) As declarações de PP apenas são aptas a fazer prova do facto 9- dos factos provados.

d) A testemunha QQ apenas atesta que no testamento a falecida testou exactamente o que pretendia, resultando a sua vontade expressa do mesmo.

e) E das declarações de HH resultou que a testadora sabia do estado dos bens imóveis que não conseguiam ser arrendados sem sofrerem remodelações totais e sabia que a sobrinha não tinha dinheiro para fazer essas obras, pediu-lhe confiança com a referência de que na Banco 1... havia lá muito dinheiro. Não tendo legado a conta à Ordem, alvo deste processo, apenas se poderia estar a referir às demais contas (a prazo e de instrumentos financeiros) existentes na Banco 1

f) A testadora lega concretamente o saldo total de contas à Ordem, como também o saldo total da conta a Prazo número ...97 da Banco 6..., conforme se pode apurar do Documento Base de Dados de Contas do Banco de Portugal, o que significa que a testadora legou o concreto saldo total da conta que expressamente identificou.

g) Foi provado e não colocado em causa pelos Recorrentes que a testadora era pessoa com um nível cultural acima da média, esclarecida e opinativa quanto a questões financeiras e patrimoniais, e se quisesse legar valores constantes de outras contas bancárias, teria identificado expressamente o número dessas contas.

h) Dos onze testamentos que a testadora celebrou entre 30.12.1964 e 6.07.2014 a testadora utilizou expressões como: “Lega o dinheiro que à sua morte se encontrar depositado no Banco 7... em ... (...)” e “lega o dinheiro que se encontrar depositado em seu nome à data da sua morte no Banco 5..., em ...”, tal conjugação com as utilizadas no último testamento contextualiza as expressões, levando a que não se possa de todo concluir que a testadora pretendesse atribuir em legado todo o dinheiro que se encontrava depositado na Banco 1... e/ou aplicado em contas de investimento em, instrumentos financeiros nestas instituições bancárias.”.


***

Por não se conformarem, igualmente, com a sentença em apreço, as autoras KK e AA interpuseram o competente recurso, no qual formulam as seguintes conclusões:

1.ª - A douta sentença recorrida, ao ter julgado improcedente a acção (autos apensos) intentada pelas ora recorrentes, absolvendo os RR. Dos pedidos, incorreu em erro de julgamento, não só da matéria de facto (nos concretos pontos que se impugnam), mas também da matéria de direito, nos termos que infra se explicitam. Assim,

2.ª - A douta sentença recorrida incorreu em erro de julgamento da matéria de facto ao ter dado como não provados os seguintes factos:

- Foi vontade de JJ legar aos Autores qualquer outra quantia monetária além da que se encontrava depositava nas contas bancárias cujo concreto número identificou no testamento referido em 2-, dos factos provados, concretamente, quaisquer quantias monetárias ou valores financeiros relativos a outras contas bancárias, de depósito à ordem ou a prazo, ou de contas de aplicações financeiras, produtos estruturados/participação em fundos, ainda que associadas à conta de depósitos à ordem;

- Que no dia 7.07.2014 JJ era titular de uma única conta no Banco 2..., em ... e que esta tivesse o número ...01.

3.ª - Os concretos factos referidos na conclusão anterior deviam ter sido julgados como provados.

4.ª - Impunha tal decisão, desde logo, a circunstância de os RR. não terem impugnado tais factos (alegados pelas AA. na petição inicial). Com efeito,

5.ª - Bastará atentar nos pontos 90.º e 91.º da contestação oferecida pelos RR. (contestação dos autos apensados) para se concluir que o factos alegados pelas AA. não foram impugnados. Com efeito,

6.ª - Apesar de as AA. terem alegado que a testadora, ao dispor que o ‘saldo total’ da conta à ordem com o n.º ...01 de que era titular no Banco 2... em ..., pretendeu e quis deixar-lhes o saldo em dinheiro e os valores das aplicações financeiras efectuadas no âmbito dessa conta, e que à data do testamento a testadora era titular apenas dessa conta na referida instituição bancária, os RR, não questionaram/impugnaram tal factualidade.

7.ª - Na verdade, nos pontos 90.º e 91.º da contestação oferecida (contestação dos autos apensados), os RR. limitam-se a alegar que a questão decidenda se reporta ao vício da vontade da testadora aquando da outorga do testamento, e menos saber se existe um mínimo de correspondência entre o texto do testamento e a vontade declarada pela testadora no que à conta dos autos respeita.

8.ª - Por outro lado, os RR., apesar de devidamente notificados para, querendo, exercerem o contraditório, também não impugnaram o documento e o requerimento que as AA./recorrentes apresentaram em 04/07/2019 (ref.ª CITIUS 364601) nos autos apensados, no qual alegaram que a testadora, ao ter-lhes legado o ‘saldo total’ da conta n.º...01 de que era titular no Banco 2... em ..., lhes deixou, além do saldo contabilístico no valor de € 759,22, a aplicação financeira denominada ‘SUP. AFORRO PREMIO B’ no valor de € 15.201,21 e a aplicação financeira denominada ‘FEI PREMIUM JUL2012’ no valor de € 40.309,60.

