Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
145/24.1T9NLS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOSÉ GUERRA
Descritores: RESPONSABILIDADE CONTRA-ORDENACIONAL DE PESSOA COLECTIVA
NULIDADE DA DECISÃO ADMINISTRATIVA - CONSEQUÊNCIA
OMISSÃO DE ELEMENTOS DE FACTO RELATIVOS À IMPUTAÇÃO SUBJECTIVA
Data do Acordão: 05/14/2025
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU - JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE NELAS
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ALÍNEA F) DO ARTIGO 11º E ALÍNEA C); Nº3 E Nº4 DO ARTIGO 18º DO DECRETO-LEI Nº 46/2008, DE 12 DE MARÇO; ART. 1º, 7º, 41.º E 58º DO DECRETO-LEI N.° 433/82, DE 27/10 (RGCC); ARTIGO 379.º DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL; ART 11º, Mº 2 DO CP.
Sumário: 1 - A responsabilidade contraordenacional imputada à arguida, pessoa coletiva, dependia da verificação e densificação dos elementos de facto que permitissem concluir pela imputação subjetiva do tipo contraordenacional em causa àquela.

2 - Impunha-se que a autoridade administrativa escrevesse e explicasse, por escrito, as concretas razões pelas quais considerou que a arguida “não atuou com a diligência necessária e de que era capaz”.

3 - Porque não resultam densificados na decisão recorrida e, muito menos, demonstrados os elementos de facto que permitam concluir pela imputação subjetiva do tipo à pessoa coletiva, entende-se que a mesma é nula.

Decisão Texto Integral:

            Acordam em conferência os Juízes do Tribunal da Relação de Coimbra

            I-Relatório

1. Por decisão administrativa da Inspeção-Geral da Agricultura, do Mar, do Ambiente e do Ordenamento do Território (IGAMOT), no âmbito do processo contraordenacional NUI/CO/0...04/20.8.CGI foi aplicada à sociedade A..., Unipessoal, Lda. a coima no valor de € 2.000,00 (dois mil euros) pela prática da infração prevista e punida pela alínea f) do artigo 11º e pela alínea c) o nº3 e nº4 do artigo 18º do Decreto-Lei nº 46/2008, de 12 de março.


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2. Não se conformando com tal decisão administrativa, a arguida, A..., Unipessoal, Lda., deduziu impugnação judicial, nos termos que constam de fls. 34. a 40.

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            3. Tal impugnação judicial veio a dar origem aos presentes autos Nº 145/24.1T9NLS, que correm termos no Juízo de Competência Genérica de Nelas, do Tribunal Judicial da Comarca de Viseu, nos quais, por despacho proferido ao abrigo do disposto no art. 64º, nº2 do Dec. Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro (RGCC), foi proferida decisão, datada de 24.11.2024, na qual se decidiu declarar nula a decisão recorrida, por violação do disposto no artigo 58.º, n.º 1, b) do DL 433/82, de 27 de outubro e, em consequência, absolve-se a recorrente A..., Unipessoal, Lda.”

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            4. Não se conformando com o decidido, veio a Digna Magistrada do Ministério Público junto da 1ª instância recorrer da mesma, extraindo da motivação do recurso as seguintes conclusões (transcrição):

            “1. O presente recurso versa sobre a sentença absolutória proferida pelo Tribunal a quo, que declarou nula a decisão administrativa, por entender que não se encontra descrito o elemento subjetivo, entendendo que se encontrava violado o disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 58.º do DL 433/82, de 27 de outubro, abordando-se, no presente recurso, os seguintes pontos: (in)existência na decisão administrativa condenatória da factualidade atinente ao elemento subjetivo da contraordenação, e em caso de ocorrência dessa omissão, qual a sua consequência jurídica.

            2. A Inspeção-Geral da Agricultura, do Mar, do Ambiente e do Ordenamento do Território decidiu condenar a arguida pela prática de uma contraordenação ambiental leve, prevista e punida nos termos da alínea f) do artigo 11.º e pela alínea c) do n.º 3 e 4 do artigo 18.º do Decreto-Lei n.º 46/2008, de 12 de março, conjugada com a alínea b) do n.º 2 do artigo 22.º da Lei n.º 50/2006, de 29 de agosto.

            3. Nos termos do preceituado na alínea b) do n.º 1 do artigo 58.º do DL 433/82, de 27 de outubro “A decisão que aplica a coima ou as sanções acessórias deve conter: b) A descrição dos factos imputados com indicação das provas obtidas”.

            4. A decisão administrativa nas alíneas i) e j) dos factos dados como provados e no ponto V subtítulo “culpa” elencou factos pelos quais se conclui que a arguida agiu negligentemente, pois a arguida estava consciente da obrigação legal que sobre si recaía, designadamente assegurar o registo de dados de resíduos de construção e demolição produzidos e a sua manutenção junto do Livro de obra, pelo que se conclui que não procedeu com a prudência e o cuidado devido.

            5. O rigor da fundamentação imposto no processo de natureza contraordenacional não é (por regra) equivalente ao que é exigível no âmbito da sentença penal.

            6. A arguida apresentou impugnação judicial, revelando perfeita compreensão dos factos que lhe foram imputados e do título a que o foram na decisão administrativa, ficando desta forma assegurado o exercício do direito de defesa.

            7. Em face de tudo o exposto, e com todo o respeito por entendimento contrário, resulta que a decisão administrativa contém todososelementosde facto e de direito, conforme estipula o artigo n.º 1 do artigo 58.º do DL 433/82, de 27 de outubro.

            8. A decisão do Tribunal a quo violou as normas dos artigos 1.°, 8.°, n.° 1, 41.°, 58.°, 62.°, n.° 1, do DL 433/82, de 27 de outubro, artigos 13.°, 14.° e 15.°, do Código Penal e artigos 283.°, n.° 3, 374.° e 379.° do Código de Processo Penal e alínea f) do artigo 11.º e pela alínea c) do n.º 3 e 4 do artigo 18.º do Decreto-Lei n.º 46/2008, de 12 de março, conjugada com a alínea b) do n.º 2 do artigo 22.º da Lei n.º 50/2006, de 29 de agosto.

            9. Neste conspecto, deverá ser concedido provimento ao presente recurso, revogando-se o despacho do Tribunal a quo, ora recorrido, porquanto a decisão administrativa não padece de qualquer nulidade nem de qualquer outro vício, devendo, em consequência os autos prosseguirem a sua normal tramitação, sendo ordenada a prolação de decisão que conheça do mérito da impugnação judicial apresentada pela arguida.

            10. Caso assim não se considere, e concordando-se que a decisão administrativa proferida padece, do vício invocado, uma vez que tal vício é sanável, deverá ser ordenado o envio do processo à autoridade administrativa com vista à prolação de nova decisão, para suprimento dessa nulidade.

            11. Caso contrário, verifica-se a violação do disposto nos artigos, 41.º e 58.º do DL 433/82, de 27 de outubro e artigos 122.º, nºs 1 e 2, 311.º, 2, alínea a), 374.º e 379.º, todos do Código de Processo Penal ex-vi artigo 73º, nº 1 e 74º, nº 1, do DL 433/82, de 27 de outubro e alínea f) do artigo 11.º e pela alínea c) do n.º 3 e 4 do artigo 18.º do Decreto- Lei n.º 46/2008, de 12 de março, conjugada com a alínea b) do n.º 2 do artigo 22.º da Lei n.º 50/2006, de 29 de agosto.

            12. Pelo que, deve o presente recurso ser considerado procedente, por provado, e, em consequência, ser revogada a sentença, pugnando pela sua substituição por outra que devolva os autos à entidade administrativa com vista à sanação da declarada nulidade

            Termos em que se requer que o presente recurso seja julgado procedente e, consequentemente, se revogue a decisão recorrida.

            ASSIM SE FAZENDO JUSTIÇA!”


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            5. Admitido o recurso, a ele respondeu a arguida A..., Unipessoal, Lda., concluindo nessa resposta da seguinte forma (transcrição): 

            “a) Deve negar-se provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público, não devendo a sentença recorrida ser revogada, ante a insuficiência dos factos passiveis de integrarem os elementos subjetivos associados à prática do ilícito contraordenacional em causa e consequente nulidade por falta de fundamentação.

            b) Não obstante o direito de mera ordenação social ter em vista proteger interesses eticamente neutros cuja violação acarreta sanções de natureza administrativa sem a carga que caracteriza as sanções de natureza penal, o Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro não concebeu um regime material autónomo completo, remetendo-se, subsidiariamente, ao regime substantivo do direito penal.

            c) E, embora a culpa no domínio das contraordenações não assente numa censura ética, como a jurídico-penal, não deixa de ser um elemento subjetivo indispensável à punição, pelo que se torna sempre necessário e imprescindível formular um juízo de culpa, seja a título de dolo, seja a título de negligência.

            d) O artigo 58.º, n.º 1, al. b) do RGCO prevê expressamente que a decisão que aplica a coima ou as sanções acessórias deve conter a descrição dos factos imputados, com indicação das provas obtidas.

            e) No caso dos autos, a autoridade administrativa, na descrição dos factos provados, deixou de fora os elementos do tipo subjetivo do ilícito contraordenacional.

            f) Sendo a presente contraordenação punível a título de dolo ou negligência (artigo 18.º, n.º 4 do Decreto-lei n.º 46/2008, de 12 de março), da decisão teriam de constar dos factos provados, as circunstâncias relativas à vontade de praticar o ato e à consciência da sua ilicitude, bem como ao seu carácter proibido, de modo a aferir se a Arguida agiu com dolo em qualquer das suas modalidades, o que não se verificou.

