Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
437/14.8TBVRS.E1
Relator: MARIA JOÃO SOUSA E FARO
Descritores: GRUPO DE SOCIEDADES
PRESTAÇÃO DE GARANTIAS
Data do Acordão: 03/09/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
I- As sociedades podem validamente praticar actos gratuitos, nomeadamente prestar garantias a dívidas de terceiros quando a esses actos presida um interesse próprio da sociedade garante, ainda que deles não decorra uma vantagem económica imediata : Basta que haja o objectivo de alcançar um fim conveniente à prossecução de vantagens de cariz económico da sociedade e não de proporcionar uma vantagem ao credor garantido.
II- À luz do artigo 6.º, n.º 3, do C.S.C. são igualmente válidas as garantias prestadas por uma sociedade comercial a outra, com a qual esteja numa relação de domínio ou de grupo.
III- Dentro das sociedades em relação de grupo, identifica(m)-se o(s) grupo(s) constituído(s) por domínio total, o que ocorre quando uma sociedade – dita dominante – detém a totalidade das acções representativas do capital social de uma outra sociedade – dominada – podendo essa relação de domínio total ser inicial ou superveniente (cfr. artigos 488.º e 489.º do CSC);
IV- Ainda que se admita que tenha de se diferenciar entre as garantias prestadas ao abrigo de uma relação de domínio e aquelas no seio do regime das relações de grupo, o certo é que no caso em apreço estamos em presença de uma relação societária de grupo em que ocorre o domínio total da sociedade garante pela sociedade garantida.
V- Nos grupos constituídos por domínio total, o património utilizado nessa participação, é transferido para a participada e passa a ser gerido pelo órgão de administração da sociedade-mãe. E também não despiciendo para os credores, porque se a responsabilidade da sociedade dominante abrange as dívidas da dominada, significa que o acervo patrimonial da sociedade que lhes deve pode vir a sofrer algum revés. Além do que, a diluição da solvabilidade da dominada resulta, na prática, das múltiplas coligações em causa: quantas mais sociedades agrupadas, maior o número de credores e maior o número de dívidas (artigos 405.º, 501.º e 502.º, ex vi, artigo 491.º).
VI- É precisamente por causa da tutela e do regime próprio das relações de grupo que se deve basear a interpretação do artigo 6.º n.º 3. Dada a configuração do poder de direcção, o regime derrogatório das relações de grupo, a previsão expressa da lei da possibilidade de instruções desvantajosas às sociedades filiais e toda a dinâmica de recursos que a prática legitimou entre as agrupadas, não faz sentido limitar a faculdade de prestação de garantias dentro da realidade de um grupo de sociedades. Serão válidas as garantias prestadas pelas sociedades integralmente dominantes ou directoras, às integralmente dominadas ou dependentes, e vice-versa.
VII- Provando-se que à data da outorga das referidas escrituras públicas de hipoteca a sociedade garantida era detentora da totalidade do capital social da sociedade garante estando para com esta numa relação de domínio total não haveria que indagar sequer da (in) existência de interesse da sociedade autora na prestação das garantias em apreço porque este, graças à relação de grupo por domínio total com a sociedade beneficiária, se presume.
Sumário da relatora
Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA

I- RELATÓRIO
V..., SA intentou acção declarativa de simples apreciação pedindo que se declare nulas as constituições de hipotecas a favor do Réu Banco..., S.A., agora Réu N…, S.A., sobre os prédios da Autora identificados na petição inicial e, consequentemente, ordene o cancelamento do registo de tais hipotecas.
Para tanto, alegou que tais hipotecas se destinaram a garantir contratos relativos a créditos e financiamentos concedidos pelo Banco Réu à única sócia da Autora – a sociedade Q..., S.A. –, e que tal oneração do seu património em benefício exclusivo da sua única sócia viola as regras sobre a capacidade de gozo das sociedades, previstas nos artigos 160º do Código Civil e 6º do Código das Sociedades Comerciais, já que não houve qualquer benefício para a Autora com tal oneração, nem existia relação de domínio ou de grupo e, caso existisse, a disposição sempre violaria a proibição ínsita no nº 4 do artigo 503º do Código das Sociedades Comerciais.
Concluiu que, pela violação de tais normas imperativas, a constituição de hipotecas sobre prédios seus, a favor do Banco Réu, para garantir créditos de que este banco é titular sobre a única sócia da Autora, é nula, pelo que as hipotecas devem ser declaradas nulas.
Citado, o Réu N..., S.A., contestou a acção, por excepção, suscitando a ineptidão da petição inicial e a sua ilegitimidade processual por preterição de litisconsórcio necessário passivo, tendo a primeira sido apreciada no sentido da sua improcedência e a segunda resultado sanada pela intervenção em juízo da Q..., S.A.
Sustentou igualmente ser alheio à estrutura organizativa da Autora e da Interveniente Principal, não lhe cabendo aferir de tais relações, sendo um terceiro de boa-fé e devendo ser protegido como tal, para além de invocar a actuação com abuso de direito pela Autora que, no momento da constituição das referidas hipotecas, já tinha conhecimento da sua relação societária com a Interveniente e das eventuais limitações daí decorrentes.
Realizou-se audiência prévia na sequência da qual foi proferido despacho saneador sentença no qual se julgou a acção totalmente improcedente e, em consequência, se absolveu o N..., S.A., de todos os pedidos formulados pela V..., S.A.
2. Dele apelou a Autora formulando as seguintes conclusões:
A. Nos termos do n.º 3 do artigo 6.º do Código das Sociedades Comerciais, “Considera-se contrária ao fim da sociedade a prestação de garantias reais ou pessoais a dívidas de outras entidades (....)”;
B. Seguem-se no texto desse normativo duas ressalvas a essa presunção:
- a existência de um justificado interesse próprio da sociedade garante em incorrer, a título gratuito, responsabilidades por conta de outrem; e
- o regime das sociedades em relação de domínio ou de grupo;
C. Com base na presunção legal em contrário, e segundo as regras de distribuição do ónus da prova constantes do n.º 1 do artigo 344.º do Código Civil, competiria ao beneficiário da garantia (por maioria de razão se gratuita) invocar esse interesse próprio da sociedade garante;
D. Em todo o caso, tal distribuição de ónus probatório só poderia ocorrer onde não fosse vedada essa prova – e em matéria de grupos de sociedades (em relação de domínio ou de grupo) há certos casos em que isso está vedado:
E. Na verdade, do regime legal vigente decorre a existência de uma assimetria de responsabilidades entre sociedades dirigentes/dominantes e dirigidas/dominadas, sendo que as primeiras podem responder pelas dívidas das segundas, mas estas não podem responder por dívidas daquelas;

F. No caso dos autos, a sociedade dominante poderia sem dúvida demonstrar um interesse próprio (mesmo que ficcionado) da sociedade dominada em lhe prestar garantias gratuitas, mas o regime legal não permite que esse padrão de relações se estabeleça;
G. Certo é que a A. não tinha qualquer interesse – compatível com o seu escopo lucrativo – em conceder uma garantia a outrem, como a lei presume que não teria;
H. Sendo isso, de resto, irrelevante, porquanto o regime legal aplicável às sociedades em relação de domínio ou grupo permite a responsabilização das sociedades dominantes pelas dívidas das dominadas, mas não o inverso;
I. Seria inconstitucional qualquer interpretação das normas do n.º 3 do artigo 6.º do CSC e do n.º 1 do artigo 344.º do CC que admitisse a prestação de garantias de uma sociedade dominada em relação a dívidas de uma sociedade dominante – e ainda lhe impusesse a demonstração da inexistência de “um interesse justificado próprio da sociedade garante.”
Termos em que, e nos mais de Direito, deve a decisão recorrida ser revogada no segmento objecto de recurso, declarando-se a nulidade das garantias prestadas a favor da sociedade dominante e, consequentemente, o cancelamento das hipotecas sobre o património da V…, SA, em benefício da Q…, SA.
Assim se fazendo Justiça!
3. A apelada contra-alegou pugnando pela manutenção do decidido.
4. Dispensaram-se os vistos.
5. O objecto do recurso - delimitado pelas conclusões da apelante – circunscreve-se às seguintes questões: se competiria ao beneficiário da garantia (Banco) invocar e provar a existência de interesse próprio da sociedade garante (a Autora) na sua prestação; se apenas as sociedades dominantes podem garantir as dívidas das sociedades dominadas e se a resposta negativa às antecedentes se revela inconstitucional.

