Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
17288/21.6T8PRT-A.P1.S1
Nº Convencional: 7.ª SECÇÃO
Relator: FÁTIMA GOMES
Descritores: EMBARGOS DE EXECUTADO
SOCIEDADE COMERCIAL
GARANTIA REAL
TERCEIRO
HIPOTECA
VALIDADE
PRINCÍPIO DA ESPECIALIDADE
SOCIEDADES EM RELAÇÃO DE GRUPO
ÓNUS DE PROVA
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
Data do Acordão: 01/11/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Sumário :
Não são contrárias à logica do art.º 6º. n.º3 do CSC as garantias prestadas pela sociedade dominada à sociedade dominante.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


I. RELATÓRIO

1. Por apenso à execução para pagamento de quantia certa que Caixa Geral de Depósitos, SA, moveu contra Scodiblue-Gestão, S.A, veio a executada Scodiblue-Gestão, Sociedade anónima, opor-se à execução por meio de embargos de executado, peticionando a extinção da execução.

Alega para o efeito que à data da constituição da hipoteca existia uma relação de domínio da S..., S.A. sobre a embargante; e invoca ser parte ilegítima para a execução, por não constar do título executivo com sendo devedora.

Alega a embargante que se limitou a constituir hipoteca sobre um dos imóveis de sua propriedade em garantia do empréstimo concedido à S..., S.A., sociedade dominante, sem qualquer remuneração, pelo que se deve considerar nula a hipoteca.

Mais se opôs à penhora, alegando que a hipoteca sendo nula não pode o bem que se mostrava onerado por ela ser penhorado.

Caso assim não se entenda, alega que a sua responsabilidade se encontra limitada ao bem sobre o qual constitui a hipoteca, não podendo ser penhorados quaisquer outros bens.

2. A exequente/embargada contestou impugnando, essencialmente, os argumentos alegados pela executada.

Concluiu pela improcedência dos embargos de executado e da oposição à penhora deduzidos.

3. Elaborou-se o despacho saneador, identificando-se o objeto do processo e temas de prova, sem reclamações.

4. Na sentença recorrida foi decidido:

«….6. Decisão:

Pelo exposto, julgo totalmente procedentes os presentes embargos de executado e, consequentemente, determino a extinção da execução de que estes autos constituem um apenso, com o consequente levantamento das penhoras realizadas.

Custas pela embargada.

R.N. e dê conhecimento ao Exmº SR. AE».

5. Inconformada com a sentença, veio a exequente interpor recurso, o qual foi admitido como de apelação a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.

6. E o Tribunal da Relação do Porto veio a proferir acórdão onde decidiu:

Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação improcedente, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas a cargo da apelante (art. 527º, nºs 1 e 2).”

7. A decisão contou com um voto de vencido, onde se diz:

Voto vencido quanto ao não enquadramento do caso dos autos no segmento final do nº 3 do artigo 6º do Código das Sociedades Comerciais, resumidamente pelos motivos a seguir indicados.

Em primeiro lugar, parecerá evidente que o mesmo legislador que no referido nº 3 do artigo 6º do CSC expressamente ressalvou a hipótese da integração em relação de domínio ou de grupo [mas não a hipótese de sociedades coligadas em relação de simples participação ou com participações recíprocas], nesse caso considerando válida a prestação de garantia a dívida a outra entidade, especificou as diversas situações em que para este efeito devemos concluir estarmos perante uma relação de domínio ou de grupo [artigos 486º e 488º a 508º, todos do Código das Sociedades Comerciais].

E, da letra da lei não resultando mínimo indício quanto a uma intenção do legislador histórico em restringir a validade das garantias apenas às prestadas pela sociedade dominante ou directora, não parece possível escapar a algum desconforto ao procurar estabelecer distinção neste campo [sendo difícil fugir ao espectro lançado pelo velho brocado latino da hermenêutica, «ubi lex non distinguit, nec nos distinguere debemus»].

Aliás, dois casos que notoriamente se integram na excepção prevista na parte final do nº 3 do artigo 6º do Código das Sociedades Comerciais reconduzem-se ao relacionamento que se estabelece entre sociedades de um grupo constituído por domínio total (artigos 488º a 491º do CSC), e entre sociedades que entre si celebraram contrato de subordinação (artigos 493º a 508º).

Ora, em qualquer uma destas 2 hipóteses, a sociedade dominante/directora é sempre garante do cumprimento das obrigações assumidas pela sociedade dominada/subordinada [artigos 491º e 501º, ambos do CSC].

Pelo que restringir o referido nº 3 do artigo 6º do Código das Sociedades Comerciais às garantias prestadas pela sociedade dominante/directora representa mera repetição de solução expressa constante de norma especial.

Ou seja, verdadeiramente, a solução defendida pelo tribunal a quo apenas seria aplicável aos casos de relação de domínio parcial e de contrato de grupo paritário – repete-se, mais uma vez, sem que tal radical redução do campo de aplicação da norma possua mínimo reflexo no texto legal.

Mas, obviamente, o argumento teleológico sempre deve constituir o ponto nuclear do raciocínio hermenêutico.

De acordo com o decidido pelo tribunal a quo, seguindo parte da doutrina e jurisprudência nacionais na matéria, se a «(…) sociedade dominante enquanto sócia da dependente tem sempre interesse no bom andamento da segunda, é lícito que garanta dívidas desta, (…) não assim em relação à sociedade dependente, o interesse desta e dos seus credores não se compaginam com o da dominante; As sociedades totalmente dominadas ou subordinadas nos casos em que estas não recebam instruções vinculantes para garantirem dívidas das sociedades dominantes ou diretoras não é o simples fato de se encontrarem em relação de grupo que lhes atribui capacidade para prestar as garantias».

E por isso entendeu, e decidiu, que «apenas se justifica excecionar a prestação de garantia quando a mesma seja prestada pela dominante a favor da dominada pelos fundamentos sobreditos», considerando nula, por violação do princípio da especialidade do fim consagrado no nº 1 do artigo 6º do Código das Sociedades Comerciais, a garantia em causa nos autos.

Com todo o devido respeito, o argumento não convence.

A personalidade colectiva não possui base ética, antes constitui instrumento técnico-jurídico colocado ao serviço da autonomia privada como ferramenta na prossecução de interesses e no alcançar de objectivos.

Pelo que o «interesse» da sociedade dominada mais não é que uma ficção, podendo muito bem dar-se o caso (aliás, será o mais provável) de o «interesse» conjunto de um grupo de sociedades ser algo que transcende cada uma delas de per si – o interesse económico relevante não pode deixar de referir-se ao grupo.

Parece claro, pois, que da restrição defendida pelo tribunal a quo decorre notória limitação da aptidão de um instrumento jurídico para livremente atingir os objectivos que legitimamente estão na base da criação do grupo de sociedades e para prosseguir os interesses em que se fundou a decisão de estabelecer a relação entre essas sociedades – o que mais não representa que limitação do princípio da autonomia privada.

A tutela dos credores também não justifica a solução.

Sendo o crédito posterior à criação da relação de domínio ou de grupo, os credores sabem já da integração da sociedade dominada numa estrutura que a transcende, e, por isso, da sua afectação à prossecução de interesses que não se resumem ao seu estrito âmbito de actividade – afigurando-se que na constituição do crédito não pode deixar de ter sido equacionado o risco de incumprimento eventualmente decorrente dessa integração.

Sendo o crédito anterior à criação da relação de domínio ou de grupo, a inovatória imposição de tal risco não parece desproporcionada na medida em que lhe está associado o alavancar da actividade negocial precisamente decorrente da integração em estrutura de superior dimensão – ou seja, o incremento do benefício decorrente da integração anda lado a lado com o risco de incumprimento decorrente da mesma integração.

Por tudo isto consideraria que o caso dos autos, em que a insolvente detinha 98% do capital social da embargante, deve ser integrado na parte final do nº 3 do artigo 6º do Código das Sociedades Comerciais, sendo desnecessária a demonstração de qualquer interesse específico da sociedade dominada para afirmar a validade da garantia prestada perante a exequente [cfr, por todos, neste sentido, o ensinamento do Prof. Menezes Cordeiro, in “Direito das Sociedades I – Parte Geral”, Livraria Almedina, 2022, página 378; bem como o decidido pelo Tribunal da Relação de Guimarães no seu acórdão de 22 de Fevereiro de 2018, processo nº 2522/16.2T8BRG.G1, disponível em www.dgsi.jtrg.pt/], com o que julgaria procedente o recurso.”

8. Foi apresentado recurso de revista pela exequente, onde se conclui (transcrição):

A. O presente recurso de revista vem interposto do Acórdão da 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto, datado de 29/09/2023, que negou provimento ao recurso de apelação da Recorrente por considerar que não se verificam qualquer das exceções enunciadas na segunda parte do art.º 6º, nº3, do C.S.C e que a prestação da garantia era contrária aos interesses da embargante, pelo que a hipoteca é nula por violação daquela disposição legal, bem como não se verificaram os pressupostos de abuso de direito na modalidade de “venire contra factum proprium”, decisão com a qual a Recorrente não se pode conformar.