            g) Apesar de sumário e expedito, o processo contraordenacional exige a indicação das provas que consolidem os factos alegados, tendo em vista assegurar as garantias mínimas impostas pelo direito de defesa da Arguida, por imposição do artigo 32.º, n.º 10 da CRP.

            h) Não basta uma mera presunção, sem mais, dos elementos subjetivos associados à prática da infração, sendo exigível um nexo de imputação subjetiva expressamente antecipado na decisão administrativa, por não ser indiferente o grau de culpa determinante da conduta da Arguida, do qual vai depender a aplicação de uma coima, que nas contraordenações ambientais pode alcançar valores extremamente elevados.

            i) Assim, o facto de o procedimento contraordenacional se apresentar mais simplificado e menos formal não justifica uma insuficiência ao nível descritivo dos elementos subjetivos da contraordenação.

            j) Acresce que, apesar de as exigências referentes à decisão administrativa não serem as mesmas das sentenças judiciais, não pode haver uma completa omissão dos factos que consubstanciam a imputação subjetiva da infração.

            k) Na realidade, os fundamentos da decisão que aplica uma coima devem participar da exigência de fundamentação de uma decisão penal quanto à especificação dos factos, enunciação das provas que os suportam e indicação das normas violadas.

            l) No caso concreto, ao afirmar que a Arguida atuou com negligência porque, ao exercer uma atividade regulada por lei estava consciente da obrigação legal que sobre si recaía, designadamente assegurar o registo de dados de resíduos de construção e demolição produzidos e a sua manutenção junto do livro de obra, não tendo agido com a diligência necessária e de que era capaz, a autoridade administrativa procedeu a formular um juízo meramente conclusivo desprovido de qualquer meio probatório ou facto concreto que o ampare.

            m) Os factos provados na decisão administrativa revelam-se, deste modo, insuficientes, para preencher o elemento subjetivo do ilícito contraordenacional e aferir a culpa da Arguida.

            n) Ora, sem qualquer elemento tendente a caracterizar a atuação da Arguida ou meio probatório apto a dar origem à decisão, e consequente exame critico das provas que serviram de base à formação da convicção da entidade administrativa, e ainda circunstâncias que permitam estabelecer o nexo psicológico de ligação dos factos ao agente, não se chega a compreender porque é que a autoridade administrativa aferiu ter a Arguida atuado a título de negligência e não antes a título de dolo.

            o) Assim, nunca poderia a autoridade administrativa imputar qualquer culpa à Arguida, pela simples circunstância de exercer uma atividade regulada por lei e, nessa medida, ter a obrigação de conhecer e cumprir com os aludidos diplomas legais, sem indicar qualquer meio probatório que fundamentasse a sua atuação.

            p) Esta omissão, não é de todo harmonizável com as exigências de fundamentação que devem constar de uma decisão condenatória, ainda que em processo de contraordenação.

            q) Não tendo a decisão administrativa preenchido os requisitos de fundamentação exigidos pelo artigo 58.º do RGCO, a consequência não pode ser outra se não a nulidade da mesma, nos termos do artigo 379.º, n.º 1, al. a) do Código de Processo Penal, aplicável por força do artigo 41.º do RGCO.

            r) De todo o modo, estando em causa a condenação de uma pessoa coletiva, importa apurar o tipo de atuação da pessoa ou pessoas singulares responsáveis por esta, pelo que, têm de constar da decisão administrativa os factos que suportam o juízo de imputação do ilícito contraordenacional à pessoa singular, cuja prova constitui pressuposto da condenação da pessoa coletiva, o que não sucedeu no caso em apreço.

            s) Noutro conspecto, o artigo 64.º, n.º 3 do RGCO não prevê a possibilidade de devolução dos autos à autoridade administrativa para efeito de suprimento da nulidade da decisão proferida.

            t) Está em causa uma lacuna que não pode, de qualquer modo, vir a ser colmatada em momento processual subsequente.

            u) Aliás, o “reenvio” do processo para a autoridade administrativa a fim de “compor” a decisão que aplicou a coima, sujeitaria a Arguida a novo procedimento, eventualmente com nova impugnação judicial e novo processo judicial/recurso para este tribunal.

            v) Ao entender-se que os factos considerados provados na decisão administrativa, tal como o foram, são insuscetíveis de preencherem o elemento subjetivo da contraordenação imputada à Arguida, deve ser determinado, como foi, a nulidade da decisão recorrida e consequente arquivamento dos autos.

            w) Assim, todas as alegações de recurso, carecem de fundamento e razão, pelo que,terão necessariamente que naufragar.

            Nestes termos e nos melhores de direito e sempre com o Mui Douto suprimento de v. Exas., deve ser negado provimento ao presente recurso, mantendo-se na íntegra a sentença recorrida.

            Assim decidindo V. Exas,VenerandosJuízesDesembargadores, farão como sempre, a acostumada JUSTIÇA!”


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            6. Neste Tribunal da Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no qual, com relevo, aduziu o seguinte (transcrição):

            “4. O nosso parecer

            O recurso interposto pela arguida não aparece fundamentado nos argumentos que constam da sentença recorrida.

            Assim, importa saber se a nulidade invocada existe e se é de conhecimento oficioso.

            A decisão condenatória em processo de contraordenação está sujeita às seguintes regras:

            «Artigo 58.º

            Decisão condenatória

            1 - A decisão que aplica a coima ou as sanções acessórias deve conter:

            a) A identificação dos arguidos;

            b) A descrição dos factos imputados, com indicação das provas obtidas;

            c) A indicação das normas segundo as quais se pune e a fundamentação da decisão;

            d) A coima e as sanções acessórias.

            2 - Da decisão deve ainda constar a informação de que:

            a) A condenação se torna definitiva e exequível se não for judicialmente impugnada nos termos do artigo 59.º;

            b) Em caso de impugnação judicial, o tribunal pode decidir mediante audiência ou, caso o arguido e o Ministério Público não se oponham, mediante simples despacho.

            3 - A decisão conterá ainda:

            a) A ordem de pagamento da coima no prazo máximo de 10 dias após o carácter definitivo ou o trânsito em julgado da decisão;

            b) A indicação de que em caso de impossibilidade de pagamento tempestivo deve comunicar o facto por escrito à autoridade que aplicou a coima.»

            Este artigo 58.º do RGCO impõe o dever de fundamentação da decisão condenatória.

            Dos artigos 7.º a 16.º resulta uma regulação expressa no RGCO sobre a responsabilidade das pessoas coletivas ou equiparadas, sobre o dolo e a negligência, sobre o erro, sobre a inimputabilidade, a tentativa, a desistência e a comparticipação.

            O art.º 32.º do RGCO estatui que «Em tudo o que não for contrário à presente lei aplicar-se-ão subsidiariamente, no que respeita à fixação do regime substantivo das contraordenações, as normas do Código Penal.»

            O artigo 48.º do RGCO estatui o seguinte:

            Artigo 41.º

            Direito subsidiário

            1 - Sempre que o contrário não resulte deste diploma, são aplicáveis, devidamente adaptados, os preceitos reguladores do processo criminal.

            2 - No processo de aplicação da coima e das sanções acessórias, as autoridades administrativas gozam dos mesmos direitos e estão submetidas aos mesmos deveres das entidades competentes para o processo criminal, sempre que o contrário não resulte do presente diploma.

            Dúvidas não existem que uma decisão condenatória em processo de contraordenação está submetida, enquanto direito sancionatório, às regras do processo criminal, não apenas a algumas das regras, mas às que asseguram o direito de defesa e o princípio do contraditório.

            O recurso do Ministério Público refere expressamente, na página 7, que

             devem ter-se por verificados os requisitos para o exercício efetivo do direito de defesa quando as indicações constantes da decisão bastem para permitir ao arguido o exercício da defesa e que o exercício do direito de defesa pressupõe, desde logo e além do mais, o conhecimento pelo visado dos factos que lhe são imputados, aqui se incluindo quer os factos objetivos ou exteriores, quer os factos subjetivos ou interiores.

            Todos eles devem, portanto, constar da decisão sob pena de nela [decisão] não ser imputada ao arguido, uma ‘completa’ contraordenação.

            Em suma, pretende-se saber se constitui nulidade da decisão administrativa de aplicação de coima, proferida nos presentes autos de contraordenação, por falta de fundamentação nos termos dos artigos 58.º, n.º 1 e 41.º do RGCO e 374.º, n.º 1, a) e 379.º, n.º 1, al. a) do CPP, a decisão ter referido apenas:

            “(…) i) A Arguida enquanto produtora de RCD na obra fiscalizada, estava adstrita ao cumprimento da obrigação legal que sobre si impendia, in casu assegurar o registo de dados dos RCD produzidos e a sua manutenção junto do livro de obra;

            j) Não o tendo feito, não agiu com a diligência necessária e de que era capaz, não resultando dos autos elementos que excluam a ilicitude da sua conduta”.

            No Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 10/05/2023 (Processo: 181/22.2T9SCD.C1; Relatora: Ana Carolina Cardoso), decidiu-se:

            I – Para a efetivação do direito de audição estabelecido no artigo 50.º do RGCO, o arguido tem de ter conhecimento da descrição dos factos imputados, o que implica a “descrição sequencial, narrativamente orientada e espácio-temporalmente circunstanciada, dos elementos imprescindíveis à singularização do comportamento contraordenacionalmente relevante e essa descrição deve contemplar a caraterização, objetiva e subjetiva, da ação ou omissão de cuja imputação se trate”.

            II – O artigo 8.º do RGCO consagra o princípio da culpa, pelo que o elemento subjetivo do ilícito terá de incluir-se na decisão administrativa, pois só assim resulta assegurado o exercício efetivo do direito de defesa.

