Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
181/22.2T9SCD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ANA CAROLINA CARDOSO
Descritores: CONTRAORDENAÇÃO
AUTO DE NOTÍCIA
ELEMENTO SUBJECTIVO DA INFRACÇÃO
CONTEÚDO DA DECISÃO ADMINISTRATIVA
CONTEÚDO DA SENTENÇA QUE CONHECE A IMPUGNAÇÃO
CONTRAORDENAÇÃO COMETIDA POR PESSOA COLECTIVA
Data do Acordão: 05/10/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU – JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE ... – JUIZ 1
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO DECIDIDO EM CONFERÊNCIA
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO AO RECURSO
Legislação Nacional: ARTIGOS 7.º, N.º 2, 8.º, 32.º, 58.º, N.º 1, AL. B) E 62.º, N.º 1, DO DECRETO LEI N.º 433/82, DE 27 DE OUTUBRO/RGCO
ARTIGO 379.º, N.º 1, AL. A), DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
Sumário: I – Para a efectivação do direito de audição estabelecido no artigo 50.º do RGCO, o arguido tem de ter conhecimento da descrição dos factos imputados, o que implica a “descrição sequencial, narrativamente orientada e espácio-temporalmente circunstanciada, dos elementos imprescindíveis à singularização do comportamento contraordenacionalmente relevante e essa descrição deve contemplar a caraterização, objetiva e subjetiva, da ação ou omissão de cuja imputação se trate”.

II – O artigo 8.º do RGCO consagra o princípio da culpa, pelo que o elemento subjetivo do ilícito terá de incluir-se na decisão administrativa, pois só assim resulta assegurado o exercício efetivo do direito de defesa.

III – Nunca a ausência de factos integradores do elemento subjetivo da contraordenação, quer no auto de notícia, quer na decisão administrativa, quer na sentença de 1ª instância, poderá ser suprida, por força do princípio da vinculação temática que também vigora no processo contraordenacional, não sendo pois admitida a integração de novos factos.

IV – Atento o disposto no artigo 7.º, n.º 2, do RGCO, está consagrada no direito contraordenacional português a regra da responsabilidade da pessoa coletiva de acordo com o modelo de imputação orgânica, daqui resultando que a pessoa coletiva só pode ser responsabilizada por uma contraordenação se existir conexão entre a actuação ou omissão geradora da ilicitude por parte do órgão, agente, representante ou trabalhador e as suas funções no âmbito da prossecução do objeto da pessoa colectiva.

Decisão Texto Integral:


I.

Relatório



A “Infraestruturas de Portugal, SA” veio interpor recurso da decisão proferida pela Exma. Juiz (estagiária) do Juízo de Competência Genérica de ... – J1, comarca de Viseu, no processo de recurso de contraordenação n.º 181/22.2T9SCD, que decidiu (transcrição):

Julgar improcedente o presente recurso de impugnação judicial interposto pelo recorrente e, em conformidade, decide-se manter a decisão administrativa recorrida, nos seus precisos termos.


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1.1.  Conclusões do recurso (transcrição integral):

I - No sistema jurídico-penal português é proibida a responsabilidade objetiva (cfr: artigo 8.º do RGCO).

II - Quer no auto de notícia, quer durante o procedimento, quer depois da decisão final, quer ainda na sentença, não se definiu qual a área pertença da Recorrente sujeita ao cumprimento do disposto no n.º 2 do artigo 15.º da Decreto-Lei n.º 124/2006 de 28 de junho (50 metros) e a área sujeita ao cumprimento do disposto na alínea a) do n.º 1, do mesmo artigo.

III A acusação, na qual se inclui o auto de notícia, o despacho de acusação e a própria instrução, não se mostram suficientemente concretizadas, e, consequentemente, não fornecem todos os elementos necessários ao cabal exercício do direito de defesa da Recorrente, pelo que o procedimento, ao contrário do decidido pelo tribunal entre a página 2 a 6 da sentença, enferma do vício de nulidade, por violação do disposto no artigo 50.º do RGCO.

