Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
| Processo: |
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| Nº Convencional: | 3.ª SECÇÃO | ||
| Relator: | ANTÓNIO AUGUSTO MANSO | ||
| Descritores: | RECURSO EXTRAORDINÁRIO PARA UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA OPOSIÇÃO DE JULGADOS FURTO IDENTIDADE DE FACTOS REJEIÇÃO | ||
| Data do Acordão: | 10/01/2025 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | RECURSO DE FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA (PENAL) | ||
| Decisão: | NEGADO PROVIMENTO | ||
| Sumário : | I - A oposição de julgados, enquanto fundamento para recurso de fixação de jurisprudência, ocorre quando, (i)dois acórdãos em conflito, do Supremo Tribunal de Justiça e/ou do Tribunal da Relação, decidam a mesma questão de direito, (ii)os dois acórdãos em conflito sejam proferidos no domínio da mesma legislação, (iii)se verifiquem entre os dois acórdãos em conflito decisões opostas, contraditórias, incompatíveis, (iv)a questão decidida em termos opostos tenha sido causa de decisão expressa, e, (v)as situações de facto e o respectivo enquadramento jurídico sejam, em ambas as decisões, idênticos. II - A oposição de julgados não se circunscreve à oposição entre as soluções de direito. Necessário se torna, também, que a mesma identidade se verifique em relação aos factos, do ponto de vista dos seus efeitos jurídicos. III - Embora em ambas as situações se trate de furto de energia eléctrica por recurso a derivações ou substituição de peças, no acórdão recorrido deu-se como assente que tais factos foram cometidos pelo arguido, por si só, ou com a ajuda de terceiros, sendo condenado, IV - Enquanto, no acórdão fundamento se deu como provado que tal derivação fraudulenta foi praticada pelo arguido, ou alguém cuja identidade não se logrou apurar, e, nesta hipótese, não se provou que “essa outra pessoa tenha agido a mando do arguido, nem em coautoria com ele, nem que este tivesse conhecimento que esse outro individuo tivesse feito tal ligação e se tenha aproveitado dela”, sendo o arguido absolvido. V - Sendo necessário que as situações de facto e o respectivo enquadramento jurídico sejam idênticos em ambas as decisões, não se verifica neste caso tal pressuposto, o que acarreta a rejeição do recurso. | ||
| Decisão Texto Integral: |
Acordam, em conferência, na 3.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça: 1- Relatório 1.1. AA, arguido no processo supra referenciado e nele melhor identificado, não se conformando com o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Évora de 16.12.2024, proferido neste processo n.º133/19.0T9LNH.E1-A.S1, transitado em julgado a 03.02.2025, e dele não sendo já admissível recurso ordinário, vem, nos termos e para os efeitos do artigo 437.º,n.º 2 do Código de Processo Penal, interporRecurso Extraordinário para Fixação de Jurisprudência para o Supremo Tribunal de Justiça, para conhecimento da oposição entre o Acórdão proferido nos presentes autos, e de que ora se recorre, e o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, de 27-10-2022, Processo n.º 2805/20.7T9SNT.L1-9, disponível para consulta in IGFEJ – Bases Jurídico-Documentais, também, transitado em julgado, acessível em:https://www.dgsi.pt/Jtrl.nsf/e6e1f17fa82712ff80257583004e3ddc/a49e64a53670293b802588ef00339b43?OpenDocument. 1.2. A final formula o recorrente as seguintes as conclusões(transcrição): A. O Condenado AA, nos autos melhor identificado, não se poderá conformar com o Acórdão proferido pelo Venerando Tribunal da Relação. B. Por do mesmo já não ser possível interpor recurso ordinário, vem, junto de V. Exs., nos termos e para os efeitos do artigo 437.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, interpor Recurso Extraordinário para Fixação de Jurisprudência para o Supremo Tribunal de Justiça, com efeito devolutivo, para conhecimento da oposição entre o Acórdão proferido nos presentes autos pelo Venerando Tribunal da Relação de Évora, de 16-12-2024, já transitado em julgado e de que ora se recorre e o Acórdão proferido pelo Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, de 27-10-2022, Processo n.º 2805/20.7 T9SNT.L1-9, disponível para consulta in IGFEJ–Bases Jurídico -Documentais, em: https://www.dgsi.pt/Jtrl.nsf/e6e1f17fa82712ff80257583004e3ddc/a49e64a53670293b802588ef00339b43?OpenDocument. C. O presente recurso de uniformização jurisprudencial é interposto porquanto existem decisões opostas, transitadas em julgado, a propósito da mesma questão de direito e no âmbito da mesma legislação, da qual: i) 127.º do CPP, na medida em que não se tenha extraído da livre apreciação da prova um juízo de certeza, para além da dúvida razoável, de que tenha sido o Arguido/Condenado o autor material do crime de furto qualificado (pp. artigos 203.º, n.º 1, 204.º e 202.º do Código de Processo Penal) e, ainda assim, ter-se proferido sentença condenatória quanto ao mesmo; ii) artigo 32.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa referente ao princípio basilar da punibilidade jurídico-penal in dúbio pro reo. D. O presente conflito/contradição jurisprudencial deverá, salvo melhor opinião, ser dirimido no sentido de se fixar a jurisprudência a ser seguida pelos Tribunais Superiores sobre a questão de direito da necessária absolvição do Arguido em crime de furto qualificado quando não se comprove a autoria material ou comparticipação do mesmo no ilícito penal, não podendo sustentar-se a sua condenação numa imputação criminal hipotética, com base na matéria de facto fixada, gerando assim um vício de insuficiência fáctica. 57. No presente processo, o condenado vinha acusado da prática de: i) crime de furto qualificado, pp pelos artigos 203.º, n.º 1 e 204.º, n.º 1 alínea a), por referência ao artigo 202.º alínea a), todos do CP; ii) crime de falsificação de notação técnica, pp no artigo 258.º, n.º 1, alínea b) e n.º 2, por referência ao artigo 255.º, alínea b) ambos do CP; iii) crime de quebra de selos, pp pelo artigo 356.º do CP. E. A sentença proferida pelo Tribunal a quo resultou como matéria de facto provada os factos n.º 1, 2, 3, 4, 5, 6, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 20, 21, 22, 23, 24 e 25. F. Tendo o Tribunal a quo dado como não provados, os seguintes factos: “2.2. Factos Não-Provados: Com interesse para a decisão da causa, os seguintes FACTOS NÃO ficaram PROVADOS: A) Durante o período da vigência do contrato descrito em 5), em data não apurada, mas anterior a 07 de Julho de 2016, o arguido AA, por si só ou com a ajuda de terceiros com conhecimentos de electricidade, procedeu ao corte dos fios de arame de selagem com as pontas cunhadas, os quais foram posteriormente encaixados no cunho. B) Agiu o arguido AA com o propósito concretizado de romper e inutilizar os selos que haviam sido apostos pelos funcionários da EDP - Distribuição de energia, SA (actualmente E-Redes – Distribuição de Electricidade, S.A.), por forma a proceder às aludidas alterações no contador de electricidade, bem sabendo que não se encontrava autorizado para tal e que os mesmos haviam sido colocados enquanto forma de marcação aposta precisamente para assegurar a inviolabilidade de tais objectos (impedir o consumo de electricidade), bem como para garantir as condições de segurança da referida instalação.” G. O Tribunal de 1.