9.ª - Os RR., ao não terem impugnado os factos alegados pelas AA., os mesmos foram admitidos por acordo, e deviam ter sido julgados como provados, atento o disposto no art.º 574.º, n.º 2 do C.P.C. (confissão tácita ou ficta). Acresce que,

10.ª - Além da admissão por acordo dos factos impugnados (confissão tácita ou ficta referida), a valoração conjunta e articulada dos depoimentos da testemunha PP (prestado na audiência de julgamento no dia 17/10/2023 – gravação das 10:15:03 às 11:06:30 – passagens: 00:04:18 a 00:04:42; 00:09:33 a 00:11:23; 00:14:22 a 00:15:55) e da testemunha QQ (prestado na audiência de julgamento no dia 17/10/2023 – gravação das 11:07:54 às 11:37:17 – passagem: 00:12:25 a 00:13:21), com a informação prestada pelo Banco 2... através do documento junto aos autos (ref.ª ‘CITIUS’ 6946574, de 12/12/2024), impunham igualmente que a factualidade impugnada fosse dada como provada.

11.ª - Com efeito, do referido documento junto aos autos pelo Banco 2..., consta: ‘Todas as aplicações financeiras têm uma conta de Depósitos à Ordem de suporte; / Toda a movimentação decorrente das aplicações financeiras, está refletida na respetiva conta Depósitos à Ordem de suporte (…)’.

12.ª - A conta à ordem de suporte existente no Banco 2..., em ..., é aquela a que as AA. aludiram no seu articulado (conta n.º...01), tendo as referidas aplicações financeiras sido realizadas no âmbito desta conta de suporte, e sendo nela que são depositados/creditados os proventos remuneratórios.

13.ª - Também estes meios probatórios, valorados de forma crítica e articulada, impunham que a factualidade impugnada fosse dada como provada, se outro fundamento não existisse.

14.ª - Deverá, neste âmbito, ser revogada a douta decisão recorrida, e darem-se como provados os seguintes factos:

- Foi vontade de JJ legar aos Autores qualquer outra quantia monetária além da que se encontrava depositava nas contas bancárias cujo concreto número identificou no testamento referido em 2-, dos factos provados, concretamente, quaisquer quantias monetárias ou valores financeiros relativos a outras contas bancárias, de depósito à ordem ou a prazo, ou de contas de aplicações financeiras, produtos estruturados/participação em fundos, ainda que associadas à conta de depósitos à ordem;

- Que no dia 7.07.2014 JJ era titular de uma única conta no Banco 2..., em ... e que esta tivesse o número ...01.

15.ª - Independentemente da procedência da impugnação da matéria de facto, a douta decisão recorrida, ao ter julgado improcedente a acção e absolvido os RR. dos pedidos formulados pelas AA. (nos autos apensados), também incorreu em erro de interpretação do art.º 2187.º do C.C., preceito que fixa o critério ou regra da interpretação dos testamentos.

16.ª - É pacífico o entendimento segundo o qual o art.º 2187.º do C.C. acolhe uma orientação subjectivista na interpretação do testamento, o que é mesmo que dizer que o negócio jurídico de disposição testamentária deve valer em conformidade com a vontade real do testador, de acordo com aquilo que ele verdadeiramente quis.

17.ª - Quando confrontado com disposição que, em abstracto, comporte a possibilidade de valer com mais de um sentido, impõe-se ao intérprete a tarefa de averiguar, com recurso a todos os meios disponíveis, a efectiva vontade do testador. Assim,

18.ª - A interpretação dos testamentos deve fazer-se, em primeira linha, pelo apuramento da vontade real e contemporânea do testador, usando para essa averiguação, simultaneamente, o contexto do testamento e a prova complementar ou extrínseca que sobre isso puder reunir-se. E,

19.ª - Apurado (com esses elementos probatórios) aquilo que efectivamente estava no pensamento do testador, sendo o testamento um acto formal ou solene, para que a vontade real ou verdadeira assim apurada possa ser atendida, necessário se torna que tenha, no contexto testamentário, um mínimo de correspondência, ainda que imperfeitamente expressa.

20.ª - Neste contexto saliente-se desde logo a circunstância de a autora do testamento ter disposto de todo o seu património (bens imóveis, móveis e valores) através dos legados que efectuou no testamento de 07/07/2014.

21.ª - Ao ter disposto da totalidade do seu património (nos termos que melhor constam do testamento), a testadora pretendeu e quis, por um lado, beneficiar exclusivamente as pessoas e instituições que indicou no seu testamento e, por outro, excluir como beneficiários ‘mortis causa’ dos seus bens quaisquer dos seus herdeiros legítimos (os ora RR.).

22.ª - Na verdade, se a vontade real da testadora fosse a de beneficiar os seus herdeiros legítimos, não tinha disposto da totalidade do seu património, e deixaria funcionar, ou que fossem aplicadas, as regras supletivas da sucessão legítima.

23.ª - Qualquer interpretação do testamento que aponte no sentido de fazer funcionar as regras da sucessão legítima, equivale a contrariar a vontade real e efectiva da testadora, pois que os bens que ela destinou a favor dos legatários, reverteriam, a final, para pessoas diversas que a testadora manifestamente não quis contemplar (os RR., enquanto herdeiros legítimos).

24.ª - Neste contexto, é manifesto que a vontade real da testadora, aquilo que ela verdadeiramente quis ao ter legado às AA. o ‘saldo total’ da conta n.º...01 de que era titular no Banco 2... em ..., foi deixar-lhes não só o saldo em dinheiro, como os valores das aplicações financeiras e respectivos rendimentos, realizadas no âmbito da referida conta de suporte, e só esta interpretação tem um mínimo de correspondência com o testamento.

