Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
20/20.9T8ALD-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CRISTINA NEVES
Descritores: TESTAMENTO
INTERPRETAÇÃO
DEIXA TESTAMENTÁRIA
IMÓVEIS SITUADOS EM DETERMINADA ÁREA GEOGRÁFICA
HERDEIRO
LEGATÁRIO
Data do Acordão: 04/23/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE ALMEIDA DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DA GUARDA
Texto Integral: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA EM PARTE
Legislação Nacional: ARTIGOS 1732.º, 1733.º, 2030.º, N.ºS 2 E 5, E 2187.º, N.ºS 1 E 2, DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: I – A interpretação dos testamentos deve obedecer à vontade do testador, de acordo com o “contexto do testamento” (cfr. artº 2187, nº1, do C.C.), e desde que tenha neste contexto “um mínimo de correspondência, ainda que imperfeitamente expressa.” (cfr. nº2 do mesmo preceito legal) e não contenda com normas de natureza imperativa.
II – O critério geral de distinção entre herdeiros e legatários consiste na determinação ou indeterminação dos bens sucessíveis, critério este de natureza imperativa, conforme resulta do artº 2030, nº 2 e 5 do C.C., sendo assim irrelevante a qualificação (ou ausência de qualificação) do testador.

III – A deixa testamentária de todas as coisas imóveis da testadora, de que esta pudesse dispor à data do seu óbito, restrita a uma determinada área geográfica (Almeida), constitui legado de coisa determinada.

IV – O legado de bens imóveis sitos numa determinada área geográfica, não pode ser cumprido bens concretos existentes na herança dos inventariados - sogros da testadora - por a testadora deter à data do seu óbito, por via do seu regime de bens (comunhão geral de bens, cfr. artº 1732 e 1733 do C.C.) a meação, não em bens certos e determinados, mas no quinhão hereditário do herdeiro legitimário e apenas esta poderia ser objecto de alienação ou disposição por morte.

V – A expressão utilizada pela testadora “Deixa, em comum e partes iguais, todo o remanescente dos seus bens de que puder dispor no momento da sua morte aos seus sobrinhos”, constitui uma instituição de herdeiros destes sobrinhos na sua quota disponível, ou seja, de todo o remanescente dos seus bens, quer imóveis - excluindo os sitos em Almeida de que eventualmente disponha - quer dos bens móveis e direitos de que pudesse dispor à data do seu óbito, incluindo do seu direito à meação no quinhão hereditário do seu cônjuge.


(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Integral: ***

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Proc. Nº 20/20.9T8ALD-B.C1 - Apelação

Tribunal Recorrido: Tribunal Judicial da Comarca da Guarda – Juízo de Competência Genérica de Almeida.

Recorrente: AA

Juiz Desembargador Relator: Cristina Neves

Juízes Desembargadores Adjuntos: António Fernando Marques da Silva

                                         Falcão de Magalhães


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Acordam os Juízes na 3ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra


RELATÓRIO

Nos presentes autos de inventário destinados à partilha de bens deixados por óbito de BB, falecido em ../../1974 e CC, falecida em ../../1988, tendo sido casados em primeiras núpcias e sob o regime de comunhão geral de bens, veio a ser proferida despacho de forma à partilha nos seguintes termos:

Ao inventariado BB sucederam a viúva e cinco filhos:

a) DD, falecido em ../../2006, no estado de casado com EE, sob o regime imperativo de separação de bens, sucedendo-lhe, nos termos do disposto no artigo 2058.º, do Código Civil:

- O cônjuge sobrevivo;

- A filha FF, casada sob o regime de comunhão de adquiridos com GG, a quem fora atribuído, por sentença transitada em julgado no processo de inventário n.º 5222/07..., que correu termos no 3.º Juízo Civil, do Tribunal de Família e de Menores da Comarca de Cascais, o quinhão hereditário a que DD teria direito por morte dos pais, ora Inventariados1;

b) HH, falecida em ../../2019, no estado de viúva de II, com quem fora casada em regime de comunhão geral de bens, sucedendo-lhes, nos termos do disposto no artigo 2058.º, do Código Civil:

- O filho JJ, casado sob o regime de comunhão de adquiridos com KK;

- O filho LL, casado sob o regime de comunhão de adquiridos com MM.

c) NN, falecido em ../../2006, no estado de casado sob o regime de comunhão geral de bens com OO, falecida em ../../2011, sucedendo-lhes, nos termos do disposto no artigo 2058.º, do Código Civil:

- O filho PP, divorciado.

d) QQ, falecido em ../../2020, no estado de viúvo de RR, com quem fora casado em regime de comunhão geral de bens, sucedendo-lhe, nos termos do disposto no artigo 2058.º, do Código Civil, AA, viúva, na qualidade de herdeira testamentária de todos os seus bens.

Por sua vez, RR, constituiu um legado atinente a todos os bens imóveis, situados no concelho de Almeida, de que pudesse dispor, ao momento da sua morte, a favor de FF (cfr. artigo 2253.º, do Código Civil) e instituiu como herdeiros, no remanescente dos bens de que pudesse dispor à data da sua morte (cfr. artigo 2030.º n.º 3, do Código Civil)2, os seus sobrinhos:

- SS;

- TT;

- UU;

- VV.

No que respeita ao legado instituído, importa notar que resulta expressamente do testamento outorgado que era vontade da testadora deixar à sua sobrinha acima referida, cabeça-de-casal nestes autos, os bens imóveis, sitos no concelho de Almeida, de que pudesse dispor ao momento da sua morte.

Contudo, porquanto à data do decesso a mesma somente dispunha, por força do regime de bens do casamento (cfr, artigo 1732.º, do Código Civil), de um direito à herança – na medida em que o quinhão hereditário das heranças abertas por morte dos Inventariados integrava o património comum do dissolvido casal – e, já não, sobre bens imóveis concretamente identificados, facilmente se constata que tal legado irreleva para efeitos da presente partilha.

Já quanto à disposição testamentária atinente a SS, TT, UU e VV, estar-se-á inequivocamente perante a sua instituição como herdeiros, sucedendo no remanescente dos bens da falecida, à luz do disposto nos artigos 2024.º e 2030.º n.º 2, do Código Civil, na qual se integra o quinhão hereditário que detinha, conjuntamente, com QQ, por força do regime de bens do casamento.

e) ..., falecido em ../../2023, no estado de viúvo de WW, falecida em ../../2018, sucedendo-lhes, nos termos do disposto no artigo 2058.º, do Código Civil:

- ..., divorciado;

- ..., divorciada;

- ..., solteira.

Por sua vez, à inventariada CC sucederam os cinco filhos acima identificados, precisamente nos termos antecedentemente referidos.


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Os Inventariados não deixaram testamento ou qualquer outra disposição de última vontade.

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Os bens a partilhar são os indicados na relação de bens apresentada pelo cabeça-de-casal a 21/12/2019 (referência CITIUS n.º 84522979).

Inexiste passivo.


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Nos termos do artigo 1110.º n.º 2, alínea a), do Código de Processo Civil, determina-se que a partilha do acervo hereditário será partilhada da seguinte forma:

i) Quanto à herança aberta por óbito de BB Conforme prevê o artigo 2162.º, do Código Civil, para o cálculo da legítima deve atender-se ao valor dos bens existentes no património do autor da sucessão à data da sua morte, ao valor dos bens doados, às despesas sujeitas a colação e às dívidas da herança.

Neste sentido, importa somar os valores parcelares de todos os bens relacionados que integram o ativo, obtendo-se assim o valor total do património comum do extinto casal.

De seguida, divide-se esse valor em duas partes iguais, constituindo uma delas a meação do inventariado e a outra a meação da viúva CC, que se lhe caberia se viva fosse.