IV - Caso seja entendimento deste tribunal sufragar a versão da autoridade administrativa e depois confirmada pelo tribunal, de que a norma do disposto no artigo 15.º, n.º 2 consome os atos previstos na alínea a), do n.º 1, do mesmo artigo 15.º do Decreto-Lei n.º 124/2006 de 28 de junho, em vigor em agosto de 2018, faz interpretação inconstitucional por violação dos princípios da legalidade e tipicidade previstos no artigo 29.º da Constituição da República Portuguesa.

V No procedimento administrativa omite-se por completo qualquer referência à culpa da Recorrente ou melhor dá-se como assente a sua culpa na modalidade de negligência, sem mais.

VI - Por ser assim, não resta outra alternativa, ao contrário do decidido pelo tribunal entre a página 2 a 6 da sentença, senão a de declarar nula a decisão administrativa por esta incumprir a alínea b) do n.º 1 do artigo 58.º do RGCO.

VII - É manifesto que a rede existia, que os marcos PE estavam para além da rede, que a mesma foi reposta de modo a coincidir com aqueles marcos, que a Recorrente desde o início do processo questionou a existência de terreno para além da rede, pelo que é evidente a sua falta de consciência da ilicitude quanto à gestão do combustível do seu terreno situado para além da rede, sem que o erro lhe seja censurável (cfr: n.º 1 do artigo 9.º do RGCO).

VIII - É indiscutível que estamos perante factos que a constar na sentença conduziriam à revogação da decisão administrativa por falta de consciência da ilicitude da Recorrente quanto à violação do disposto no n.º 2, do artigo 15.º do Decreto-Lei n.º 124/2006 de 28 de junho, em vigor em agosto de 2018, o que aqui e agora se requer seja reposto, através da revogação da sentença e decisão administrativa.

IX - Quer o PMDFCI de ... quer a Carta de Ocupação do Solo foram desconsiderados pelo tribunal por entender que tal prova seria relevante se fosse aplicado ao caso em apreço não o Decreto-Lei n.º 124/2006 de 28 de junho, na versão em vigor em 2018, mas o Decreto-Lei n.º 82/2021 de 13 de setembro.

X - Ora, a Recorrente não consegue entender o fundamento subjacente à falta de relevância dos mesmos, já que inexiste naquele ano 2018 norma que os desvalorize, pelo que tal decisão é nula por falta de fundamento legal.

XI - As situações de indefinição dos limites do terreno do Estado são muito frequentes e são explicáveis por muitas razões, incluindo a remoção de marcos PE por parte dos particulares, não se podendo considerar como grave a demora da Recorrente no apuramento dos limites do terreno do Estado.

XII - Não pode ser exigível à Recorrente que tenha um cadastro atualizado ao m2 atento as contingências próprias da demarcação (erros na inserção das plantas parcelares + correções de DUP + erros na própria implantação da rede), pelo que estamos perante erro desculpável.

XIII - A Recorrente reconhece a autoridade da GNR e dos tribunais, tendo-se apresentado em tribunal com a questão resolvida, apesar de tardia, (delimitação + desmatação total), pelo que merece ser recompensada com a aplicação da sanção da admoestação, sem prejuízo das nulidades entretanto invocadas.

…,


*

1.2. Resposta do Ministério Público: conclui pela improcedência do recurso.

1.3. Nesta Relação, o Exmo. Procurador-geral Adjunto pronunciou-se pelo não provimento do recurso, louvando-se na resposta apresentada pelo Ministério Público em 1ª instância.


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II.

Decisão recorrida

 (transcrição da parte relevante para a decisão do recurso):


«(…) A Guarda Nacional Republicana (doravante designada, apenas, por GNR) aplicou à recorrente Infraestruturas de Portugal, S.A., melhor identificada nos autos, uma coima de €1.800,00 (mil e oitocentos euros), acrescida de custas processuais que se fixaram em €306,00 (trezentos e seis euros) pela falta de execução da gestão de combustível da faixa de 50 metros de proteção a edifícios, nos termos da alínea a) do nº 2 do artigo 15º do Decreto-Lei nº 124/2006.