25.ª - Assim, seja pelo mínimo de correspondência, pela letra do testamento, ou pelo contexto do testamento, resulta evidenciado à saciedade que a vontade real da testadora ao ter legado o ‘saldo total’ da conta de que era titular no Banco 2... em ..., referida na conclusão anterior, foi a de que pretendeu e quis deixar às AA./recorrentes o saldo em dinheiro, e os valores de todas as aplicações financeiras e respectivos rendimentos, realizadas no âmbito da referida conta.

26.ª - Em consequência, deverá ser revogada a douta sentença recorrida e substituída por douto acórdão que declare que a testadora legou às AA./recorrentes não só o saldo em dinheiro, como também os valores de todas as aplicações financeiras e respectivos rendimentos, realizadas no âmbito da referida conta, por ser essa interpretação consentânea com o disposto no art.º 2187.º do C.C., e a única que tem um mínimo de correspondência entre a vontade declarada no testamento e a vontade real da testadora, e a que melhor se coaduna com o contexto do testamento.

27.ª - Ao ter decidido de modo diverso, a douta sentença recorrida incorreu em erro de interpretação e aplicação do art.º 2187.º do C.C., o qual deverá ser interpretado nos termos preditos.”.


***

Os réus HH, II e GG apresentaram contra-alegações, concluindo da seguinte forma:

a) Existiu impugnação na contestação, desde logo nos artigos 4º, 83º, 84º, 85º e 102º da contestação.

b) A obrigatoriedade da impugnação especificada deixou de vigorar com as alterações decorrentes do Decreto-Lei nº 329/95 de 12 de dezembro.

c) As declarações de PP apenas são aptas a fazer prova do facto 9- dos factos provados.

d) A testemunha QQ apenas atesta que no testamento a falecida testou exactamente o que pretendia, resultando a sua vontade expressa do mesmo.

e) A testadora lega concretamente o saldo total de contas à Ordem, como também o saldo total da conta a Prazo número ...97 da Banco 6..., conforme se pode apurar do Documento Base de Dados de Contas do Banco de Portugal, o que significa que a testadora legou o concreto saldo total da conta que expressamente identificou.

f) Foi provado e não colocado em causa pelos Recorrentes que a testadora era pessoa com um nível cultural acima da média, esclarecida e opinativa quanto a questões financeiras e patrimoniais, e se quisesse legar valores constantes de outras contas bancárias, teria identificado expressamente o número dessas contas.

g) Dos onze testamentos que a testadora celebrou entre 30.12.1964 e 6.07.2014 a testadora utilizou expressões como: “Lega o dinheiro que à sua morte se encontrar depositado no Banco 7... em ... (...)” e “lega o dinheiro que se encontrar depositado em seu nome à data da sua morte no Banco 5..., em ...”, tal conjugação com as utilizadas no último testamento contextualiza as expressões, levando a que não se possa de todo concluir que a testadora pretendesse atribuir em legado todo o dinheiro que se encontrava depositado na Banco 1... e/ou aplicado em contas de investimento em, instrumentos financeiros nestas instituições bancárias.”.


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Os réus DD, FF, NN e RR apresentaram, de igual forma, contra-alegações, concluindo nos seguintes moldes:

1. A matéria alegada nos artigos 6º, 8º, 10º a 13º, 16º, 19º, 21º, 22º e 25º da petição inicial foi impugnada, nomeadamente, nos artigos 12º, 13º, 18º, 91º e 92º da contestação, pelo que não faz qualquer sentido falar em falta de impugnação da matéria de facto e em admissão por acordo.

2. Desde a entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 329/95, de 12 de dezembro, que deixou de haver obrigatoriedade de impugnação especificada, razão pela qual não tem pertinência a tese dos Recorrentes a este propósito.

3. A falta de impugnação do requerimento e do documento apresentado pelas recorrentes em 04.07.2019 não tem como consequência a admissão de qualquer facto.

4. As declarações da testemunha PP são insusceptíveis de fundamentar qualquer alteração da matéria de facto, conforme o referido pelo Tribunal a quo, uma vez que “foi ostensiva a falta de isenção e intenção de favorecer os Autores (...) com prejuízo para a espontaneidade do depoimento e para a verdade”.

5. A testemunha QQ limitou-se a relatar que o testamento foi lido em voz alta e que, na sua opinião, o mesmo exprime a vontade da testadora.

6. O número da conta bancária indicado na deixa testamentária não coincide com qualquer conta na titularidade da testadora, pelo que não é possível aferir o mínimo de correspondência entre a vontade desta e o contexto do testamento.

7. À data do testamento, a testadora era titular de treze contas no Banco 2... (nove delas à ordem e quatro de instrumentos financeiros), não tendo resultado provada a localização das agências onde se encontravam sediadas as referidas contas.

8. Ainda que se entendesse que a testadora ao indicar o n.º de conta ...51 pretendia aludir ao n.º ...01, ao utilizar a expressão “saldo total” quis referir-se somente à totalidade do montante existente na conta que expressamente indicou.

9. Tendo ficado provado que a testadora era uma pessoa com um nível cultural acima da média, esclarecida e opinativa quanto a questões financeiras e patrimoniais, caso pretendesse legar às Recorrentes os valores que aqui se discutem, tê-lo-ia manifestado de forma clara e objectiva, bastando para tal instituí-las suas herdeiras universais ou herdeiras do remanescente da herança ou identificando, expressamente, os números das contas bancárias pretendidas.