No que respeita à metade, correspondente à meação do Inventariado, impõe-se calcular a legítima, nos termos dos artigos 2156.º e 2159.º, n.º 1, do Código Civil, que corresponde a 2/3 da herança.

Assim, uma vez que nos termos do artigo 2139.º n.º 1, do Código Civil, a partilha é feita por cabeça e a quota do cônjuge não pode ser inferior a 1/4 da herança, os 2/3 serão divididos da seguinte forma: 1/4 de 2/3 será atribuído à herança da viúva XX e os restantes 3/4, serão divididos, em partes iguais, por cada um dos filhos, na proporção de 1/5.

Ante o decesso dos filhos dos Inventariados, a quota parte que lhes seria devida será atribuída nos seguintes termos, à luz do disposto no artigo 2058.º, do Código Civil:

- Quanto à quota parte que seria devida a DD considerando que, no âmbito do processo 5222/07...., que correu termos no 3.º Juízo Civil, do Tribunal de Família e de Menores da Comarca de Cascais, o quinhão hereditário a que o mesmo teria direito por morte dos pais, ora Inventariados, foi adjudicado à sua filha FF, a quota parte que lhe seria devida será atribuída a esta última;

- Quanto à quota parte que seria devida HH, a mesma será dividida, em partes iguais, pelos filhos JJ e LL;

- Quanto à quota parte que seria devida a NN, será a mesma atribuída ao filho, PP;

- Quanto à quota parte que seria devida a QQ, porquanto o direito à herança integrava o património comum (cfr. artigo 1732.º, do Código Civil) deste e de WW e tendo ambos outorgado testamento, proceder-se-á nos seguintes termos:

(i) Dividir-se-á por dois a quota parte que integrava o património comum do casal, em duas partes iguais (1/2).

Assim, 1/2 de 1/5 que caberia QQ será atribuído à sua herdeira testamentária, AA.

Já o restante 1/2, que caberia a WW, será atribuído, em partes iguais, aos herdeiros testamentários desta: SS, TT, UU e VV.4

Por fim, quanto à quota parte devida a ..., será a mesma dividida, em partes iguais, pelos filhos ..., ... e ....

Quanto à quota disponível, correspondente a 1/3, considerando que o inventariado não dispôs da mesma, será adjudicada aos herdeiros, nos mesmos termos que antecedem.

O preenchimento dos quinhões realizar-se-á conforme o que for acordado em sede de conferência de interessados.

ii) Quanto à herança aberta por óbito de CC

Num primeiro momento, soma-se o valor da meação do património comum (já calculado supra) e a quota hereditária da herança da inventariada (cfr. artigo 2162.º, do Código Civil).

A legítima dos filhos corresponde a 2/3 da herança e a quota disponível da inventariada corresponde a 1/3 da herança, nos termos dos artigos 2156.º e 2159.º, n.º 2, do Código Civil.

Assim, os 2/3, correspondentes à legítima, serão divididos em partes iguais entre os herdeiros, em virtude do preceituado no artigo 2139.º n.º 2, do Código Civil.

Quanto à quota disponível, correspondente a 1/3, considerando que o Inventariado não dispôs da mesma, será adjudicada aos herdeiros, nos mesmos termos que antecedem.

O preenchimento dos quinhões realizar-se-á conforme o que for acordado em sede de conferência de interessados.”


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Notificada desta decisão e com ela não se conformando, veio a interessada AA, interpor recurso, constando das suas alegações as seguintes conclusões:

(…).


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Não foram interpostas contra-alegações.


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QUESTÕES A DECIDIR


Nos termos dos artigos 635º, nº4 e 639º, nº1, do Código de Processo Civil, as conclusões delimitam a esfera de actuação do tribunal ad quem, exercendo um função semelhante à do pedido na petição inicial.[1] Esta limitação objectiva da actuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cf. Artigo 5º, nº3, do Código de Processo Civil). Também não pode este Tribunal conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas.

