Acórdão do Tribunal dos Conflitos | |
Processo: | 05/24.6BEPRT |
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Data do Acordão: | 11/27/2024 |
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Tribunal: | CONFLITOS |
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Relator: | TERESA DE SOUSA |
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Descritores: | CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO RESPONSABILIDADE CIVIL COMPANHIA DE SEGUROS TRIBUNAIS JUDICIAIS |
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Sumário: | É da competência dos Tribunais Judiciais conhecer de um litígio no qual particular demanda uma seguradora com fundamento em responsabilidade civil, uma vez que no momento da propositura da acção, face aos termos em que o autor configura na petição inicial a causa de pedir, o pedido e o réu que demanda, está-se perante um litígio de natureza tipicamente civilística. |
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Nº Convencional: | JSTA000P32859 |
Nº do Documento: | SAC2024112705 |
Recorrente: | AA |
Recorrido 1: | A... - COMPANHIA DE SEGUROS, S.A. |
Votação: | UNANIMIDADE |
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Área Temática 1: | * |
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Aditamento: | ![]() |
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Texto Integral: | Acordam no Tribunal dos Conflitos 1. Relatório AA, identificado nos autos, intentou no Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto (TAF do Porto) acção declarativa comum de condenação contra A... – Companhia de Seguros, SA, formulando os seguintes pedidos: “Deve a presente ação ser julgada procedente e provada, condenando-se a Ré a assumir a responsabilidade civil pelo sinistro ocorrido em 28.9.2021 a que se referem os presentes autos e, em consequência (e sem prejuízo do 265º/2 CPC) condená-la a ressarcir o Autor dos respetivos danos, nomeadamente: a) A pagar ao Autor a quantia de 100,00€ para compensação pela perda do vestuário que o Autor envergava aquando do sinistro e inutilizado pelo mesmo (acima melhor identificado em item 38); b) A pagar ao Autor a quantia de 1.582,50€ para compensação dos encargos e despesas médicas e medicamentosas suportadas até hoje na sequência e como consequência do sinistro (acima melhor identificadas em item 39); c) A pagar ao Autor a quantia de 177,12€ a título de compensação pelas despesas e encargos (até hoje) com as muitas deslocações ao local do sinistro e para tratamentos, exames e cirurgias (acima melhor identificadas em item 40); d) A pagar ao Autor quantia não inferior a 29.000€ (podendo ser superior) a título de dano patrimonial corporal sofrido pelo Autor (IPG/IPP) e de que o mesmo irá padecer a título permanente até ao fim da sua vida útil. e) A pagar ainda ao Autor quantia não inferior a 25.000,00€ (podendo ser superior) a título de dano não patrimonial pelo dano de “medo de morrer” e ainda por todos os entraves, limitações físicas e psíquicas à vida social, familiar e incómodos bem como pelas repercussões psíquicas e físicas graves que o A. sofre e sofrerá até ao fim dos seus dias. f) Declarar que, de futuro, seja a Ré obrigada a suportar as despesas de diagnóstico e tratamentos (incluindo cirurgia e medicação) e deslocações associadas, necessárias para manutenção do estado de saúde do A. relativamente às sequelas sofridas por este com o presente acidente e/ou em caso de agravamento das mesmas. tudo acrescido de juros legais contados da citação até efectivo pagamento.” O Autor alega, em síntese, que embateu com o pé numa aresta de uma grelha do poço de ventilação do Metro existente no passeio adjacente à via ... (Porto), junto ao “estádio ...”, e em consequência de tal embate caiu desamparado sobre a dita grelha de metal o que lhe provocou danos cujo ressarcimento peticiona. Sustenta que a colocação deficiente da grelha ou sua deficiente manutenção e controlo e falta de protecção/perigosidade da própria grelha são a causa da queda e do agravamento das suas consequências. Acrescenta que a construção do dito poço foi realizada em terreno propriedade do Município do Porto, sendo o poço de ventilação e a respectiva grelha propriedade da B..., SA, que, por isso, tem a seu cargo a respectiva manutenção. Na data do acidente, tanto a B..., SA como o Município do Porto tinham transferido a responsabilidade civil emergente da sua actividade para a Ré A... – Companhia de Seguros, SA., devendo esta, segundo o Autor, “assumir a sua responsabilidade extracontratual enquanto seguradora do “Município do Porto” (responsabilidade já confessada pela própria) ou subsidiariamente enquanto seguradora da “B...”