B. O objecto do recurso de revista em apreço diz respeito à matéria de direito, sendo que decisão recorrida padece de erro de julgamento, não fez a melhor interpretação dos factos nem da interpretação e aplicação das normais de Direito que se impunham, não houve uma correta subsunção dos factos ao direito em virtude da prova produzida e constante dos autos, pelo que carece de ser revogada e alterada, só assim se fazendo Justiça!

C. De forma sumária, temos que foi nos autos executado pela ora Recorrente contrato de Abertura de conta-corrente com hipoteca e pacto de preenchimento de livrança, celebrado por Instrumento notarial avulso, em 24/09/2013, com a sociedade "S..., S.A.", na qualidade de mutuária, e com a Executada/recorrida na qualidade de parte hipotecante, ambas representadas por AA.

D. Interpelada a hipotecante para proceder ao pagamento da responsabilidade executada, nada pagou.

E. Foi junta aos autos cópia do Contrato celebrado através de Instrumento Notarial avulso, o extrato da operação executada, nota de débito, cópia da livrança que garante a operação, carta de interpelação e a Certidão de Registo Predial do Imóvel penhorado do qual consta o registo da hipoteca nos termos do contrato executado (AP. 2725 de 2013/09/24), os quais não foram impugnados.

F. A Recorrida veio opor-se à execução por meio de Embargos de Executado alegando a nulidade dahipoteca, por violação do artigo6.º n.º 3 do Código dasSociedadesComerciais, e também por à data da celebração do contrato e da constituição da hipoteca existir uma relação de domínio total da “S..., S.A., S.A” sob a recorrida, pelo que não obteve qualquer benefício ou remuneração com a hipoteca constituída.

G. O Despacho-Saneador fixou como questões a decidir: - a responsabilidade da executada/hipotecante pelo pagamento da quantia exequenda/nulidade da garantia prestada e a nulidade da penhora e como temas da prova: a) da atuação do acionista AA em seu proveito exclusivo, utilizando bens da hipotecante; b) Interesse da hipotecante na celebração do contrato de créditos em conta corrente e; c) relação entre a hipotecante e a sociedade devedora.

H. O Tribunal de 1.ª instância veio julgar a oposição mediante embargos de executado procedente com base na convicção formada pela conjugação da valoração da prova testemunhal e dos documentos anexos ao requerimento executivo, concluindo assim que não se verificava qualquer das exceções enunciadas na segunda parte do art.º 6º, nº3, do C.S.C; decisão essa que foi confirmada na instância superior, com um voto vencido.

I. A decisão confirmada na instância superior, salvo o devido respeito que é muito, põe em causa o normal funcionamento do tráfego jurídico, pondo em causa o princípio da confiança que deve estar subjacente a qualquer relação jurídica, pois que a Credora, um Banco, crente de que o seu crédito estava garantido por um imóvel, motivo essencial para a prestação do mesmo, e que tal garantia era perfeitamente lícita e regular, atendendo às declarações prestadas pela Embargante e às disposições legais aplicáveis, se vê, de um momento para o outro, incapaz de recuperar o crédito concedido em virtude de a Embargante vir, nove anos depois da prestação da garantia, e apenas após a Embargante executar a garantia, invocar a nulidade daquela garantia, sem que antes tivesse tomado qualquer postura que pudesse fazer antever tal invocação, mesmo quando, previamente à presente acção, foi interpelada do incumprimento e para, querendo, proceder ao pagamento das responsabilidades garantidas pela hipoteca em questão (vide Documento n.º 3 junto com o requerimento executivo), interpelação essa que ignorou, não tendo invocado qualquer invalidade da hipoteca constituída;

J. Mais, a douta decisão, salvo o devido respeito por melhor opinião que é muito, gera um cenário flagrante de enriquecimento sem causa, em prejuízo do credor hipotecário que se vê lesado, não só do empréstimo concedido, mas também da garantia prestada!!!

K. Pelo que no entender da Recorrente estamos perante uma a violação da lei substantiva e da errada aplicação da lei do processo – artigo 674.º, n. º1, alíneas a) e b) e n. º3 do Código de Processo Civil,

Porquanto,

L. O douto Acórdão recorrido concluiu, a final, que a Embargante estava para com a “S..., S.A., S.A” numa relação de domínio total, em que ela era “absolutamente influenciada, pelo que a constituição da garantia hipotecária de um prédio da suapropriedade a favor da Exequente padece de nulidade, não se enquadrando o caso dos autos no segmento final do n.º 3 do artigo 6.º do C.S.C e que inexistia de abuso de direito na invocação da nulidade por parte da Embargante dado que se limita a invocar a nulidade tendo em conta o teor normativo previsto no Código das Sociedades Comerciais, não tendo praticado nenhum acto em sentido oposto a essa invocação ou que fosse enquadrável nesse instituto.

M. Resultou provado que, à data da outorga do “contrato de abertura de crédito de conta com hipoteca e pacto de preenchimento de livrança”, ou seja, em 24.09.2013, a sociedade “S..., S.A.” detinha 98% do capital social da Embargante ( cfr. factos provados n.º 3.1.1., 3.1.11. a 3.1.12.2.), sendo, assim, inquestionável a existência de uma relação de domínio entre as duas sociedades comerciais em questão, o que, aliás, a Embargante confessa, desde logo, no seu requerimento inicial que deu origem aos presentes autos.

N. Mais resultou provado que, como garantia do capital mutuado, respetivos juros e despesas foi constituída pela executada “Scodiblue Gestão, Ldª” hipoteca sobre um prédio, de sua propriedade; interveio neste ato o Sr. Engº AA que outorgou o contrato na qualidade de Administrador Único em representação da sociedade “S..., S.A.” (parte devedora) e ainda com sócio e único gerente em representação da sociedade “Scodiblue - Gestão Ldª”, tendo por base uma deliberação societária, da aqui Embargante, que aprovou garantir através de hipoteca, a referida operação de financiamento, realizada a favor do seu acionista dominante, com o fundamento da operação ser no interesse da Embargante; o Banco aceitou a hipoteca constituída no contrato e o pacto de preenchimento de livrança nos termos exarados no mesmo documento e; de tal instrumento avulso ficou a constar que as sociedades “S..., S.A.” e a sociedade “Scodiblue - Gestão Ldª” “encontram-se em relação de domínio, sendo “S..., S.A.” detentora de 98% do capital social da Scodiblue (pontos 3.1.4;3.1.17;3.1.18;3.1.19 e 3.1.22)

O. É, pois, conforme já supra salientado, inequívoco que as sociedades in casu estavam numa relação de domínio total, não nos parecendo, no entanto, ao contrário do sustentado pelo Tribunal de Primeira Instância e por dois dos Venerandos Juízes Desembargadores do Tribunal da Relação do Porto, defensável (ao menos de jure condito), face à redacção da lei vigente, em concreto do n.º 3, do artigo 6.º, do Código das Sociedades Comerciais, tratar de forma diferente situações em que temos uma garantia prestada pela sociedade dominada à dominante da inversa (isto é, garantia prestada pela sociedade dominante à dominada).

P. Numa situação de relação de domínio, os interesses das sociedades não terão necessariamente de convergir, circunstância criada legislador, ao possibilitar que se “integrem”/coexistam numa coligação societária interesses totalmente antagónicos.

Q. No caso dos autos, estamos perante um cenário de garantia Upstream, que nada mais é a situação em que uma das sociedades “filhas” presta uma garantia a uma obrigação da sociedade mãe.

R. Nesta temática, refiram-se as posições defendidas por PEDRO DE ALBUQUERQUE que postula que “as garantias podem ser prestadas quer pelas sociedades dominadas como pelas sociedades dominantes, ao afirmar “o nosso legislador foi tão eloquente quanto o podia ter sido”, não se vislumbrando necessidade alguma de se proceder a uma interpretação restritivo-teleológica, atendendo a que o mesmo acredita que o legislador versou na letra da lei tudo o que pretendia ver consagrado e JOÃO LABAREDA, ao afirmar que “o proveito, decorrente da prestação de garantias, seja esta prestada pela dominada ou pela dominante, é do interesse geral de toda a coligação, “o que justifica a extensão da capacidade das sociedades de modo a abranger a prestação de garantias a dívidas de outra em caso de relação de domínio é a suposição legal do proveito mútuo na contratação ou manutenção da dívida garantida.”, pelo que no que tange aos interesses tanto a sociedade dominante teminteressena prosperidade e sobrevivência da sociedade dominada e o inverso também (in Dissertação de mestrado “Garantias prestadas entre Sociedades Coligadas, págs. 74 e seguintes).