            III – Nunca a ausência de factos integradores do elemento subjetivo da contraordenação, quer no auto de notícia, quer na decisão administrativa, quer na sentença de 1ª instância, poderá ser suprida, por força do princípio da vinculação temática que também vigora no processo contraordenacional, não sendo, pois, admitida a integração de novos factos.

            IV – Atento o disposto no artigo 7.º, n.º 2, do RGCO, está consagrada no direito contraordenacional português a regra da responsabilidade da pessoa coletiva de acordo com o modelo de imputação orgânica, daqui resultando que a pessoa coletiva só pode ser responsabilizada por uma contraordenação se existir conexão entre a atuação ou omissão geradora da ilicitude por parte do órgão, agente, representante ou trabalhador e as suas funções no âmbito da prossecução do objeto da pessoa coletiva.

            Salientamos que a falta de inserção nos factos provados da “imputabilidade da arguida” na decisão condenatória configura nulidade, que não pode ser suprida no recurso, pois o seu suprimento levaria a uma alteração substancial dos factos.

            Do art.º 359.º, n.º 3 do CPP, resulta que a alteração substancial só pode ser superada pelo acordo dos sujeitos processuais.

            O Acórdão n.º 1/2015 do STJ [Rodrigues da Costa (Relator) DR 18 SÉRIE I de 2015-01-27] decidiu que «A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjetivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no artigo 358.º do Código de Processo Penal.»

            A falta de prova da imputabilidade penal ou de elementos subjetivos essenciais para a condenação não constitui um facto autonomizável. Como refere Sousa Mendes, «O conceito de factos autonomizáveis resume-se à possibilidade de os desligar daqueloutros que já constituem o objeto do processo, de tal sorte que, sem prejudicar o processo em curso, sejam criadas as condições para se iniciar um outro processo penal sem violação do princípio ne bis in idem (que ninguém seja julgado, no todo ou em parte, mais do que uma vez pelos mesmos factos!)” (cf. “O Processo Penal em Acção: Hipótese e Modelo de Resolução”, in Sousa Mendes et al., Questões avulsas de processo penal, Lisboa, AAFDL, 2000, pág. 112. Cfr. também Sousa Mendes, “O Regime da Alteração Substancial de Factos no Processo Penal”, in Mário Ferreira Monte (coord.), Que Futuro para o Direito Processual Penal, cit., págs. 758-759).

            Do facto de a arguida/recorrente exercer uma atividade regulada por lei não se pode extrair qualquer suprimento de uma omissão tão grave na condenação administrativa, que não só omite a prova e fundamentação da “imputabilidade” como também omite se a negligência foi consciente ou inconsciente e porquê.

            A decisão administrativa condenatória refere que a arguida, enquanto produtora de RCD na obra fiscalizada, estava adstrita ao cumprimento da obrigação legal que sobre si impendia, in casu assegurar o registo de dados dos RCD produzidos e a sua manutenção junto do livro de obra.

            Ou seja, a decisão refere uma obrigação legal.

            Por outro lado, refere que a arguida não cumpriu a obrigação legal.

            Segundo a decisão administrativa, a arguida, não agiu com a diligência necessária e de que era capaz.

            Depois, afirma que não resultam dos autos elementos que excluam a ilicitude da sua conduta.

            Todavia, não deu como provada a “imputabilidade penal”, e não deu como provado como ocorreu a violação do dever legal, de que a arguida era capaz de cumprir.

            Na verdade, o art.º 15.º do Código Penal estatui que

            Age com negligência quem, por não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz:   

            a) Representar como possível a realização de um facto que preenche um tipo de crime, mas actuar sem se conformar com essa realização; ou

            b) Não chegar sequer a representar a possibilidade de realização do facto.

            A decisão condenatória tinha de dar como provado factos suficientes e motivar porquê.

            Exemplos de possibilidades:

            a) imputabilidade e negligência inconsciente: ao atuar da forma descrita, a arguida, através do seu representante legal, procedeu de forma livre, não registando os dados dos RCD produzidos e a sua manutenção junto do livro de obra, de forma desatenta e descuidada, sendo certo que, enquanto produtora de RCD na obra fiscalizada, estava adstrita ao cumprimento da obrigação legal que sobre si impendia, in casu assegurar esse registo, agindo, pois, omitindo um dever legal, o qual era capaz de adotar e que devia ter adotado para evitar uma omissão que podia e devia prever, mas que não previu, por desconhecimento das normas aplicáveis, que devia conhecer, assim violando o objetivo legal inerente à referida imposição legal.

            Sabia ainda que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.

            b) negligência consciente e imputabilidade : ao atuar da forma descrita, a arguida, através do seu representante legal, procedeu de forma livre, não registando os dados dos RCD produzidos e a sua manutenção junto do livro de obra, de forma desatenta e descuidada, sendo certo que, enquanto produtora de RCD na obra fiscalizada, estava adstrita ao cumprimento da obrigação legal que sobre si impendia, in casu assegurar esse registo, agindo, pois, omitindo um dever legal, o qual era capaz de adotar e que devia ter adotado para evitar uma omissão que podia e devia prever, e que previu, pois conhecia a obrigação legal, muito embora sem cuidar de forma desatenta do seu cumprimento, assim violando o objetivo legal inerente à referida imposição legal.

            Sabia ainda que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.

            Todavia, da decisão administrativa condenatória apenas resulta:

            “(…) i) A Arguida enquanto produtora de RCD na obra fiscalizada, estava adstrita ao cumprimento da obrigação legal que sobre si impendia, in casu assegurar o registo de dados dos RCD produzidos e a sua manutenção junto do livro de obra;

            j) Não o tendo feito, não agiu com a diligência necessária e de que era capaz, não resultando dos autos elementos que excluam a ilicitude da sua conduta”.

            Não sendo, pois, admitida a integração de novos factos, cumpre salientar que, atento o disposto no artigo 7.º, n.º 2, do RGCO, está consagrada no direito contraordenacional português a regra da responsabilidade da pessoa coletiva de acordo com o modelo de imputação orgânica, daqui resultando que a pessoa coletiva só pode ser responsabilizada por uma contraordenação se existir conexão entre a atuação ou omissão geradora da ilicitude por parte do órgão, agente, representante ou trabalhador e as suas funções no âmbito da prossecução do objeto da pessoa coletiva. Isso não resulta da decisão administrativa, nem da matéria de facto nem da motivação probatória..

            Por outro lado, omitem-se factos provados, e motivação dessa prova, relativos à consciência ou inconsciência da falta de observância do dever legal de cuidado. Quem lê a decisão administrativa fica sem saber que negligência foi provada – consciente ou inconsciente?

            Assiste, pois, inteira razão à sentença recorrida, sob pena de ligeireza na atuação das autoridades administrativas no exercício de um poder sancionatório.

            Conclusões:

            I – Para a efetivação do direito de audição estabelecido no artigo 50.º do RGCO, o arguido tem de ter conhecimento da descrição dos factos imputados, o que implica a “descrição sequencial, narrativamente orientada e espácio-temporalmente circunstanciada, dos elementos imprescindíveis à singularização do comportamento contraordenacionalmente relevante e essa descrição deve contemplar a caraterização, objetiva e subjetiva, da ação ou omissão de cuja imputação se trate”.

            II – O artigo 8.º do RGCO consagra o princípio da culpa, pelo que o elemento subjetivo do ilícito terá de incluir-se na decisão administrativa, pois só assim resulta assegurado o exercício efetivo do direito de defesa.

            III – Nunca a ausência de factos integradores do elemento subjetivo da contraordenação na decisão administrativa poderá ser suprida, por força do princípio da vinculação temática que também vigora no processo contraordenacional, não sendo, pois, admitida a integração de novos factos.

            IV - O Acórdão n.º 1/2015 do STJ [Rodrigues da Costa (Relator) DR 18 SÉRIE I de 2015-01-27] decidiu que «A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjetivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no artigo 358.º do Código de Processo Penal.»

            V – Atento o disposto no artigo 7.º, n.º 2, do RGCO, está consagrada no direito contraordenacional português a regra da responsabilidade da pessoa coletiva de acordo com o modelo de imputação orgânica, daqui resultando que a pessoa coletiva só pode ser responsabilizada por uma contraordenação se existir conexão entre a atuação ou omissão geradora da ilicitude por parte do órgão, agente, representante ou trabalhador e as suas funções no âmbito da prossecução do objeto da pessoa coletiva, o que deve constar dos factos provados e da correspondente motivação.

            VI – Da decisão administrativa condenatória não resulta a prova, e a motivação probatória, da imputabilidade e do tipo de negligência, consciente ou inconsciente, pelo que a decisão incorreu em nulidade por falta de fundamentação nos termos dos artigos 58.º, n.º 1 e 41.º do RGCO e 374.º, n.º 1, a) e 379.º, n.º 1, al. a) do CPP.

            Termos em que se entende, sem prejuízo do suprimento de V.ªs Ex.ªs, que o recurso não merece provimento, não obstante o esforço de fundamentação que lhe está subjacente, sempre louvável, devendo ser mantido o despacho recorrido!”


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            7. Não foi apresentada resposta ao parecer.

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            8. Colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência.

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            II- Fundamentação
A) Delimitação do objeto do recurso

            Dispõe o art. 412º, nº1, do Código de Processo Penal que “a motivação enuncia especificadamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido”.