II- FUNDAMENTAÇÃO

i) É a seguinte a factualidade provada que não foi posta em crise pela apelante:

1. A Autora V..., S.A. é uma sociedade comercial que tem o seguinte objecto: promoção, construção, manutenção, gestão e venda de empreendimentos turístico-imobiliários, nomeadamente de unidades hoteleiras e para-hoteleiras, de campos de golfe e outros complexos desportivos, a compra e venda de propriedades e a exploração de terrenos agrícolas.”
2. A Interveniente Q..., S.A. é uma sociedade comercial com seguinte objecto: promoção, construção, manutenção, gestão e venda de empreendimentos turísticos imobiliários, nomeadamente de unidades hoteleiras e para-hoteleiras, de campos de golfe e outros complexos desportivos, a compra e venda de propriedades e a exploração de terrenos agrícolas.”
3. Pela apresentação Ap. 13 de 1999/09/16 (Aquisição), foi registada a favor da Autora a aquisição do prédio rústico situado em …, Tavira, descrito na Conservatória do Registo Predial de Tavira sob o nº …/20050414, inscrito na matriz predial rústica sob o artigo … .
4. A 24.01.2007, pela Ap. 20 de 2007/01/24, foi registada hipoteca voluntária sobre o referido prédio, a favor do Banco..., S.A., para garantia da quantia de € 10.000.000,00, até um máximo de € 12.800.000,00, relativamente a empréstimo concedido à sociedade “Q..., S.A.”, hipoteca essa constituída por escritura pública de 19.12.2006, outorgada no Cartório Notarial Carlos Manuel da Silva Almeida, em Lisboa, na qual intervieram todas as partes da presente acção.
5. A 05.03.2007, pela Ap. 26 de 2007/03/05, foi constituída hipoteca voluntária sobre o referido prédio, a favor do Banco..., S.A., para garantia da quantia de € 2.164.704,79,00, até um máximo de € 2.770.822,13, relativamente a empréstimo concedido à sociedade “Q..., S.A.”.
6. A 27.07.2009, pela Ap. 2897 de 2099/07/27, foi constituída hipoteca voluntária sobre o referido prédio, a favor do Banco..., S.A., para garantia da quantia de € 1.650.000,00, até um máximo de € 2.161.500,00, relativamente a empréstimo concedido à sociedade “Q..., S.A.” e à ora Autora, hipoteca essa constituída por escritura pública de 24.07.2009, outorgada no Cartório Notarial Maria Lúcia Gonçalves Lopes, em Lisboa, na qual intervieram todas as partes da presente acção.
7. A 03.06.2011, pela Ap. 3305 de 2011/06/03, foi registada hipoteca voluntária sobre o referido prédio, a favor do Banco..., S.A., para garantia da quantia de € 850.000,00, até um máximo de € 1.164.500,00, relativamente a empréstimo concedido à sociedade “Q..., S.A.”, hipoteca essa constituída por escritura pública de 03.06.2011, outorgada no Cartório Notarial Luís Valente, em Faro, na qual intervieram todas as partes da presente acção.
8. Pelas apresentações 2327, 2329 e 2330, todas de 2013/08/19, foi registada a transmissão dos créditos hipotecários correspondentes às hipotecas registadas pelas apresentações supra descritas em 2., 4., e 5., pelo Banco..., S.A. à sociedade S..., S.A..
9. Pela apresentação Ap. 13 de 1999/09/16 (Aquisição), foi registada a favor da Autora a aquisição do prédio misto situado em …, Tavira, descrito na Conservatória do Registo Predial de Tavira sob o nº …/20031120, inscrito na matriz predial rústica sob o artigo … .
10. A 24.01.2007, pela Ap. 20 de 2007/01/24, foi constituída hipoteca voluntária sobre o referido prédio, a favor do Banco..., S.A., para garantia da quantia de € 10.000.000,00, até um máximo de € 12.800.000,00, relativamente a empréstimo concedido à sociedade “Q..., S.A.”, hipoteca essa constituída por escritura pública de 19.12.2006, outorgada no Cartório Notarial Carlos Manuel da Silva Almeida, em Lisboa, na qual intervieram todas as partes da presente acção.
11. A 05.03.2007, pela Ap. 26 de 2007/03/05, foi constituída hipoteca voluntária sobre o referido prédio, a favor do Banco..., S.A., para garantia da quantia de € 2.164.704,79,00, até um máximo de € 2.770.822,13, relativamente a empréstimo concedido à sociedade “Q..., S.A.”.
12. A 27.07.2009, pela Ap. 2897 de 2099/07/27, foi registada hipoteca voluntária sobre o referido prédio, a favor do Banco..., S.A., para garantia da quantia de € 1.650.000,00, até um máximo de € 2.161.500,00, relativamente a empréstimo concedido à sociedade “Q..., S.A.” e à ora Autora, hipoteca essa constituída por escritura pública de 24.07.2009, outorgada no Cartório Notarial Maria Lúcia Gonçalves Lopes, em Lisboa, na qual intervieram todas as partes da presente acção.
13. A 03.06.2011, pela Ap. 3305 de 2011/06/03, foi registada hipoteca voluntária sobre o referido prédio, a favor do Banco..., S.A., para garantia da quantia de € 850.000,00, até um máximo de € 1.164.500,00, relativamente a empréstimo concedido à sociedade “Q..., S.A.”, hipoteca essa constituída por escritura pública de 03.06.2011, outorgada no Cartório Notarial Luís Valente, em Faro, na qual intervieram todas as partes da presente acção.
14. Pelas apresentações 2327, 2329 e 2330, todas de 2013/08/19, foi registada a transmissão dos créditos hipotecários correspondentes às hipotecas registadas pelas apresentações supra descritas em 8., 10., e 11., pelo Banco..., S.A. à sociedade S..., S.A..
15. À data da outorga das referidas escrituras públicas de hipoteca, a Interveniente Principal Q..., S.A. era detentora da totalidade do capital da Autora (por lapso na sentença consta Ré) V..., S.A..
16. Tal relação entre as sociedades foi verificada pelos diversos notários, nas escrituras públicas supra mencionadas, e nestas certificada, tal como foi verificada pelo notário a declaração das sociedades de que agiam com “justificado interesse económico da sociedade garante e da relação de domínio”, o que foi igualmente certificado nos referidos instrumentos.

ii) Do mérito do recurso

Como se viu, no caso apela-se do despacho saneador sentença que julgou totalmente improcedente a pretensão da Autora (titular dos bens dados em hipoteca ao Banco) de ver declarada a nulidade da constituição de tais garantias.