As questões a decidir consistem em apurar:

-se o despacho de forma à partilha é nulo por falta de fundamentação e contradição entre os fundamentos e a decisão;

-se devem ser atribuídos à recorrente os bens imóveis sitos no concelho de Almeida, em cumprimento do legado deixado pela interessada RR, por ser esta a vontade da testadora;

-se a deixa testamentária de RR aos demais sobrinhos identificados nesse testamento, configura igualmente um legado e não uma instituição de herdeiros;

-a assim se não entender, julgue que QQ, como herdeiro legitimário da RR tem direito a ½ da parte que a esta caberia no quinhão hereditário de seus sogros. 

 


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FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO


A matéria de facto a considerar para a presente decisão é a que consta do relatório a que acresce ainda a seguinte:

1. Por testamento lavrado em 24/04/203, no Cartório Notarial sito em ..., RR, no estado de casada com QQ, declarou que:

Que, não tendo descendentes, nem ascendentes vivos e tendo como herdeiro legitimário o seu seu referido marido, pelo presente testamento deixa à sua sobrinha por afinidade, FF, (…) todos os seus bens imóveis, situados no concelho de Almeida de que puder dispor, no momento da sua morte;

Deixa, em comum e partes iguais, todo o remanescente dos seus bens de que puder dispor no momento da sua morte aos seus sobrinhos:
a) SS (…);
b) TT (…);
c) UU (…);
d) VV (…);

2-RR faleceu em ../../2016, no estado de casada com QQ no regime da comunhão geral de bens e sem deixar ascendentes ou descendentes.

3- QQ faleceu em ../../2020, no estado de viúvo e sem deixar ascendentes ou descendentes.

4-Por testamento lavrado em 11 de Fevereiro de 2008 no Cartório ..., na ..., QQ declarou que “não tem descendentes nem ascendentes vivos e que na hipótese de vir a falecer no estado de viúvo:
1) LEGA a sua sobrinha por afinidade, AA (…), os seguintes bens: 
a) Prédio RÚSTICO, sito no “Caminho ...”, freguesia ... (...), Concelho de Penhiche, inscrito na respectiva matriz sob o artigo ...8 da secção B.
b) Prédio URBANO, composto de casa de habitação de rés-do-chão e logradouro, sito no bairro ..., dita freguesia ... (...), inscrito na matriz sob o artigo ...15 e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ..., da dita freguesia.
c) Veículo automóvel ligeiro de passageiros, marca ..., modelo ... 1.3S, matrícula VL-..-...
2) Institui ainda a sua referida sobrinha por afinidade herdeira de todos os seus bens, direitos e acções.

5-Neste testamento RR declarou autorizar “o seu referido marido a dispor destes bens certos e determinados, atrás referidos, do património comum do casal.

6-Por sentença proferida nestes autos em 16/11/2021, julgou-se “procedente o presente incidente de habilitação de interessados e, em consequência, declaro a requerida AA habilitada a figurar nos autos em substituição de QQ.”

7-Com data de 21/12/2019 foi apresentada pela cabeça-de-casal a seguinte relação de bens deixada por óbito dos inventariados BB e CC:






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DO DIREITO

Invoca a apelante, em primeiro lugar, a nulidade da decisão de forma à partilha, invocando falta de fundamentação e contradição com a decisão proferida.

Importa, assim, conhecer previamente da nulidade invocada, sendo certo que o disposto no artº 615, nº1, als. b) e c) do C.P.C., se aplica igualmente aos despachos (cfr. artº 613, nº3, do C.P.C.).