            Definindo-se o objeto do recurso pelas conclusões que o recorrente extrai da respetiva motivação, nas quais deverá sintetizar as razões da discordância do decidido e resumir as razões do pedido, sem prejuízo das matérias do conhecimento oficioso (cfr. Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, Vol. III, 1994, pág. 340, Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código de Processo Penal, 3ª edição, 2009, pág. 1027 a 1122, Simas Santos, in Recursos em Processo Penal, 7ªEd, 2008, pág.103), no caso em vertente, apesar do reduzido esforço de síntese exigido pelo art. 412º, nº1 do CPP que as conclusões apresentadas pelo recorrente revelam, a questão a decidir é a seguinte:

            - A nulidade da decisão administrativa e suas consequências.


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            B) Decisão Recorrida

            Com vista ao conhecimento da questão objeto do presente recurso importa ter presente o teor da decisão recorrida que, na parte relevante para apreciação da mesma, se passa a transcrever:

“Nulidade da Decisão Administrativa

Decorre da leitura da decisão administrativa em análise que a mesma, no item dos factos provados (ponto III da decisão recorrida), não especifica factos suficientes passíveis de integrarem os elementos subjetivos associados à prática do ilícito contraordenacional em causa.

Ora, tal circunstância importa, na perspetiva deste Tribunal, e salvo o devido respeito por opinião contrária, a nulidade da decisão administrativa de aplicação de coima, proferida nos presentes autos de contraordenação, por falta de fundamentação nos termos dos artigos 58.º, n.º1 e 41.º do RGCO e 374.º, n.º 1, a) e 379.º, n.º 1, al. a) do CPP.

Vejamos com outro detalhe as razões de tal entendimento.

Dispõe o artigo 58.º, n.º 1, b) do DL 433/82, de 27 de outubro, legislação subsidiária de contraordenações, que “a decisão que aplica a coima ou as sanções acessórias deve conter: (…) a descrição dos factos imputados, com indicação das provas obtidas (…)”.

Os factos que constituem a prática punível de uma infração contraordenacional devem, assim, abranger a parte objetiva, material da conduta, mas também a parte subjetiva, da culpa, pois que só pode ser punido quem agir com dolo ou, nos casos especialmente previstos, por negligência (artigo 8.º, n.º 1 do DL 433/82, de 27 de outubro).

Porém, como se referiu, depois de lida a matéria de facto constante da decisão administrativa (sob o título de “III – Matéria de Facto)) não se antolha a presença de uma descrição factual suficiente para formular um juízo de subsunção à norma que prevê a infração no que respeita ao seu elemento subjetivo.

     Na verdade, a decisão administrativa é insuficiente – na matéria de facto – quanto ao referido elemento.

     Com efeito, não resulta especificamente da matéria de facto dada como provada factualidade bastante que permita concluir que a arguida atuou com culpa ou sequer com negligência.

     E pese embora não se ignore que o dever de fundamentação no âmbito dos processos contraordenacionais não seja tão exigente quanto o é nos processos de natureza criminal, a realidade é que isso não pode equivaler a uma ausência da indicação dos factos.

     Nesse sentido, veja-se Victor Sequinho ao referir que “apesar de a impugnação judicial da decisão do artigo 58.º do RGCO dar origem a um julgamento em primeira instância, não sendo, por isso, um recurso em sentido estrito, é indispensável que aquela decisão seja devidamente fundamentada de facto, desde logo para que seja idónea para cumprir uma das suas funções primordiais na fase judicial - delimitar o objecto do processo”.

Tais considerações, valem segundo este autor, quer para os factos que integram o tipo objectivo, quer para aqueles que integram o tipo subjectivo. Todos e cada um deles são necessários para fundamentar a condenação” - sublinhado nosso.

            Na jurisprudência, veja-se o recentíssimo acórdão do Venerando Tribunal da Relação de Coimbra de 10.05.2023, relatora Exma. Sra. Desembargadora Dra. Ana Carolina Cardoso, ao sumariar, de forma absolutamente cristalina, que “para a efetivação do direito de audição estabelecido no artigo 50.º do RGCO, o arguido tem de ter conhecimento da descrição dos factos imputados, o que implica a “descrição sequencial, narrativamente orientada e espácio-temporalmente circunstanciada, dos elementos imprescindíveis à singularização do comportamento contraordenacionalmente relevante e essa descrição deve contemplar a caraterização, objetiva e subjetiva, da ação ou omissão de cuja imputação se trate”. II – O artigo 8.º do RGCO consagra o princípio da culpa, pelo que o elemento subjetivo do ilícito terá de incluir-se na decisão administrativa, pois só assim resulta assegurado o exercício efetivo do direito de defesa. III – Nunca a ausência de factos integradores do elemento subjetivo da contraordenação, quer no auto de notícia, quer na decisão administrativa, quer na sentença de 1ª instância, poderá ser suprida, por força do princípio da vinculação temática que também vigora no processo contraordenacional, não sendo, pois, admitida a integração de novos factos” – itálico, destacado e sublinhado nosso.

            No mesmo sentido, o Douto Acórdão do Venerando Tribunal da Relação de Coimbra de 21.06.2023, proferido no Processo n.º414/22.5T8TND.C1, relator Ex.mo Sr. Desembargador, Dr. José Eduardo Martins, ao registar na fundamentação do acórdão, além do mais, o seguinte: “ (….) Simplesmente a conclusão de que há negligência tem que assentar em factos concretos e não em afirmações conclusivas, não devendo ser considerado que tal mera alusão sirva para colmatar/completar a deficiência prévia existente. Pela sua pertinência relativamente à questão que merece agora a nossa atenção, entendemos, por bem citar o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, datado de 19/11/2020, Processo n.o 351/19.0T8MBR.C1, relatado pela Exma. Desembargadora Maria José Nogueira, in www.dgsi.pt:  “(…) Se se nos afigura incontestável não conterem os factos que foram dados por provados na decisão administrativa os elementos subjetivos da infração contraordenacional, também transparece inequívoco que a decisão, globalmente considerada, é tudo menos esclarecedora no que a tal respeita. Na verdade, não é a afirmação, em sede de direito, do dolo eventual, que resolve a disfunção detetada nas precedentes e subsequentes considerações sobre a falta de dever de cuidado, da diligência devida com vista à recolha da informação que evitaria a prática da infração.

            Temos por pacífico que também a matéria relativa ao elemento subjetivo do ilícito terá de incluir-se na decisão administrativa, pois só assim resulta assegurado o exercício efetivo do direito de defesa, o qual apenas «poderá existir com um conhecimento perfeito dos factos que lhe são imputados, das normas legais em que se enquadram e condições em que pode impugnar judicialmente aquela decisão.» - [cf. Simas Santos e Lopes de Sousa, in-Ordenações, Anotações ao Regime Geral artigo 58.o].

            Também vimos entendendo que o rigor da fundamentação imposto no processo de natureza contraordenacional não é (por regra) equivalente ao que é exigível no âmbito da sentença penal (artigo 374.o, n.o 2 do CPP) e isto no essencial pelas razões assim apontadas no acórdão do TRC de 12.07.2011 (proc. n.o 990/10.5T2OBR.C1): «por um lado, porque esta é uma decisão administrativa, que não se confunde com a sentença penal, como o ilícito contraordenacional não se confunde com o ilícito penal (são realidades distintas, revestindo a sentença penal uma maior solenidade, tendo em conta, precisamente, uma supremacia dos interesses em causa); por outro, porque aquela decisão, quando impugnada, converte-se em acusação, passando o processo a assumir uma natureza judicial (art.o 62.o, n.o 1, do DL)».

            Contudo, a natureza tendencialmente mais simplificada e menos formal do procedimento contraordenacional não pode constituir justificação para a não descrição de modo compreensível do elemento subjetivo da contraordenação, o que sucede no caso em apreço. Com efeito, se ainda nos parece possível conviver com a sua consideração para além do âmbito (da parte reservada) dos factos provados, posto que decorra inequivocamente do texto da decisão, considerado no seu todo, a forma de realização, ao nível da culpa, do ilícito, já não se nos afigura tolerável a ambiguidade em que, neste domínio, incorre a decisão administrativa. Com a certeza exigível, em face do teor da mesma, alguém poderá ficar seguro (na vertente factual) de se estar perante uma imputação ao nível subjetivo a título de dolo ou, pelo contrário, a título de negligência? (…) no mesmo sentido, ver Acórdão do TRP, datado de 9/11/2022, Processo n.o 1004/22.8T9AVR-P1, relatado pela Exma. Desembargadora Eduarda Lobo, in www.dgsi.pt.” - itálico, destacado e sublinhado nosso.

            E percebe-se que assim seja, bastando, por exemplo, atentar que muito embora neste caso não esteja em causa uma coima muito elevada, a realidade é que as coimas aplicadas nas contraordenações podem atingir valores muito elevados, isto é, penalizações elevadas que não se compadecem com fundamentações menos exigentes, sob pena de coartar o direito de defesa da pessoa diretamente afetada pela decisão.

Dito de outra forma, condenações com esta natureza devem ser devidamente justificadas para que os visados possam compreender com exatidão aquilo que lhes é imputado e bem assim os concretos motivos pelos quais são condenados em valores tão avultados

E não obstante não se ignorar que na respetiva fundamentação a autoridade administrativa aduziu argumentos para justificar a imputação da respetiva conduta à arguida/recorrente, designadamente quando refere que “(…) i) A Arguida enquanto produtora de RCD na obra fiscalizada, estava adstrita ao cumprimento da obrigação legal que sobre si impendia, in casu, assegurar o registo de dados dos RCD produzidos e a sua manutenção junto do livro de obra; j) Não o tendo feito, não agiu com a diligência necessária e de que era capaz, não resultando dos autos elementos que retirem ilicitude aos factos ou censurabilidade à sua conduta”, certo é que tais asserções são, com o devido respeito, conclusivas, porquanto a autoridade administrativa parte da afirmação que “a arguida exerce atividade regulada por lei” e, nessa medida, tinha obrigação de conhecer e cumprir com os aludidos diplomas legais, para concluir e afirmar, sem qualquer outra explicação, que “não o tendo feito, não agiu com a diligência necessária e de que era capaz (…)”.