Qualquer garantia prestada por uma sociedade comercial a dívidas de outrem deve ser analisada à luz do artigo 6º nº2 e 3 do Código das Sociedades Comerciais.
Lê-se neste dispositivo legal:
“1. A capacidade da sociedade compreende os direitos e obrigações necessários ou convenientes à prossecução do seu fim, exceptuados aqueles que lhe sejam vedados por lei ou sejam inseparáveis da personalidade singular.
2. As liberalidades que possam ser consideradas usuais, segundo as circunstâncias da época e as condições da própria sociedade, não são havidas como contrárias ao fim desta.
3. Considera-se contrário ao fim da sociedade a prestação de garantias reais ou pessoais a dívidas de outras sociedades, salvo se existir justificado interesse próprio da sociedade garante ou se se tratar de sociedade em relação de domínio ou de grupo.
4. As cláusulas contratuais e as deliberações sociais que fixem à sociedade determinado objecto ou proíbam a prática de certos actos não limitam a capacidade da sociedade, mas constituem os órgãos da sociedade no dever de não excederem esse objecto ou de não praticarem esses actos.
5. A sociedade responde civilmente pelos actos ou omissões de quem legalmente a represente, nos termos em que os comitentes respondem pelos actos ou omissões dos comissários”.

As sociedades podem validamente praticar actos gratuitos, nomeadamente prestar garantias a dívidas de terceiros quando a esses actos presida um interesse próprio da sociedade garante, ainda que deles não decorra uma vantagem económica imediata.

Basta que haja o objectivo de alcançar um fim conveniente à prossecução de vantagens de cariz económico da sociedade e não de proporcionar uma vantagem ao credor garantido.

À luz do artigo 6.º n.º 3 são igualmente válidas as garantias prestadas por uma sociedade comercial a outra, com a qual esteja numa relação de domínio ou de grupo.

Sinteticamente podemos dizer que a lei identifica três situações de sociedades como estando em relação de grupo:
- Grupos constituídos por domínio total, o que ocorre quando uma sociedade – dita dominante – detém a totalidade das acções representativas do capital social de uma outra sociedade – dominada – podendo essa relação de domínio total ser inicial ou superveniente (cfr. artigos 488.º e 489.º do CSC);
- Mercê de um contrato de grupo paritário, o que ocorre quando duas ou mais sociedades que não sejam dependentes nem entre si nem de outras sociedades, constituem um grupo, mediante contrato pelo qual aceitam submeter-se a uma direcção unitária e comum (cfr. artigo 492.º do CSC); e
- Em razão de um contrato de subordinação, o que ocorre quando uma sociedade– dita subordinada – aceita, por contrato, subordinar a gestão da sua própria actividade à direcção de uma outra sociedade, quer seja sua dominante, quer não (cfr. artigo 493.º do CSC).

Como resultou provado, a apelante (sociedade garante) e a sociedade garantida estavam na primeira das identificadas relações de grupo: à data da outorga das referidas escrituras públicas de hipoteca a Q..., S.A. era detentora da totalidade do capital social da Autora V..., S.A., estando para com esta numa relação de domínio total.

Na sua dissertação de mestrado subordinada ao tema “Garantias Prestadas por Sociedades Comerciais a Obrigações de Sociedades Coligadas”, João Marcelo Ferreira Cristóvão [1]sintetiza proficientemente as teses que se defrontam, a propósito da prestação de garantias por uma sociedade a outra em relação de domínio ou de grupo:

“Há quem defenda que a prestação de garantias deve ser válida qualquer que seja a configuração dada. Na óptica de Pedro de Albuquerque, o artigo 6.º n.º 3 postula que intercedendo uma relação de domínio ou de grupo entre a sociedade garantida e a sociedade garante, não há necessidade de invocar a existência de interesse social para que seja prestada uma garantia, independentemente de a garantia ser prestada pela sociedade filha ou pela sociedade mãe, uma vez que o preceito estabelece, sem limitar, a licitude da prestação de garantias nessas ocasiões.
Na sua tese em prol da rápida circulação dos bens jurídicos, acrescenta que o legislador visou, com isto, a dispensa de consulta dos estatutos de forma pormenorizada, a quem contrata com as sociedades comerciais. É que, de acordo com a realidade inerente às relações intersocietárias, sejam elas de grupo ou de domínio, o facto da integração de uma sociedade comercial num grupo jurídico conduz à perda da respectiva autonomia económica e patrimonial: uma vez integradas, as sociedades são instrumentalizadas em função da gestão da sociedade mãe ou dos interesses do grupo. E referindo Engrácia Antunes, o Autor reitera que as sociedades passam a actuar concertadamente e, por vezes, a sua função e funcionamento é idêntica à de um departamento sem individualidade jurídica própria. O paradigma passa pela obtenção de lucros do próprio grupo e não das sociedades individualmente consideradas. Nisto, o mais relevante é o contributo para o projecto global e toda a coordenação e cooperação convergem, com a permeabilidade das estruturas patrimoniais de cada sociedade, no interesse geral. Há esferas de comunicação e canais próprios em cada grupo que é formado. A partir daí efectuam-se transferências patrimoniais correntes na vida interna dos grupos que “– para além de constituírem um fenómeno extremamente comum e característico da vida dos grupos, ao ponto de se ter nele visto já uma das formas típicas do exercício de direcção unitária, – tanto podem ser descendentes (downstream transfers) como processar-se da sociedade filha para a mãe, e, por conseguinte, em sentido ascendente (upstream transfers).
Com toda a propriedade, a posição de Pedro de Albuquerque baseia-se no regime legal estabelecido, uma vez que os lucros realizados por uma sociedade componente do grupo podem ser transferidos para uma outra sociedade, de acordo com a estratégia financeira global da sociedade mãe. Esta ingerência de patrimónios societários uns nos outros também se reflecte no capital social e no princípio da intransigibilidade do capital social, assegurado por várias normas imperativas, que perde a sua eficácia no contexto de grupos de sociedades comerciais. Exemplo disso mesmo – afirma – é o caso das normas proibitivas da restituição de entradas que são, aqui, ineficazes por causa da manipulação e transferência de lucros operados entre sociedades.
Por isso, o controlo, enquanto uma das formas de expressão da unidade, ultrapassa a noção de interesse social, passando a relevar o interesse do grupo. É essa a opção da lei, patente nos artigos 491.º, 493.º, 503.º, 504.º e 6.º n.º 3, sob pena de se desproteger a sociedade mãe, respectivos sócios e credores sociais.
Nos casos em que apenas existem grupos de facto (artigos 486.º), não existe um dever igual por parte da sociedade superior, no sentido de dirigir conjuntamente as sociedades inferiores.
Porém, o regime jurídico é o mesmo por força do artigo 6.º n.º 3, dado que também nos grupos de facto existe a modificação da estrutura das sociedades singulares, convertidas em cúpula de uma organização plurissocietária assente numa rede de participações. O preceito não deve, portanto, ser interpretado restritivamente, ou seja, para Pedro de Albuquerque, quer as relações de grupo, quer as relações de domínio – que qualifica como grupos de facto – comportam a faculdade de prestação de garantias, qualquer que seja a sociedade garante. Além do mais, aceitar a garantia, desprotege os credores sociais da sociedade garante, mas protege os credores da sociedade garantida, com a qual se relaciona.