ª instância decidiu: i) absolver o arguido pela prática de crime de quebra de selos (artigo 356.º do CP); ii) absolver o arguido pela prática e crime de falsificação de notação técnica (artigo 258.º, n.º 1, alínea b) e n.º 2 do CP); iii) condenar o arguido pela prática, em autoria material e na forma consumada, de crime de furto qualificado (artigos 203.º, n.º 1 e 204.º, n.º 1, alínea a), por referência ao artigo 202.º, alínea a), todos do CP na pena de 2 anos e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período); iv) julgar totalmente procedente o pedido de indemnização civil e, em consequência, condenar o arguido no pagamento de € 10.560,62, acrescido de juros de mora à taxa legal a contar da notificação do pedido até integral e efetivo pagamento. H. O Arguido não se conformando com a decisão supra referida, dela interpôs recurso ordinário para o Tribunal da Relação de Évora, na data de 29/04/2024, recorrendo de toda a matéria de facto e de direito, nos termos do artigo 410.º, n.º 1 e 2 e 412.º do CPP. I. Porquanto o Arguido entendeu como erroneamente provados os factos vertidos nos n.ºs 6, 8.º, 10.º, 11.º, 13.º, 14.º, 16.º, 17.º, 18.º, 20.º, 21.º, 22.º e 23.º da sentença proferida pelo Tribunal a quo, verificando-se uma errónea apreciação da prova em arrepio do princípio da livre apreciação daquela quanto à imputação objetiva da prática do crime e quanto à determinação do valor da coisa subtraída. J. O Arguido, no recurso interposto, alegou ainda uma incorreta aplicação do direito no que concerne à qualificação jurídica e da medida concreta da pena. K. Entendeu e alegou o arguido estar-se perante uma violação do princípio in dubio pro reo (artigo 32.º, n.º 2 da CRP), por não poder ser suficiente nem bastante para preencher os requisitos da determinação da autoria material do ilícito o facto do Arguido ser proprietário e gestor do hotel e, apenas por essa razão, ser-lhe imputada a autoria do dito crime de furto qualificado, condenando-se nesse sentido. L. Assim sucede porquanto não foi produzida prova de que a ação humana de alteração do contador terá sido levada a cabo pelo arguido ou por terceiro a mando daquele. M. Ao contrário, foi produzida prova em sede de audiência de julgamento de que o contador adulterado encontrava-se instalado num vão de escadas, de livre acesso, inclusive, tanto ao hotel explorado pelo Arguido, como ao restaurante que não é explorado pelo Arguido e que é vizinho daquele, sem descurar a hipótese de ser de fácil acesso a qualquer pedestre que por ali passe, sendo que nenhuma testemunha viu Arguido ou outro alguém a mando dele a praticar algum tipo de comportamento minimamente conexo com a ação criminosa, avaliada como dolosa, de que foi o Arguido acusado e condenado. N. Ao lado do contador do hotel propriedade do arguido encontra-se um outro contador que pertence ao proprietário do restaurante vizinho, o qual se encontrava, igualmente e à mesma data, adulterado, tendo sido removido pelo mesmo engenheiro eletrotécnico da E-Redes, o Sr. BB, tal como alegado pelo referido engenheiro, em sede de prestação de depoimento de testemunha em audiência de julgamento. O. A testemunha BB alegou ainda que acedeu aos dois contadores através do restaurante, por ser este o caminho com melhor acesso àqueles, situação esta que gera maior dúvida no que concerne à autoria material do crime. 58. Após a produção de prova e por meio de ponderação à luz da experiência comum, não se poderia aceitar a conclusão retirada pela Mma. Juiz a quo, porquanto a matéria de facto provada é insuficiente para a decisão sobre o preenchimento dos elementos objetivos e subjetivos do tipo legal de crime, pelo qual condenou o Arguido, violando assim o princípio da presunção da inocência ao julgar com base na presunção de culpa. P. O Arguido, em sede de recurso para o Tribunal da Relação, entendeu que o facto n.º 13 da sentença a quo foi erroneamente dado como provado, tendo este facto especial relevância na medida em que determinou que o tipo de furto em causa seria qualificado atento o valor pecuniário que, pese embora não tenha sido concretamente apurado, entendeu o tribunal a quo não poder ser inferior a € 10.380,54. Q. Não foi possível, em sede de produção de prova, apurar o quantum de energia elétrica consumida e não fatura, pelo que não se deveria ter entendido ser possível aferir, consequentemente, o quantum indemnizatório do pedido cível requerido pela EDP - Distribuição, S.A. (atualmente E-Redes - Distribuição de Eletricidade S.A.). R. valorpecuniáriodeveriatersidoapuradoemconcreto,sobpenadeviolaçãodo princípio do in dubio pro reo na medida em que uma presunção ou estimativa não poderá ser fundamento bastante para uma condenação e muito menos de elevado valor, devendo, no máximo, o valor da coisa subtraída ter sido considerado como diminuto. S. O Tribunal da Relação de Évora apreciou a impugnação da matéria de facto ampla (artigo 412.º, n.º 3 e 4 do CPP) e a impugnação da matéria de facto estrita (artigo 410.º, 2, alíneas a), b) e/ou c) do CPP), tendo resultado o parcial provimento do recurso interposto pelo Arguido, revogando a sentença recorrida e, consequentemente, substituindo-a por outra que: i) condenou o arguido pela prática do crime de furto qualificado (pp artigos 203.º, n.º 1 e 204.º, n.º 1, alínea a), por referência ao artigo 202.º, alínea a) do CP), na pena de 290 (duzentos e noventa) dias de multa, à taxa diária de 8€ (oito euros), perfazendo a multa global de 2.320€ (dois mil trezentos e vinte euros). T. O Acórdão fundamento (datado de 27/10/2022, no âmbito do processo n.º 2805/20.7T9SNT.L1-9) ao apreciar a matéria de facto dado como provada pelo tribunal de 1.ª Instância, gerou uma convicção distinta daquele que foi formulado pelo Tribunal a quo - JuízoLocal Criminal de Sintra- tendo proferido sentença oposta ao acórdão recorrido e supra referido. U. O Juízo Local de Sintra deu como provados os factos n.º 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11 e 12, tendo-se dado procedência à acusação e resultando: i) na condenação do arguido AA. pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de furto qualificado, (pp pelos artigos 203.º, n.º 1 e 204.º, n.º 2, alínea a), por referência ao artigo 202.