Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
664/25.2T8BRG.G1
Relator: PAULA RIBAS
Descritores: INCOMPETÊNCIA EM RAZÃO DA MATÉRIA
RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL DE PESSOA JURÍDICA PÚBLICA
SEGURADORA
JURISDIÇÃO ADMINISTRATIVA E FISCAL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 09/25/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 3.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
Compete à jurisdição administrativa e fiscal a preparação e julgamento de ação em que apenas se demanda a companhia de seguros para quem o município ... transferiu a sua responsabilidade civil extracontratual se o litígio tem por objeto apreciar a existência deste tipo de responsabilidade de pessoa coletiva de direito público.
Decisão Texto Integral:
Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães

I – Relatório (elaborado com base no que foi realizado na decisão da 1.ª Instância):

AA intentou a presente ação declarativa com processo comum contra EMP01... - COMPANHIA DE SEGUROS, SA, pedindo a condenação desta a pagar-lhe a quantia de € 60.000,00, a título de indemnização pelo dano biológico e por danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora a calcular ao dobro da taxa legal supletiva ou, se assim não for entendido, à taxa legal supletiva, desde o dia 1 de junho de 2024 até integral pagamento.
Alegou para o efeito que no dia 2 de novembro de 2023, no cruzamento da Avenida ... com o Largo ..., em ..., ..., sofreu um acidente que consistiu numa queda que foi provocada pelo mau estado do passeio.
Imputa ao município ... a responsabilidade pelo sucedido, uma vez que lhe incumbia manter o passeio em bom estado de conservação para ser utilizado pelos transeuntes em segurança, demandando a companhia de seguros porque, segundo alega, aquele município transferiu para a ré a sua responsabilidade civil através de um contrato de seguro que era válido e eficaz quando ocorreu o acidente.
A ré, além de outras questões que não relevam para esta apelação, excecionou a incompetência material do tribunal em razão da matéria, sustentando que são competentes para apreciar a pretensão da autora os tribunais administrativos e fiscais.
A autora foi notificada para se pronunciar, mas nada disse.
Por despacho proferido em 28/04/2025 o Tribunal julgou procedente a exceção de incompetência material que foi invocada e, assim, absolveu a ré da instância.

Inconformada com essa decisão, veio a autora apresentar recurso de apelação, formulando as seguintes conclusões:

“I. A Recorrente intentou a presente ação exclusivamente contra a EMP01... -Companhia de Seguros, S.A., entidade privada, com fundamento em responsabilidade civil transferida por contrato de seguro celebrado com o município ....
II. A petição inicial não visa responsabilizar diretamente o município ..., não sendo este parte na ação, nem exercendo a R. quaisquer prerrogativas de direito público.
III. Como foi decidido no Acórdão do Tribunal dos Conflitos de 27.11.2024, Processo n.º 05/24.6BEPRT, Relatora Juíza Conselheira Teresa de Sousa, disponível in https://www.dgsi.pt/jcon.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/460946881f297a7a80258be900411338?OpenDocument, é da competência dos tribunais judiciais conhecer de litígios em que um particular demanda uma seguradora com base em responsabilidade civil, configurando-se, portanto, como uma relação privada.
IV. A jurisprudência consolidada estabelece que a competência material se fixa no momento da proposição da ação, considerando os elementos vertidos na petição inicial, sendo irrelevante qualquer intervenção futura de entidades públicas ou modificações da instância (cf. arts. 38.º da LOSJ e 5.º do ETAF).
V. O art. 4.º, n.º 1, al. h) do ETAF, aplica-se apenas quando estejam em causa relações jurídico-administrativas envolvendo entidades públicas ou atividades reguladas por normas de direito administrativo.
VI. A ação visa unicamente obter da R. seguradora a indemnização contratualmente devida pela responsabilidade civil assumida no âmbito da apólice celebrada com o Município, subsumindo-se o litígio à natureza civil.
VII. Com efeito, a pretensão recai sobre uma relação jurídica privada – a responsabilidade contratualmente assumida por uma seguradora.
VIII. A douta Sentença recorrida, ao declarar a incompetência absoluta do tribunal judicial, violou os artigos 64.º e 95.º do CPC, bem como os artigos 211.º da CRP e 40.º, n.º 1 da LOSJ.
IX. Assim, deve ser revogada a douta Sentença ora recorrida, reconhecendo-se a competência do Juízo Central Cível de Braga para apreciar e decidir o litígio”.
A ré respondeu, pugnando pela manutenção da decisão que absolveu a ré da instância por incompetência material do Tribunal.
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O recurso foi admitido como de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito devolutivo.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II - Questão a decidir:

Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões das alegações da recorrente – arts. 635.º, n.º 4, e 639.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil (doravante, abreviadamente, designado por C. P. Civil) -, a questão que se coloca à apreciação deste Tribunal consiste em saber se o Juízo Central Cível é materialmente competente para julgar a presente ação.
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III - Fundamentação de direito:

Está apenas em causa a afirmada incompetência material do Tribunal a quo que foi assim fundamentada:

“A competência em razão da matéria deve ser apreciada atendendo aos termos em que o autor define o objeto da ação através da causa de pedir e do pedido.
A presente ação insere-se na responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas regulada pela Lei nº67/2007 de 31 de dezembro.
Para este efeito são competentes os tribunais administrativos e fiscais, nos termos do art. 4º nº1 al. h) da Lei nº13/2002 de 19 de fevereiro.
A competência dos tribunais administrativos e fiscais não é alterada pelo facto de a autora demandar a seguradora para a qual foi transferida a responsabilidade civil do município.
A este propósito pode ver-se o Ac. da Relação de Guimarães de 4 de junho de 2020, de acordo com o qual “nas ações emergentes de responsabilidade civil extracontratual de pessoa jurídica pública pode ser chamada a intervir a pessoa jurídica privada para quem haja sido transferida a responsabilidade por contrato de seguro, não impedindo a intervenção da seguradora a atribuição de competência aos tribunais administrativos e fiscais”. O Acórdão citado foi proferido no proc.4778/18.7T8BRG.G1, publicado in www.dgsi.pt.
A situação que estava em causa nesse Acórdão não era exatamente a que se discute nesses autos, pois que, nessa ação, o Município era também demandado e foi nesse contexto que se afirmou que estava em causa a responsabilidade civil extracontratual de uma pessoa de direito público, sendo por isso competente o Tribunal Administrativo, concluindo-se que, naquela situação em concreto em que estava em causa a queda de um muro, “a competência para conhecer das questões relativas à responsabilidade extracontratual das pessoas coletivas de direito público por omissão dos deveres impostos pelo artº 89º do RGEU recai no âmbito da jurisdição administrativa e fiscal, de acordo com o disposto no artº 4º, nº1, alínea f) do ETAF”.
É, porém, semelhante à situação que está em causa no Acórdão proferido no proc. 167/22.7T8AMR.G2 deste Tribunal da Relação de Guimarães, de 27/04/2023, consultável in www.dgsi.pt, porque também aí se demandava apenas a companhia de seguros para a qual determinado município havia transferido a sua responsabilidade extracontratual (perante um acidente que teria tido origem na inexistência de uma tampa de saneamento na via pública).
Cabe aos tribunais judiciais a competência para julgar as causas “que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional” (arts.º 211.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, 64.º do C. P. Civil e 40.º, n.º 1, da Lei nº 62/2013, de 26/08 ), e à jurisdição administrativa e fiscal a competência para julgar as causas “emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais” (arts.º 212.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa e 1.º, n.º 1, do ETAF).
A competência da jurisdição administrativa e fiscal é concretizada no art.º 4.º do ETAF, com delimitação do “âmbito da jurisdição” mediante uma enunciação positiva (nºs 1 e 2) e negativa (nºs 3 e 4).
Tendo por enquadramento legal o que dispõe este art.º 4.º do ETAF, naquele último Acórdão afirmou-se que “verificamos que a situação dos autos é subsumível ao estatuído na alínea f) do artº 4º (Responsabilidade civil extracontratual das pessoas coletivas de direito público), sendo que a circunstância de tal entidade ter transferido a sua responsabilidade para a seguradora não afasta a competência dos tribunais administrativos, como ressalva o nº2 do preceito.
A decisão em crise, ao contrário do afirmado em sede de alegações, não se afastou da posição segundo a qual a competência do tribunal é aferida pelo objeto do processo, o qual é conformado pela pretensão do autor, que, assim, delimita o “thema decidendum”.
Foi justamente a partir dela que laborou juridicamente, como também agora se faz em sede de recurso.
Ora, o facto de a seguradora aceitar o evento e aceitar ressarcir (a medida da indemnização parece controvertida) e o facto de não ter sido diretamente demandado o município não afastam, nem podem afastar, que a fonte da responsabilidade é a de um ente público enquanto tal e que essa responsabilidade, embora de natureza civil e extracontratual, vai alicerçar uma indemnização por danos decorrentes da sua atuação, enquanto ente público, no caso por omissão de conduta.
Não podem suscitar-se dúvidas que a manutenção das vias é um ato de gestão pública e que os danos decorrentes dessa atividade, ou ausência dela, constituem consequência, ainda, dessa prossecução de um fim público”.
