Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:0539/24.2BESNT
Data do Acordão:06/18/2025
Tribunal:CONFLITOS
Relator:FRANCISCO ROTHES
Descritores:CONFLITO DE JURISDIÇÃO
Sumário:
Nº Convencional:JSTA000P33888
Nº do Documento:SAC202506180539
Recorrente:AA
Recorrido 1:MUNICÍPIO DE OEIRAS E OUTROS
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Acordam no Tribunal dos Conflitos:

RELATÓRIO

AA, identificada nos autos, deduziu oposição ao processo de execução fiscal n.º ..02/..14 e apensos, instaurado pelo Município de Oeiras – SMAS Oeiras, para cobrança de dívidas relativas a facturas referentes a serviços de fornecimento de água referentes aos meses de Junho de 2014 a Maio de 2018, no montante total de € 1.913,64.
Em 11 de Janeiro de 2024, o Município de Oeiras remeteu a oposição ao Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, Juízo de Execução de Oeiras, ao abrigo do disposto no art. 280.º do Código de Procedimento e Processo Tributário (CPPT).
Em 13 de Junho de 2024, o Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, Juízo de Execução de Oeiras – Juiz ... [Proc. n.º ...93/24...OER] proferiu decisão a declarar incompetentes os Juízos de Execução de Oeiras para tramitar a oposição, com a seguinte fundamentação:
«Foi apresentada neste juízo de execução oposição à execução fiscal, - nos termos do art. 203.º e seguintes do Cód. do Procedimento e de Processo Tributário Como resulta das disposições legais citadas e, designadamente, do disposto no art. 203.º, n.º 7, do CPPT, bem como da Lei 62/2013, de 26/08, a competência para apreciar e decidir da oposição à execução fiscal pertence ao Tribunal Tributário de 1.ª instância. Assim sendo, este Tribunal padece de competência material para tramitar a presente oposição».
Em 27 de Junho de 2024, os autos de Oposição deram entrada no Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra, que, por sentença proferida em 23 de Setembro de 2024, também se declarou materialmente incompetente em razão da matéria. Isto, porque entendeu o seguinte:
«Quanto ao momento em que a acção se considera proposta ou pendente, quer se perfilhe o entendimento que a Oposição se considera proposta na data em que o processo foi remetido para o TAF de Sintra, no caso, em 27/06/2024 [cfr. ponto F. do probatório], quer se perfilhe o entendimento de que acção se considera proposta na data em que a Oposição foi expedida pelo oponente para o Município de Oeiras, que ocorreu, no caso, em 22/12/2023 [cfr. ponto C. do probatório] - cfr. acórdãos do Tribunal de Conflitos de 24/02/2021, Processo n.º 01573/20.7T8CSC.S1 e de 20/01/2021, Processo n.º 01574/20.5T8CSC.S1, disponíveis em www.dgsi.pt -, em qualquer das referidas datas, já se encontrava em vigor a alínea e) do n.º 4 do art.º 4.º do ETAF, com a redacção dada pela Lei n.º 114/2019, de 12 de Setembro. Considerando que o objecto da presente acção respeita a dívidas decorrentes da falta de pagamento voluntário de tarifas emitidas no âmbito de relação de consumo relativa à prestação de serviços públicos essenciais (água, recolha e tratamento de águas residuais e gestão de resíduos sólidos urbanos), nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 4.º, n.º 4, alínea e) do ETAF, conclui-se que a competência material para conhecer do presente litígio cabe aos tribunais judiciais [cf. artigo 211.º, n.º 1 da CRP e artigo 64.º do Código de Processo Civil (“CPC”)]».
Suscitada oficiosamente a resolução do conflito de jurisdição, foram os autos remetidos ao Tribunal dos Conflitos.
Neste Tribunal dos Conflitos as partes foram notificadas para efeitos do disposto no n.º 3 do art. 11.º da Lei n.º 91/2019, de 4 de Setembro, e nada disseram.
O Ex.mo Procurador-Geral-Adjunto emitiu parecer no sentido de ser competente para conhecer da oposição o tribunal da jurisdição comum, mais precisamente o Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, Juízo de Execução de Oeiras Juiz ...