-se o despacho de forma à partilha é nulo por falta de fundamentação e contradição entre os fundamentos e a decisão;

Dispõe o artº 615 nº 1 do C.P.C. que a sentença enferma de nulidade, no que ao caso importa, quando:

b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;

c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
Conhecendo do primeiro dos fundamentos apontados como causa de nulidade da sentença, esta apenas se verifica quando exista absoluta falta de fundamentação, seja de facto ou de direito e não apenas fundamentação medíocre, deficiente, quiçá errada.
Com efeito, ao juiz cabe especificar os fundamentos de facto e de direito da decisão que profere, nos termos do disposto no artº 607 nº3 e 4, de forma a que a decisão que profere seja perceptível para os seus destinatários.

Não cumpre esta norma, existindo falta absoluta de motivação, quando se verifique a  ausência total de fundamentos de direito e de facto.[2]

Já Teixeira de Sousa[3], referia que: “o dever de fundamentação restringe-se às decisões proferidas sobre um pedido controvertido ou sobre uma dúvida suscitada no processo (...) e apenas a ausência de qualquer fundamentação conduz à nulidade da decisão (...); a fundamentação insuficiente ou deficiente não constitui causa de nulidade da decisão, embora justifique a sua impugnação mediante recurso, se este for admissível”, pelo que refere Tomé Gomes[4]a falta de fundamentação de facto ocorre quando, na sentença, se omite ou se mostre de todo ininteligível o quadro factual em que era suposto assentar. Situação diferente é aquela em que os factos especificados são insuficientes para suportar a solução jurídica adotada, ou seja, quando a fundamentação de facto se mostra medíocre e, portanto, passível de um juízo de mérito negativo. / A falta de fundamentação de direito existe quando, não obstante a indicação do universo factual, na sentença, não se revela qualquer enquadramento jurídico ainda que implícito, de forma a deixar, no mínimo, ininteligível os fundamentos da decisão.»

Este dever geral de fundamentação dos despachos e decisões (sentenças) proferidos no processo decorre do disposto no artº 154 do C.P.C. e obedece à exigência constitucional, contida no artº 205, nº1, da C.R.P., que exige que as decisões do tribunal, que não sejam de mero expediente, sejam fundamentadas na forma prevista na lei, de molde a assegurar a todos os cidadãos um processo equitativo, conforme o impõe o artº 20 nº4 da C.R.P.

Ora, o despacho em causa, embora de forma sucinta, fundamentou de facto a decisão no que era relevante para a forma à partilha de bens dos inventariados e fundamentou ainda a decisão de considerar como legado a deixa da testadora RR à recorrente, considerando que “resulta expressamente do testamento outorgado que era vontade da testadora deixar à sua sobrinha acima referida, cabeça-de-casal nestes autos, os bens imóveis, sitos no concelho de Almeida, de que pudesse dispor ao momento da sua morte.”, ou seja, bens certos e determinados, ainda que não concretamente especificados.

Como fundamentou o facto de este legado da testadora ser irrelevante para a partilha da herança dos inventariados e não da também falecida RR, pelo facto de “à data do decesso a mesma somente dispunha, por força do regime de bens do casamento (cfr, artigo 1732.º, do Código Civil), de um direito à herança – na medida em que o quinhão hereditário das heranças abertas por morte dos Inventariados integrava o património comum do dissolvido casal – e, já não, sobre bens imóveis concretamente identificados, facilmente se constata que tal legado irreleva para efeitos da presente partilha”.

O despacho recorrido mostra-se assim fundamentado, inexistindo a nulidade que lhe é apontada ao abrigo desta alínea.