10. Quando a testadora pretendeu deixar todos os valores existentes numa concreta entidade bancária, o que ocorreu nos testamentos que outorgou em 12.01.1999, em 18.10.2000 e em 15.09.2005, utilizou sempre a expressão “lega o dinheiro que à sua morte se encontrar depositado” num determinado banco.

11. As contas a prazo, de produtos estruturados e de valores mobiliários são realidades autónomas da conta à ordem, tendo números distintos.

12. À data do testamento e para além dos bens descritos neste, a testadora era, ainda, titular de trinta e sete contas bancárias em diversas instituições financeiras.”.


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Questões objecto do recurso:

- Alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto;

- Enquadramento jurídico da causa, face à factualidade que vier a ser julgada relevante.


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II – FUNDAMENTOS.

2.1. Factos provados.

A 1ª instância considerou assentes os seguintes factos:

1- Entre os dias 30 de Dezembro de 1964 e 6 de Julho de 2014, JJ celebrou onze testamentos, juntos a fls. 75 a 96v, dos autos principais – docs. 1 a 11, da contestação – cujo conteúdo se dá aqui por integralmente reproduzido;

2- No dia 7 de Julho de 2014, JJ, declarou, por escrito, perante notário, que, revogando qualquer testamento anteriormente feito, faz testamento da seguinte forma: «(…) lega a KK, solteira, maior, natural de ..., ..., residente com a testadora, o usufruto vitalício da sua casa de habitação e propriedade circundante, com todos os seus edifícios e anexos, sitos em ..., ..., inscritos na matriz Urbana sob o art.º ...82.º e Rústica ...28.... (…) lega a AA, divorciada, residente na Av. ..., ..., CC, casado, residente na Av. ..., ... e BB, casado, residente na Av. ..., ..., a nua propriedade da acima casa de habitação e propriedade circundante, com todos os edifícios e anexos, sitos em ..., ..., em partes iguais, que se converterá em propriedade plena à morte de KK.

(…) lega a KK, residente na Rua ..., ..., ..., ..., AA, residente em ..., CC, residente em ... e BB, residente em ..., em partes iguais, todos os seus bens móveis, nomeadamente o recheio da casa, joias, ouro e mobiliário.

(…) lega também a AA, residente em ..., CC, residente em ... e BB, residente em ..., o saldo total da sua conta bancária número ...00 da Banco 1....

(…) lega à sua sobrinha-neta SS, filha de HH as frações autónomas correspondentes ao quinto andar esquerdo e frente no prédio urbano sito na Av. ..., em ..., inscrito na matriz predial urbana sob o art.º ...41, da freguesia .... À referida HH, lega todas as restantes frações autónomas que lhe pertencem no mesmo prédio, à excepção das Frações F, G e AA.

(…) lega à sua afilhada TT, residente em ..., a propriedade plena da fracção autónoma designada pelas letras AA, correspondente ao sexto andar esquerdo e o abrigo para automóveis número cinco, do prédio sito na Av. ..., em ..., inscrito na matriz predial urbana sob o art.º ...41, da freguesia ....

(…) lega ao seu sobrinho bisneto UU, filho de II, a propriedade plena das fracções autónomas designadas pelas letras F e G, correspondente ao rés-do-chão esquerdo e rés-do-chão frente do prédio sito na Av. ..., em ..., inscrito na matriz predial urbana sob o art.º ...41, da freguesia ....

(…) lega o saldo total da sua conta bancária número ...97 da Banco 6....

(…) lega à Casa do Povo de ..., associação com sede na Rua ..., ..., ... e o N.I.P.C. ...70, única e exclusivamente para efeitos de construção e/ou manutenção e sustento do lar de idosos, caso já esteja construído ou em construção, todos os seus prédios rústicos sitos no concelho ..., à excepção daqueles que constituem a propriedade circundante da sua casa de habitação, e saldo total das contas números:

a) 0...38, do Banco 4..., em ...;

b) 0...00 um, do Banco 2..., em ...;

(…) lega à Capela ... o saldo total da sua conta bancária número 1...00 um do Banco 5....

(…) deixa o jazigo da Família VV, situado no cemitério municipal do ..., à sua sobrinha HH, tendo os já referidos AA, KK, CC e BB o encargo de tomar conta dele e o manter cuidado e asseado.

(…) nomeia suas testamenteiras as legatárias KK e AA, a quem deixa o saldo total da conta número 0...51 do Banco 2... em ..., o qual deve ser gasto exclusivamente para cumprimento das seguintes obrigações que lhes atribui: cuidar do seu funeral; zelar pela conservação e arranjo do Jazigo da família VV, enquanto para tal tiverem capacidade física e financeira; velar pelo cumprimento e execução das suas disposições testamentárias, recorrendo a juízo, se necessário; cumprir todas as funções de cabeça-de-casal, nomeadamente outorgado as necessárias escrituras de habilitação de herdeiros e partilha e liquidando todos os impostos devidos pela execução deste testamento, nomeadamente Imposto do Selo ou outro que o substitua ou com ele se cumule; mandar celebrar missas por alma de JJ, pais e irmãos, enquanto para tal houver dinheiro na referida conta 0...51 do Banco 2... em ....» (sublinhado nosso)

3- No dia 1 de Março de 2016, KK declarou, por escrito, perante notário, que: JJ faleceu no dia ../../2016, na freguesia e concelho ...; que a falecida deixou testamento, lavrado no dia 7.07.2014, no Cartório ..., no qual fez alguns legados e outras disposições, cujos termos deu por reproduzidos; a falecida não deixou descendentes nem ascendentes mas deixou, por direito de representação, os seguintes herdeiros: DD, EE e FF, descendentes do seu falecido irmão WW, e GG, HH e II, descendentes da sua falecida irmã XX;