Depois, há Autores que sustentam a interpretação restritiva do artigo 6.º n.º 3. Para Coutinho de Abreu, a interpretação literal do artigo 6.º n.º 3 é demasiado simplista. Nos grupos de domínio total e nos de subordinação, as sociedades dominantes e as directoras têm o direito de dar instruções vinculativas à administração das sociedades dependentes e das subordinadas; e tais instruções podem mesmo ser desvantajosas para as dependentes e subordinadas – desde que sirvam os interesses das dominantes ou directoras, ou os interesses das outras sociedades dos respectivos grupos (artigos 491.º e 503.º). Assim sendo, adivinham-se certos prejuízos para as sociedades-filha e para os sócios minoritários e credores destas. Para minorar ou evitar tais prejuízos, o CSC estatui algumas contrapartidas, como a garantia de lucros (artigo 500.º) e a responsabilidade das sociedades dominantes e das directoras para com os credores das sociedades dependentes e das subordinadas e para com estas mesmas sociedades (artigos. 491.º,501.º e 502.º).
Nas sociedades em relação de domínio, tais considerações não valem.
E o Autor considera no mínimo duvidoso que, a respeito das sociedades em relação de grupo ou, sobretudo, das sociedades em relação de domínio, se deva falar de “interesse do grupo” para significar um interesse próprio do grupo, comum a todas as sociedades que dele fazem parte, prevalecendo sobre o interesse de cada uma delas. Afirma só ser legítimo fazê-lo enquanto locução simplificadora e resumida dos interesses da sociedade directora ou totalmente dominante e não para identificar um interesse comum a todos. Um grupo de sociedades (não paritário) baseia-se, não numa coordenação para fins comuns, mas numa subordinação para fins fundamentalmente unilaterais. A sociedade directora tem o direito de denegar o interesse social das subordinadas, se com isso forem satisfeitos lícitos interesses dela própria ou (caso existam) de outras sociedades do grupo. E é por destes interesses não comungarem as sociedades sacrificadas que se impõe uma tutela especial aos sócios minoritários e credores das mesmas.
Crê, por outro lado, que a assembleia geral e os órgãos de administração das sociedades subordinadas não têm o dever de se guiarem por qualquer interesse do grupo, com sacrifício do interesse próprio das sociedades de que são órgãos e que o artigo 6.º n.º 3 se fundamenta na ideia de que a sociedade garante não descura com isso o seu próprio interesse e o dos seus credores.
Conclui, defendendo uma interpretação restritiva teleologicamente, que o preceito se aplica nas relações de domínio para a sociedade dominante, não para a dependente, porque considera que a dominante tem sempre interesse no bom andamento da sociedade dominada, sendo-lhe lícito garantir certas dívidas. Já o inverso não sucede, pois o interesse da dominada e dos seu credores não se compaginam necessariamente com o da dominante: se a sociedade dominante falir, por falta da garantia da dependente, isso não se irá repercutir nesta, pois as participações da dependente recairão sobre outros titulares. Esta ideia vale também para as relações de grupo: as sociedades totalmente dominantes ou directoras, podem prestar garantias às dominadas ou subordinadas, mas o oposto não será necessariamente verdade.
Osório de Castro sustenta a existência de um justificado interesse próprio nas relações de grupo e de domínio, afirmando que o CSC é pouco criterioso – isso reflecte-se, a seu ver, no artigo 6.º n.º 3 – quando se refere a relações de grupo ou de domínio, pelo que a prestação de garantias deve ser aferida casuisticamente. Aceita que, pelo menos nas relações de domínio que decorram de participações sociais, não se procure um justificado interesse próprio da sociedade garante, quando a garantia respeita a uma dívida da sociedade dependente. Porém defende que já não existe qualquer interesse quando a situação é vista ao contrário, dado que uma sociedade dependente que garanta uma obrigação de sociedade que a domine, não tem interesse na sua sobrevivência. Para o Autor, cada sociedade deve apenas visar o seu fim, o qual não pode mesmo ceder face ao interesse da sociedade mãe. No que tange às relações de grupo, Osório de Castro aceita que as sociedades subordinadas ou totalmente dominadas garantam dívidas de forma gratuita, mesmo que não haja motivo para presumir a existência de um justificado interesse próprio, por força da disciplina particular das sociedades em relação de grupo e da secundarização do interesse social individual de cada uma.”.