APRECIAÇÃO DA QUESTÃO

Cabe aos tribunais judiciais a competência para julgar as causas «que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional» [art. 211.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa (CRP), art. 64.º do Código de Processo Civil (CPC) e art. 40.º, n.º 1, da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto, que aprovou a Lei de Organização do Sistema Judiciário (LOSJ)], e aos tribunais administrativos e fiscais a competência para julgar as causas «emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais» [art. 212.º, n.º 3, da CRP e art. 1.º, n.º 1, do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19 de Fevereiro].
A competência dos tribunais administrativos e fiscais é concretizada no art. 4.º do ETAF, com delimitação do “âmbito da jurisdição” mediante uma enunciação positiva (n.ºs 1 e 2) e negativa (n.ºs 3 e 4).
A alínea e) do n.º 4 do art. 4.º do ETAF, que foi introduzida pela Lei n.º 114/2019, de 12 de Setembro, veio excluir do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal “[a] apreciação de litígios emergentes das relações de consumo relativas à prestação de serviços públicos essenciais, incluindo a respectiva cobrança coerciva”.
Na Exposição de Motivos que acompanhou a Proposta de Lei n.º 167/XIII, que deu origem à referida Lei n.º 114/2019, consta o seguinte: «A necessidade de clarificar determinados regimes, que originam inusitadas dificuldades interpretativas e conflitos de competência, aumentando a entropia e a morosidade, determinaram as alterações introduzidas no âmbito da jurisdição. Esclarece-se que fica excluída da jurisdição a competência para a apreciação de litígios decorrentes da prestação e fornecimento de serviços públicos essenciais. Da Lei dos Serviços Públicos (Lei n.º 23/96, de 26 de Julho) resulta claramente que a matéria atinente à prestação e fornecimento dos serviços públicos aí elencados constitui uma relação de consumo típica, não se justificando que fossem submetidos à jurisdição administrativa e tributária; concomitantemente, fica agora clara a competência dos tribunais judiciais para a apreciação destes litígios de consumo» (disponível em https://www.parlamento.pt).
A Lei n.º 23/96, de 26 de Julho, consagra as regras a que deve obedecer a prestação de serviços públicos essenciais em ordem à protecção do utente. De acordo com o art. 1.º, n.º 2, alínea a), da referida Lei, de entre os serviços públicos abrangidos encontra-se o serviço de fornecimento de água.
A Lei n.º 114/2019 entrou em vigor em 11 de Novembro de 2019 e não regula a sua própria aplicação no tempo. Assim, a alteração introduzida por esta Lei, no sentido de excluir do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação daqueles litígios, não abrange as acções pendentes, de acordo com o disposto no art. 5.º do ETAF (no mesmo sentido o art. 38.º da LOSJ).
Os presentes autos tiveram a sua origem nos autos de execução fiscal administrativa n.º ..02/..14, instaurados em 28 de Outubro de 2014 pelo Município de Oeiras, para cobrança coerciva de dívidas referentes a consumos de água.
Em 22 de Dezembro de 2023, foi deduzida oposição junto do Serviço de Execuções Fiscais do Município de Oeiras, que a remeteu ao Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste.
Nos termos do art. 149.º do CPPT, «[c]onsidera-se, para efeitos do presente Código, órgão da execução fiscal o serviço da administração tributária onde deva legalmente correr a execução ou, quando esta deva correr nos tribunais comuns, o tribunal competente»; e, segundo o art. 150.º do mesmo Código: «1 - É competente para a execução fiscal a administração tributária. 2 - A instauração e os actos da execução são praticados no órgão da administração tributária designado, mediante despacho, pelo dirigente máximo do serviço».
O art. 151.º do CPPT dispõe: «Compete ao tribunal tributário de 1.ª instância da área do domicílio ou sede do devedor originário, (…) decidir (…) a oposição (…)».
Finalmente, releva o disposto no n.º 1 do art. 103.º da LGT (Lei Geral Tributária), aprovada pelo Decreto-Lei n.º 398/98, de 17 de Dezembro, que atribui ao processo de execução fiscal «natureza judicial, sem prejuízo da participação dos órgãos da administração tributária nos actos que não tenham natureza jurisdicional».
Como se expendeu no acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 17 de Fevereiro de 2021, proferido no processo n.º 1685/18.7BEBRG (Disponível em https://www.dgsi.pt/jsta.nsf/-/21a4b6f95a2756f880258682004e7c1c.), «O processo de execução fiscal tem a natureza de processo judicial, que está expressamente reconhecida pelo n.º 1 do art. 103.º da LGT. O que significa, para além do mais, que, logo que instaurada, a execução fiscal fica na dependência e sob o controlo do juiz do tribunal tributário, não obstante a intervenção deste fique reservada para as situações de conflito de direitos que cumpra dirimir, tarefa constitucionalmente reservada aos tribunais, como resulta do disposto nos arts. 110.º, 111.º, 202.º, n.º 2, e 212.º, n.º 3, todos da Constituição da República Portuguesa (CRP), entre as quais se conta a oposição à execução fiscal (cfr. art. 151.º do CPPT).».