4- Com data de 21.04.2016, pela Banco 1... foi enviada a AA uma carta com o seguinte conteúdo:

«Assunto: Processo de Habilitação de herdeiros Nr. ...04 em nome da JJ

(…) na sequência da análise realizada ao processo de Habilitação de Herdeiros referido em assunto, vêm os interessados habilitar-se às contas da Banco 1..., tituladas por JJ, falecida em ../../2016

(…)para prosseguimento da instrução do processo em assunto, solicitamos a V.Exa. o favor de nos enviar o seguinte documento:

1. Certidão emitida pelo competente Serviço de Finanças, no âmbito do Imposto do Selo, gerada por óbito de JJ, ocorrido ../../2016, comprovativa de que as contas de depósito constantes abaixo, foram relacionadas pelos valoras existentes 8 data do óbito e que o respetivo Imposto do Selo se mostre pago ou não ser devido:

N.° Conta ...20 da Agência do ...

- Natureza: Conta a Prazo

- Titular: JJ

- Saldo à Data Óbito: 80.000,00 Euros

- Saldo Atual: 80.000,00 Euros

N.° Conta ...34 da Agência ...

- Natureza: Produtos Estruturados

- Titular: JJ

- Saldo à Data Óbito: 240.000,00 Euros

- Saldo Atual: 240.000,00 Euros

N.° Conta ...00 da Agência do ...

- Natureza: Conta à ordem

- Titular: JJ

- Saldo ã Data Óbito: 19.313,41 Euros

- Saldo Atual: 18.260,78 Euros

N.° Conta  ...01 da Agência do ...

- Natureza: Valores Mobiliários

- Titulares: JJ

-" CXG SEI. GLB MODERADO ” Código ...07

-Saldo á Data Óbito: 3.549,72454137 Unidades de Participação em Fundos

-Saldo Atual: 3.549.72454137 Unidades de Participação em Fundos

-" CAIXA f2EFORMA ACTIVA " Código ...36

-Saldo à Data Óbito: 4.114,45709000 Unidades de Participação em fundos

-Saldo Atual: 4.114,45709000 Unidades da Participação em Fundos

-“CX REFORMA PRUDENT E " Código ...68

-Saldo à Dala Óbito: 1.368,3868400O Unidades de Participação em Fundos

-Saldo Atual: 1.368,38684000 Unidades de Participação em Fundos

-" CXG AC LIDER GLOBA IS” Código ...06

- Saldo à Data Óbito. 10.218,91831008 Unidades de Participação em Fundos

-Saldo Atual: 10.218,91831008 Unidades de Participação em Fundos

-"CXG SEL GLOB DEFENS” Código ...05

-Saldo à Dala Óbito: 20.295,51185073 Unidades de Participação em Fundos

-Saldo Atual: 20.295,51185073 Unidades de Participação em Fundos

(…)

Aproveitamos ainda para informar V. Exa que, tendo esta Instituição de Crédito Tomado conhecimento da existência de outros herdeiros legais de JJ, deverão os mesmos vir habilitar-se, querendo, aos saldos das contas tituladas pela cliente falecida.(…)»

5- No dia 31.01.2016 JJ era titular das contas bancárias, abertas na instituição bancária “Banco 1...”, descritas no documento junto aos autos no dia 6.12.2016 (fls. 27 e 28), cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido;

6- No dia ../../2016 JJ era titular das contas bancárias, abertas na instituição bancária “Banco 2...”, descritas no documento junto aos autos apensos sob a letra A no dia 4.07.2019 (fls. 194), cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido;

7- Encontram-se registadas na base de dados do Banco de Portugal na titularidade de JJ as contas bancárias descritas no documento junto aos autos nos dias 23.11.2023 e 4.12.2023 (fls. 549 e ss. e 552 e ss.), cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido;

8- JJ era uma pessoa com um nível cultural acima da média, esclarecida e opinativa, que discutia e ponderava as opções relativas a aplicações financeiras que ia fazendo, tendo perfeita noção do seu património e dos valores que se encontravam depositados e aplicados em produtos financeiros nas instituições bancárias;

9- JJ deslocava-se frequentemente aos bancos onde tinha depósitos e aplicações financeiras, aí se inteirando sobre as aplicações financeiras que tinha nas mesmas, taxas rentabilidade, datas de vencimento, juros e sobre a conta à ordem onde os juros seriam depositados;

10- Além dos bens e valores descritos no testamento referido em 2-, outros existiam na titularidade de JJ e que não foram abrangidos por aquele.


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2.2. Factos não provados.

Pelo Tribunal a quo foram considerados não provados os seguintes factos:

- Foi vontade de JJ legar aos Autores qualquer outra quantia monetária além da que se encontrava depositava nas contas bancárias cujo concreto número identificou no testamento referido em 2-, dos factos provados, concretamente, quaisquer quantias monetárias ou valores financeiros relativos a outras contas bancárias, de depósito à ordem ou a prazo, ou de contas de aplicações financeiras, produtos estruturados/participação em fundos, ainda que associadas à conta de depósitos à ordem;

- Que no dia 7.07.2014 JJ era titular de uma única conta no Banco 2..., em ... e que esta tivesse o número ...01;


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2.3. Recurso interposto pelos autores AA, BB e CC.