º, alínea b), todos do CP), na pena de 2 anos e 3 meses de prisão suspensa na execução por igual período; ii) na condenação do pedido de indemnização cível à E- REDES- Distribuição Energia, S.A., com a atual designação de E-REDES - Distribuição de Eletricidade, SA, no valor de € 59.265,09, acrescido de juros de mora à taxa de 4% desde a notificação para contestar até efetivo e integral pagamento. V. Por o arguido AA. não se conformar com a dita sentença, dela interpôs recurso ordinário para o Tribunal da Relação de Lisboa, da qual resultou provimento, tendo a sentença sido revogada, absolvendo o arguido do crime de furto qualificado e do pedido cível. W. No acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Évora, no âmbito do processo n.º 133/19.0T9LNH.E1, a questão central em apreço é a condenação penal do Arguido em crime de furto qualificado através de imputação criminal hipotética, ou seja, quando não se comprove a autoria material ou comparticipação do crime, com base na matéria de facto fixada. X. No entanto, o Tribunal da Relação entendeu não se verificar qualquer erro de julgamento sobre a questão de saber se o arguido, por si só ou com a ajuda de terceiros com conhecimentos de sistemas e instalações elétricas substituiu os condensadores de resistências existentes no circuito de análise das correntes de entrada, por resistências soldadas. Y. O Tribunal da Relação de Évora entendeu, com base em critérios lógicos de discernimento humano e em detrimento do princípio da presunção da inocência que “a atribuição de credibilidade, ou não, à prova testemunhal ou por declarações, assenta numa opção do julgador na base da imediação e da oralidade, decidindo de acordo com a livre convicção, e o tribunal de recurso só a poderá censurar se contrária às regras da experiência comum e lógica, ou seja, só pode determinar a alteração da matéria de facto fixada se a Relação concluir que os elementos de prova indicados pelo recorrente impõem uma decisão diversa e não apenas se permitirem uma outra decisão, adiantando que a prova produzida permitiu inferir que o arguido tinha na sua disponibilidade e controle a utilização de eletricidade. Daí não se estar em presença de um “non liqued”, pois as provas do facto apreciado – todas elas indiretas, é certo - permitiam concluir, pela consistência dos factos da acusação.”. Z. Por desconsiderar o possível interesse que qualquer outra pessoa pudesse ter na consumação deste crime, bem como o facto do arguido não ter sido visto a praticar tais atos de adulteração do contador (como alegado pelas testemunhas), o Tribunal da Relação de Évora deu às regras da experiência comum maior força probatória do que ao princípio da presunção da inocência, partindo do pressuposto que o arguido seria o único interessado no resultado do ato ilícito e do respetivo benefício, porquanto este é o proprietário e o gestor do hotel, condenando-o ainda que com moldura penal diferente, referindo que: “aludir à possibilidade de qualquer pessoa que passasse por aquele local ter acesso à apontada instalação elétrica não abala nem neutraliza força creditória da pluralidade de indícios, pois só ao arguido interessava aquela substituição de condensadores, atentas as regras da experiência humana quando tal operação exigia para além de tempo, investimento e conhecimentos técnicos sobre “sistemas e de instalação eléctricas”, naturalmente não compatível com os conhecimentos ou interesses, nomeadamente económicos, de um qualquer vulgar cidadão que ali estivesse de passagem, ocasionalmente ou não e, ainda,embora seja verdade que nenhuma das testemunhas afirmou ter visto o arguido a praticar tais atos de adulteração do contador, também ninguém afirmou ter visto qualquer outra pessoa a fazê-lo, designadamente um qualquer cidadão que por ali tivesse passado” e “Durante o período em que foi apurado desvio de registo de consumo, o único beneficiário de tal inconformidade, é manifesto, será o arguido, enquanto proprietário do hotel que funciona nesse local de instalação. Assim, nenhum meio de prova permitiu extrair outra conclusão que não fosse o arguido ser o beneficiário de tal desconformidade, sabendo-se de forma muito concreta o período por que a mesma se prolongou. Para além disso, o monopólio de que o arguido beneficia na gestão do hotel, significa que apenas ele estaria em posição de controlar o sistema elétrico do estabelecimento, o que permite afirmar que não existe espaço de dúvida quanto à autoria dos factos imputados. Já quanto ao mais que não se provou, porém, estes dados serão insuficientes para suportar uma imputação com aquela natureza.” AA. O Venerando Tribunal discordou do entendimento do arguido quanto ao cálculo e consequente valor da eletricidade furtada, por entender ser possível depreender o valor em questão através do relatório de ensaio de fls. 65 a 74, fl. 64 do Recurso Penal em objeto. BB. No Acórdão fundamento (Tribunal da Relação de Lisboa, de 27-10-2022, Processo n.º 2805/20.7T9SNT.L1-9), decidiu-se de forma oposta, tal como sumariado: “I- A ordem normal de apreciação das questões, suscitadas ou de conhecimento oficioso, em sede de recurso (nulidades da sentença, reapreciação da matéria de facto, vícios previstos no artigo 410º/2 do CPP e as restantes questões) pode e deve ser alterada, se a apreciação de uma questão substancial prejudiciar a apreciação das restantes questões; II - Dar-se como provado que um facto ilícito foi praticado pelo Arguido ou por outra pessoa, mas não que, neste caso, essa outra pessoa tenha agido a mando do Arguido, nem em co-autoria com ele, nem que este tivesse conhecimento que esse outro indivíduo tivesse praticado tal facto e se tenha aproveitado dele, não é apto a sustentar a condenação penal daquele Arguido, porque não pode haver imputação criminal hipotética; III - Se tal factualidade já constava, nesses termos, na acusação e na pronúncia, estamos perante uma insuficiência para a decisão da matéria de facto provada atípica, porque não dá lugar ao reenvio, mas sim à absolvição do Arguido.” CC. Entendeu o Tribunal da Relação de Lisboa verificar-se o vício da insuficiência atípica da prova de facto provada, nos termos do artigo 410.º, n.º 2 do CPP. DD. Definiu tal vício quando a matéria de facto fixada se apresenta como insuficiente para a decisão sobre o preenchimento dos elementos objectivos e sujectivos dos tipos legais de crime verificáveis e dos demais requisitos necessários à decisão de direito, e, por consequência, debruçou-se sobre a matéria de facto e nas figuras da autoria material e da cumplicidade, compreendidas nos artigos 26.º e 27.