Assim, tendo em conta que a presente oposição respeita à execução fiscal instaurada contra a ora oponente, considera-se, nomeadamente para o efeito de saber qual é a lei aplicável à determinação da jurisdição competente, que a acção foi proposta em 28 de Outubro de 2014, data na qual foi instaurada a execução fiscal, conforme tem vindo a ser decidido por este Tribunal dos Conflitos (Vide os seguintes acórdãos do Tribunal de Conflitos:
- de 18 de Janeiro de 2022, proferido no processo n.º 443/20.3BEALM.S1, disponível em
https://www.dgsi.pt/jcon.nsf/-/fb89e9aedfced32f802587f4004c160d;
- de 22 de Novembro de 2022, proferido no processo n.º 2354/21.6T8ALM.S1, disponível em
https://www.dgsi.pt/jcon.nsf/-/65cdba80c31c3c85802589130044582e;
- de 1 de Março de 2023, proferido no processo n.º 1301/22.2T8SRE.S1, disponível em
https://www.dgsi.pt/jcon.nsf/-/9547590f6776a44a8025896c006faf1c.).
A questão de saber se a competência para apreciar litígios emergentes de cobrança de dívidas respeitantes ao fornecimento de água, mas instaurados antes da entrada em vigor da Lei n.º 114/2019, cabia aos Tribunais Judiciais ou aos Tribunais Administrativos e Fiscais, já foi apreciada por diversas vezes pelo Tribunal dos Conflitos, que concluiu no sentido da competência dos Tribunais Tributários (Vide os seguintes acórdãos do Tribunal de Conflitos:
- de 20 de Janeiro de 2021, proferido no processo n.º 1574/20.5T8CSC.S1, disponível em
https://www.dgsi.pt/jcon.nsf/-/3feddf3d0e625a66802586950064c6ed;
- de 24 de Fevereiro de 2021, proferido no processo n.º 1573/20.7T8CSC.S1, disponível em
https://www.dgsi.pt/jcon.nsf/-/f7ca858d9c69372a80258695006bc219;
- de 15 de Setembro de 2021, proferido no processo n.º 27/20, disponível em
https://www.dgsi.pt/jcon.nsf/-/2cba63bc32fb23a28025875200481235;
- de 15 de Setembro de 2021, proferido no processo n.º 1/21, disponível em
https://www.dgsi.pt/jcon.nsf/-/b6eee1d094b13f3280258752004d03f8;
- de 15 de Setembro de 2021, proferido no processo n.º 7/21, disponível em
https://www.dgsi.pt/jcon.nsf/-/40c22bdb9ff669e280258752004757fe;
- de 18 de Janeiro de 2022, proferido no processo n.º 443/20.3BEALM.S1, disponível em
https://www.dgsi.pt/jcon.nsf/-/fb89e9aedfced32f802587f4004c160d;
- de 19 de Janeiro de 2022, proferido no processo n.º 35/21, disponível em
https://www.dgsi.pt/jcon.nsf/-/5cbfe1aa01aa7f58802587d4003d14b0;
- de 1 de Junho de 2022, proferido no processo n.º 5/22, disponível em
https://www.dgsi.pt/jcon.nsf/-/97844def2a98131a802588910035343f;
- de 22 de Novembro de 2022, proferido no processo n.º 2354/21.6T8ALM.S1, disponível em
https://www.dgsi.pt/jcon.nsf/-/65cdba80c31c3c85802589130044582e.). Também o Supremo Tribunal Administrativo se tem pronunciado no mesmo sentido (Cfr. os seguintes acórdãos da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:
- de 10 de Abril de 2013, do Pleno, proferido no processo n.º 15/12, disponível em
https://www.dgsi.pt/jsta.nsf/-/2e3543370a405cd080257b5900343163;
- de 4 de Novembro de 2015, proferido no processo n.º 124/14, disponível em
https://www.dgsi.pt/jsta.nsf/-/2642fadcc7a4070c80257ef8004b4ccd;
- de 17 de Maio de 2017, proferido no processo n.º 1174/16, disponível em
https://www.dgsi.pt/jsta.nsf/-/d8ec61de4f20e2308025812b003d94d4.).
No já referido acórdão de 18 de Janeiro de 2022, proferido no processo n.º 443/20.3BEALM.S1, afirmou-se: «O litígio a que respeita a oposição em causa nestes actos é, insere-se, assim, numa relação de natureza administrativa: um dos seus sujeitos é uma entidade pública que actua com vista à prossecução de um interesse público que lhe é cometido por lei e respeita à cobrança coerciva de taxas, contrapartida pelo serviço prestado, cuja quantia é unilateralmente definida. Cabe no âmbito da jurisdição administrativa e fiscal (al. d) do n.º 1 do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais) e, especificamente, dos tribunais tributários (al. d) do n.º 1 do artigo 49.º, também do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais)».
Reiterando tal entendimento, e acolhendo-se os fundamentos constantes daqueles acórdãos, conclui-se que cabe à jurisdição administrativa e fiscal, concretamente aos tribunais tributários, a competência para apreciar a oposição em causa.

DECISÃO

Em face do exposto, acorda-se em julgar competente para a apreciação da presente oposição o Juízo Tributário Comum do Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra.

Sem custas (art. 5.º, n.º 2, da Lei n.º 91/2019, de 4 de Setembro).


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Lisboa, 18 de Junho de 2025. – Francisco António Pedrosa de Areal Rothes (relator) – Nuno António Gonçalves.