. A Ré apresentou contestação e deduziu o incidente de intervenção principal provocada do Município do Porto, ou como interveniente acessório, caso se venha a considerar ser esse o incidente aplicável. Na réplica, além do mais, o Autor pugnou pela improcedência do pedido de intervenção principal provocada e da intervenção acessória. O TAF do Porto, Juízo Administrativo Comum, proferiu saneador sentença em 09.04.2024 a julgar o Tribunal materialmente incompetente para apreciar e decidir a presente acção e absolveu a Ré da instância. Em acção anteriormente intentada no Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo Central Cível do Porto, Juiz 7, [Proc. nº 10773/23.7T8PRT], foi proferida sentença em 15.06.2023 julgando aquele tribunal incompetente em razão da matéria para conhecer da acção, por tal competência pertencer aos tribunais administrativos, e indeferindo liminarmente a petição inicial. Suscitada oficiosamente a resolução do conflito pelo TAF do Porto, foi o processo remetido ao Tribunal dos Conflitos. Neste Tribunal dos Conflitos as partes foram notificadas para efeitos do disposto no n.º 3 do artigo 11.º da Lei n.º 91/2019. A Exma. Procuradora Geral Adjunta emitiu parecer no sentido de dever ser atribuída a competência material para apreciar a presente acção aos tribunais judiciais. 2. Os Factos Os factos relevantes para a decisão são os constantes do relatório. 3. O Direito O presente Conflito Negativo de Jurisdição vem suscitado entre o Tribunal Judicial da Comarca do Porto - Juízo Central Cível do Porto e o TAF do Porto - Juízo Administrativo Comum. Entendeu o Juízo Central Cível do Porto ser a jurisdição comum incompetente, em razão da matéria, para conhecer do litígio por considerar que: “ (…) o legislador atribuiu à jurisdição administrativa competência para apreciar a responsabilidade de entidades privadas quando lhes seja aplicável o regime da responsabilidade civil extracontratual das entidades públicas - a Lei n.º 67/2007, de 31.12, faz intervir a jurisdição administrativa “por via da extensão a pessoas colectivas de direito privado do regime substantivo de responsabilidade civil de direito público”, dando, assim, concretização à norma do art.º 4º, n.º 1, alínea h) do ETAF, pelo que passou a dominar o entendimento que atribui à jurisdição administrativa competência (material) para as acções de responsabilidade civil contra as pessoas colectivas de direito privado, concessionárias das auto-estradas, designadamente pela violação dos deveres de conservação e vigilância da via pública concessionada. (…) Igualando a Lei a regulamentação destes actos de pessoa colectiva de direito privado aos actos de igual natureza praticados por pessoa colectiva de direito público ao abrigo de disposições de direito público e no campo da sua actuação administrativa investida de poderes públicos, a concessão dos correspondentes serviços públicos a uma entidade privada (concessionária) não significa que as respectivas actividades percam a sua natureza pública administrativa, pois o Estado não pode abrir mão dessa responsabilidade - as entidades privadas concessionárias são chamadas a colaborar com a Administração na execução de tarefas administrativas através de um contrato administrativo (que poderá ser de concessão de obras públicas ou de serviço público), sendo a sua actividade regulada e sujeita a disposições e princípios de direito administrativo, desenvolvendo-se num quadro de índole pública Quanto ao caso dos autos, os invocados fundamentos da responsabilidade civil da B..., S.A. fazem parte da sua actividade que no âmbito dos poderes públicos que lhe foram concedidos no que respeita à exploração do Sistema ... (cfr. DL n.º 394-A/98 de 15/12), se impõe aos particulares. Note-se que o facto de aqui ser demandada a Companhia de Seguros com quem a B..., S.A. celebrou um contrato de seguro através do qual aquela assumiu a responsabilidade civil extracontratual decorrente da actividade exercida por esta nem por isso a Jurisdição Administrativa deixa de ser competente para conhecer da presente acção justamente porque a responsabilidade da Seguradora, sendo a da segurada, está abrangida pelo contrato de concessão, ao abrigo do qual o seguro foi celebrado”. Por sua vez o TAF do Porto também se considerou incompetente em razão da matéria. Entendeu que: “Compulsados os autos, constata-se que o Autor propôs a acção exclusivamente contra a Companhia de Seguros, aqui Ré, formulando o pedido condenação desta ao pagamento de uma indemnização. Quanto ao pedido indemnizatório formulado contra a Ré, não está em causa qualquer conduta destes no exercício de prerrogativas de direito público ou que seja regulada por disposições ou princípios de direito administrativo, tratando-se, opostamente, de uma mera conduta de âmbito privado, razão pela qual atento o disposto no art. 4.º, n.º 1, al. h) do ETAF e art. 1.º, n.