S. Também aqui será de referir, com maior relevo e destaque, a posição adotada pelo voto vencido do Exmo. Senhor Juiz Desembargador Dr. António Carneiro da Silva que: “E, da letra da lei não resultando mínimo indício quanto a uma intenção do legislador histórico em restringir a validade das garantias apenas às prestadas pela sociedade dominante ou directora, não parece possível escapar a algum desconforto ao procurar estabelecer distinção neste campo [sendo difícil fugir ao espectro lançado pelo velho brocado latino da hermenêutica, «ubi lex non distinguit, nec nos distinguere debemus»]. (..)“o «interesse» da sociedade dominada mais não é que uma ficção, podendo muito bem dar-se o caso (aliás, será o mais provável) de o «interesse» conjunto de um grupo de sociedades ser algo que transcende cada uma delas de per si – o interesse económico relevante não pode deixar de referir-se ao grupo.”. (..) “Por tudo isto consideraria que o caso dos autos, em que a insolvente detinha 98% do capital social da embargante, deve ser integrado na parte final do nº 3 do artigo 6º do Código das Sociedades Comerciais, sendo desnecessária a demonstração de qualquerinteresse específico da sociedade dominada para afirmar a validade da garantia prestada perante a exequente [cfr, por todos, neste sentido, o ensinamento do Prof. Menezes Cordeiro, in “Direito das Sociedades I – Parte Geral”, Livraria Almedina, 2022, página 378; bem como o decidido pelo Tribunal da Relação de Guimarães no seu acórdão de 22 de Fevereiro de 2018, processo nº 2522/16.2T8BRG.G1, disponível em www.dgsi.jtrg.pt/], com o que julgaria procedente o recurso,” posição que acolhemos.

T. Não se pode olvidar que a norma em questão nunca foi alvo de qualquer modificação, pelo que é de concluir que o legislador, sempre atendo à necessidade de clarificar as normas vigentes que ao longo dos anos vão gerando dúvidas de interpretação e/ou aplicação, ou de as alterar atendendo à evolução da realidade social e económica vigente a cada momento, se não alterou a norma em discussão é, certamente, porque entende que a mesma é clara, não pretendendo restringir o seu âmbito de aplicação (nomeadamente, como entenderam as demais instâncias, no sentido de que as garantias prestadas em situações de sociedades de relação de domínio apenas são válidas (independentemente do interesse que a sociedade garante tenha na sua prestação) quando seja a sociedade dominada a prestá-la à sociedade dominante;

U. A este propósito, já é vária a jurisprudência que se manifestou nesse sentido, sendo aqui de destacar o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora (Processo n.º 437/14.8TBVRS.E1; em http://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/e374151b3f8eb033802580ec0057865f?OpenDocument), que estabelece que (..) “É precisamente por causa da tutela e do regime próprio das relações de grupo que se deve basear a interpretação do artigo 6.º n.º 3. Dada a configuração do poder de direcção, o regime derrogatório das relações de grupo, a previsão expressa da lei da possibilidade de instruções desvantajosas às sociedades filiais e toda a dinâmica de recursos que a prática legitimou entre as agrupadas, não faz sentido limitar a faculdade de prestação de garantias dentro da realidade de um grupo de sociedades. Serão válidas as garantias prestadas pelas sociedades integralmente dominantes ou directoras, às integralmente dominadas ou dependentes, e vice-versa e (..)Provando-se que à data da outorga das referidas escrituras públicas de hipoteca a sociedade garantida era detentora da totalidade do capital social da sociedade garante estando para com esta numa relação de domínio total não haveria que indagar sequer da (in) existência de interesse da sociedade autora na prestação das garantias em apreço porque este, graças à relação de grupo por domínio total com a sociedade beneficiária, se presume.

V. Continua o douto Acórdão: Por isso, o controlo, enquanto uma das formas de expressão da unidade, ultrapassa a noção de interesse social, passando a relevar o interessedogrupo. É essaa opção da lei, patente nos artigos 491.º, 493.º, 503.º, 504.º e 6.º n.º 3, sob pena de se desproteger a sociedade mãe, respectivos sócios e credoressociais.(..)Opreceito não deve, portanto, serinterpretadorestritivamente, ou seja, para Pedro de Albuquerque, quer as relações de grupo, quer as relações de domínio – que qualifica como grupos de facto – comportam a faculdade de prestação de garantias, qualquer que seja a sociedade garante.

W. Posição idêntica é perfilhada no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães (Processo n.º 2522/16.2T8BRG.G1, em http://www.dgsi.pt/jtrg.nsf/86c25a698e4e7cb7802579ec004d3832/b9722dc09bbc c8ac8025835800344e7c?OpenDocument, que consagra: “Estando provado que as duas sociedades partes do processo faziam parte na altura em que ocorreu o acordo em discussão nos autos do mesmo grupo de sociedades vedado é discutir a questão do interesse, justamente porque o citado artigo 6.º exclui a nulidade quando as sociedades estejam, justamente, numa relação de domínio e de grupo. Se assim se verificar, a garantia tem-se dentro do fim da sociedade garante. E se tem interesse, esse acto está compreendido naqueles actos que lhe permitem atingir o seu fim, na acepção do n.º 1 do art. 6.º.”

X. Por conseguinte, seguindo a orientação jurisprudencial citada, in casu, provada que ficou a relação de domínio entre as duas sociedades (aliás confessada pela Embargante), não haveria sequer que indagar sobre a (in)existência de interesse próprio da Embargante na prestação da garantia, uma vez que tal seria irrelevante para a decisão a proferir nos presentes autos, já que estava provada factualidade subsumível a uma das excepções previstas na norma em discussão, segundo a qual, provada aquela relação de domínio a prestação da garantia é válida.

Y. Pelo que, salvo o devido respeito por melhor opinião, no caso dos autos, provado que foi a existência da relação de domínio entre a sociedade dominada e dominante, decisão diversa se impunha, pois que, a prestação de garantias, sejam elas upstream ou downstream, isto é ascendentes ou descendentes, deverão considerar-se admissíveis.

Z. Neste sentido, também destacamos Ana Perestrelo de Oliveira (in “Manual de Grupos de Sociedades” Almedina, 2017 pp 187): “Considera-se hoje que vigora maioritariamente na ordem jurídica portuguesa uma regra de ilimitação da capacidade as sociedades, com a ressalva das situações incompatíveis com a personalidade colectiva. Deve entender-se, por um lado, que o “justificado interesse próprio” aí referido apenas à sociedade compete determinar, e que por outro lado a possibilidade de prestação de garantias intragrupo é genericamente consagrada. Perante a amplitude de referência legal “à relação de domínio ou de grupo” e a realidade económica do grupo, dúvidas não haverá em considerar admissível a prestação de garantias tanto downstream como uptream, seja no caso da relação de grupo ou de domínio.”

AA. Tendo presente o que antecede, facilmente se chega à conclusão que não faz sentido restringir a prestação de garantias no âmbito da realidade do grupo societário e assim, também deverá ser entendida como aceite e em conformidade com o 6.º, n. º3 doCódigodas Sociedades Comerciais, a prestação de garantias entre sociedades dominadas às dominantes e vice-versa.

BB. O legislador, caso pretendesse restringir às sociedades dominantes, teria escrito expressamente na letra da lei “se se tratar de sociedade dominante em relação de domínio”.

CC. Com efeito, como postula o velho brocardo latino, conforme salientado pelo Juiz Desembargador do Tribunal da Relação no seu voto de vencido, “ubi lex non distinguit, nec nos distinguere debemus” (“onde a lei não distingue, não pode o intérprete distinguir”).

DD. Assim, se a posição assumida pelas instâncias inferiores (e, não ignoramos, por alguns Autores) possa ser eventualmente defensável “de jure condendo” (embora entendamos que não seja a melhor solução para o normal funcionamento do tráfego jurídico), a verdade é que não encontra qualquer respaldo na lei vigente (desde 1986), não podendo o aplicador da Lei recusar a aplicação da mesma tal como é, por entender que deveria ser eventualmente diferente, sendo certo que, tal situação, irá colocar em causa a estabilidade do tráfego jurídico e das relações jurídicas estabelecidas com base na lei vigente, nunca alterada.

EE. Salvo melhor opinião, conforme se disse e se reitera, uma interpretação restritiva do normativo em referência não tem respaldo na letra da lei e o legislador, se quisesse limitar a validade da prestação da garantia" consoante a posição (dominante ou dominada) que a sociedade garante ocupasse , certamente o teria previsto expressamente, ou, conforme já supra salientado, fosse essa a sua intenção inicial, apercebendo-se que a redacção do texto inicial estava a gerar uma interpretação/aplicação não consentânea com a sua intenção, já teria revisto o texto da norma de modo a não gerar dúvidas de interpretação/aplicação.

FF. Concluindo, in casu, resultou provado, quer em sede de 1.ª instância, quer em sede de apreciação pelo Tribunal da Relação do Porto, que as sociedades em referência se encontravam numa relação de domínio (sendo tal, igualmente, confessado pela própria Embargante) e assim sendo, estamos perante uma situação subsumível no número 3 do artigo 6.º do Código das Sociedades Comerciais, pelo que desde logo, preenchido que está este requisito, temos forçosamente que concluir que a garantia é válida!!!