Por outro lado, também não existe qualquer contradição entre os fundamentos e a decisão.
Constitui entendimento pacífico da doutrina e da nossa jurisprudência que a nulidade prevista no artº. 615º, nº. 1, al. c) do NCPC (correspondente ao artº. 668º, nº. 1, al. c) anterior à reforma introduzida pela Lei nº. 41/2013 de 26/6) só se verifica quando os fundamentos invocados na sentença devessem, logicamente, conduzir a uma decisão diversa da que a sentença expressa, ou seja, o raciocínio do juiz aponta num determinado sentido e o dispositivo conclui de modo oposto ou diferente[5], sabido que essa contradição remete-nos para o princípio da coerência lógica da sentença, pois que entre os fundamentos e a decisão não pode haver contradição lógica.
Realidade distinta desta, é o erro na subsunção dos factos à norma jurídica ou erro na interpretação desta, ou seja, quando – embora mal – o juiz entenda que dos factos apurados resulta determinada consequência jurídica e este seu entendimento é expresso na fundamentação ou dela decorre, o que existe é erro de julgamento e não oposição nos termos aludidos[6].
Ora, o despacho em apreço interpretou o testamento da interessada RR, concluindo que esta instituíra como legatária a recorrente, pelas razões que indicou e, como herdeiros os demais aí contemplados, também pelas razões que indicou. Podendo ter existido erro de julgamento em relação à interpretação deste testamento não existe qualquer contradição entre os fundamentos ou entre estes e a decisão.
Improcede assim, a arguição de nulidade deste despacho.
Inexistindo a apontada nulidade, cumpre-nos apreciar se existiu error in judicando nas consequências que a primeira instância retirou deste legado.

-se devem ser atribuídos à recorrente os bens imóveis sitos no concelho de Almeida, em cumprimento do legado deixado pela interessada RR, por ser esta a vontade dessa testadora;

Insurge-se a apelante contra a decisão que, qualificando como legado a deixa testamentária da interessada RR à apelante, a considerou irrelevante para efeitos de determinação da forma à partilha da herança deixada por óbito de BB e CC, por a testadora ter apenas um direito à herança dos sogros, ainda não partilhada e que considerou que quanto à disposição testamentária atinente a SS, TT, UU e VV, estar-se-á inequivocamente perante a sua instituição como herdeiros, sucedendo no remanescente dos bens da falecida, à luz do disposto nos artigos 2024.º e 2030.º n.º 2, do Código Civil, herança na qual se integra o quinhão hereditário que detinha, conjuntamente com QQ, por força do regime de bens do casamento.

Considera a apelante que ambas as disposições testamentárias constituem legados e, que nada obsta ao seu cumprimento, devendo assim, ser-lhe atribuídos os bens imóveis sitos em Almeida, deixados por óbito dos inventariados, em cumprimento deste legado.

A decisão sobre a natureza da deixa testamentária da interessada RR à recorrente e aos demais sobrinhos indicados neste testamento, exige a interpretação do aludido testamento, de acordo com o “que parecer mais ajustado à vontade do testador, conforme o contexto do testamento” (cfr. artº 2187, nº1, do C.C.), desde que tenha “no contexto um mínimo de correspondência, ainda que imperfeitamente expressa.” (cfr. nº2 do mesmo preceito legal).

Não tendo nenhum dos herdeiros/legatária indicado qualquer facto a respeito da vontade da testadora, ou arrolado prova complementar é de acordo com o texto deste negócio formal que se terá de aferir a vontade do testador e a sua integração em normas de natureza imperativa.

Com efeito, o critério geral de distinção entre herdeiros e legatários é-nos dado pela lei. Nestes termos, o artº 2030, nº2 do C.C., dispõe como critério geral a determinação ou indeterminação dos bens sucessíveis, critério e qualificação de natureza imperativa, face ao disposto no nº 5 deste preceito. Ou seja, não é a qualificação dada pelo testador que constitui critério para aferição da deixa testamentária como legado ou instituição de herdeiro, mas antes a determinação ou indeterminação das deixas em causa.

Assim sendo, como ensina CAPELO DE SOUSA[7]Quando haja uma instituição de sucessor pela qual ele vai suceder em bens que não estão previamente determinados, os quais abranjam quer a totalidade do património do falecido quer uma sua quota-parte (…) e em que os bens que poderá vir a receber, depois da morte do sucessor, comportem um leque de bens não determinados previamente, aí temos uma situação de herança ou uma qualificação de herdeiro. Diferentemente quando uma pessoa é chamada a suceder em bens certos e determinados, com exclusão de ouros bens, aí deparamos com uma estrutura de legado ou classificação de legatário.”