º do Código Penal, ao nível casuístico, para assim determinar se o agente poderia ou não ter sido condenado na prática do furto qualificado. EE. Em razão da matéria de facto dada como provada ficou fixado que «... em data não concretamente apurada, mas situada antes de 25 de Novembro de 2016, o arguido ou alguém cuja identidade não se logrou apurar, realizou uma derivação fraudulenta entre a portinhola e a caixa de TI’s, com um cabo intercetado com ligares de rede área. ...”», sendo que, com isto, considerou o Venerando Tribunal, não se poder dar como provado que um terceiro tenha atuado a mando do Arguido, nem em co-autoria com o mesmo, nem que este tivesse conhecimento que o suposto terceiro indivíduo tivesse procedido à ligação necessária para o ilícito e que dela se tenha aproveitado. FF. O Tribunal que proferiu o acórdão fundamento entendeu não poder verificar-se uma condenação do arguido no crime que lhe vinha sido imputado, de acordo com a matéria dado como provado, sob pena de incorrer numa imputação criminal hipotética, por não estarem reunidos os pressupostos da autoria do facto ilícito- tendo sido absolvido quanto à prática do crime. GG. Sendo a verificação da determinação da autoria o requisito essencial para a condenação do pedido de indemnização cível, uma vez absolvido da prática do crime de furto qualificado, não se encontravam reunidos todos os requisitos da responsabilidade civil extracontratual. HH. Verifica-se assim existirem duas decisões já transitadas em julgado proferidas pelos Tribunais Superiores, in caso, da Relação, decisões essas opostas entre si quanto à mesma matéria de direito e no âmbito da mesma legislação aplicável, a qual não sofreu quaisquer alterações no período entre ambas decorrido. II. O que distingue ambos os acórdãos é o facto do Tribunal da Relação de Évora ter seguido pela condenação penal do Arguido em crime de furto qualificado, através de imputação criminal hipotética, enquanto que no Tribunal da Relação de Lisboa se julgou pela necessária absolvição do Arguido em crime de furto qualificado, por entender-se não se poder incorrer em imputação criminal hipotética quando não se comprove a autoria material ou comparticipação do mesmo no ilícito penal, gerando um vício de insuficiência fáctica JJ. Esta divergência cria insegurança jurídica, comprometendo a uniformidade de interpretação e aplicação da lei, pelos Tribunais, especialmente em matéria da livre apreciação da prova, nos termos e para os efeitos do artigo 127.º do CPP, quando desta e da matéria dada como provada e, por isso, fixada, não resulte um juízo de certeza, de que tenha sido o Arguido o autor material do facto criminoso em causa, a saber, furto qualificado, ou outrem a mando daquele. KK. A titularidade do contrato e o interesse económico do arguido na manipulação ocorrida – como foi interpretado, por ser o Arguido proprietário e gerente do hotel e o gerente - ao contrário do que possa ser habitual em casos semelhantes aos dos presentes autos, não nos deixa afirmar, para além da dúvida razoável, a autoria dos factos pelo Recorrente e que o ocorrido adviesse de conduta culposa do mesmo. LL. Não sendo possível dar-se como provado, como fez o Tribunal a quo nos factos n.os 6., 8., 10., 11., 13., 14., 16., 17., 18., 20., 21., 22. e 23.), que tenha sido o Arguido, ora Recorrente, por si só ou com a ajuda de terceiros com conhecimentos de sistemas e instalações eléctricas, de identidade não apurada, como o próprio Julgador a quo reconhece, nem que o arguido disso tenha tido conhecimento. MM. Não ficou provado nos autos quem realizou a derivação fraudulenta (uma vez que não se viu o condenado a executar tal alteração nem se afirmou que aquele o tivesse mandado fazer), muito menos de forma culposa e necessária à condenação. NN. Não se pode fazer a presunção, como tentou a Ofendida, de que se o titular do contador ao lado, pertencente à testemunha CC, tendo apresentado a mesma anomalia e porque aquela testemunha está a proceder ao pagamento em prestações, existiu um conluio entre ambos! Isto também não resultou minimamente provado. OO. Não pode ser por um “se ter dado como culpado”, aceitando a suspensão provisória do seu processo e estando a pagar, que o outro, ora Condenado, o será também. PP.No entanto e erroneamente, deu-se como provado nos factos n.os 6, 8 e 10. QQ. Tendo o referido sido alegado em sede de recurso ordinário. RR.A autoria do facto ilícito não pode ser objetivamente imputada ao arguido, falecendo assim um dos pressupostos da reação criminal. SS. E ainda que tenha ficado na dúvida, sempre deveria o Tribunal a quo, observar e aplicar o princípio do in dúbio pro reo, o que o não fez. TT. Resultado numa clara violação do princípio da presunção de inocência do Condenado (artigo 32.º da CRP), bem como do princípio da livre apreciação da prova (artigo 127.º e ainda do artigo 204.º, ambos do CPP), a favor de uma errada imputação criminal hipotética a qual não é sinónimo nem semelhante de culpa provada. UU. Devendo ser o entendimento seguido pelo acórdão fundamento a solução a adotar pelos Tribunais Superiores. Nestes termos e nos demais de Direito, requer-se aos Exmos. Colendos Juízes Conselheiros, que se dignem: a. admitir o recurso de fixação de jurisprudência, nos termos do artigo 437.º e seguintes do Código de Processo Penal, com fundamento na oposição existente entre os acórdãos do Tribunal da Relação de Évora, datado de 16 de dezembro de 2024 e do Tribunal da Relação de Lisboa datado de 27 de outubro de 2022; c. fixar a jurisprudência a ser seguida pelos tribunais superiores sobre a questão de direito da necessária absolvição do Arguido em crime de furto qualificado quando não se comprove a autoria material ou comparticipação do mesmo no ilícito penal, não podendose sustentar a sua condenaçãona imputação criminal hipotética, com base na matéria de facto fixada, gerando um vício de insuficiência fáctica. d. Determinar que, enquanto não houver fixação da jurisprudência, os tribunais inferiores se abstenham de decidir em contrariedade com a jurisprudência que se venha a fixar. Termos em que e nos melhores de Direito, se requer a V.ª Exas. que o presente Recurso Extraordinário para Fixação de Jurisprudência seja admitido, e por via dele, seja fixada a jurisprudência a ser observada pelos tribunais superiores, culminando com a consequente revogação da Sentença recorrida nos termos enunciados, devendo ser, a final, o Arguido sempre absolvido, em razão do acórdão fundamento.” 1.3. Ao recurso respondeu o Ministério Público, junto do Tribunal da Relação de Évora, concluindo (transcrição): (…) “Assim, em conclusão, entendemos não estar perante uma verdadeira situação de oposição de julgados, nos termos supra descritos, enquanto pressuposto substantivo, devendo, consequentemente, ser rejeitado o recurso.” 1.4. O Ex.mo Procurador Geral Adjunto, no Supremo Tribunal de Justiça, pronunciou-se no sentido de que, e, “[e]m síntese, não é viável extrair qualquer relação de oposição de julgados nas duas decisões identificadas nos autos, reportando-se: O Acórdão-Recorrido, a decidir que integra a prática do crime de “furto qualificado”, p. e p. nas disposições dos arts. 203º/1 e 204º/1,-a), por referência ao art.