º 5 do Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado, este Tribunal não é, efetivamente, competente para o seu conhecimento. Ademais, considerando a natureza jurídica do ente demandado, é inaplicável o disposto no art. 4.º, n.º 1, al.s f) e g) do ETAF. Diga-se, ainda que a acção não vem in initio litis deduzida nem contra o B..., S.A, nem contra o Município do Porto, e ainda que venha a ser deferido o pedido de intervenção principal provocada deste último, nos termos peticionados, a sua intervenção (e a correspectiva modificação subjectiva da instância) terá lugar em momento posterior à propositura da acção, sendo uma modificação indiferente para a fixação da competência.” Vejamos. Cabe aos tribunais judiciais a competência para julgar as causas «que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional» [artigos 211º, nº 1, da CRP, 64º do CPC e 40º, n.º 1, da Lei nº 62/2013, de 26/8 (LOSJ)], e aos tribunais administrativos e fiscais a competência para julgar as causas «emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais» (artigos 212º, nº 3, da CRP e 1º, nº 1, do ETAF). A competência dos tribunais administrativos e fiscais é concretizada no art. 4º do ETAF (Lei nº 13/2002, de 19 de Fevereiro), com delimitação do “âmbito da jurisdição” mediante uma enunciação positiva (nºs 1 e 2) e negativa (nºs 3 e 4). Tem sido reafirmado por este Tribunal, e constitui entendimento jurisprudencial e doutrinário consensual, que a competência material do tribunal se afere em função do modo como o Autor configura a acção e que a mesma se fixa no momento em que a acção é proposta. Como se afirmou no Acórdão deste Tribunal de 01.10.2015, Proc. 08/14, “A competência é questão que se resolve de acordo com os termos da pretensão do Autor, aí compreendidos os respectivos fundamentos e a identidade das partes, não importando averiguar quais deviam ser os termos dessa pretensão, considerando a realidade fáctica efectivamente existente ou o correcto entendimento do regime jurídico aplicável. O Tribunal dos Conflitos tem reafirmado constantemente que o que releva, para o efeito do estabelecimento da competência, é o modo como o Autor estrutura a causa e exprime a sua pretensão em juízo”. No caso, com fundamento em responsabilidade civil e invocando a existência de um contrato de seguro com a Ré, para quem as entidades que reputa responsáveis pelo seu acidente – o Município do Porto e a B..., SA – transferiram a responsabilidade, veio o Autor propor a acção unicamente contra a companhia de seguros, entidade de direito privado, tendo em vista a sua condenação em indemnização pelos danos que sofreu. Como já se disse, a competência do tribunal fixa-se “no momento da propositura da causa, sendo irrelevantes as modificações de facto e de direito que ocorram posteriormente” – cfr. art. 5º, nº 1 do ETAF e igualmente o artigo 38º da LOSJ. Ora, sendo a Ré um sujeito de direito privado e constatando-se que a esta não podem ser imputadas acções ou omissões no “exercício de prerrogativas de poder público ou que sejam reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo”, como estipula o nº 5 do art. 1º do Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas, aprovado pela Lei nº 67/2007, de 31 de Dezembro, não se pode enquadrar a situação dos autos na alínea h) do art. 4º do ETAF que respeita a “Responsabilidade civil extracontratual dos demais sujeitos aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas coletivas de direito público”, de modo a atribuir competência aos tribunais administrativos para apreciar a acção. Por outro lado, a acção não vem inicialmente proposta contra o Município do Porto e, ainda que venha a ser admitida a sua intervenção principal provocada, tal intervenção ocorrerá posteriormente à propositura da acção, através de uma modificação de facto legalmente irrelevante para a fixação da competência, nos termos dos supra citados normativos. Assim, no momento da propositura da acção, face aos termos em que o Autor configurou na petição inicial a causa de pedir, o pedido e o Réu que demandou, não há dúvida de que a relação controvertida é uma relação privada, e não uma relação jurídica administrativa ou litígio enquadrável no artigo 4.º do ETAF (cfr., em sentido semelhante, os acórdãos deste Tribunal dos Conflitos de 20.09.2012, Proc. 07/12, de 07.02.2024, Proc. 02/23-CP e de 18.04.2024, Proc. 01772/23.0BEBRG). Deste modo, a competência material para conhecer a presente acção cabe aos tribunais judiciais. Pelo exposto, acordam em julgar competente para apreciar a presente acção o Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo Central Cível do Porto. Sem custas. Lisboa, 27 de Novembro de 2024. – Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa (relatora) - Nuno António Gonçalves. |