Não se conformando com a decisão proferida, a recorrente interpôs o presente recurso de impugnação judicial, ao abrigo do artigo 59.º, do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro, que consagra o Regime Geral das Contraordenações e Coimas (doravante designado RGCO), alegando, em síntese:

a.A decisão administrativa enferma de nulidade por insuficiência da matéria de facto constante no auto de notícia, obstando assim, à recorrente, o exercício em pleno do seu direito de defesa;

b.A decisão administrativa enferma de nulidade por falta de indicação do elemento subjetivo da conduta da recorrente no auto de notícia e na decisão final;

c.A decisão administrativa é nula por não ter sido produzida prova de que o local em questão se insere em espaço florestal, nem a vigência de qualquer PMDFCI;

d.A decisão administrativa não ponderou a aplicação da sanção de admoestação.

Conclui, pedindo o arquivamento do processo ou, sem prescindir, pela aplicação da sanção de admoestação. (…)

Questão prévia: da nulidade da decisão administrativa

Vem o recorrente alegar a nulidade da decisão administrativa, porquanto a mesma não cumpre os requisitos do artigo 58º, do RGCC, designadamente pela matéria de facto constante no auto de notícia ser insuficiente, obstando assim, à recorrente, o exercício em pleno do seu direito de defesa, designadamente por falta de indicação do elemento subjetivo da conduta da recorrente no auto de notícia e na decisão final.

Cumpre apreciar e decidir.

De acordo com o artigo 58.º do Regime Geral das Contraordenações (RGCO), a decisão que aplica a coima deve conter:

Por sua vez, o artigo 379º, n.º 1, alínea a) do Código de Processo Penal, aplicável ao processo de contraordenação por via do artigo 41º do RGCO, dispõe que é nula a sentença que não contiver as menções referidas no nº 2 do art.º 374º, ou seja, “a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal”.

Tais exigências, porém, têm que ser compatibilizadas com a complexidade do processo em causa, sendo entendimento jurisprudencial dominante que a decisão condenatória não carece do mesmo nível de rigor e exigência de uma sentença penal, desde logo por não implicar a aplicação de penas privativas de liberdade. (…)

Ora, no caso em apreço, resulta da leitura da decisão recorrida que a mesma não padece de qualquer nulidade, porquanto se encontram preenchidos todos os requisitos exigidos pelo artigo 58.º do Regime Geral das Contraordenações.

Constam da decisão da entidade administrativa os seguintes elementos objetivos:

1.No dia 20 de agosto de 2018, pelas 10:50, na Rua ... ..., freguesia ..., concelho de ..., a recorrente Infraestruturas de Portugal, S.A., não executou a gestão de combustível na faixa dos 50 metros de proteção a edifícios de acordo com os critérios definidos pelo ANEXO ao DL 124/2006, de 28 JUN.

2. Na parcela em infração, constatou-se que as copas das mimosas/acácias, não estavam afastadas umas das outras pelo menos 4 metros, porquanto foi verificado, que as copas das referidas árvores tocavam umas nas outras.

3. A parcela da propriedade da recorrente é abrangida pelo raio de 50 metros, contados a partir da alvenaria exterior da edificação, a qual tem relevância urbanística.

4. Foi elaborado o relatório de diligência externa 1, datado de 13 de janeiro de 2022, onde o instrutor que se deslocou ao local em infração pode confirmar a existência de marcos, que delimitam a propriedade da recorrente. Foi ainda possível apurar a distância entre o marco delimitador da propriedade da recorrente e a alvenaria exterior da habitação, perfazendo um total de 24,60mts.

5. A recorrente no final de junho de 2018 consignou os trabalhos de gestão de combustível no distrito de Viseu. No entanto, apenas realizou os trabalhos de gestão de combustível em setembro de 2018 e somente numa faixa de 3 metros paralela ao Itinerário Complementar 12, no âmbito da al. a) do 1 do art. 15º do Decreto-Lei 124/06.

6. A consignação referida no ponto anterior, não contemplava a gestão de combustível no local dos factos em infração.

7. Até ao momento da realização do Relatório de Diligência Externa 1, realizado em 13/01/2022, a recorrente não efetuou a gestão dos combustíveis no local da infração, por forma a cumprir o estipulado na al. a), do 2, do art. 15º do Decreto-Lei 124/06.

8. No local dos factos existe alguma área intervencionada, mas esta intervenção foi realizada pelo proprietário do terreno contíguo ao da recorrente, tal como foi reportado pelos Serviços de Fiscalização da Câmara Municipal de ..., através do ofício MGD 1235 de 15/11/2018.