º 202º-a), todos do Código Penal (furto de electricidade) – verificados os restantes pressupostos objectivos e subjectivos –, a circunstância de: Durante o período da vigência do referido contracto, em data não apurada, mas anterior a 07 de Julho de 2016, o arguido AA, por si só ou com a ajuda de terceiros com conhecimentos de sistemas e instalações elétricas, substituiu os condensadores de resistências existentes no circuito de análise das correntes de entrada… O Acórdão-Fundamento, a decidir que, não podendo haver imputação criminal hipotética, não integra a prática de tal crime – mormente por insuficiência fáctica atípica –, a circunstância de: …(E)m data não concretamente apurada, mas situada antes de 25 de Novembro de 2016, o arguido ou alguém cuja identidade não se logrou apurar, realizou uma derivação fraudulenta entre a portinhola e a caixa de TI’s, com um cabo intercetado com ligadores de rede aérea. O presente recurso de fixação de jurisprudência deve ser rejeitado (cfr, arts. 414º/2, 420º/1-b), 437º/1, 441º/1 e 228º do Código de Processo Penal). (…) Motivo por que o Ministério Público dá Parecer que: -Deverá ser rejeitado o presente recurso extraordinário de fixação de jurisprudência.” 1.5. Foram os autos aos vistos e à conferência. Decidindo, 2. Fundamentação 2.1. O recurso extraordinário de fixação de jurisprudência, integra-se nas competências do Supremo Tribunal de Justiça, como tribunal de revista que cuida pela correta aplicação da lei por todos os tribunais judiciais. Como referido no Ac. do STJ de 07.06.20231 “o recurso extraordinário para fixação de jurisprudência tem por finalidade a obtenção de uma decisão do Supremo Tribunal de Justiça que fixe jurisprudência, “no interesse da unidade do direito”, resolvendo o conflito suscitado (art.º 445.º, n.º 3, do CPP), relativamente à mesma questão de direito, quando existem dois acórdãos com soluções opostas, no domínio da mesma legislação, assim favorecendo os princípios da segurança e previsibilidade das decisões judiciais e, ao mesmo tempo, promovendo a igualdade dos cidadãos.” O que se compreende, até tendo em atenção, como se diz no ac. do STJ n.º 5/2006, publicado no DR I-A Série de 06.06.2006, que «A uniformização de jurisprudência tem subjacente o interesse público de obstar à flutuação da jurisprudência e, bem assim, contribuir para a certeza e estabilidade do direito.» A previsibilidade das decisões judiciais e a confiança no sistema judiciário são também finalidades a alcançar com este recurso. “Trata-se de um recurso de carácter normativo destinado unicamente a fixar critérios interpretativos uniformes com a finalidade de garantir a unidade do ordenamento penal e, com isso, os princípios de segurança, da previsibilidade das decisões judiciais e a igualdade dos cidadãos perante a lei”, como se lê no Ac. do STJ de 13.01.20212. O que está em causa não é, pois, a reapreciação da decisão de aplicação do direito ao caso no acórdão recorrido, transitado em julgado, mas verificar, partindo de uma factualidade equivalente, se a posição tomada no acórdão recorrido, quanto a certa questão de direito, seria a que o mesmo julgador tomaria, se tivesse que decidir no mesmo momento essa questão, no acórdão fundamento, e vice-versa3. A admissibilidade do recurso extraordinário para fixação de jurisprudência depende da verificação de pressupostos formais e de requisitos materiais/substanciais, a que se referem os artigos 437.º e 438.º do CPP citados. Assim, entende-se que são requisitos formais, (i)a legitimidade do recorrente, (ii)o trânsito em julgado dos acórdãos conflituantes, (iii)interposição no prazo de 30 dias após o trânsito em julgado do acórdão recorrido, (iv)a invocação e junção de cópia do acórdão fundamento ou pelo menos identificação de publicação oficial onde tenha sido publicado, (v)justificação, de facto e de direito, do conflito de jurisprudência, e, por sua vez, são requisitos substantivos, a existência de (i)dois acórdãos do STJ tirados em processos diferentes, ou, (ii)um acórdão da Relação que, não admitindo recurso ordinário, não tenha decidido contra jurisprudência fixada e outro anterior de tribunal da mesma hierarquia ou do STJ, (iii)proferidos no domínio da mesma legislação, (iv)assentes em soluções opostas relativamente à mesma questão de direito(4)(5). Sendo certo que todos os pressupostos, formais e substanciais exigidos para a admissibilidade do recurso extraordinário para fixação de jurisprudência têm de se mostrar verificados à data da sua interposição, sob pena de rejeição, nos termos do art.º 441º, n.º 1, 1ª parte, do CPP. Para o não especialmente regulado aplicam-se, subsidiariamente, as disposições que regulam os recursos ordinários (art.º 448º do CPP). 2.2. Requisitos formais No que respeita aos requisitos formais de admissibilidade do recurso de fixação da jurisprudência, entende-se que os mesmos se mostram verificados. Na verdade: (i)O recorrente, na qualidade de arguido, têm legitimidade para interpor o recurso (artigos 437.º, n.º 5 do C.P.P.). (ii) O recurso é tempestivo, uma vez que foi interposto no prazo de 30 dias, a contar do trânsito em julgado do acórdão proferido em último lugar, proferido nos presentes autos a 16.12.2024 e transitado a 03.02.2025. (iii) O recorrente invocou no recurso o acórdão fundamento e indicou o local onde se encontra publicado. (iv) O acórdão fundamento publicado na página da DGSI transitou em julgado, pelo que mostram transitados em julgado os dois acórdãos. 2.3. Requisitos substanciais Quanto aos requisitos substanciais de admissibilidade, deste recurso extraordinário, verifica-se a existência nos autos de dois acórdãos, um do Tribunal da Relação de Évora e outro do Tribunal da Relação de Lisboa, que o recorrente entende terem julgado a mesma questão de direito, com decisões opostas, proferidos no domínio da mesma legislação. Questão central a decidir é a existência de oposição de julgados, no sentido de que os acórdãos assentam em soluções opostas, de modo expresso e a partir de situações de facto idênticas. Na opinião do recorrente tal decorre como resume na alínea C) e D) da motivação, onde defende que: “C. O presente recurso de uniformização jurisprudencial é interposto porquanto existem decisões opostas, transitadas em julgado, a propósito da mesma questão de direito e no âmbito da mesma legislação, da qual: i) 127.º do CPP, na medida em que não se tenha extraído da livre apreciação da prova um juízo de certeza, para além da dúvida razoável, de que tenha sido o Arguido/Condenado o autor material do crime de furto qualificado (pp. artigos 203.º, n.º 1, 204.º e 202.º do Código de Processo Penal) e, ainda assim, ter-se proferido sentença condenatória quanto ao mesmo; ii) artigo 32.