            Pois bem, estas conclusões que assentam exclusivamente no facto de a arguida/recorrente exercer uma atividade regulada por lei, não permitem, sem mais, asseverar a existência de factos suficientes para considerar preenchido o elemento subjetivo (designadamente que a arguida sabia e/ou estava efetivamente em condições de saber que incorria nas contra-ordenações em análise), desconhecendo-se, pois, como e com que fundamento é que a autoridade administrativa exarou tal conclusão.

            Na verdade, porque é que a autoridade administrativa concluiu que a arguida agiu com negligência e não com dolo?

            A decisão administrativa não permite saber em que meios probatórios é que a autoridade administrativa se estribou para dar como provados aqueles concretos “factos”.

            Com efeito, em que provas é que autoridade administrativa se escorou para afirmar que arguida/recorrente “não atuou com a diligência necessária e de que era capaz”?

            É que da motivação da decisão não consta qualquer referência à prova destes “factos”.

            Para a motivação da resposta aos factos provados a autoridade administrativa consignou o seguinte: “A apreciação da matéria supra fundou-se na análise crítica da prova nos autos — máxime no Auto de Notícia n.º...20 da GNR ...; na Defesa da Arguida; no depoimento das testemunhas; e nos documentos juntos – conjugada com as regras da experiência”.

Esta é a motivação integral da fundamentação da autoridade administrativa.

Ora, tal como já referimos noutras decisões de semelhante natureza, o dizer-se que se fez uma análise crítica a toda a prova não significa que se tenha feito essa mesma análise, porquanto da decisão não consta que essa análise tenha sido feita, em ordem a perceber porque razão é que foram dados como provados os “factos” acima elencados.

Impunha-se, pois, que a autoridade administrativa escrevesse e explicasse, por escrito, as concretas razões pelas quais considerou que a arguida “não atuou com a diligência necessária e de que era capaz”,

     Isto é, desconhece-se em que meios probatórios é que a autoridade administrativa estribou aquelas concretas conclusões.

            Outrossim, da leitura da decisão administrativa ficam por responder as seguintes questões essenciais:


Ø Estava a arguida em condições de conhecer as suas obrigações e não se certificou, como se impunha, das normas jurídicas violadas?
Ø Agiu a arguida de forma livre e consciente, mas não previu, quando estava em condições de prever a violação das normas que lhe são imputadas?

            Ora, como se viu, nenhum dos factos provados permite responder a nenhuma destas questões, pelo que afirmar que a arguida atuou a título de negligência constitui, com o devido respeito, um juízo de valor conclusivo e sem qualquer suporte factual.

     Pelo que retomando a doutrina que temos como correta quanto a estas matérias, tomamos a liberdade de citar o Exmo. Sr. Desembargador Dr. Beça Pereira ao sublinhar, em comentário à alínea b) do n.º1 do artigo 58.º do RGCOC, que “a decisão condenatória deve especificar quais os fatos que considera provados, bem como a prova de que eles resultam. Não deve a autoridade administrativa substituir essa descrição dos fatos, por conceitos jurídicos (nomeadamente os que constam da norma incriminadora) ou por expressões conclusivas” – como sucede na decisão em análise.

Por outro lado, mas não menos relevante, neste tipo de situações, em que está em causa a condenação de uma pessoa coletiva, impõe-se também apurar o tipo de atuação da pessoa ou pessoas singulares responsáveis pela pessoa coletiva, para saber se a pessoa coletiva agiu a título de dolo ou a título de negligência, na medida em que existe uma incontornável e inevitável conexão entre o tipo de imputação subjetiva referente à pessoa coletiva e o tipo de imputação subjetiva referente à pessoa singular responsável por esta.

Isto porque, no âmbito da lei penal e contraordenacional portuguesa, a imputação da responsabilidade sancionatória a entidades coletivas, nomeadamente, no que diz respeito à imputação subjetiva, funda-se numa conceção derivada ou reflexa que reproduz o tipo de culpa da pessoa singular que é, nas concretas circunstâncias de tempo e espaço em causa, responsável pela pessoa coletiva.

Também no RGCOC o modelo de imputação da responsabilidade sancionatória das entidades coletivas é em tudo idêntico àquele que o Código Penal consagra no n° 2, do seu artigo 11°.

De facto, preceitua o n.º 1 do artigo 7.º do RGCOC que “as coimas podem aplicar-se tanto às pessoas singulares como às pessoas coletivas, bem como às associações sem personalidade jurídica”.

Todavia, acrescenta o n.º 2 do mesmo preceito legal que “as pessoas coletivas ou equiparadas serão responsáveis pelas contraordenações praticadas pelos seus órgãos no exercício das suas funções.

Isto é, a responsabilidade contraordenacional das pessoas coletivas depende necessariamente da verificação cumulativa de três condições:


Ø Prática e/ou omissão de ato que constitua contraordenação;
Ø Esse ato seja praticado/omitido por algum dos seus órgãos; e, por último,
Ø No exercício das suas funções.

            Flui, pois, das assinaladas normas uma conexão entre o tipo de imputação subjetiva referente a pessoa coletiva e o tipo de imputação subjetiva referente a pessoa singular que atue no exercício das suas funções, de tal forma que a imputação subjetiva, enquanto momento irrenunciável da determinação da responsabilidade sancionatória, há de ser feita em função da determinação do dolo ou da negligência da(s) pessoa(s) singular(es) que a representavam, à data dos factos, operando, assim, tal imputação em termos reflexos.

            Tudo, pois, para referir que a determinação do elemento do tipo subjetivo concretamente imputado a uma pessoa coletiva implica, salvo o devido respeito por opinião contrária, a determinação - fundada, obviamente, num substrato factual que a sustente - do título de imputação subjetiva, seja ele dolo ou negligencia, da(s) pessoa(s) singular(es) que atue(m) enquanto titular(es) de um cargo da pessoa coletiva.

            E para tanto, torna-se necessário que se apurem e demonstrem factos que permitam afirmar tal imputação e, depois, possibilitem a sua subsunção ao conceito de culpa.

            Com efeito, neste tipo de análise, em que está em causa a atuação de uma pessoa coletiva, impõe-se sempre apurar a intervenção da pessoa singular cuja atividade deva juridicamente analisar-se como sendo a da pessoa coletiva, pois só assim se poderá apreciar o tipo de atuação desta última.

            A atuação de uma pessoa coletiva (entendida como uma entidade não física ou, como Germano Marques da Silva as categorizou, um “ser descarnado”) realiza-se, sempre e necessariamente, por representação de uma ou mais pessoas físicas qualificadas de órgãos ou de representantes.

            Muito embora não se ignore a posição daqueles que entendem desnecessário o apuramento desta relação no âmbito da responsabilidade contraordenacional, propendemos, porém, com o devido respeito, para a posição daqueloutros que consideram que a imputação da responsabilidade sancionatória às entidades coletivas deve assentar num modelo de imputação reflexa que, ao nível da imputação subjetiva, determina que tenha que ser apreciada a verificação dos elementos subjetivos do tipo quanto às pessoas singulares que atuem como titulares de órgãos ou como seus representantes.

            A este propósito, veja-se, a título de exemplo, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto proferido no âmbito do Processo n° 6334/11.1TBMAI.P1, de 21.03.2013, ao sumariar que “a responsabilidade das pessoas coletivas ou equiparadas por contraordenações praticadas pelos seus órgãos no exercício das suas funções [art. 7º, nº 2 do D.L. n.º 433/82, de 27 de outubro (RGCOC)] depende da alegação e prova de que o facto tipicamente ilícito e culposo foi cometido por titular do órgão ou por outrem no estrito cumprimento de instruções ou ordens de serviço por aquele determinadas quer de modo geral e abstrato, quer individual e concretamente”.

            A responsabilidade contraordenacional imputada à arguida dependia, assim, da verificação e densificação dos elementos de facto que permitissem concluir pela imputação subjetiva do tipo contraordenacional em causa à pessoa singular que, à data dos factos, atuava como titular e/ou responsável pela pessoa coletiva.

            Porque não resultam densificados na decisão recorrida e, muito menos, demonstrados os elementos de facto que permitam concluir pela imputação subjetiva do tipo à/s pessoa/s singular/es que atuou/atuaram em representação da arguida relevantes para efeitos desta matéria, entende-se que a mesma é nula, pelas referidas razões.

            De modo que, em razão de tudo quanto antecede, afigura-se-nos, salvo melhor e avisado saber, que a conclusão que se impõe é sempre a mesma: os “factos provados” não permitem imputar subjetivamente à arguida a contra-ordenação pela qual vem condenada.

            Pelo que, aqui chegados, e por se entender que tal lacuna não é passível de ser colmatada nesta fase, considera-se a referida decisão nula e, nessa medida, sem qualquer efeito - nos termos do disposto nos artigos 379.º do Código de Processo Penal, aplicável por força do artigo 41.º do RGCO.


*

II

Decisão


            Nestes termos, decide-se declarar nula a decisão recorrida, por violação do disposto no artigo 58.º, n.º 1, b) do DL 433/82, de 27 de outubro e, em consequência, absolve-se a recorrente A..., Unipessoal, Lda.”