GG. Termos em que deverá serrevogado o douto acórdão recorrido e substituído por outro que considere o caso dos autos enquadrável na parte final do número 3 do artigo 6.º do C.S.C (porquanto se logrou provar a existência da relação de domínio entre a sociedade dominante e a sociedade dominada), com que fará seja julgado procedente o recurso interposto pela aqui Recorrente.

No mais,

HH. Dúvidas não podem subsistir de que a atuação do gerente da Embargante foi legitimada dentro dos poderes que a lei lhe confere, tendo o mesmo vinculado a predita sociedade perante terceiros, concretamente a Recorrente.

II. Mais, os documentos juntos aos autos constituem título executivo e são documentos autênticos (artigo 369.º do Código Civil) que fazem prova plenas dos factos deles constantes (artigo 371.º do Código Civil), os quais não foram impugnados nem tão pouco arguida a sua falsidade (artigo 372.º do Código Civil) e foram ainda corroborados pelo depoimento da testemunha BB em 04 de Julho de 2022, pelas 11.00 horas, constante da prova gravada do Ficheiro ............01_16116106_2871477.

JJ. Não foi alegada ou arguida a nulidade, falsidade dos documentos ou tão pouco que a Embargante tenha sido em algum momento “obrigada” ou “coagida” à prática de tal acto! Tal matéria nunca esteve em causa em sede dos articulados.

KK. E conforme consta do instrumento notarial avulso do contrato executado, a mencionada Ata foi arquivada com o instrumento notarial e atestou os poderes do gerente AA, representante de ambas as sociedades à data da celebração (cfr. fls. 2 do Instrumento Notarial avulso), assim como consta como provado que a garantia hipotecária foi constituída pela Recorrida após deliberação societária que aprovou garantir através de hipoteca a referida operação de financiamento, realizada a favor do seu acionista dominante,como fundamento da operação sernointeresse da Embargante (facto provado n.º 3.1.18), pelo que temos como claramente assente e insofismável que, ficou demonstrado o interesse e a existência de relação de domínio, pelo que não se podia concluir que a garantia prestada era contrária ao fim da executada, pelo contrário, tratou-se de hipoteca validamente constituída e no interesse da sociedade garante.

LL. E salvo o respeito por opinião diversa, a decisão de que ora se recorre abre uma porta e um precedente perigoso, que não foi de todo a intenção do legislador, para uma violação do princípio da tutela da confiança legítima, lesiva dos credores e terceiros de boa-fé, o que não pode proceder.

MM. Revertendo no caso dos autos, não se encontram reunidos pressupostos que possam afastar a aplicabilidade do n.º 3, doartigo6.º do Código das Sociedades Comerciais, enquadrando-se o mesmo não só numa, mas nas duas excepções previstas na parte final do número 3 do artigo 6.º do C.S.C, concretamente: a) existência de justificado interesse próprio da sociedade garante (ponto 3.1.18 dos factos provados) e; b) a Embargante era sociedade em relação de domínio ou de grupo (3.1.22 dos factos provados).

Por último,

NN. No que concerne a alegada inexistência de abuso de direito na invocação da nulidade por parte da Embargante refere o douto Acórdão do Venerando Tribunal da Relação que “(..) Consideramos que não existe nenhum abuso do direito por parte da embargante dado que se limita a invocar a nulidade tendo em conta o teor normativo previsto do Código das Sociedades Comerciais e por outro lado não praticou nenhum acto em sentido oposto a essa invocação ou que fosse enquadrável nesse instituto”, entendimento que não podemos perfilhar.

OO. Salvo o devido respeito por opinião diversa, in casu, a invocação da nulidade da hipoteca por violação das exceções constantes do n.º 3, do artigo 6.º constitui de forma grosseira abuso de direito na figura do venire contra factum proprium, nos termos e para os efeitos do artigo 334.º do C.Civil.

PP. São pressupostos desta modalidade de abuso do direito – venire contra factum proprium – os seguintes: a existência dum comportamento anterior do agente suscetível de basear uma situação objetiva de confiança; a imputabilidade das duas condutas (anterior e atual) ao agente; a boa fé do lesado (confiante); a existência dum “investimento de confiança”, traduzido no desenvolvimento duma atividade com base no factum proprium; o nexo causal entre a situação objetiva de confiança e o “investimento” que nela assentou.

QQ. Resulta da prova carreada nos autos e de todo o supra exposto que a Embargante praticou atos no sentido oposto a que um dia viesse a invocar a nulidade – de destacar que desde logo ficou expresso no contrato que as sociedades se encontravam em relação de domínio, sendo a primeira detentora de 98% do capital da segunda - pelo que se depreende que tal tinha ficado a constar do contrato porque ambas as partes reconheciam que tal menção era critério para afastar a nulidade da prestação da garantia.

RR. Sendo certo que, tal contrato foi assinado, “Tendo por base uma deliberação societária, da aqui Embargante, que aprovou garantir através de hipoteca, a referida operação de financiamento, realizada a favor do seu acionista dominante, com o fundamento da operação ser no interesse da Embargante” (facto provado n.º 3.1.18);

SS. Tal questão já mereceu pronúncia jurisprudencial, sendo que trazemos aqui à colação o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa (Processo 8489/19.8T8LSB-A.L1-8., em http://www.gde.mj.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/ff272a851d8b65df 8025897a00540b78?OpenDocument: que estabeleceu que (..) “Impende sobre a sociedade garante, que invoca a nulidade da garantia por si prestada, com o objectivo de não cumprir a obrigação garantida, o ónus de alegação e prova da inexistência de interesse próprio e/ou de influência dominante, mormente quando afirmou a sua existência aquando da prestação da garantia;” e que “A invocação da nulidade da garantia prestada ao abrigo do art.º 6.º, n.º 3, do CSC, deve ser considerada abusiva, nos termos e para os efeitos do art.º 334.º do CC, por exceder manifestamente os limites impostos pela boa fé, violando o princípio da tutela da confiança legítima, quando a sociedade garante adopta um comportamento com que, razoavelmente, não se contava, face à conduta anteriormente assumida (em que afirmou, expressamente, a existência de interesse próprio na prestação da garantia e a existência de uma relação dominante ou de grupo entre si e a entidade garantida) e às legítimas expectativas que gerou”.

TT. Ainda que se entendesse que, incasu, não se encontrava preenchida nenhuma das excepções previstas no n.º 3 do art.º 6.º do CSC, o que só por mera hipótese académica se admite, a arguição de nulidade da garantia por parte da sociedade garante, em face das circunstâncias do caso concreto, é claramente abusiva, nos termos do artigo 334.º do CC, por atentar contra o princípio da tutela da confiança legítima decorrente do princípio da boa fé, por a mesma adoptar um comportamento com que, razoavelmente, não se contava, face à conduta anteriormente assumida e às legítimas expectativas que gerou.

UU. Como refere ainda o predito Acórdão, mutatis mutandis, “No caso dos autos, e tal como se entendeu na sentença recorrida, «a embargante fundamenta a sua oposição com factos que estão em manifesta contradiçãocom os acordosque celebrou com os exequentes, nãovindoa mesma invocar quaisquer factos posteriores à celebração dos acordos e que lhe permitissem a sua apresentação. Com esta sua conduta (factum proprium), a embargante atenta contra a boa-fé, constituindo o seu comportamento uma violação dos limites impostos pela boa-fé e pelos bons costumes. (…) Ou seja, a M não só constituiu a garantia, declarando, por diversas vezes, aos BancosExequentesterum justificadointeresseprópriona sua prestação, como afirmou, por diversas vezes, fazer parte do Grupo Y. Neste contexto, a alegação de que a garantia prestada é nula com base na alegada inexistência de interesse próprio da Mna sua constituição e na alegada inexistência de uma relação de Grupo contraria totalmente os limites impostos pela boa-fé, uma vez que contradiz o comportamento assumido anteriormente pela M, violando a legítima confiança depositada pelos exequentes na veracidade das suas declarações. Como bem alegam os embargados, a situação de confiança criada estava conforme com o sistema, tendo os Bancos Exequentes tomado todas as precauções que lhes eram exigíveis, nomeadamente, garantindo que o interesse próprio que a M declarava se encontrava apoiado numa deliberação do seu Conselho de Administração.”

VV. Sobre situação análoga, entendeu já esse douto STJ, em acórdão de 10.01.2017, in www.dgsi.pt, que «deve ser considerada abusiva, nos termos e para os efeitos do art. 334.º do CC, por exceder manifestamente os limites impostos pela boa fé, a invocação judicial da nulidade de uma garantia prestada por uma sociedade, ao abrigo do art. 6.º, n.º 3, do CSC, quando quem assim actua é uma sociedade representada pela mesma pessoa física que propôs a constituição da garantia, interveio na acta da assembleia geral que aprovou a sua prestação afirmando expressamente a existência de interesse próprio e, além disso, teve prévio conhecimento do negócio sem opor nenhuma objecção» (veja-se, no mesmo sentido, o acórdão da RC de 04.05.2022, supra citado).Enfim, agindo a embargante em evidente abuso de direito, a arguição da nulidade em causa sempre seria ilegítima e, por conseguinte, improcedente a sua oposição à execução.”