Sendo este o critério geral, o testador tanto pode instituir um legado de coisas determinadas e devidamente especificados (como resulta do testamento do herdeiro legitimário QQ a favor da recorrente), como legados de coisa que, embora determinadas, não se encontram devidamente especificadas. É o caso das universalidades de facto, dos patrimónios autónomos, do usufruto da herança ou de uma sua quota, legados de coisas genéricas ainda que não existentes no património do testador, nas condições permitidas pelos artºs 2253 e 2054 do C.C., legados alternativos e os legados de todos os bens móveis ou de todos os bens imóveis do testador.

Com efeito, a deixa testamentária de todas as coisas imóveis do testador, constitui legado de coisa determinada, embora não especificada.

Nestes termos, a declaração da testadora de que deixava todos “todos os seus bens imóveis, situados no concelho de Almeida de que puder dispor, no momento da sua morte”, à sua sobrinha ora recorrente, constitui manifestamente um legado, porque perfeitamente determinado- todos os seus bens imóveis de que pudesse dispor à data do seu óbito- e restritos a uma dada área geográfica (Almeida), independentemente de ter ou não outros bens imóveis sitos noutras áreas.

Assim sendo, porque não se visa a partilha dos bens deixados por óbito de RR, mas apenas dos bens deixados por óbito dos seus sogros, ora inventariados, sendo o seu chamamento a estes autos, não como herdeira, mas na qualidade de meeira por via do regime de bens do seu casamento (comunhão geral de bens, não estando estes bens excluídos da comunhão, cfr. decorre do artº 1732 e 1733 do C.C.), este legado não pode ser cumprido com a atribuição dos bens imóveis sitos em Almeida, ainda que existentes estes bens na herança aberta por óbito dos seus sogros. Conforme bem refere a decisão recorrida, não tendo existido partilha da herança, nem integrando o quinhão do herdeiro legitimário bens certos e determinados, mas apenas a parte que lhe cabe na herança dos seus pais, a esposa deste RR detinha apenas à data do seu óbito a meação neste direito e apenas esta poderia ser objecto de alienação ou disposição por morte.

Nestes termos, não sendo a recorrente herdeira da RR, mas legatária e podendo este legado ser exigível eventualmente na partilha deixada por óbito da RR, não há que proceder à atribuição destes imóveis, ou considerar que esta é herdeira também da RR.

-se a deixa testamentária de RR aos demais sobrinhos identificados nesse testamento, configura igualmente um legado e não uma instituição de herdeiros;

Invoca ainda a recorrente que a deixa desta aos demais sobrinhos configura igualmente um legado e que, assim, apenas a recorrente, como única herdeira de QQ, herdeiro legitimário desta RR, tem direito ao quinhão que caberia a este.

Não é, no entanto, assim. A expressão utilizada pelo testador “Deixa, em comum e partes iguais, todo o remanescente dos seus bens de que puder dispor no momento da sua morte aos seus sobrinhos”, constitui uma instituição de herdeiros destes sobrinhos na sua quota disponível, ou seja, de todo o remanescente dos seus bens, quer imóveis - excluindo os sitos em Almeida de que eventualmente disponha - quer dos bens móveis e direitos de que pudesse dispor à data do seu óbito. E estes não estão determinados, o que exclui a sua qualificação como legado.

Ora, como a meação desta testadora no quinhão do seu marido é um bem de que esta poderia livremente dispor na parte disponível, razão teve a 1ª instância em considerar estes como herdeiros, sucedendo na parte disponível da meação no quinhão hereditário que caberia a RR. 

  

- a assim se não entender, julgue que QQ, como herdeiro legitimário da RR tem direito a ½ da parte que a esta caberia no quinhão hereditário de seus sogros.