*

            C) Apreciação do recurso

            Insurge-se o recorrente Ministério Público contra a decisão recorrida por nela ter sido declarada a nulidade da decisão administrativa decorrente da não descrição na mesma do elemento subjetivo da contraordenação imputada à arguida e, por força disso, ter concluído pela absolvição da arguida. 

            As razões que fundamentam a discordância do recorrente em relação à decisão recorrida, na parte que respeita à nulidade da decisão administrativa no tocante à sua imputação à arguida na vertente subjetiva resumem-se, nas conclusões 3. a 9., à seguinte argumentação:

            “[3.] Nos termos do preceituado na alínea b) do n.º 1 do artigo 58.º do DL 433/82, de 27 de outubro “A decisão que aplica a coima ou as sanções acessórias deve conter: b) A descrição dos factos imputados com indicação das provas obtidas”.

            [4.] A decisão administrativa nas alíneas i) e j) dos factos dados como provados e no ponto V subtítulo “culpa” elencou factos pelos quais se conclui que a arguida agiu negligentemente, pois a arguida estava consciente da obrigação legal que sobre si recaía, designadamente assegurar o registo de dados de resíduos de construção e demolição produzidos e a sua manutenção junto do Livro de obra, pelo que se conclui que não procedeu com a prudência e o cuidado devido.

            [5.] O rigor da fundamentação imposto no processo de natureza contraordenacional não é (por regra) equivalente ao que é exigível no âmbito da sentença penal.

            [6.] A arguida apresentou impugnação judicial, revelando perfeita compreensão dos factos que lhe foram imputados e do título a que o foram na decisão administrativa, ficando desta forma assegurado o exercício do direito de defesa.

            [7.] Em face de tudo o exposto, e com todo o respeito por entendimento contrário, resulta que a decisão administrativa contém todososelementosde facto e de direito, conforme estipula o artigo n.º 1 do artigo 58.º do DL 433/82, de 27 de outubro.

]           [8. A decisão do Tribunal a quo violou as normas dos artigos 1.°, 8.°, n.° 1, 41.°, 58.°, 62.°, n.° 1, do DL 433/82, de 27 de outubro, artigos 13.°, 14.° e 15.°, do Código Penal e artigos 283.°, n.° 3, 374.° e 379.° do Código de Processo Penal e alínea f) do artigo 11.º e pela alínea c) do n.º 3 e 4 do artigo 18.º do Decreto-Lei n.º 46/2008, de 12 de março, conjugada com a alínea b) do n.º 2 do artigo 22.º da Lei n.º 50/2006, de 29 de agosto.

            [9.] Neste conspecto, deverá ser concedido provimento ao presente recurso, revogando-se o despacho do Tribunal a quo, ora recorrido, porquanto a decisão administrativa não padece de qualquer nulidade nem de qualquer outro vício, devendo, em consequência os autos prosseguirem a sua normal tramitação, sendo ordenada a prolação de decisão que conheça do mérito da impugnação judicial apresentada pela arguida.”

            Com vista à apreciação da questão que assim vem equacionada pela recorrente, convirá revisitar a factualidade que vem descrita na decisão administrativa a respeito dos elementos objetivo e subjetivo da contraordenação que nela se imputa à arguida.

            Dela consta que:

            “III. FACTOS com relevo para a decisão

            Provados

            “ a) No dia 19 de fevereiro de 2020, pelas 8 horas e 40 minutos, no Largo ..., ... ..., a Equipa da GNR ... procedeu à fiscalização de uma construção que estava a ser executada pela empresa A..., Unipessoal, Lda., ora Arguida.

            b) A citada obra, propriedade da Santa Casa da misericórdia ..., possuía o alvará de licenciamento de obras de ampliação e alteração de utilização nº ..4/...16, emitido pelo município ....

            c) No local, o encarregado da empresa construtora, AA, acompanhou a fiscalização e informou a GNR que a obra já estava na fase final de execução.

            d) Solicitado o livro de obra, este responsável foi perentório em afirmar que o livro não estava no local onde se realizam as obras.

            e) Contatado BB, engenheiro da empresa construtora, este informou que o livro de obra estava nos escritórios da empresa.

            f) No dia 19/02/2020, cerca das 8h40, BB apresentou na GNR ... o livro de obra em falta no dia da fiscalização.

            g) Verificado o livro de obra, constatou-se que a Arguida não mantinha conjuntamente com este o registo de dados de resíduos de construção e demolição (RCD).

            h) Solicitadas as guias de entrega de resíduos, a Arguida não as apresentou ou fez prova de entrega dos mesmos em entidade licenciada.

            i) A Arguida, enquanto produtora de RCD na obra fiscalizada, estava adstrita ao cumprimento de obrigação legal que sobre si impedia, in casu assegurar o registo de dados dos RCD produzidos e a sua manutenção junto do Livro de obra.

            j) Não o tendo feito, não agiu com a diligência necessária e de que era capaz, não resultando elementos que excluam a ilicitude da sua conduta. 

            Não provados

            Não se provaram outros factos com interesse para a decisão.

            Motivação

            A apreciação da matéria supra fundou-se na análise crítica da prova nos autos – máxime no Auto de Notícia nº .../20 da GNR ...; na Defesa da Arguida; no depoimento das testemunhas; e nos documentos juntos – conjugada com as regras da experiência” 

            Com base na factualidade que apurou ter-se provado, a entidade administrativa considerou verificarem-se preenchidos os elementos objetivo e subjetivo da contraordenação imputada à arguida, pronunciando-se quanto a este último, da seguinte forma:

             Culpa

            Pela matéria provada considera-se a conduta da Arguida subsumível na alínea a) do artigo 15º do Código Penal, aplicável ex vi do artigo 32º do RGCO, termos em que, tendo violado o dever de cuidado a que estava adstrita e de que era capaz, é sancionável a título de negligência, nos termos do nº4 do artigo 18º do Decreto-Lei nº 46/2008, de 12 de março”.

            Apreciando.

            Como se afirma no ac. do TRP, datado de 09.11.2022, disponível in www.dgsi.pt “O direito de mera ordenação social, ligado historicamente à concretização do princípio da subsidiariedade do direito penal e ao movimento de descriminalização, pretendeu construir um modelo em que a proteção de interesses eticamente neutros, de natureza eminentemente administrativa, mas cuja violação justificaria reações que devam exprimir uma censura de natureza social, fosse levada a cabo através da previsão e aplicação de sanções de natureza administrativa, com o "sentido de mera advertência despido de toda a mácula ético-jurídica", e desprovidas dos sinais ou cargas que caracterizam as sanções de natureza penal.

            Na realidade, estamos perante comportamentos humanos – igualmente contrários à lei - que angariam uma censura ética com menor ressonância que as condutas criminais.”

            Assim é que no art. 1º do Decreto Lei n.° 433/82, de 27/10  (RGCC) se preceitua que "constitui contraordenação todo o facto ilícito e censurável que preencha um tipo legal no qual se comine uma coima".

            A indubitável possibilidade (de legitimidade hoje assente) de responsabilização contraordenacional das pessoas coletivas - art. 7.° do Regime do ilícito de mera ordenação social (RGCC) - pressupõe no nosso sistema a prática do facto com dolo ou, nos casos especialmente previstos, com negligência (art. 8.° do citado Regime), estando assim excluída a responsabilidade objetiva.

            Com efeito, dispõe o artigo 8.º do RGCC, que:

            “1 - Só é punível o facto praticado com dolo ou, nos casos especialmente previstos na lei, com negligência.

            2 - O erro sobre elementos do tipo, sobre a proibição, ou sobre um estado de coisas que, a existir, afastaria a ilicitude do facto ou a culpa do agente, exclui o dolo.

            3 - Fica ressalvada a punibilidade da negligência nos termos gerais.”

            Esta imputação a título de dolo ou de negligência exige, considerando a natureza da pessoa coletiva, a verificação de atuação dolosa ou negligente por parte de uma ou mais pessoas físicas atuando no exercício das suas funções, em nome e no interesse da pessoa coletiva, designadamente por integrantes dos seus órgãos.

            Assim, o Decreto Lei 433/82 de 27.10, estabelecendo o regime geral do direito de mera ordenação social, definindo os princípios gerais aplicáveis à determinação de comportamentos que constituam contraordenações e às regras sobre o respetivo sancionamento (plano material), e a conformação do procedimento para aplicação das sanções (plano processual), não estabelece, porém, um regime material autónomo completo, remetendo-se, subsidiariamente, para o regime substantivo do direito penal.

            Dispõe-se no seu artigo 32.º, que:

            “Em tudo o que não for contrário à presente lei, aplicar-se-ão subsidiariamente, no que respeita à fixação do regime substantivo das contraordenações, as normas do Código Penal».

            E, também relativamente ao regime adjetivo, dispõe o art. 41º do mesmo diploma legal, que:

             "1. sempre que o contrário não resulte deste diploma, são aplicáveis, devidamente adaptados, os preceitos reguladores do processo criminal.

            2. No processo de aplicação da coima e das sanções acessórias, as autoridades administrativas gozam dos mesmos direitos e estão submetidas aos mesmos deveres das entidades competentes para o processo criminal, sempre que o contrário não resulte do presente diploma".

            No caso em vertente imputa-se à arguida a contraordenação prevista na alínea f) do art. 11º do Decreto Lei 46/2008, de 12 de março, segundo o qual se encontrava a mesma obrigada a “Efectuar e manter, conjuntamente com o livro de obra, o registo de dados de RCD, de acordo com o modelo constante do anexo ii ao presente decreto-lei, do qual faz parte integrante.”, contraordenação essa que constitui contraordenação ambiental leve, nos termos do disposto na alínea c) do nº3 do art. 18º do mesmo diploma legal, sendo punível, quando praticada por pessoa coletiva, com a coima de (euro) 2 000 a (euro) 18 000 em caso de negligência e de (euro) 6 000 a (euro) 36 000 em caso de dolo, nos termos do disposto no nº2, alínea b) do artigo 22.º da Lei n.º 50/2006, de 29 de Agosto, Lei Quadro das Contraordenações Ambientais (LQCA).