Ainda que se admita que tenha de se diferenciar entre as garantias prestadas ao abrigo de uma relação de domínio e aquelas no seio do regime das relações de grupo, o certo é que no caso em apreço estamos em presença de uma relação societária de grupo em que ocorre o domínio total da sociedade garante pela sociedade garantida.
Como se salienta na citada dissertação que acompanhamos, “nos grupos constituídos por domínio total, o património utilizado nessa participação, é transferido para a participada e passa a ser gerido pelo órgão de administração da sociedade-mãe. E também não despiciendo para os credores, porque se a responsabilidade da sociedade dominante abrange as dívidas da dominada, significa que o acervo patrimonial da sociedade que lhes deve pode vir a sofrer algum revés. Além do que, a diluição da solvabilidade da dominada resulta, na prática, das múltiplas coligações em causa: quantas mais sociedades agrupadas, maior o número de credores e maior o número de dívidas (artigos 405.º, 501.º e 502.º, ex vi, artigo 491.º).
É precisamente por causa da tutela e do regime próprio das relações de grupo que se deve basear a interpretação do artigo 6.º n.º 3. Dada a configuração do poder de direcção, o regime derrogatório das relações de grupo, a previsão expressa da lei da possibilidade de instruções desvantajosas às sociedades filiais e toda a dinâmica de recursos que a prática legitimou entre as agrupadas, não faz sentido limitar a faculdade de prestação de garantias dentro da realidade de um grupo de sociedades. Serão válidas as garantias prestadas pelas sociedades integralmente dominantes ou directoras, às integralmente dominadas ou dependentes, e vice-versa.”.