WW. Posto o supra referido sempre se dirá ainda que, a Embargante não desconhecia a existência e o teor das declarações ínsitas na escritura da hipoteca e na ata da deliberação societária (isto é, que a sociedade garante e beneficiária se encontravam numa relação de domínio e que a garantia era prestada também no interesse da sociedade garante), o que resulta inclusive dos artigos 21.º, 29.º e 31.º da contestação, sendo certo que, além de tal constituir confissão, apenas ao fim de 9 anos e conhecendo o teor dos mencionados documentos, na sequência de ser citada para os presentes autos, vem invocar a nulidade da hipoteca com os fundamentos que apresentou, sem nunca antes de ter transmitido ao mutuante que não reconhecia a validade da hipoteca.

XX. Nem mesmo, conforme já supra referido, quando, previamente à presente acção, foi interpelada do incumprimento e para, querendo, proceder ao pagamento das responsabilidades garantidas pela hipoteca em questão (cfr. Documento n.º 3 junto com o requerimento executivo), interpelação essa que ignorou, não tendo invocado qualquer invalidade da hipoteca constituída.

YY. O “venire contra factum proprium” é, assim, o assumir de comportamentos contraditórios que violam a regra da boa-fé e é dotado de carga ética, psicológica e sociológica negativa. Logo, o conflito de interesses e a subsequente necessidade de tutela jurídica apenas surgem quando alguém, estando de boa-fé, com base na situação de confiança criada pela contraparte, toma disposições ou organiza planos de vida de onde lhe resultarão danos se a sua legítima confiança vier a ser frustrada.

ZZ. Ora, “in casu” é para nós manifesto que, em face da factologia provada nos autos, convictamente cremos que a Recorrida ao arguir em sede de contestação a nulidade da garantia age em manifesto abuso de direito.

AAA. É por demais evidente queno caso concreto severificam e estão preenchidos todos os pressupostos de instituto do abuso de direito, na modalidade de “venire contra factum proprium”, ou seja, i) uma situação de confiança, traduzida numa boa-fé subjectiva; ii) uma justificação para essa confiança, consistente no facto de a confiança ser fundada em elementos razoáveis; iii) um investimento de confiança, consistente no facto de a destruição da situação de confiança gerar prejuízos graves para o confiante, em virtude de ele ter desenvolvido actividades jurídicas em virtude dessa situa ção; e iv) a imputação da situação de confiança criada a outrem, levando a que este possa ser considerado responsável pela situação.

BBB. E conforme Ac. do STJ de 12-11-2013, no Proc. nº 1464/11.2TBGRD-A.C1.S1,

“O princípio da confiança é um princípio ético fundamental de que a ordem jurídica em momento algum se alheia; está presente, desde logo, na norma do art. 334.º do CC, que, ao falar nos limites impostos pela boa fé ao exercício dos direitos, pretende por essa via assegurar a protecção da confiança legítima que o comportamento contraditório do titular do direito possa ter gerado na contraparte”.

CCC. Em resumo: a Recorrente podia fundadamente confiar que, face ao factum proprium (constituição da hipoteca para garantia do pagamento das quantias mutuadas, invocando uma relação de domínio e um interesse próprio na prestação daquela garantia, sustentada em acta deliberativa da Assembleia Geral), a Recorrida reconhecia a validade da hipoteca constituída e não viria, a posteriori, nove anos depois, e apenas na sequência de citação judicial para execução da hipoteca, deduzir defesa por exceção invocando a nulidade dessa mesma garantia.

DDD. Pelo que se tem como inadmissível e, sem dúvida, contrário à boa-fé a conduta assumida pela Recorrida, na exata medida em que trai (u) a confiança gerada na Recorrente pelo seu comportamento anterior.

EEE. Assim sendo, sem necessidade de maiores considerações e brevitatis causa, deverão improceder in totum as conclusões do Venerando Tribunal da Relação no que se refere ao não enquadramento da conduta da Recorrida no instituto doabuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium, com que fará, por conseguinte, a procedência do presente recurso, com as legais consequências.”

10. Foram apresentadas contra-alegações, onde se considera que o recurso não deve ser admitido por não ter conclusões e, à cautela, se defende a manutenção do decidido.

11. O recurso foi admitido com a prolação do seguinte despacho:

II. Fundamentação

De facto

12. Das instâncias vieram provados os seguintes factos:

1. A Caixa Geral de Depósitos (CGD), deu à execução como titulo executivo um documento denominado “Contrato de abertura de Crédito de Conta com hipoteca e pacto de preenchimento de livrança celebrado a 24/09/2013 até ao montante de 250.000,00 euros (duzentos e cinquenta mil euros) para apoiar exclusivamente a parte devedora, sempre que se tornasse necessário provisionar a sua conta de depósitos à ordem, para fazer face aos pagamentos decorrentes de responsabilidades assumidas perante a CGD, celebrado entre si e a S..., S.A.

2. O montante contratado foi disponibilizado na conta corrente titulada pela sociedade “S..., S.A.”.

3. Para garantia do capital mutuado respetivos juros e despesas foi entregue uma livrança em branco subscrita pela devedora, a “S..., S.A.”, e avalizada por AA.

4. Ainda como garantia do capital mutuado, respetivos juros e despesas foi constituída pela executada “Scodiblue Gestão, Ldª” hipoteca sobre a fração autónoma designada pela letra R destinada a habitação inscrita na matriz sob o artigo 6203-R e descrita na Conservatória do Registo Predial sob o nº 139-R, da freguesia de ... do concelho ..., com o valor atribuído de 132.000,00 euros, propriedade da executada “Scodiblue Gestão, Ldª”

5. A devedora “S..., S.A.” foi declarada insolvente assim como o avalista AA.

6. A “SCODIBLUE - GESTÃO, LDª”, matriculada na competente conservatória do Registo Comercial sob o número de matrícula e pessoa coletiva ... ...61, com sede na Rua ..., 571, habitação 33, do distrito e concelho ... da freguesia de ..., foi constituída no ano de 2008, cujo registo se reporta à ap.40/20081124, com o capital social de 5.000.00 euros.

7. O seu capital social encontrava-se dividido em duas quotas, uma no valor nominal de 4.900.00 euros de que era titular AA e outra no valor nominal de 100.00 euros de que era titular CC.

8. Obrigava-se a sociedade pela intervenção de um gerente, sendo que a 24/11/2008, foi designado o sócio AA.

9. A 21/09/2011 o sócio AA adquiriu a quota de que era titular o sócio CC do valor nominal de 100.00 euros, e cedeu a quota do valor nominal de 4.900.00 euros de que era titular à sociedade S..., S.A.

10. No ano de 2012, sendo agora sócios da “SCODIBLUE - GESTÃO, LDª”, AA, titular de uma quota do valor nominal de 100.00 euros e a sociedade “S..., S.A.” titular de uma quota do valor nominal de 4.900.00euros.

11. Em 28/12/2012, ocorreram algumas alterações na estrutura da sociedade, designadamente a deliberação do aumento do capital social de 45.000,00 euros, na modalidade de incorporação de reservas livres.

12. Aquelas mencionadas quotas foram reforçadas do seguinte modo:

12.1. O sócio AA com a quantia de 900.00 euros, passando a sua quota a ter o valor nominal de 1.000,00 euros,

12.2. A sócia “S..., S.A.”, com a quantia de 44.100,00 euros, passando a sua quota a ter o valor nominal de 49.000,00 euros.

13. A 29/06/2015 foi deliberado aprovar a transformação da sociedade e o modo de conversão das participações sociais, sendo que que para cumprir as formalidades legais para transformação de tal sociedade para anónima, o sócio AA dividiu a sua quota do valor nominal de 1.000 euros em quatro novas quotas três com o valor nominal de um euros e outra que reservou para si do valor nominal de 997.00 euros , e cedeu aquelas três referidas quotas do valor nominal de 1 euro, respetivamente a DD, EE e a FF.

14. Após tais cessões, e, portanto, em 2015, o capital da Scodiblue ficou detida pelos seguintes sócios e nas seguintes proporções:

14.1. W..., SA (com a anterior denominação de S..., S.A.) – 49.000,00 euros;

14.2. AA - 997.00 euros;

14.3. DD - 1, 00 euro;

14.4. EE - 1, 00 euro;

14.5. FF - 1, 00 euro;

15. No ano de 2016, mantendo-se o seu capital social ficou distribuído da seguinte forma:

15.1. B..., Portugal S.A. – 49.000,00 euros;

16.2. AA 997.00 euros;

16.3. DD 1, 00 euro;

16.4. EE 1, 00 euro;

16.5. FF 1, 00 euro.

17. O Sr. Engº AA outorgou o contrato na qualidade de Administrador Único em representação da sociedade “S..., S.A.” (parte devedora) e ainda como sócio e único gerente em representação da sociedade “Scodiblue - Gestão Ldª”…

18. Tendo por base uma deliberação societária, da aqui Embargante, que aprovou garantir através de hipoteca, a referida operação de financiamento, realizada a favor do seu acionista dominante, com o fundamento da operação ser no interesse da Embargante.