            Ancorada na factualidade que nela se considerou resultar provada, a decisão administrativa entendeu que, na vertente objetiva, a conduta da arguida nela descrita é subsumível à previsão legal contida nos citados arts. 11º, nº3, alínea f) e 18º nº3, alínea c) do Decreto Lei 46/2008, de 12 de março, e, na vertente subjetiva, na previsão legal contida no nº4 do citado art. 18º do mesmo Decreto Lei, segundo o qual “A tentativa e a negligência são puníveis”, remetendo, em sede de ponderação da culpa, para o disposto na alínea a) do art. 15º do Código Penal, por remissão do art. 32º do RGCC.

            Nos termos do disposto no art. 58º do RGCC:

            “1 - A decisão que aplica a coima ou as sanções acessórias deve conter:

            a) A identificação dos arguidos;

            b) A descrição dos factos imputados, com indicação das provas obtidas;

            c) A indicação das normas segundo as quais se pune e a fundamentação da decisão;

            d) A coima e as sanções acessórias.

            (…)”

A respeito da forma como na decisão administrativa se deu cumprimento ao estatuído em tal normativo legal, discorreu-se na decisão recorrida que «não resulta especificamente da matéria de facto dada como provada factualidade bastante que permita concluir que a arguida atuou com culpa ou sequer com negligência (…) E não obstante não se ignorar que na respetiva fundamentação a autoridade administrativa aduziu argumentos para justificar a imputação da respetiva conduta à arguida/recorrente, designadamente quando refere que “(…) i) A Arguida enquanto produtora de RCD na obra fiscalizada, estava adstrita ao cumprimento da obrigação legal que sobre si impendia, in casu, assegurar o registo de dados dos RCD produzidos e a sua manutenção junto do livro de obra; j) Não o tendo feito, não agiu com a diligência necessária e de que era capaz, não resultando dos autos elementos que retirem ilicitude aos factos ou censurabilidade à sua conduta”, certo é que tais asserções são, com o devido respeito, conclusivas, porquanto a autoridade administrativa parte da afirmação que “a arguida exerce atividade regulada por lei” e, nessa medida, tinha obrigação de conhecer e cumprir com os aludidos diplomas legais, para concluir e afirmar, sem qualquer outra explicação, que “não o tendo feito, não agiu com a diligência necessária e de que era capaz (…)” (…) …estas conclusões que assentam exclusivamente no facto de a arguida/recorrente exercer uma atividade regulada por lei, não permitem, sem mais, asseverar a existência de factos suficientes para considerar preenchido o elemento subjetivo (designadamente que a arguida sabia e/ou estava efetivamente em condições de saber que incorria nas contra-ordenações em análise), desconhecendo-se, pois, como e com que fundamento é que a autoridade administrativa exarou tal conclusão.

            Na verdade, porque é que a autoridade administrativa concluiu que a arguida agiu com negligência e não com dolo?

            A decisão administrativa não permite saber em que meios probatórios é que a autoridade administrativa se estribou para dar como provados aqueles concretos “factos”.

            Com efeito, em que provas é que autoridade administrativa se escorou para afirmar que arguida/recorrente “não atuou com a diligência necessária e de que era capaz”?

            É que da motivação da decisão não consta qualquer referência à prova destes “factos”.»

Impunha-se, pois, que a autoridade administrativa escrevesse e explicasse, por escrito, as concretas razões pelas quais considerou que a arguida “não atuou com a diligência necessária e de que era capaz”,

     Isto é, desconhece-se em que meios probatórios é que a autoridade administrativa estribou aquelas concretas conclusões.

            Outrossim, da leitura da decisão administrativa ficam por responder as seguintes questões essenciais:
Ø Estava a arguida em condições de conhecer as suas obrigações e não se certificou, como se impunha, das normas jurídicas violadas?
Ø Agiu a arguida de forma livre e consciente, mas não previu, quando estava em condições de prever a violação das normas que lhe são imputadas?

            Ora, como se viu, nenhum dos factos provados permite responder a nenhuma destas questões, pelo que afirmar que a arguida atuou a título de negligência constitui, com o devido respeito, um juízo de valor conclusivo e sem qualquer suporte factual.»

            Tal com entendemos tal fundamentação exarada na decisão recorrida, posto que nela se aluda, também, à falta de fundamentação da decisão administrativa no que tange à factualidade provada em que esta se ancora para concluir pelo preenchimento do elemento subjetivo, a título de negligência, da contraordenação que nela se imputa à arguida, acaba por decidir-se na mesma pela nulidade da decisão administrativa com fundamento na insuficiência da factualidade que nela é dada como provada para integrar o elemento subjetivo que, a par do objetivo, preenchem o tipicidade dessa contraordenação.

            A decisão administrativa extraiu o preenchimento desse elemento subjetivo da factualidade que deu como provada, vertida nas alíneas i) e j), donde consta que:

            “ [i)] A Arguida, enquanto produtora de RCD na obra fiscalizada, estava adstrita ao cumprimento de obrigação legal que sobre si impedia, in casu assegurar o registo de dados dos RCD produzidos e a sua manutenção junto do Livro de obra.

            [j)] Não o tendo feito, não agiu com a diligência necessária e de que era capaz, não resultando elementos que excluam a ilicitude da sua conduta”

            E, a partir desta factualidade provada, considerou ser “a conduta da Arguida subsumível na alínea a) do artigo 15º do Código Penal, aplicável ex vi do artigo 32º do RGCO, termos em que, tendo violado o dever de cuidado a que estava adstrita e de que era capaz, é sancionável a título de negligência, nos termos do nº4 do artigo 18º do Decreto-Lei nº 46/2008, de 12 de março”.

            Não cremos, porém, tal como se ponderou na decisão recorrida, que tal factualidade dada como provada se apresente suficiente para poder concluir-se pelo preenchimento do elemento subjetivo da contraordenação em causa, pelas razões que naquela se aduzem, que sufragamos, e que justificariam a adesão à decisão recorrida.

            Ainda assim, adiantaremos o seguinte:

            A negligência, legalmente definida no art. 15º do Código Penal, consiste em o agente não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz:

            (a) representar como possível a realização do facto, mas atuar sem se conformar com essa realização; ou

            (b) não chegar sequer a representar a possibilidade de realização do facto.

            A circunstância de se tratar de uma contraordenação não altera este quadro, pois de acordo com o citado art. 1.º do RGCO, constitui contraordenação todo o facto ilícito e censurável que preencha um tipo legal em que se comine uma coima, assim se afastando a possibilidade de punição a título de contraordenação independentemente do carácter censurável do facto.

            Como se salienta no Ac. deste Tribunal da Relação de Coimbra, de  17.09.2014, disponível em www.dgsi.pt:  “A negligência é um tipo especial de punibilidade que oferece uma estrutura própria quer ao nível do ilícito quer ao nível da culpa.

            O tipo objectivo de ilícito dos crimes materiais negligentes é constituído por três elementos: a violação de um dever objectivo de cuidado; a possibilidade objectiva de prever o preenchimento do tipo; e a produção do resultado típico quando este surja como consequência da criação ou potenciação pelo agente, de um risco proibido de ocorrência do resultado.

            A violação pelo agente do cuidado objectivamente devido é concretizada com apelo às capacidades da sua observância pelo “homem médio”.

            A não observância do cuidado objectivamente devido não torna perfeito, por si própria, o tipo de ilícito negligente, antes importa que ela conduza a uma representação imperfeita ou a uma não representação da realização do tipo.”

            Conforme defende Figueiredo Dias, in Direito Penal, Tomo I, pág. 656. “Na negligência consciente o tipo subjectivo residirá na deficiente ponderação do risco de produção do facto, na inconsciente ausência de pulsão para a representação do facto.”.

            Para que exista culpa negligente, com preenchimento do tipo-de-culpa, necessário é ainda que agente possa, de acordo com as suas capacidades pessoais, cumprir o dever de cuidado a que se encontra obrigado.

            Enquanto na negligência consciente o agente representou como possível o resultado ocorrido, mas confiou, não devendo confiar, que ele não se verificaria, na negligência inconsciente o agente infringe o dever de cuidado imposto pelas circunstâncias, não pensando sequer na possibilidade do preenchimento do tipo pela sua conduta.

            A este propósito, refere expressamente Eduardo Correia (Eduardo Correia, in Direito Criminal I, Reimpressão de 1968, p. 421) que a negligência é, antes de mais, “a omissão de um dever jurídico de cuidado ou diligência”. Mais referindo que “a omissão do dever objectivo de cuidado, adequado a evitar a realização do tipo legal de crime, não justifica só por si, efectivamente, a censura a título de negligência. É ainda necessário que o agente possa ou seja capaz, segundo as circunstâncias do caso e as suas capacidades pessoais, de prever ou de prever correctamente a realizações do tipo legal de crime”.