9. A recorrente é responsável, porquanto é proprietária da parcela do local dos factos.”.

E bem assim os elementos subjetivos:

 “a. Quanto aos elementos subjetivos correspondentes ao ilícito considero, nos termos do art. do Regime Geral das Contraordenações “o facto considera-se praticado no momento em que o agente atuou ou, no caso da omissão, deveria ter atuado, independentemente do momento em que o resultado típico se tenha produzido”;

b. Significa que, para que exista culpabilidade do agente no cometimento dos factos imputados, é necessário que os mesmos lhe possam ser “arguidos” a título de negligência ou dolo;

c. Cabia à arguida ter diligenciado e informar-se quanto à obrigação de realizar a gestão de combustível próximo de edificações. Efetivamente, à luz do conhecimento do “homem médio” e atendendo a que são inúmeras as acções de sensibilização realizadas hoje em dia com o propósito de se acautelar a gestão de terrenos confinantes em edificações, a fim de evitar prejuízos maiores para bens e pessoas que à lei cumpre proteger, entende-se que a arguida agiu de forma negligente (art. do RGCO e 4 do art. 38º do Dec. Lei 124/2006), sob égide de negligência consciente, porquanto tinha um dever objectivo de cuidado que não acautelou devidamente;

d. Face à factualidade dada como provada, conclui-se que sobre a arguida recaía o dever de cuidado a que se encontrava obrigada e de que era capaz. Era previsível que a arguida, nas circunstâncias em que se encontrava, tivesse representado, como possíveis, as consequências dos seus atos da não realização da gestão de combustível existente no local dos factos, a que se encontrava obri8gfada e de que era capaz;

e. O facto de não ter diligenciado, a limpeza do terreno fá-la incorrer num ilícito contraordenacional, sancionável com coima, uma vez que tal conduta coloca em risco os bens jurídicos que se pretendem proteger com o Decreto-Lei 124/06, mais especificamente pretende-se minimizar as consequências dos incêndios florestais. A arguida mesmo depois dos grandes incêndios florestais de junho de 2017, não realizou a gestão de combustíveis.”.

Por outro lado, a decisão mostra-se devidamente fundamentada, sendo feita referência aos normativos legais aplicáveis e resultando evidentes para qualquer pessoa medianamente formada as razões pelas quais foi a recorrente sancionada e quais os elementos ponderados na fixação da medida concreta da sanção que lhe foi aplicada.

Consequentemente, é forçoso concluir que a decisão recorrida não viola nenhum direito de defesa do recorrente, nem o disposto no artigo 58.º do Regime Geral das Contraordenações, improcedendo a invocada nulidade.

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Da nulidade da decisão administrativa pela inexistência de prova de que o local em questão se insere em espaço florestal e que, para além disso, não se encontra em vigor qualquer PMDFCI

A recorrente vem alegar ainda a nulidade da decisão administrativa por não ter sido produzida qualquer prova quanto à inserção do local em questão nos presentes autos numa zona de espaço florestal e que, por outro lado, não se encontra em vigor qualquer PMDFCI – Plano Municipal de Defesa da Floresta Contra Incêndios, mais alegando que a lei aplicável é, não se o Decreto-Lei nº 124/2006, de 28 de junho, mas sim o Decreto-Lei nº 82/2021, de 13 de outubro.

Cumpre apreciar e decidir.

A recorrente foi notificada para pagamento voluntário da coima ou apresentação de defesa por despacho datado de 20 de setembro de 2018, por referência ao auto de notícia por contraordenação nº 13437/2018, por factos ocorridos no dia 20 de agosto de 2018, que podem consubstanciar contraordenação por falta de execução da gestão de combustível da faixa de 50 metros de proteção a edifícios, nos termos da alínea a) do nº 2 do artigo 15º do Decreto-Lei nº 124/2006.

Apesar do referido Decreto-Lei nº 124/2006 ter sido revogado, como bem alega a recorrente, tal só ocorreu no dia 1 de janeiro de 2022, nos termos do artigo 81º, nº 1, do Decreto-Lei nº 82/2021, de 13 de outubro.

Ora, como é referido no artigo 3º, nº 1, do RGCO, referente à aplicação da lei no tempo, “A punição da contraordenação é determinada pela lei vigente no momento da prática do facto ou do preenchimento dos pressupostos de que depende.”.