Por último, alega a recorrente que a decisão incorreu em erro de julgamento, por desconsiderar que, tendo a interessada RR falecido antes do seu cônjuge QQ, seu herdeiro legitimário, este teria direito a ½ desta meação, ½ que cabe por inteiro à recorrente por ser a única herdeira do referido QQ.

A este respeito tem a recorrente inteira razão.

Falecida RR sem ascendentes, nem descendentes, a legítima do seu cônjuge é de ½ da herança (artº 2158 do C.C.). Nesta medida, não há que considerar que “Já o restante 1/2, que caberia a WW, será atribuído, em partes iguais, aos herdeiros testamentários desta: SS, TT, UU e VV.”.

Existindo notório lapso do despacho em causa na indicação do nome do cônjuge deste herdeiro legitimário, desconsiderou a decisão recorrida que este é também o único herdeiro legitimário de sua esposa previamente falecida, RR e que, portanto, haverá que dividir esta ½ em duas partes iguais e que, cabendo uma a QQ por força da legítima, a outra caberá em partes iguais aos demais herdeiros testamentários da RR.

Nesta medida dá-se parcial procedência a este recurso, cabendo à recorrente não só a ½ do quinhão hereditário que caberia ao QQ da herança deixada por óbito dos seus progenitores, mas também à ½ que constitui a legítima deste por via do decesso de RR, cabendo a outra ½, em partes iguais, aos herdeiros testamentários desta: SS, TT, UU e VV.


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DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes que compõem esta Relação em julgar parcialmente procedente a apelação e, em consequência alterar o despacho de forma à partilha e determinar que a restante 1/2, que caberia a RR, será dividida em duas partes:

-uma que constitui a legítima do seu cônjuge QQ, será atribuída à herdeira testamentária deste, AA;

-a outra, será atribuída em partes iguais, aos herdeiros testamentários desta: SS, TT, UU e VV.”
Custas pela apelante e apelados, na proporção do decaimento, a fixar a final. (artº 527, nº1 do C.P.C.)


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                                                                       Coimbra 23/04/24



[1] Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, pp. 84-85.
[2] Neste sentido vide LEBRE DE FREITAS e OUTROS, Código de Processo Civil Anotado, II Vol., 2001, p. 669, Ac. do T.R.Lisboa desta 6ª secção, de 19/10/06, Proc. nº 6814/2006-6, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26.4.95, Raul Mateus, CJ 1995 – II, p. 58, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2.6.2016, Fernanda Isabel Pereira, 781/11., Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 17.5.2012, Gilberto Jorge, 91/09, Ac. do T.R.P. de 29/09/2014, Proc. nº 2494/14.8TBVNG.P1.
[3] SOUSA, Miguel Teixeira de, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Editora Lex, 1997, pág. 221.
[4] GOMES, Manuel Tomé Soares, “Da Sentença Cível”, O Novo Processo Civil Textos e Jurisprudência (Jornadas de Processo Civil — Janeiro 2014), Caderno V, Centro de Estudos Judiciários, 2015, págs. 340-356
[5] cfr. REIS; Alberto Código de Processo Civil Anotado,  Vol. V, Coimbra Editora, pág. 141; acórdãos do STJ de 23/11/2006, proc. nº. 06B4007 e da RE de 19/01/2012, proc. nº. 1458/08.5TBSTB e de 19/12/2013, proc. nº. 538/09.4TBELV, Ac. do T.R.E. de 25/06/2015, Proc. nº 855/15.4T8PTM.E1 todos acessíveis em www.dgsi.pt
[6] LEBRE DE FREITAS, José, A Ação Declarativa Comum, 2000, pg. 298.
[7] CAPELO DE SOUSA, Rabindranath, Lições de Direito das Sucessões, Vol.I, 1º edição Coimbra Editora, 1993, pág. 62.