19. A CDG aceitou a hipoteca constituída sobre a fração, identificada em tal contrato e o pacto de preenchimento de livrança nos termos exarados no mesmo documento.

20. A CGD acompanhava toda as atividades financeiras das sociedades envolvidas nesta operação.

21. O empréstimo sob a forma de abertura de crédito, em conta corrente, até ao montante de duzentos e cinquenta mil euros, era destinado exclusivamente a apoiar a devedora sempre que se tornasse necessário provisionar a sua conta de depósitos à ordem, para fazer face aos pagamentos decorrentes da sua operação.

22. De tal instrumento avulso - abertura de crédito em conta corrente com hipoteca e pacto de preenchimento de livrança – ficou a constar que as sociedades “S..., S.A.” e a sociedade “Scodiblue - Gestão Ldª” “encontram-se em relação de domínio, sendo “S..., S.A.” detentora de 98% do capital social da Scodiblue (a aqui embargante).

23. No referido documento faz-se menção a uma deliberação societária da “Scodiblue - Gestão Ldª”, constante da ata, a nº 17 da Assembleia Geral de 23/09/2013, cuja junção a CGD omitiu.

24. A garantia bancária prestada pela embargante não lhe trazia quaisquer benefícios, tendo sido prestada sem qualquer contraprestação.

25. Entre embargante e devedora não existia – e nunca existiu – qualquer negócio/relação comercial entre elas.

26. Ao prestar a garantia a executada declarou prestá-la no seu interesse, ciente de que essa declaração não correspondia à verdade.

27. O que a CGD, não desconhecia, uma vez que foi a entidade que organizou toda a operação através do seu notário privativo, propôs as minutas das atas e como principal banco financiador da Devedora bem conhecia toda a sua realidade económico financeira.

28. Por auto de_ junto aos autos de que estes são apensos foi penhorado o bem dado de garantia propriedade da embargante.

De Direito

13. O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões do Recurso, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso e devendo limitar-se a conhecer das questões e não das razões ou fundamentos que àquelas subjazam, conforme previsto no direito adjetivo civil - arts. 635º n.º 4 e 639º n.º 1, ex vi, art.º 679º, todos do Código de Processo Civil.

No presente recurso o objecto consiste em saber como se deve interpretar o art.º 6º, n.º3 do CSC, onde se diz:

3 - Considera-se contrária ao fim da sociedade a prestação de garantias reais ou pessoais a dívidas de outras entidades, salvo se existir justificado interesse próprio da sociedade garante ou se se tratar de sociedade em relação de domínio ou de grupo.”

14. A problemática objecto do presente recurso tem sido discutida pela doutrina, que se divide.

A lei não faz qualquer distinção entre os casos em que a sociedade garante é a (totalmente) dominante ou (totalmente) dominada.

Como tal, alguns autores defendem que o artigo 6.º, n.º 3, do CSC é aplicável independentemente da posição que ocupe a sociedade garante.

Em síntese, as posições doutrinárias têm-se assumido - como relata Ricardo Ragageles Vigário, "GARANTIAS PRESTADAS ENTRE SOCIEDADES COLIGADAS”, Dissertação de Mestrado, FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA, 2020 (disponível em https://repositorio.ul.pt/bitstream/10451/55032/1/ulfd0150848_tese.pdf) - assim:

“No que tange a estes dois tipos de garantias, encontramo-nos perante uma divisão Doutrinária, na qual de um lado temos COUTINHO DE ABREU e OSÓRIO DE CASTRO, do outro lado temos PEDRO DE ALBUQUERQUE e JOÃO LABAREDA. Ora os primeiros, pugnam pela proteção dos interesses dos sócios minoritários, assim como, o dos credores sociais da dominada, por outras palavras, na óptica destes autores, devemos proceder a uma interpretação restritivo-teleológica133 do n.º 3, do artigo 6.º CSC, sempre que nos encontrarmos diante de uma prestação garantia, seja ela Upstream ou Sidestream, por conseguinte, será sempre necessário demonstrar a existência de um justificado interesse próprio por parte da sociedade garante, uma vez que estes dois autores não acreditam que a existência de um interesse ou de uma tutela jurídica que fundamente o afastamento da demonstração do justificado interesse próprio na prestação da garantia.134 Em entendimento contrário, temos PEDRO DE ALBUQUERQUE, defende que as garantias podem ser prestadas quer pelas sociedades dominadas como pelas sociedades dominantes, ao afirmar “o nosso legislador foi tão eloquente quanto o podia ter sido”135, desta forma podemos perceber que para este autor, não se vislumbra necessidade alguma de se proceder a uma interpretação restritivo-teleológica, atendendo a que o mesmo acredita que o legislador versou na letra da lei tudo o que pretendia ver consagrado. No mesmo sentido, acrescenta ainda JOÃO LABAREDA, ao afirmar que o proveito, decorrente da prestação de garantias, seja esta prestada pela dominada ou pela dominante, é do interesse geral de toda a coligação, “o que justifica a extensão da capacidade das sociedades de modo a abranger a prestação de garantias a dívidas de outra em caso de relação de domínio é a suposição legal do proveito mútuo na contratação ou manutenção da dívida garantida.”136, de referir que ainda na posição por este autor, o mesmo defende que no que tange aos interesses tanto a sociedade dominante tem interesse na prosperidade e sobrevivência da sociedade dominada e o inverso também.”

Que dizer?

A posição defendida no voto de vencido é aquela que melhor corresponde ao sentido legal que emana da norma jurídica em análise.

De acordo com esse voto, destacam-se as seguintes razões (principais, a nosso ver), para assim se decidir:

Por um lado, a ideia de que o grupo de sociedades tem uma especificidade própria, na qual os interesses do grupo se sobrepõem, em certo sentido, à consideração individualista do interesse de cada sociedade autonomamente considerada:

“Pelo que o «interesse» da sociedade dominada mais não é que uma ficção, podendo muito bem dar-se o caso (aliás, será o mais provável) de o «interesse» conjunto de um grupo de sociedades ser algo que transcende cada uma delas de per si – o interesse económico relevante não pode deixar de referir-se ao grupo.”

Por outro lado, o respeito pela autonomia privada das próprias sociedades que constituíram o grupo e nesse modelo de actuação se reviram melhor na prossecução do seu objectivo empresarial:

“Parece claro, pois, que da restrição defendida pelo tribunal a quo decorre notória limitação da aptidão de um instrumento jurídico para livremente atingir os objectivos que legitimamente estão na base da criação do grupo de sociedades e para prosseguir os interesses em que se fundou a decisão de estabelecer a relação entre essas sociedades – o que mais não representa que limitação do princípio da autonomia privada.”

A ideia de que o Direito do grupo de sociedades é diferente do direito da sociedade comercial não integrada em grupo é, aliás, corrente na doutrina nacional, como se ilustra com algumas citações da obra de Ana Perestrelo de Oliveira, Manual de Grupos de Sociedades, Almedina, 2026:

“A importância do “direito dos grupos2 decorre, no fundo, do reconhecimento do desfasamento tradicional entre o direito das sociedades e a nova realidade: o direito das sociedades permanece vocacionado para a regulação da sociedade individualmente considerada, enquanto sociedade autónoma, jurídica e economicamente, que se rege pelo seu próprio interesse e sem influências externas. Ora, a verdade é que, conforme uma conhecida expressão, »«no grupo tudo é diferente».” – p. 9.

É também sobejamente conhecida a ideia de o grupo configurar uma empresa plurissocietária, que tem como consequência a existência de um fenómeno de integração económico empresarial das operações das sociedades envolvidas, dotadas de um sistema de objectivo unitário e, tendencialmente, de uma unidade de planeamento e decisão – mesma obra, p. 15 – uma vez que são fundamentalmente as razões económicas que ditam a escolha desta forma de organização empresarial.

E:

simultaneamente, o grupo configura-se como unidade financeira, caracterizando-se, também, neste plano, pela extraordinária imbricação da actividade e operações das sociedades que o compõem. No contexto do grupo, as empresas não procuram, tipicamente, financiamento independente, antes dependem de adiantamentos financeiros de sociedades integrantes daquele ou de garantias por elas prestadas (nota 26- sejam financiamentos e garantias prestados upstream (da sociedade-filha para a sociedade mãe), downstream (da sociedade -mãe para a sociedade-filha) ou ainda sidestream (entre sociedades-irmãs). Não raras são também as garantias cruzadas (cross-guarantees). - mesma obra, p. 16.

Não se desconhecem as posições doutrinais que sobre o art.º6º do CSC tem defendido ser necessário distinguir a prestação de garantia pela sociedade filha à sociedade-mãe, como alias, vem defendido no acórdão recorrido.

Não se acompanha a restrição interpretativa ao texto do art.º6º, n.º3 do CSC, que veio defendida.