Assim, daqui se conclui que, estando em vigor, ao momento da prática dos factos – 20 de setembro de 2018 – o Decreto-Lei nº 124/2006, é este que tem de ser aplicado.

Todavia, refere ainda o nº 2 do RGCO que, “Se a lei vigente ao tempo da prática do facto for posteriormente modificada, aplicar-se-á a lei mais favorável ao recorrente, salvo se este tiver sido condenado por decisão definitiva ou transitada em julgado e executada.”.

Cumpre perscrutar.

Ora, no caso em apreço, aplicar-se-ia, em abstrato, o Decreto-Lei nº 124/2006, já que era este o diploma legal em vigor na data da prática dos presentes autos.

Como referido supra, a recorrente vem acusada da prática de atos que consubstanciam a contraordenação prevista na alínea a), do nº 2, do artigo 15º, do Decreto-Lei nº 124/2006.

O artigo 38º, nº 1 e 2, alínea a), do suprarreferido Decreto-Lei nº 124/2006, refere que,

Por sua vez, o Decreto-Lei nº 82/2021, de 13 de setembro, no seu artigo 49º, nº 1, alínea c), refere que,

Por sua vez, o artigo 72º, nº 1, alínea e) refere que,

Sendo que o nº 2, alínea b) do mesmo artigo refere ainda que,

Assim, estando em causa a falta de gestão de combustível na área envolvente a uma edificação, tal facto, ao abrigo do Decreto-Lei nº 82/2021, de 13 de outubro, é considerado contraordenação grave e, tendo em conta que estamos perante uma pessoa coletiva, é aplicável uma coima cuja moldura é de €2.500,00 e €25.000,00, moldura esta bem mais gravosa que a prevista pela mesma contraordenação pelo Decreto-Lei nº 124/2006.

Face a todo o exposto, o Decreto-Lei aplicado pela entidade administrativa em sede de decisão é a lei aplicável ao caso nos presentes autos.

Assim sendo, tendo em conta que a lei aplicável é o Decreto-Lei nº 124/2006 e que a recorrente vem acusada de ter praticado factos que consubstanciam a contraordenação prevista no artigo 15º, nº 2, alínea a) daquele preceito legal, a alegação da recorrente de que inexiste prova de que o local em questão se insere em espaço florestal e que, para além disso, não se encontra em vigor qualquer PMDFCI, não é relevante.

Tal prova seria relevante e essencial se fosse aplicável o Decreto-Lei nº 82/2021, de 13 de setembro já que este, no seu artigo 49º, nº 1, alínea c) e nº 6 dispõe como elementos objetivos a existência de uma área edificada e que, a faixa envolvente com largura padrão de 100 metros seja confinante com territórios florestais” e a correspondente falta de gestão do combustível.

Ora, a norma pela qual a recorrente vem acusada prevê como elemento tipo da contraordenação que o exterior do edifício, em largura não inferior a 50 metros, tem de ser abrangido por floresta, matos ou pastagens naturais.

Tendo em conta que a decisão administrativa dá como provado que “12. Na parcela em infração, constatou-se que as copas das mimosas/acácias, não estavam afastadas umas das outras pelo menos 4 metros, porquanto foi verificado, que as copas das referidas árvores tocavam umas nas outras.”, o que consubstancia, pelo menos, mato ou pastagem natural, razão pela qual a argumentação da recorrente não colhe.

Por outro lado, a recorrente faz ainda referência à inexistência de prova quanto à vigência do plano municipal de defesa da floresta contra incêndios, por considerar que, o Decreto-Lei nº 124/2006 a ser aplicável, tem de ser por via. artigo 79º, nº 4, do Decreto-Lei nº 82/2021 que refere que,

Ora, como já se demonstrou supra, o Decreto-Lei nº 124/2006, de 28 de junho é a lei aplicável in casu não por se manter em vigor o plano municipal de defesa da floresta, mas porque era a lei vigente à data da prática dos factos e a lei que a revogou é mais gravosa.

Assim, face a todo o exposto, razão a argumentação da recorrente não colhe, não se verificando a nulidade invocada, improcedendo, assim, a mesma.

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Inexistem outras nulidades, exceções ou questões prévias que obstem ao conhecimento da causa e de que cumpra conhecer.