2.3.1. Impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto.

Sustentam os apelantes que o primeiro facto que o Tribunal a quo considerou não provado (vontade da testadora ao instituir os legados a que os autos se reportam) deve ser dado como assente com base nos seguintes elementos:

- Não impugnação especificada do facto em apreço;

- Depoimentos das testemunhas PP e a QQ, conjugados com as declarações prestadas pela ré HH;

- Interpretação do artº 2187º, do Código Civil e da deixa testamentária.

Analisemos a argumentação expendida pelos apelantes a propósito desta factualidade.


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Ausência de impugnação do acervo factual em causa

Como é sabido, o art. 574º, nº1, do C.P.C. dispõe que “Ao contestar, deve o réu tomar posição definida perante os factos que constituem a causa de pedir invocada pelo autor.”, acrescentando o nº 2 do mesmo artigo que “Consideram-se admitidos por acordo os factos que não forem impugnados, salvo se estiverem em oposição com a defesa considerada no seu conjunto, se não for admissível confissão sobre eles ou se só puderem ser provados por documento escrito; a admissão de factos instrumentais pode ser afastada por prova posterior.”. 

O art. 574º do C.P.C. consagra um ónus de impugnação do qual decorre que o réu deve pronunciar-se, de forma expressa, sobre a factualidade que suporta o pedido formulado pelo autor, sob pena da correspondente matéria se considerar admitida por acordo das partes [1].

No caso vertente, os autores alegaram (art. 32º da petição inicial) que “a testadora quis deixar aos autores o saldo da conta à ordem e de todas as contas associadas, a prazo, produtos estruturados e de unidades de participação em fundos (títulos).” [2].

Se atentarmos na contestação, verificamos que os réus não colocam em causa o alcance do legado em discussão nos autos, ou seja, não põem em causa que a testadora, para além do saldo da conta à ordem já referida, quis legar aos autores os produtos financeiros que estão associados a essa conta, embora apresentem uma justificação que se situa no âmbito dos vícios na formação da vontade, uma vez que entendem que a autora do testamento (JJ) foi alvo de coacção.

Com efeito, os demandados, de forma detalhada, caracterizaram o contexto familiar onde as partes se inserem, explicando os laços que os intervenientes mantiveram ao longo do tempo e a forma como a testadora geriu o seu património (cf. arts. 5º a 101º da contestação).

Após terem realizado o enquadramento atrás referido, concluem (art. 103º da contestação) que “(…) a testadora foi coagida a testar nos termos em que o fez, beneficiando os AA.,” [3].

Esta afirmação é incompatível com a tese, sustentada pelos apelados em sede de alegações, de que impugnaram a factualidade que diz respeito à intenção da autora do testamento, uma vez que a defesa apresentada, reitera-se, se situa no domínio dos vícios na formação da vontade - questão, aliás, que por se afigurar essencial para os recorridos, conduziu à propositura de uma acção com vista a obter a anulação do testamento em causa, a qual foi julgada improcedente.

Em face do exposto, determina-se a eliminação do primeiro facto considerado não provado [4] e, consequentemente, o aditamento aos factos assentes da seguinte matéria:

11 – A testadora quis deixar aos autores o saldo da conta à ordem, mencionada em 2, existente na Banco 1..., e de todas as contas associadas, a prazo, produtos estruturados e de unidades de participação em fundos (títulos).


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2.4. Recurso interposto pelas autoras KK e AA.

2.4.1. Impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto.

Conforme resulta das respectivas alegações, as apelantes defendem que o Tribunal recorrido deveria ter considerado assente a matéria que integra o acervo fáctico não provado, pelos motivos que atrás vêm explanados.   

Deve referir-se, em primeiro lugar, que parte da factualidade em apreço – já analisada a propósito do outro recurso interposto nos autos – não diz respeito à recorrente KK, uma vez que está em causa, unicamente, a problemática que foi suscitada no processo cuja apensação foi determinada por despacho proferido a 21/1/2020, ou seja, a matéria que diz respeito a uma conta sediada no Banco 2..., em ....

Relativamente à questão que deve ser apreciada, sustentam as apelantes, em primeiro lugar, que os réus não impugnaram os factos, alegados na petição inicial, que diziam respeito à titularidade da referida conta, devendo, consequentemente, os mesmos passar a integrar a matéria assente.

Compulsados os autos, verifica-se que as recorrentes, no art. 8º da petição inicial, alegaram que “No Banco 2... em ... a testadora era titular da conta n.º...01 (...01).”, mais tendo alegado que o número da conta indicado no testamento está errado, devendo, por esse motivo, considerar-se que as ora apelantes são donas da totalidade do saldo que existe na conta cujo número referenciaram.

Ora, no art. 12º da contestação os réus impugnaram a factualidade vertida no art. 8º da petição inicial, não podendo, desta forma, considerar-se que a matéria em causa se encontra assente por acordo das partes.

Estará a referida factualidade demonstrada face aos suportes documentais que as apelantes referem, conjugados com os depoimentos das testemunhas PP e QQ ?

Vejamos.

Através de requerimento apresentado em 4/7/2019, as ora apelantes juntaram aos autos um documento do Banco 2... no qual são identificadas as contas e aplicações financeiras que a testadora possuía junto dessa instituição, sendo que vem expressamente mencionada nesse documento uma conta com o número ...01 [5].

Contudo, o referido documento é omisso relativamente à agência onde tal conta estaria sediada, omissão que não é suprida pelo suporte documental junto a 12/12/2024, uma vez que o mesmo não se refere à titularidade da referida conta.