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa referente ao princípio basilar da punibilidade jurídico-penal in dúbio pro reo. D. O presente conflito/contradição jurisprudencial deverá, salvo melhor opinião, ser dirimido no sentido de se fixar a jurisprudência a ser seguida pelos Tribunais Superiores sobre a questão de direito da necessária absolvição do Arguido em crime de furto qualificado quando não se comprove a autoria material ou comparticipação do mesmo no ilícito penal, não podendo sustentar-se a sua condenação numa imputação criminal hipotética, com base na matéria de facto fixada, gerando assim um vício de insuficiência fáctica.” A verificação deste requisito substancial demanda que se analise, e se compare, em primeiro lugar, o essencial das decisões proferidas no acórdão recorrido e no acórdão fundamento sobre a questão objeto de recurso. E depois, que se decida pela existência, ou não, de oposição de julgados e consequente prosseguimento ou rejeição do recurso. 2.3.1. Acórdão recorrido No acórdão recorrido, do Tribunal da Relação de Évora, proferido no processo n.º 133/19.0T9LNH.E1-A.S1, o arguido/recorrente, inconformado, interpôs recurso da sentença que o havia absolvido pela prática de crime de quebra de selos, previsto e punido pelo artigo 356.º do Código Penal, pela prática de crime de falsificação de notação técnica, p. e p. pelo art. 258.º, n.º 1, al. b) e n.º2 do Código Penal, e o condenou pela prática de crime de crime de furto qualificado, previsto e punido pelos artigos 203.º, n.º 1 e 204.º, n.º 1, alínea a), por referência ao artigo 202.º, alínea a), todos do Código Penal na pena de 2 anos e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, e, ainda, julgando totalmente procedente o pedido de indemnização civil deduzido pelo demandante cível condenou o demandado/recorrente no pagamento àquela de € 10.560,62 (dez mil quinhentos e sessenta euros e sessenta e dois cêntimos), acrescido de juros de mora à taxa legal a contar da notificação do pedido até integral e efectivo pagamento (…)”. Indicou as razões de facto e de direito que, em seu entender, impunham decisão da matéria de facto e decisão de direito diferentes. Considerou o acórdão que, as questões a decidir eram, a impugnação da matéria de facto e impugnação da matéria de direito (artigo 412.º, n.º 2 do CPP). Neste processo e acórdão foram dados como provados os seguintes factos com interesse para a decisão: (…) “3. No âmbito da gestão do hotel, o arguido celebrou até à data diversos contractos de fornecimento de energia eléctrica, cujos efeitos se iniciaram após a instalação da correspondente instalação eléctrica em 27/04/2007. 4. Durante esse período, o arguido não só recebeu as facturas com os consumos de electricidade ali registados, como também determinou o pagamento das quantias inscritas nas mesmas. 5. Em 11 de Outubro de 2013, o arguido celebrou um contracto de fornecimento de electricidade com Iberdrola, Clientes Portugal, Unipessoal, Lda. 6. Durante o período da vigência do referido contracto, em data não apurada, mas anterior a 07 de Julho de 2016, o arguido AA, por si só ou com a ajuda de terceiros com conhecimentos de sistemas e instalações elétricas, substituiu os existentes no circuito de análise das correntes de entrada, e 8. Onde anteriormente estavam condensadores, foram colocadas resistências soldadas. 9. Tal alteração afecta o erro do contador, levando a que contabilize menos energia do que aquela que na realidade é consumida no âmbito do contracto celebrado com o comercializador, não registando dessa forma o consumo real. 10. A descrita operação permitiu que o contador continuasse a registar consumos, mas não registasse a totalidade da electricidade que era consumida pelo estabelecimento hoteleiro explorada pelo arguido, impedindo a assim a sua contabilização pela EDP - Distribuição, S.A. (actualmente E-Redes – Distribuição de Electricidade, S.A.) e pela Iberdrola, Clientes Portugal, Unipessoal, Lda, o que ocorreu durante o período de tempo 07 de Julho de 2016 e 12 de Abril de 2018, com o conhecimento do mesmo. 11. Da forma descrita, o arguido AA, sem o conhecimento e autorização da ofendida EDP - Distribuição, S.A. (actualmente E-Redes – Distribuição de Electricidade, S.A.), logrou apoderar-se de energia eléctrica no interior do estabelecimento que explorava, a qual consumiu em iluminação e abastecimento de electrodomésticos, sem pagar o respectivo preço. 12. Tal situação manteve-se até ao dia 12 de Abril de 2018, data em que foi retirado o contador e enviado para análise, por parte de técnicos especializados. 13. Em resultado da conduta do arguido AA, o estabelecimento hoteleiro por si explorado, pelo menos no período compreendido entre 07 de Julho 2016 e 12 Abril de 2018, consumiu a electricidade fornecida pela EDP - Distribuição, S.A. (actualmente E-Redes – Distribuição de Electricidade, S.A.) no valor pecuniário não concretamente apurado, mas nunca inferior a € 10.380,54 (dez mil trezentos e oitenta euros e cinquenta e quatro cêntimos). 14. Ainda como resultado dessa conduta, a EDP - Distribuição de energia, SA (actualmente E-Redes – Distribuição de Electricidade, S.A.) sofreu custos no equipamento no valor de € 107,98 (cento e sete euros e noventa e oito cêntimos). 15. Com a detecção e tratamento da anomalia referida, a EDP - Distribuição de energia, SA (actualmente E-Redes – Distribuição de Electricidade, S.A.) teve um custo total de € 72,10 (setenta e dois euros e dez cêntimos). 16. Como consequência da conduta do arguido AA, a ofendida EDP - Distribuição de energia, SA (actualmente E-Redes – Distribuição de Electricidade, S.A.) sofreu um prejuízo total de € 10.560,62 (dez mil quinhentos e sessenta euros e sessenta e dois cêntimos). 17. Com as respectivas alterações efectuados ao contador instalado no estabelecimento hoteleiro em causa, o arguido AA, por si ou com o apoio de uma terceira pessoa, subverteu a contagem do consumo de electricidade realizada pelo referido aparelho, pois fez constar, no contador do aludido estabelecimento, consumos de electricidade expressos em KHW que não correspondiam aos efectivamente consumidos. 18. O arguido AA sabia que as contagens indicadas no contador eram falsas e só existiam porque subtraíam da contagem o consumo realizado por via da abertura do shunt da fase S, com o que beneficiou de consumos gratuitos de electricidade no aludido estabelecimento, o que sabia ser ilegítimo, com favorecimento para si, que não dispôs do seu património para pagar a energia efectivamente consumida. 20. Quis, e conseguiu, o arguido AA prejudicar a EDP - Distribuição de energia, SA (actualmente E-Redes – Distribuição de Electricidade, S.A.), bem como o próprio Estado, dado o interesse deste na fiabilidade dos aparelhos de medição de electricidade, cujo fornecimento é público. 