            Como se infere da factualidade contida nas citadas alíneas i) e j) do elenco factual provado que consta da decisão administrativa dela resulta, apenas, a descrição da omissão da arguida relativa à obrigação legal que sobre a mesma impendia, e daí, conclusivamente, se parte para que a arguida não tenha agido com a diligência necessária e de que era capaz, sendo certo que, a não observância do cuidado objetivamente devido (não assegurar o registo de dados dos RCD produzidos e a sua manutenção junto do Livro de obra ) não torna perfeito, só por si, o tipo de ilícito contraordenacional imputado à arguida a título de negligência, porque, para tanto, importava descrever que a não observância pela arguida do registo de dados dos RCD produzidos e da sua manutenção junto do Livro de obra conduziu, por parte da mesma, a uma representação imperfeita ou a uma não representação da realização do respetivo tipo, só assim se podendo concluir pela negligência da atuação da arguida, na modalidade de consciente, no primeiro caso, ou na modalidade de inconsciente, no segundo.

            Não resultando da decisão administrativa a pertinente factualidade tendente à demonstração de que a arguida agiu negligentemente, seja na modalidade de negligência inconsciente, seja na modalidade de negligência inconsciente, fica sem saber-se por que razão nela se condenou a arguida pela prática da contraordenação que lhe vinha imputada na modalidade de negligência consciente, subsumível, como nela se aduz ao art. 15º, alínea a) do C. Penal, ex vi do art. 32º do RGCC.

            Por conseguinte, consideramos que a decisão administrativa padece da nulidade que se lhe assaca na decisão ora recorrida, não merecendo esta, nessa parte, reparo.


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            Questão que agora cumpre apreciar é a de saber qual a consequência decorrente da nulidade de que padece a decisão administrativa.

            O entendimento do Ministério Público recorrente, a tal propósito resumido nas conclusões 10ª e 11ª, vai no sentido de que os autos devem ser devolvidos à entidade administrativa com vista à sanação dessa nulidade, enquanto que o Tribunal a quo, entendeu enveredar pela absolvição da arguida.

            Trata-se esta de uma questão que não tem vindo a obter consenso na jurisprudência.

            Seguindo do perto o entendimento sufragado no ac. deste Tribunal da Relação de Coimbra, datado de 19.11.2020, Proc. n.º 351/19.0T8MBR.C1, disponível in www.dgsi.pt, que vem citado na decisão recorrida e igualmente na resposta da arguida ao presente recurso, no qual se apresentam os diferentes entendimentos que a respeito de tal questão vêm sendo perfilhados, diremos:

            “(…) A questão da consequência da nulidade da decisão administrativa, designadamente por omissão dos factos que perfetibilizam o ilícito contraordenacional, sendo que na situação concreta está em causa a omissão do elemento subjetivo, também não se tem apresentado pacífica. De um lado os que sustentam que a nulidade resultante da violação da alínea b), do n.º 1 do artigo 58.º do RGCOC, enquanto não contém uma descrição completa dos factos imputados, deve ser suprida pela autoridade administrativa - cf. v.g. os acórdãos do STJ de 06.11.2008 (proc. n.º 08P2804), do TRL de 28.04.2004 (proc. n.º 1947/2004-3), de 19.02.2013 (proc. n.º 854/11.5TAPDL.L1-5), do TRE de 25.09.2012 (proc. n.º 82/10.7TBORQ.E1); do outro a corrente que defende a absolvição do arguido (cf. v.g. os acórdãos do STJ de 29.01.2007 (proc. n.º 06P3202), do TRG de 19.05.2016 (proc. n.º 4302/15.3T8VCT.G1), do TRL de 31.10.2019 (proc. n.º 344/19.8T9MFR.L1-9).

            Como refere o acórdão do TRL de 19.02.2013 (proc. n.º 854/11.5TAPDL.L1-5, “Se bem que a propósito do artigo 79.º do RGIT (preceito que, no que para o caso interessa, é idêntico ao artigo 58.º do RGCO), Simas Santos e Lopes de Sousa (“Contra-ordenações – Anotações ao Regime Geral”, Áreas Editora, 6.ª ed., 2011, págs. 431-432), defendem que “na sequência da declaração de nulidade por falta de requisitos legais de aplicação da coima (…) o processo não é necessariamente distinto, devendo ser praticados os atos necessários para que ela deixe de existir, não impedindo que venha a ser proferida nova decisão, em substituição da anterior (…), desde que a nulidade que afetava a primeira possa ser sanada na nova decisão. O desaparecimento jurídico do ato nulo e dos atos que dele dependam com repetição do ato anulado (se ele não estiver sujeito a prazo que tenha expirado) é a regra generalizada do nosso ordenamento jurídico, como pode ver-se pelos artigos 201.º, n.º 2, e 208.º do C.P. Civil, e artigo 122.º, n.ºs 1 e 2, do C.P. Penal. Assim, se a nulidade, referente à parte administrativa do processo contra-ordenacional, é constatada em recurso judicial da decisão de aplicação de coima, não deve ser decidida (d) a absolvição da instância, mas sim a remessa do processo à autoridade administrativa para eventual sanação.”

            No mesmo sentido, escreve Pinto de Albuquerque: “O tribunal pode, no exercício dos seus poderes de controlo da legalidade, ainda declarar a nulidade da decisão administrativa recorrida e ordenar a remessa dos autos à autoridade administrativa competente para a sanação do vício” – [cf. “Comentário do Regime Geral das Contra-Ordenações”, Universidade Católica Editora, 2011, pág. 263].

            Com todo o respeito pela posição em contrário e sem nos afastarmos da corrente que vê a violação do artigo 58.º, n.º 1 do RGCC (maioritariamente por aplicação do artigo 379.º, n.º 1, alínea a), do CPP, ex. vi do artigo 41.º do RGCO) como originando a nulidade da decisão administrativa, afigura-se-nos que a consequência há-de ser a absolvição.

            Assim o entendeu o acórdão do STJ de 29.01.2007 (proc. n.º 06P3202) ao referir: “A indicação precisa e discriminada dos elementos indicados na norma do artigo 58.º, n.º 1 do RGCOC constitui, também, elemento fundamental para garantia do direito de defesa do arguido, que só poderá ser efetivo com o adequado conhecimento dos factos imputados, das normas que integrem e das consequências sancionatórias que determinem.

            A consequência da falta dos elementos essenciais que constituem a centralidade da própria decisão – sem o que nem pode ser considerada decisão em sentido processual e material – tem de ser encontrada no sistema de normas aplicável, se não direta quando não exista norma que especificamente se lhe refira, por remissão ou aplicação supletiva; é o que dispõe o artigo 41.º do RGCOC sobre “direito subsidiário”, que manda aplicar, devidamente adaptados, os preceitos reguladores do processo criminal.

            Deste modo, a decisão da autoridade administrativa que aplique uma coima (ou outra sanção prevista para uma contra-ordenação), e que não contenha os elementos que a lei impõe, é nula por aplicação do disposto no artigo 374.º, n.º 1, alínea a) do CPP para as decisões condenatórias.

            (…)

            Não estando integrados os elementos da tipicidade da contraordenação referida pela decisão administrativa, a consequência terá de ser a absolvição.”

            Se quisermos estabelecer o paralelo com o que sucede ao nível do processo criminal, equivalendo a decisão administrativa, quando judicialmente impugnada, à acusação, então temos de reconhecer que uma acusação manifestamente infundada, por omissa quanto à narração (completa) dos factos e que não obstante ultrapasse o crivo do artigo 311.º do CPP, mais tarde, realizado o julgamento, só pode conduzir à absolvição.

            Na verdade, sempre entendemos não ser possível na falta de descrição de todos os elementos do ilícito típico o tribunal socorrer-se dos institutos prevenidos nos artigos 358.º/359.º do CPP para transformar em crime aquilo que, à luz da acusação/pronúncia, o não era; pensamento este que resultou ainda mais fortalecido com a jurisprudência fixada no Acórdão Uniformizador n.º 1/2015.

            Dada a natureza sancionatória do processo por contraordenação, não se vislumbra motivo válido para que semelhante orientação não seja seguida no âmbito do mesmo, sendo certo que a questão não pode, ao nível das consequências ser encarada como o que se passa com os vícios, designadamente da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada. Trata-se de problemática que se coloca a montante do vício, produzindo um efeito /consequência) muito mais definitivo, no caso a absolvição.

            Em boa verdade, a equivalência da decisão administrativa, se judicialmente impugnada, à acusação transporta-nos para a disciplina do artigo 283.º do CPP enquanto comina de nulidade a acusação que não contiver a narração dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ou medida de segurança; patologia esta, que, respeitando à ausência de descrição completa dos elementos constitutivos do crime, não pode vir em momento processual subsequente a ser colmatada, não se vendo razão para que o mesmo não seja aplicável ao ilícito contraordenacional.”

            Revendo-nos no entendimento sufragado no mesmo, que, aliás, vem igualmente sufragado no parecer emitido nos autos pelo Ministério Público junto deste Tribunal da Relação, e, salvaguardando, sempre, o devido respeito pela posição contrária que vem sustentada no recurso interposto pelo Ministério Público junto da 1ª instância ancorado na doutrina e jurisprudência nele citadas, também nós concluímos que a decidida absolvição da arguida preconizada na decisão recorrida, não merece reparo, sendo, por isso, também neste segmento de manter a mesma.


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            Termos em que se nega provimento total ao recurso.

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            III- Decisão

            Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes da 4ª Seção Penal do Tribunal da Relação de Coimbra, em:

1. Julgar improcedente o recurso interposto pelo Ministério Público, e, em consequência, confirmam a decisão recorrida.

2. Recurso sem tributação.


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Coimbra, 14 de maio de 2025

            (Texto elaborado pela relatora e revisto por todas as signatárias – art. 94º, nº2 do CPP )

(Maria José Guerra  – relatora)

(Isabel Gaio Ferreira de Castro – 1ª adjunta)

(Maria Fátima Sanches Calvo – 2ª adjunta)