Na situação dos presentes autos:

- Veio demonstrada a existência de uma relação de grupo entre a embargante e a sociedade devedora original da dívida à exequente;

- A embargante prestou uma garantia upstream, como sociedade-filha, a uma dívida da sociedade-mãe, constituindo uma hipoteca sobre um sem bem;

- O proveito, decorrente da prestação de garantis, seja esta prestada pela dominada ou pela dominante, é do interesse geral do grupo;

- No grupo de sociedades o financiamento concedido à sociedade-mãe, com garantia prestada pela sociedade -filha, não se pode assumir como sendo esta uma garantia gratuita, ainda que não ocorram contrapartidas financeiras diretas entre as sociedades em causa, tendo em conta o sentido do funcionamento do grupo de sociedades e as finalidades gerais que presidem à escolha do modelo de organização empresarial.

- A demonstração da falta de interesse próprio da sociedade dominada, a posteriori, não tem a virtualidade de tornar a garantia prestada inválida, por estar demonstrada a existência do grupo na data da sua constituição;

- O representante legal da sociedade-mãe e da sociedade-filha era o mesmo;

-A sociedade-filha deliberou em assembleia geral aprovar a constituição da garantia à sociedade-mãe, indicando que esta correspondia ao seu interesse, e com isso criou ao credor uma convicção de que, quer pela via da existência do grupo de sociedades, quer pela via do justificado interesse próprio, era seguro conceder o empréstimo.

Valem aqui as afirmações também reproduzidas pelo recorrente de Ana Perestrelo de Oliveira (in Manual de Grupos de Sociedades, Almedina, 2017 pp 187):

“Considera-se hoje que vigora maioritariamente na ordem jurídica portuguesa uma regra de ilimitação da capacidade as sociedades, com a ressalva das situações incompatíveis com a personalidade coletiva. Deve entender-se, por um lado, que o “justificado interesse próprio” aí referido apenas à sociedade compete determinar, e que por outro lado a possibilidade de prestação de garantias intragrupo é genericamente consagrada. Perante a amplitude de referência legal “à relação de domínio ou de grupo” e a realidade económica do grupo, dúvidas não haverá em considerar admissível a prestação de garantias tanto downstream como upstream, seja no caso da relação de grupo ou de domínio.”

“As posições em sentido contrário não são procedentes: estas assentam na ideia de que noa há qualquer interesse da dominada na subsist~encia e properidade da dominante, que possa justificar semelhante garantia, a qual seria inválida, pelo menos fora do contexto do grupo. Nesta perspetiva, ignora-se, todavia, a unidade económica representada pelo grupo, de direito e de facto, bem como a intensidade dos fluxos financeiros que neste tipicamente se identificam, com a dissolução d autonomia patrimonial das sociedades”

E ainda na p.190-

Naturalmente que as garantias prestadas pela sociedade-mãe a obrigações de uma sua subsidiária (downstream guarantees) não levantam problemas sob este ponto de vista: não só estão inequivocamente abrangidas pelo art.º 6º., n.º1, como não é concebível, na prática, a sua concessão fora do quadro da obtenção de uma vantagem própria. O mesmo não sucede, como vimos, no caso de garantias prestadas pela subsidiária a obrigações da sociedade-mãe (upstream guarantees), atenta a aparente inexistência de qualquer interesse visado pela sociedade garante.

Tal perspetiva esquece, porém, o facto de os interesses da subsidiária serem prosseguidos quando o crédito da sociedade-mãe é fortalecido, sobretudo considerando que esta sociedade é, normalmente, a fonte principal de financiamento da subsidiária, aumentando, através da garantia, a possibilidade do seu próprio acesso ao crédito. A integração económica não pode, pois, ser ignorada quando se procura ajuizar a validade da garantia, devendo, para mais, ter-se em atenção que as garantias upstream são praticamente inevitáveis.”

Cremos ser esta a linha de interpretação mais conforme com o sentido da norma legal, ao falar na relação de domínio ou grupo, por corresponder à teleologia do grupo de sociedades.

15. Na situação dos autos, a embargante também não provou que a prestação da garantia lhe foi mais desvantajosa do que a vantagem equivalente que obteve com a existência do crédito à sociedade dominante, nomeadamente, fazendo prova de que não obteve nenhum financiamento ou crédito da sociedade dominante em seu favor, directa ou indirectamente, situação em que se poderia pensar em questionar1 – ao menos na relação com a sociedade dominante – qual a situação jurídica da garantia prestada.

Os factos relativos à falta de interesse próprio não correspondem a uma exposição descritivo-narrativa da factualidade provada traduzindo-se em locuções genéricas ou conclusivas ou de valorações jurídicas, que devem ser expurgadas dos factos a serem considerados pelo aplicador do Direito, por não constituírem enunciados de facto expressos numa linguagem natural e exata, de modo a retratar com objetividade a realidade a que respeitam (cf. Ac STJ de
11/03/2021, relativo ao processo 1205/18.3T8PVZ.P2.S1, disponível em
www.dgsi.pt).

A inexistência de relações comerciais entre dominante e dominada, provada, é insuficiente para efeito de aferição do interesse próprio na prestação da garantia, que não está limitado por relações comerciais, mas pela integração no grupo. Se a existência de uma relação comercial podia ser indício de interesse próprio, já a sua falta, isoladamente não é prova do contrário.

E admitindo que se presume o interesse próprio, por via de presunção legal no âmbito da relação de domínio, incumbiria à embargante a prova do contrário e não a mera criação de dúvidas no espírito do julgador, o qual nem usou de presunções judiciais para conduzir à afirmação de a garantia não ser do interesse da garante.

O requerimento inicial da embargante, que analisámos, permite igualmente concluir que não foram aí alegados factos concretos específicos que pudessem atestar a inexistência de justificado interesse próprio, por a embargante entender que o ónus da prova da existência do referido interesse dever incumbir ao banco, bastando-lhe colocar em dúvida a existência do interesse a partir de considerações genéricas como (retirados do RI):

53. A exigência de que o interesse próprio da sociedade seja justificado torna claro que a sociedade tem que concretizar as vantagens que retirará por prestar a garantia, pois só assim estará a justificar.

54. Se é invocado um justificado interesse próprio da sociedade garante na prestação da garantia, quem tem o ónus de alegar e provar que aquele interesse existe é aquele que tem interesse em afirmar a validade da garantia.

(…)

58. É certo que o declarou ao prestar a garantia, porém tal não representa, só por si, a existência desse interesse, nem sequer tal declaração pode ser concebida como séria face factualidade já descrita!

59. E disso não podia desconhecer a CGD, que foi a entidade que organizou toda a operação através do seu notário privativo, propôs as minutas das atas e como principal banco financiador da Devedora bem conhecia toda a sua realidade económico financeira.

60. Ora, se a aqui embargante que prestou a garantia a dívida da S..., S.A. tendo alegado que tinha justificado interesse próprio, competia à Credora CGD, entidade conhecedora da Lei e com responsabilidade pelo crédito que concede, ou seja competia-lhe comprovar a verdade da declaração sob pena de sujeitar-se às consequências inerentes da nulidade daquele ato.

61. E nos presentes autos a CGD concedeu o empréstimo sob a forma de abertura de crédito em conta corrente ate ao montante de 250.00,00euros à S..., S.A. que de imediato se confessou devedora

62. Aceitou a garantia prestada pela Scodiblue da fração autónoma supra mencionada com o valor atribuído de 132.000,00euros.

(…)

66. E, no caso dos autos, a sociedade garantia, irá produzir prova de que tal justificado interesse próprio não existe, daí que não se verificando tal exceção a prestação da garantia vai pois contra o fim social da sociedade hipotecante.

67. E de facto tal interesse próprio não ocorreu porque não obteve para si nenhum ato direto ou indireto do empréstimo concedido, dele não tendo efetivamente beneficiado

68. O empréstimo concedido não foi de todo praticado em benefício do seu negócio,”

Não se acompanha igualmente a posição do tribunal recorrido quando disse:

“Do teor do contrato, ao contrário do alegado pela apelante não resulta que o contrato de Abertura de conta-corrente com hipoteca e pacto de preenchimento de livrança, celebrado, em 24/09/2013, com a sociedade "S..., S.A.", na qualidade de mutuária, e com a recorrida na qualidade de parte hipotecante, ambas representadas por AA, foi celebrado com a finalidade para fazer face aos pagamentos decorrentes de responsabilidades assumidas perante a CGD pela parte devedora ou qualquer das empresas do grupo de que ela faz parte.

Resulta apenas que o empréstimo é concedido á sociedade devedora sempre que seja preciso ter provisão na sua conta, para fazer pagamentos da sua responsabilidade, ou por qualquer das empresas do grupo de que ela faz parte, desde que exista interesse próprio por parte da devedora nesses pagamentos.”

Este segundo parágrafo seria, aliás, motivo suficiente para o tribunal decidisse em sentido oposto, pois está implícito que a sociedade dominante fazia pagamentos por empresas do grupo, o que envolve um financiamento das mesmas, como é corrente na lógica do funcionamento dos grupos.