Fica, por consequência, arredado qualquer juízo de inconstitucionalidade porque suportado sobre uma realidade inverificada: o de se estar em presença de sociedades em relação de domínio de acordo com o conceito utilizado pelo artigo 486.º do C.S.C.

A relevância de estarmos em presença de duas sociedades em relação de grupo constituído por domínio total reflecte-se também na questão do ónus da prova.
Mesmo quem defenda, como Osório de Castro, de que a sociedade que invoque a nulidade da prestação de garantias a dívidas de outras entidade só tem de alegar e provar o carácter gratuito do acto e que é ao beneficiário da garantia que, ao repelir essa arguição, incumbe o ónus de demonstrar a existência de um justificado interesse da sociedade garante, acaba por referir que este se presume, juris et de jure, havendo uma relação de domínio ou grupo entre as sociedades garante e garantida[2].
Por conseguinte, não haveria que indagar sequer da (in) existência de interesse da sociedade autora na prestação das garantias em apreço porque este, graças à relação de grupo por domínio total com a sociedade beneficiária, se presume.
Ainda que assim não se entenda, sempre se diga que sufragamos o entendimento de que seria a sociedade autora que invoca a nulidade da garantia por incapacidade que teria de provar que prestou a garantia sem justificado interesse próprio, ou seja de provar os requisitos necessários para que a mesma pudesse ser declarada.
No que a tal concerne, como se refere na sentença, a Autora nem sequer alegou – com recurso a factos concretos e não mero arrazoado conclusivo – a inexistência de interesse na prestação de garantias.
O que, aliás, contrariaria a sua declaração nas escrituras de constituição de hipoteca de que ambas as sociedades agiam “ com justificado interesse económico da sociedade garante e da relação de domínio”.
Face a tal declaração da Apelante nem se poderia concluir que o Banco apelado que com que elas contratou não se tenha assegurado da existência de um interesse da mesma na prestação da garantia antes resultando que tenha confiado que assim sucedia.

III- DECISÃO
Face a todo o exposto julga-se a apelação totalmente improcedente mantendo-se na íntegra a decisão recorrida.
Custas pela apelante.
Évora, 9 de Março de 2017
Maria João Sousa e Faro (relatora) -
Florbela Moreira Lança -
Bernardo Domingos -
__________________________________________________
[1] Cfr. pag. 67 e segs. A dissertação é consultável na Internet.
[2] Cfr. Carlos Osório de Castro, «Da Prestação de Garantias por Sociedades a Dívidas de Outras Entidades», in Revista da Ordem dos Advogados, 56º, II, Ag./96, pgs. 565 a 593.