Relativamente aos depoimentos das testemunhas PP e QQ, constata-se, após termos procedido à respectiva audição, que a mencionada factualidade não é do seu conhecimento, o que significa que a decisão proferida pelo Tribunal a quo deve manter-se no que concerne ao ponto em análise.


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2.5. Enquadramento jurídico.

O presente litígio tinha como pressuposto uma divergência, ao nível interpretativo, que dizia respeito ao testamento referenciado no ponto 2 dos factos provados, divergência, contudo, que era aparente, uma vez que os réus, em sede de articulados, tinham sufragado o entendimento expresso pelos autores, conforme referimos a propósito da análise das questões de ordem factual.

O critério que o legislador estabeleceu neste domínio encontra-se previsto no art.  2187º do Código Civil, norma que, sob a epígrafe “Interpretação dos testamentos”, apresenta o seguinte teor:

1. Na interpretação das disposições testamentárias observar-se-á o que parecer mais ajustado com a vontade do testador, conforme o contexto do testamento.

“2. É admitida prova complementar, mas não surtirá qualquer efeito a vontade do testador que não tenha no contexto um mínimo de correspondência, ainda que imperfeitamente expressa.”

A nossa jurisprudência, no que concerne a esta matéria, tem entendido que o legislador estabeleceu um critério subjectivista, por considerar relevante a vontade do testador, critério, no entanto, que é mitigado por elementos de natureza ou carácter objectivo, atenta a referência que é feita ao contexto em que o testamento é elaborado e ao respectivo teor.                                                                                                                              Vejamos alguns Arestos que se pronunciaram sobre esta problemática:

- Acórdão do STJ de 27/5/2025 (disponível em https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/aa59b80b16de7f1180258c9700494789?OpenDocument):

A interpretação constitui um fenómeno incontornável e omnipresente no negócio testamentário: a mais clara das letras de um testamento não pode deixar de ser interpretada, quanto mais não seja para confirmar essa clareza. E em matéria de interpretação do testamento, a nossa lei orienta-se, como este Tribunal Supremo tem afirmado repetida e consistentemente, por um critério subjectivista, embora mediado e limitado pelo contexto do testamento; a interpretação do testamento visa a determinação da vontade do testador - da mens testantis (art.º 2187.º do Código Civil). Como, porém, o testamento é feito num momento para produzir efeitos noutro – o da data da morte do testador – importa apurar a vontade daquele, apontada para o momento presumível da morte, devendo o interprete determinar uma vontade real, ainda que conjectural. De outro aspecto, como o testamento é um negócio solene, apenas releva a vontade manifestada pela forma legalmente estabelecida para o negócio testamentário. Admite-se, todavia, prova complementar, desde que não conduza a uma vontade do testador que não tenha, no contexto do testamento, um mínimo de correspondência, ainda que imperfeitamente expressa (art.º 2187.º, n.º 2, do Código Civil).”;

- Acórdão do STJ de 11/3/2025 (disponível em https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/48519a1ba0bf250480258c4a00540d87?OpenDocument):

II – O art. 2187º do CCivil, consagra a posição subjetivista em matéria de interpretação das disposições testamentárias, a fazer pelo apuramento da vontade real e contemporânea do testador, usando para essa averiguação simultaneamente o contexto do testamento e a prova complementar ou extrínseca que sobre isso puder reunir-se.

III – Caso não se verifique uma correspondência mínima entre o sentido pretendido pelo testador e o contexto do testamento, a vontade do testador não pode valer e, em tal situação, a disposição testamentária será anulável por erro na declaração.

IV – Quando há um erro na identificação do bem legado e sendo possível determinar, através da interpretação do testamento, o concreto bem que o testador queria atribuir ao réu, o testamento vale relativamente a este mesmo bem.”.

- Acórdão do STJ de 25/5/2023 (disponível em https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/4842173e4f4c9969802589ba006b2dc9?OpenDocument):

I. A interpretação do testamento, no sentido da descoberta da vontade real do testador, pode constituir: (i) questão de direito, se feita única e exclusivamente com recurso ao texto do testamento, caso em que o STJ pode conhecê-la; (ii) questão de facto se for feita com recurso a prova complementar, e neste caso é da exclusiva competência das instâncias, mas sem prejuízo de o STJ poder sindicar, nos termos do art. 2187.º, n.º 2, do CC, a correspondência da vontade do testador assim determinada, com o contexto do testamento.

II. A hermenêutica dos testamentos é fundamentalmente subjectivista, mas com um certo ingrediente objectivista, consequência da natureza formal do negócio a interpretar.

III. Na interpretação do testamento não pode deixar de se ter em conta o contexto à data da sua outorga e no qual se inspirou a vontade do testador, as suas opiniões pessoais, a sua cultura, os seus hábitos e comportamentos (sociais e religiosos), em suma, a sua mentalidade ao tempo do testamento.”.

IV. Porém, a interpretação da vontade do testador tem um limite formal intransponível: a correspondência mínima com o contexto. Ou seja, se a intenção testatória deve ser procurada por todos os meios possíveis, ainda que exteriores ao testamento, tal intenção só poderá ter-se por decisiva e relevante se de algum modo se reflectir, transparecer ou traduzir nos termos do testamento.”.

- Acórdão do STJ de 17/4/2012 (disponível em https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/a1603e57973104f8802579ed004b7f0d?OpenDocument):

I- Na interpretação do testamento vale a vontade querida pelo testador, apenas com a limitação da exigência da repercussão literal mínima, ainda que imperfeitamente expressa no contexto do testamento, exigida pela sua natureza formal.