Desde já se afirma que se concorda na íntegra com este entendimento, sendo o mesmo transponível para estes autos.
Não se ignora a decisão do Tribunal de Conflitos que está referida nas alegações de recurso e que entende, numa situação de facto muito próxima a que aqui se discute, ser competente a jurisdição comum por não ser demandada pessoa coletiva de direito público (em particular o Acórdão de 27/11/2024, proc. 05/24.6BEPRT, consultável in www.dgsi.pt, pois que apenas este tem efetiva semelhança).
Não existe qualquer dúvida que a competência se afere de acordo com o “momento da propositura da causa, sendo irrelevantes as modificações de facto e de direito que ocorram posteriormente” – cfr. art.º 5º, n.º 1, do ETAF e igualmente o art.º 38º da LOSJ – e que a ré é um sujeito de direito privado.
Considerando que a ação não é proposta contra o município - e sendo irrelevante a sua posterior intervenção para efeito de competência, como se disse, ainda que a título principal -, entende o Tribunal de Conflitos que a relação controvertida é uma relação privada, e não uma relação jurídica administrativa ou litígio enquadrável no art.º 4.º do ETAF, não chegando sequer a reportar-se à alínea f) do n.º 1 já referida e limitando-se a afastar a aplicação da alínea h) desse normativo.
Com efeito, entende o Tribunal de Conflitos que não podem ser imputadas à ré ações ou omissões no “exercício de prerrogativas de poder público ou que sejam reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo”, como estipula o n.º 5 do art.º 1º do Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas, aprovado pela Lei nº 67/2007, de 31/12, afirmando por isso não ter aplicação aquela alínea h) do n.º1 do art.º 4.º do ETAF.
Com todo o respeito por este entendimento, não é a aplicação desta alínea h) que está subjacente à competência à jurisdição administrativa e fiscal para a preparação e julgamento desta ação.
O art.º 4.º, n.º 1, alínea f), do ETAF atribui competência à jurisdição administrativa e fiscal para apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas a responsabilidade civil extracontratual das pessoas coletivas de direito público.
É apenas este o critério da lei.
Em momento algum se exige, para que a competência seja da jurisdição administrativa e fiscal, que a parte demandada seja uma pessoa coletiva de direito público.
Ora, a autora demanda a companhia de seguros para quem a pessoa coletiva de direito público transferiu a sua responsabilidade civil extracontratual, alegando que:
- a queda da autora ocorreu por via de um desnivelamento do passeio;
- o sinistro que descreve foi participado ao município ..., acionando a sua responsabilidade civil extracontratual ao abrigo da Lei 67/2007, de 31/12 (responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas);
- é obrigação das autarquias manter as vias de circulação e os passeios municipais limpos, transitáveis e seguros;
- neste dever está consubstanciada uma proteção dos cidadãos que circulam nas vias públicas, pelo que a omissão de prestação desse dever é ilícita;
- o incumprimento do dever de conservação dos passeios que o município ... voluntariamente praticou enquadra-se no dever de vigilância consagrado no art.º 483.º, n.º1, do C. Civil;
- existe ainda uma presunção de culpa das entidades públicas previsto no art.º 10.º, n.º 3, da Lei 67/2007, de 31/12;
- estão preenchidos os restantes requisitos de ativação do instituto da responsabilidade civil extracontratual do município ...;
- esta responsabilidade foi transferida para a ré por contrato de seguro.
Decorre do exposto que o litígio em apreciação no Tribunal, apesar da demanda de pessoa coletiva de direito privado, tem por objeto questões relativas a responsabilidade civil extracontratual de uma pessoa coletiva de direito público, o município ....
Tanto basta para que, tal como decidido, se entenda que é materialmente competente para a sua apreciação a jurisdição administrativa e fiscal, com fundamento na citada alíneas f) do n.º1 do ETAF, sendo, por isso, materialmente incompetente o Juízo Central Cível. 
Impõe-se, assim, confirmar a decisão proferida, julgando-se improcedente a presente apelação.
A recorrente, porque vencida, suportará na íntegra as custas desta apelação, nos termos do art.º 527.º do C. P. Civil.
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IV - Decisão:

Perante o exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação e, em conformidade, mantêm a decisão que declarou o Juízo Central Cível materialmente incompetente para a tramitação destes autos, com a consequente absolvição da ré da instância.
Custas pela recorrente, nos termos definidos na decisão.
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Guimarães, 25/09/2025
(elaborado, revisto e assinado eletronicamente)

Relator: Paula Ribas
1.º Adjunto: João Paulo Dias Pereira
2.º Adjunto: José Manuel Flores