21. Quis ainda o arguido AA, para o efeito, por si próprio ou por intermédio dos conhecimentos de electricista de identidade não apurada, receber, usar e usufruir de electricidade fornecida pela EDP - Distribuição de energia, SA (actualmente E-Redes – Distribuição de Electricidade, S.A.), de forma fraudulenta e gratuita, o que logrou concretizar. 22. Agiu ainda o arguido com o propósito concretizado de fazer sua a energia eléctrica, bem sabendo que a mesma não lhe pertencia e que actuava sem autorização e contra a vontade da sua legítima proprietária, a ofendida EDP Distribuição – Energia, SA (actualmente E-Redes – Distribuição de Electricidade, S.A.). 23. O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei como crime.” (…) A final, 16.12.2024, o acórdão decidiu conceder parcial provimento ao recurso interposto pelo arguido e em consequência: a) Revogou a sentença recorrida, na parte em que condenou o arguido em pena de prisão e em sua substituição decidiu condená-lo pela prática do crime de furto qualificado, previsto e punido pelos artigos 203.º, n.º 1 e 204.º, n.º 1, alínea a), por referência ao artigo 202.º, alínea a) do CP, na pena de 290 (duzentos e noventa) dias de multa, à taxa diária de 8 € (oito euros), perfazendo a multa global de 2.320 € (dois mil trezentos e vinte euros); b) No mais, confirmou a sentença recorrida. O Tribunal da Relação de Évora entendeu, com base em critérios lógicos de discernimento humano e em detrimento do princípio da presunção da inocência que “a atribuição de credibilidade, ou não, à prova testemunhal ou por declarações, assenta numa opção do julgador na base da imediação e da oralidade, decidindo de acordo com a livre convicção, e o tribunal de recurso só a poderá censurar se contrária às regras da experiência comum e lógica, ou seja, só pode determinar a alteração da matéria de facto fixada se a Relação concluir que os elementos de prova indicados pelo recorrente impõem uma decisão diversa e não apenas se permitirem uma outra decisão, adiantando que a prova produzida permitiu inferir que o arguido tinha na sua disponibilidade e controle a utilização de eletricidade. Daí não se estar em presença de um “non liqued”, pois as provas do facto apreciado – todas elas indiretas, é certo - permitiam concluir, pela consistência dos factos da acusação.” Mais refere que …. “aludir à possibilidade de qualquer pessoa que passasse por aquele local ter acesso à apontada instalação elétrica não abala nem neutraliza a força creditória da pluralidade de indícios, pois só ao arguido interessava aquela substituição de condensadores, atentas as regras da experiência humana quando tal operação exigia para além de tempo, investimento e conhecimentos técnicos sobre “sistemas e de instalação eléctricas”, naturalmente não compatível com os conhecimentos ou interesses, nomeadamente económicos, de um qualquervulgarcidadãoquealiestivessedepassagem,ocasionalmenteounãoe,ainda,emborasejaverdade que nenhuma das testemunhas afirmou ter visto o arguido a praticar tais atos de adulteração do contador, também ninguém afirmou ter visto qualquer outra pessoa a fazê-lo, designadamente um qualquer cidadão que por ali tivesse passado” E “Durante o período em que foi apurado desvio de registo de consumo, o único beneficiário de tal inconformidade, é manifesto, será o arguido, enquanto proprietário do hotel que funciona nesse local de instalação. Assim, nenhum meio de prova permitiu extrair outra conclusão que não fosse o arguido ser o beneficiário de tal desconformidade, sabendo-se de forma muito concreta o período por que a mesma se prolongou. Para além disso, o monopólio de que o arguido beneficia na gestão do hotel, significa que apenas ele estaria em posição de controlar o sistema elétrico do estabelecimento, o que permite afirmar que não existe espaço de dúvida quanto à autoria dos factos imputados. Já quanto ao mais que não se provou, porém, estes dados serão insuficientes para suportar uma imputação com aquela natureza.” 2.3.2. Acórdão fundamento No acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 27.10.2022, proferido no processo n.º 2805/20.7T9SNT.L1-9, o arguido/recorrente havia sido condenado “pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de furto qualificado, p. e p. pelos art.ºs 203º, n.º 1, e 204º, n.º 2, al. a), por referência ao art.º 202º al. b) todos do Código Penal, na pena de 2 anos e 3 meses de prisão, suspensa na execução, por igual período e ainda julgando procedente o pedido de indemnização civil deduzido pela EDP, mais foi condenado a pagar a esta entidade a quantia de 59.265,09 euros, acrescida de juros de mora à taxa legal de 4% desde a data da notificação para contestar e até efectivo e integral pagamento. Nos factos provados deu-se como provado que “EE. (…)«... em data não concretamente apurada, mas situada antes de 25 de Novembro de 2016, o arguido ou alguém cuja identidade não se logrou apurar, realizou uma derivação fraudulenta entre a portinhola e a caixa de TI’s, com um cabo intercetado com ligares de rede área. ...”» Na fundamentação refere o acórdão fundamento … “[i]sto é, está provado que essa ligação fraudulenta foi feita pelo arguido ou por outra pessoa, mas não que, neste caso, essa outra pessoa tenha agido a mando do arguido, nem em coautoria com ele, nem que este tivesse conhecimento que esse outro individuo tivesse feito tal ligação e se tenha aproveitado dela. Não pode haver imputação criminal hipotética. Por isso, a autoria do facto ilícito não pode, neste caso, ser objectivamente imputada ao arguido, pelo que falece um dos pressupostos da reacção criminal. Por isso, a matéria de facto apresenta-se insuficiente para a decisão sobre o preenchimento dos elementos objectivos do tipo legal de crime pelo qual o arguido vem condenado.” Assim, a final, o acórdão, julgando provado o recurso revogou a decisão recorrida e absolveu o arguido quer do crime pelo qual vinha condenado quer do pedido cível. E lê-se no sumário que: “I- A ordem normal de apreciação das questões, suscitadas ou de conhecimento oficioso, em sede de recurso (nulidades da sentença, reapreciação da matéria de facto, vícios previstos no artigo 410º/2 do CPP e as restantes questões) pode e deve ser alterada, se a apreciação de uma questão substancial prejudiciar a apreciação das restantes questões; II - Dar-se como provado que um facto ilícito foi praticado pelo Arguido ou por outra pessoa, mas não que, neste caso, essa outra pessoa tenha agido a mando do Arguido, nem em co-autoria com ele, nem que este tivesse conhecimento que esse outro indivíduo tivesse praticado tal facto e se tenha aproveitado dele, não é apto a sustentar a condenação penal daquele Arguido, porque não pode haver imputação criminal hipotética; III - Se tal factualidade já constava, nesses termos, na acusação e na pronúncia, estamos perante uma insuficiência para a decisão da matéria de facto provada atípica, porque não dá lugar ao reenvio, mas sim à absolvição do Arguido.” 