O facto provado 24. (A garantia bancária prestada pela embargante não lhe trazia quaisquer benefícios, tendo sido prestada sem qualquer contraprestação) não afasta este entendimento porquanto é conclusivo na parte em que afirma “não lhe trazia quaisquer benefícios”, e não é decisivo na parte em que diz ter sido prestada sem contraprestação, já que podem existir vantagens associadas na prestação da garantia sem contrapartida monetária (contraprestação), como podem existir diversas formas de realizar transferências intragrupo (cf. na obra citada, p. 173 e ss, para uma exemplificação detalhada).

16. Cumpre ainda referir que ao nos afastarmos da posição do acórdão recorrido temos noção das objecções que os defensores dessa posição colocam à interpretação (mais literal) do art.º 6º, n.º3 do SC, sobre os eventuais abusos potenciados pela sociedade dominante sobre a dominada, quando esta presta garantias àquela, quando se está fora das relações de grupo.

O tema está igualmente tratado na doutrina, para a qual se remete, deixando apenas nota da seguinte consideração de MIGUEL URBANO, “Garantias bancárias autónomas ordenadas a favor de terceiros: capacidade e questões atinentes”, p. 574, III Congresso DSR:

se é verdade quer não existem mecanismos de tutela para as relações de domínio que protejam a sociedade dominada em termos equivalentes aos existentes para as relações de grupo, também é verdade que existem outros mecanismos que permitem ultrapassar certos abusos, inclusive nesse tipo de relações”, que complementam com a indicação do regime da responsabilidade dos membros da administração para com a sociedade (art.º 72.º CSC), perante os credores sociais (art.º78.º, n.º2 CSC), impugnação pauliana (art.º 612.º do CC), regime do art.º 83-.º do CSC.

17. Em síntese, valerá a pena deixar expressos também os principais argumentos da tese que advoga uma interpretação declarativa do art.º 6.º, n.º 3 do CSC são os seguintes (a partir do estudo de Silvia Pinheiro Esteves, Contributo para o estudo do art.º6º, n.º3 do CSC: a prestação de garantias pelas sociedades comerciais a dívidas de terceiros, Dissertação de Mestrado orientado pra investigação, UCP, nov 2014, p. 87 e ss)2, e que estão igualmente na base da decisão deste tribunal:

1-No artigo em causa o legislador não distingue a prestação das garantias consoante a posição da sociedade garante face à garantida;

2- Quem vê na norma uma extensão da capacidade da sociedade defende que essa extensão parte do pressuposto de que há um proveito mútuo na contração ou manutenção da divida garantida, situação que ocorre qualquer que seja a posição das sociedades envolvidas, porque ambas têm interesse na sobrevivência e desenvolvimento da outra;

3- Outra perspectiva mais restritiva incorre no erro de omitir o facto de os interesses da subsidiária quando o crédito da sociedade-mãe é fortalecido, quando se perspectiva que esta sociedade é normalmente a fonte principal de financiamento da subsidiária, aumentando, através da prestação da garantia, a possibilidade do seu próprio acesso ao crédito, o que justifica considerar a integração económica para ajuizar da validade da garantia;

4-A sociedade garante disporá de direito de regresso sobre a dominante se for chamada a honrar a garantia;

5-Quando o domínio é de base financeira, exercido através da participação social, é de presumir que a sociedade dominante tenha interesse na valorização da sua participação social ou, pelo menos, que a sociedade dominada não fique insolvente;

6- A lei tem instrumentos de proteção da sociedade dominada contra actos abusivos da dominante, como a impugnação de deliberação abusiva, responsabilização da dominante, impedimento ao voto, exclusão social de sócio por violação do dever de lealdade, para além de sujeitar a dominante ao regime do art.80, ou até a desconsideração da personalidade jurídica.

E também aqui se defende que a garantia para ser válida deve ser compensada por vantagem equivalente (p..90), através do acesso ao crédito ou benefício similar, na esteira da posição já exposta de Ana Perestrelo de Oliveira.

Por tudo isto se defende que ocorrendo uma relação de domínio, mesmo que a garantia houvesse sido prestada a título gratuito, se presume (legalmente) que existe justificado interesse próprio. Estar-se-ia aqui perante uma presunção legal, ilidível (p.91), mas a ilisão será muito difícil, ou quase impossível.

E em outro ponto do estudo, também defende a A., que havendo deliberação social a atestar o justificado interesse próprio, quando a questão não está sujeita a deliberação social por caber dentro dos actos de administração, será deveras estranho que os sócios reconheçam esse interesse e depois venham tentar demonstrar que ele não existia, sem cair no abuso de direito (p. 63), alegação que surge na sequência da insolvência da sociedade dominante, deixando o credor sem grandes meios de satisfazer o seu crédito ( sendo que na fundamentação da sentença se diz que o gerente declarou que nem pensou muito nas implicações do seu acto ao subscrever a garantia em nome da garante, porque não estava já em condições de reavaliar as opções de negócio em que se envolvera).

Todos estes argumentos são de aplicação à situação do presente recurso, como já houve oportunidade de afirmar, e cuja decisão parte dos factos provados (expurgados dos que se afiguram conclusivos, como o 24, ou insuficientes):

1. A Caixa Geral de Depósitos (CGD), deu à execução como titulo executivo um documento denominado “Contrato de abertura de Crédito de Conta com hipoteca e pacto de preenchimento de livrança celebrado a 24/09/2013 até ao montante de 250.000,00 euros (duzentos e cinquenta mil euros) para apoiar exclusivamente a parte devedora, sempre que se tornasse necessário provisionar a sua conta de depósitos à ordem, para fazer face aos pagamentos decorrentes de responsabilidades assumidas perante a CGD, celebrado entre si e a S..., S.A.

2. O montante contratado foi disponibilizado na conta corrente titulada pela sociedade “S..., S.A.”.

3. Para garantia do capital mutuado respetivos juros e despesas foi entregue uma livrança em branco subscrita pela devedora, a “S..., S.A.”, e avalizada por AA.

4. Ainda como garantia do capital mutuado, respetivos juros e despesas foi constituída pela executada “Scodiblue Gestão, Ldª” hipoteca sobre a fração autónoma designada pela letra R destinada a habitação inscrita na matriz sob o artigo 6203-R e descrita na Conservatória do Registo Predial sob o nº 139-R, da freguesia de ... do concelho do …, com o valor atribuído de 132.000,00 euros, propriedade da executada “Scodiblue Gestão, Ldª”

17. O Sr. Engº AA outorgou o contrato na qualidade de Administrador Único em representação da sociedade “S..., S.A.” (parte devedora) e ainda como sócio e único gerente em representação da sociedade “Scodiblue - Gestão Ldª”…

18. Tendo por base uma deliberação societária, da aqui Embargante, que aprovou garantir através de hipoteca, a referida operação de financiamento, realizada a favor do seu acionista dominante, com o fundamento da operação ser no interesse da Embargante.

20. A CGD acompanhava toda as atividades financeiras das sociedades envolvidas nesta operação.

21. O empréstimo sob a forma de abertura de crédito, em conta corrente, até ao montante de duzentos e cinquenta mil euros, era destinado exclusivamente a apoiar a devedora sempre que se tornasse necessário provisionar a sua conta de depósitos à ordem, para fazer face aos pagamentos decorrentes da sua operação.

22. De tal instrumento avulso - abertura de crédito em conta corrente com hipoteca e pacto de preenchimento de livrança – ficou a constar que as sociedades “S..., S.A.” e a sociedade “Scodiblue - Gestão Ldª” “encontram-se em relação de domínio, sendo “S..., S.A.” detentora de 98% do capital social da Scodiblue (a aqui embargante).

23. No referido documento faz-se menção a uma deliberação societária da “Scodiblue - Gestão Ldª”, constante da ata, a nº 17 da Assembleia Geral de 23/09/2013, cuja junção a CGD omitiu.

24. A garantia bancária prestada pela embargante não lhe trazia quaisquer benefícios, tendo sido prestada sem qualquer contraprestação. (conclusivo, na primeira parte, conforme justificação supra)

25. Entre embargante e devedora não existia – e nunca existiu – qualquer negócio/relação comercial entre elas.

Quer isto dizer que a garantia prestada deve ter-se por válida, revogando-se a decisão recorrida que julgou os embargos procedentes com fundamento na sua invalidade e determinou o levantamento das penhoras (dizendo: Pelo exposto, julgo totalmente procedentes os presentes embargos de executado e, consequentemente, determino a extinção da execução de que estes autos constituem um apenso, com o consequente levantamento das penhoras realizadas.).

III. Decisão

Pelos fundamentos indicados, é concedida a revista e, em consequência:

- julgam-se os embargos de executado improcedentes, determinando-se a manutenção das penhoras.

Custas pela recorrida.

Comunique-se ao AE.

Lisboa, 11 de Janeiro de 2024

Relatora: Fátima Gomes

1º Adjunto: Juiz Conselheiro: Dr. Sousa Lameira;

2º Adjunto: Juiz Conselheiro: Dr. Nuno Pinto Oliveira

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1. A mesma autora, na obra citada, p. 190, também admite este caminho.

2. Acesso possível ao texto - http://hdl.handle.net/10400.14/17888 ou https://repositorio.ucp.pt/handle/10400.14/17888.