II- Essa interpretação, de cariz subjectivista, a reflectir o sentido atribuído à declaração pelo respectivo autor, deve ser acolhida reportada ao tempo da elaboração e aprovação do texto, mas sem desprezar a globalidade das circunstâncias reconhecíveis ao tempo da sua abertura.

III- Esgotado o processo interpretativo, as declarações negociais do testador não podem ser objecto de integração, por ampliação, se a cláusula não prevista corresponder a uma adição de previsão factual que não encontra correspondência na vontade expressa no contexto do testamento.”

- Acórdão desta Relação (Coimbra) de 23/4/2024 (disponível em https://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/8fe0e606d8f56b22802576c0005637dc/50ad2ce53de8ec7280258b1d004ed757?OpenDocument):

A interpretação dos testamentos deve obedecer à vontade do testador, de acordo com o “contexto do testamento” (cfr. artº 2187, nº1, do C.C.), e desde que tenha neste contexto “um mínimo de correspondência, ainda que imperfeitamente expressa.” (cfr. nº2 do mesmo preceito legal) e não contenda com normas de natureza imperativa.”

- Acórdão, igualmente da Relação de Coimbra, de 3/3/2020 (disponível em https://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/8fe0e606d8f56b22802576c0005637dc/7631bae1d24e1f8c8025857b003b8fdc?OpenDocument):

Nos termos do artigo 2187.º do Código Civil, cumpre ao tribunal determinar a vontade real do testador, a selecionar entre as várias afirmações que possam ser retiradas da letra e contexto do documento, fazendo uso dos meios de prova disponíveis como auxiliares nessa tarefa de interpretação.”


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Estando demonstrado, em termos, factuais, que a testadora pretendeu atribuir aos autores AA, BB e CC o legado que vem referido no ponto 11 da matéria assente, dúvidas não restam que esse património lhes é devido, face ao disposto nos arts. 2024º [6], 2026º [7], 2030º, nºs 1 e 2 [8], 2032º, nº1 [9], e 2179º [10], todos do Código Civil, assim procedendo o recurso interposto pelos mesmos.

Diversamente, considerando que não ficou assente a factualidade que dizia respeito à conta alegadamente sediada na agência de ... do Banco 2..., deverá improceder o recurso interposto pelas autoras KK e AA, com os efeitos daí resultantes.


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III – DECISÃO.

Pelo exposto, decide-se

a) Julgar procedente a apelação interposta pelos autores AA, BB e CC e, em consequência, reconhecer aos mesmos o direito a todos os valores e bens depositados na Banco 1... associados à conta à ordem nº ...00, incluindo os depósitos a prazo, os produtos estruturados e os valores mobiliários;

b)        Julgar improcedente o recurso interposto pelas autoras KK e AA e confirmar, nesta parte, a decisão recorrida.


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As custas do recurso interposto pelos apelantes AA, BB e CC ficam a cargo dos apelados, sendo que as referentes ao recurso em que são apelantes KK e AA ficam a cargo das mesmas.

Coimbra, 28 de Outubro de 2025


(assinado digitalmente)

Luís Manuel de Carvalho Ricardo

(relator)

Cristina Neves

(2ª adjunta)

Marco António de Aço e Borges

(2º adjunto



[1] Sobre o ónus de impugnação, cf., a título meramente exemplificativo, o Acórdão do STJ de 17/10/2019, disponível em https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/14971b144f6bd80480258496005945d2?OpenDocument
[2] Trata-se de matéria de facto, apesar de vir incluída num capítulo onde é feita a análise jurídica da causa.
[3] O sublinhado é nosso.
[4]Foi vontade de JJ legar aos Autores qualquer outra quantia monetária além da que se encontrava depositava nas contas bancárias cujo concreto número identificou no testamento referido em 2-, dos factos provados, concretamente, quaisquer quantias monetárias ou valores financeiros relativos a outras contas bancárias, de depósito à ordem ou a prazo, ou de contas de aplicações financeiras, produtos estruturados/participação em fundos, ainda que associadas à conta de depósitos à ordem;”.

[5] Deve referir-se que em 23/11/2023,  foi incorporado nos autos um ofício remetido pelo Banco de Portugal no qual são identificadas toda as contas e produtos financeiros que se encontravam na titularidade na testadora, não sendo feita referência, nesse oficio, à conta que as apelantes mencionam.
[6] Art. 2024º do Código Civil. “Diz-se sucessão o chamamento de uma ou mais pessoas à titularidade das relações jurídicas patrimoniais de uma pessoa falecida e a consequente devolução dos bens que a esta pertenciam.”.
[7] Art. 2026º do Código Civil: “A sucessão é deferida por lei, testamento ou contrato.”.
[8] Art. 2030º, 1 e 2, do Código Civil: 1. Os sucessores são herdeiros ou legatários.
2. Diz-se herdeiro o que sucede na totalidade ou numa quota do património do falecido e legatário o que sucede em bens ou valores determinados.”.
[9] 2032º, nº1, do Código Civil: “Aberta a sucessão, serão chamados à titularidade das relações jurídicas do falecido aqueles que gozam de prioridade na hierarquia dos sucessíveis, desde que tenham a necessária capacidade.”.
[10] Art. 2179º do Código Civil: “Diz-se testamento o acto unilateral e revogável pelo qual uma pessoa dispõe, para depois da morte, de todos os seus bens ou de parte deles.”.