2.3.3. Como referido, a questão a decidir é a existência de oposição de julgados, no sentido de que os acórdãos assentam em soluções opostas, de modo expresso e a partir de situações de facto idênticas. Ora neste caso a base factual subjacente a cada um dos acórdãos, a cada uma das decisões, embora aparentemente semelhante, é substancialmente diferente. No acórdão recorrido, e descendo ao facto essencial e decisivo no caso, deu-se como provado, no facto-provado sob o n.º 6 e segs., que [d]urante o período da vigência do referido contracto, em data não apurada, mas anterior a 07 de Julho de 2016, o arguido AA, por si só, ou com a ajuda de terceiros com conhecimentos de sistemas e instalações elétricas, substituiu os existentes no circuito de análise das correntes de entrada, e, 8, [o]nde anteriormente estavam condensadores, foram colocadas resistências soldadas.” E, no ponto 9 dos factos provados, diz-se que “[t]al alteração afecta o erro do contador, levando a que contabilize menos energia do que aquela que na realidade é consumida no âmbito do contracto celebrado com o comercializador, não registando dessa forma o consumo real.” Já no acórdão fundamento, no ponto 4 dos factos provados, deu-se como assente que “[c]ontudo, em data não concretamente apurada, mas situada antes de 25 de Novembro de 2016, o arguido ou alguém cuja identidade não se logrou apurar, realizou uma derivação fraudulenta entre a portinhola e a caixa de TI’s, com um cabo intercetado com ligadores de rede aérea.” Embora em ambos os casos se trate de furto de energia eléctrica por recurso a derivações ou substituição de peças, no acórdão recorrido deu-se como assente que tais factos foram cometidos pelo arguido, por si só ou com a ajuda de terceiros, enquanto que no acórdão fundamento deu-se como provado que tal derivação fraudulenta foi praticada pelo arguido ou alguém cuja identidade não se logrou apurar. Ou seja, neste acórdão fundamento admite-se que tais factos tenham sido praticados por outra pessoa, só, que não o arguido. Se no acórdão recorrido o arguido está sempre presente, só ou com a ajuda de outra pessoa, no acórdão fundamento, admite-se a hipótese de não estar presente e de não ser ele a realizar a derivação ou substituição de peças, os actos danosos. Mais se acrescenta, no acórdão fundamento, que nesta hipótese, também não se deu como provado que “essa outra pessoa tenha agido a mando do arguido, nem em coautoria com ele, nem que este tivesse conhecimento que esse outro individuo tivesse feito tal ligação e se tenha aproveitado dela.” Isto é abre-se uma hipótese de o arguido nada ter a ver com a prática do crime, contrariamente ao acórdão recorrido onde se deu por assente que o arguido só ou acompanhado praticou o facto ilícito. Como se vê do confronto dos acórdãos, recorrido e fundamento, as situações de facto, quanto à participação dos arguidos na prática dos factos, são substancialmente diferentes e consequentemente as decisões foram diferentes. Na verdade, a oposição de julgados não se circunscreve à oposição entre as soluções de direito. Necessário se torna, antes, que a mesma identidade se verifique em relação aos factos, do ponto de vista dos seus efeitos jurídicos. Assim, a oposição de julgados ocorre quando, (i)dois acórdãos em conflito, do Supremo Tribunal de Justiça e/ou do Tribunal da Relação, decidam a mesma questão de direito, (ii)os dois acórdãos em conflito sejam proferidos no domínio da mesma legislação, (iii)se verifiquem entre os dois acórdãos em conflito decisões opostas, contraditórias, incompatíveis, (iv)a questão decidida em termos opostos tenha sido causa de decisão expressa, e, (v)as situações de facto e o respectivo enquadramento jurídico sejam, em ambas as decisões, idênticos6. Sendo necessário que as situações de facto e o respectivo enquadramento jurídico sejam idênticos em ambas as decisões7, não se verifica neste caso tal pressuposto. b. Depois, no Recurso de Fixação de Jurisprudência deverá verificar-se diferente interpretação e aplicação de uma mesma norma jurídica, o que se não verifica neste caso. Não existe qualquer norma especifica interpretada de forma contraditória, o que constitui a base necessária para ser formulada decisão de fixação de jurisprudência. Pelo contrário o disposto no art.º 127º do CPP, foi aplicado de igual forma em ambos os acórdãos. Foram dados como provados os factos que o tribunal, na sua livre apreciação da prova, considerou como verificados É, pois, evidente que, no presente caso, se não verifica uma situação de oposição de julgados, por falta dos pressupostos ou requisitos necessários a que se referem os artigos 437º e 438º do CPP. O que importa a rejeição do recurso, atento o disposto no art.º 441º, n.º 1 do CPP. III. Decisão Nestes termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes desta Secção do Supremo Tribunal de Justiça em: a) rejeitar o presente recurso extraordinário para fixação de jurisprudência interposto pelo arguido AA nos termos do disposto no art.441.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, e, b) condenar o recorrente em custas, fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) UCs (artigos 513.º, n.ºs 1 e 3 do C.P.P. e 8.º, n.º 9 e tabela III do Regulamento das Custas Processuais). * Lisboa, Supremo Tribunal de Justiça, 01 de Outubro de 2025 António Augusto Manso (Relator) Horácio Correia Pinto (Adjunto) Maria Margaria Almeida (Adjunta) _______ 1-Ac. do STJ de 07.06.2023, proferido no proc. n.º 3847/20.8T9FAR-A.E1-A.S1.www.dgsi.pt. 2-proferido no proc. n.º 39/08.8PBBRG-K-A-A.S1, www.dgsi.pt., 3-Ac. do STJ de 20.01.2021, proferido no processo n.º 454/17.6T9LMG-E.C1-A.S1, 3ª secção, in www.dgsi.pt. 4-Entre outros, Ac. do STJ de 13.01.2021, proferido no proc. n.º 39/08.8PBBRG-K-A-A.S1, www.dgsi.pt. 5-Exigia-se, ainda, antes, que o recorrente propusesse o sentido da jurisprudência a fixar – cfr. Assento n.º 9/2000, de 30 de Março de 2000, publicado no Diário da República, I Série - A, de 27.05.2000. Exigência que foi eliminada pela jurisprudência fixada no Acórdão (AUJ) n.º 5/2006, de20 de Abril de 2006, publicado no Diário da República, I Série-A, de6.06.2006, no qual, reexaminando e reputando ultrapassada a jurisprudência daquele Assento, se estabeleceu que, “No requerimento de interposição do recurso extraordinário de fixação de jurisprudência (artigo 437.º, n.º 1, do Código de Processo Penal), o recorrente, ao pedir a resolução do conflito (artigo 445.º, n.º 1), não tem de indicar «o sentido em que deve fixar-se jurisprudência» (artigo442.º, n.º 2). 6-No mesmo sentido, veja-se, nesta matéria, entre muitos outros, o Ac. do STJ de 17.06.2021, P- 701/16.1T9MTJ.L1-A.S1. 7-Ac. STJ 2/6/2021 www.dgsi.pt, sendo relator o Conselheiro Clemente Lima. |