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III. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO:

A) Com relevo para a decisão, resultaram provados os seguintes factos:

10. A recorrente é denunciada no Auto de Notícia por Contraordenação nº 13437/2018, cujos factos foram presenciados por elementos do Posto Territorial da GNR em ....

11. No dia 20 de agosto de 2018, pelas 10:50, na Rua ... – ..., freguesia ..., concelho de ..., a recorrente Infraestruturas de Portugal, S.A., não executou a gestão de combustível na faixa dos 50 metros de proteção a edifícios de acordo com os critérios definidos pelo ANEXO ao DL nº 124/2006, de 28 JUN.

12. Na parcela em infração, constatou-se que as copas das mimosas/acácias, não estavam afastadas umas das outras pelo menos 4 metros, porquanto foi verificado, que as copas das referidas árvores tocavam umas nas outras.

13. A parcela da propriedade da recorrente é abrangida pelo raio de 50 metros, contados a partir da alvenaria exterior da edificação, a qual tem relevância urbanística.

14. Foi elaborado o relatório de diligência externa nº 1, datado de 13 de janeiro de 2022, onde o instrutor que se deslocou ao local em infração pode confirmar a existência de marcos, que delimitam a propriedade da recorrente. Foi ainda possível apurar a distância entre o marco delimitador da propriedade da recorrente e a alvenaria exterior da habitação, perfazendo um total de 24,60mts.

15. A recorrente só no final de junho de 2018 consignou os trabalhos de gestão de combustível no distrito de Viseu. No entanto, apenas realizou os trabalhos de gestão de combustível em setembro de 2018 e somente numa faixa de 3 metros paralela ao Itinerário Complementar nº 12, no âmbito da al. a) do nº 1 do art. 15º do Decreto-Lei nº 124/06.

16. A consignação referida no ponto anterior, não contemplava a gestão de combustível no local dos factos em infração.

17. Até ao momento da realização do Relatório de Diligência Externa nº 1, realizado em 13/01/2022, a recorrente não efetuou a gestão dos combustíveis no local da infração, por forma a cumprir o estipulado na al. a), do nº 2, do art. 15º do Decreto-Lei nº 124/06.

18. No local dos factos existe alguma área intervencionada, mas esta intervenção foi realizada pelo proprietário do terreno contíguo ao da recorrente, tal como foi reportado pelos Serviços de Fiscalização da Câmara Municipal de ..., através do ofício MGD 1235 de 15/11/2018.

19. A recorrente é responsável, porquanto é proprietária da parcela do local dos factos.

20. Quanto aos elementos subjetivos correspondentes ao ilícito considero, nos termos do art. 5º do Regime Geral das Contraordenações “o facto considera-se praticado no momento em que o agente atuou ou, no caso da omissão, deveria ter atuado, independentemente do momento em que o resultado típico se tenha produzido”;

21. Significa que, para que exista culpabilidade do agente no cometimento dos factos imputados, é necessário que os mesmos lhe possam ser “arguidos” a título de negligência ou dolo;

22. Cabia à arguida ter diligenciado e informar-se quanto à obrigação de realizar a gestão de combustível próximo de edificações. Efetivamente, à luz do conhecimento do “homem médio” e atendendo a que são inúmeras as ações de sensibilização realizadas hoje em dia com o propósito de se acautelar a gestão de terrenos confinantes em edificações, a fim de evitar prejuízos maiores para bens e pessoas que à lei cumpre proteger, entende-se que a arguida agiu de forma negligente (art. 8º do RGCO e nº 4 do art. 38º do Dec. Lei 124/2006), sob égide de negligência consciente, porquanto tinha um dever objetivo de cuidado que não acautelou devidamente;

23. Face à factualidade dada como provada, conclui-se que sobre a arguida recaía o dever de cuidado a que se encontrava obrigada e de que era capaz. Era previsível que a arguida, nas circunstâncias em que se encontrava, tivesse representado, como possíveis, as consequências dos seus atos da não realização da gestão de combustível existente no local dos factos, a que se encontrava obri8gfada e de que era capaz;

24. O facto de não ter diligenciado, a limpeza do terreno fá-la incorrer num ilícito contraordenacional, sancionável com coima, uma vez que tal conduta coloca em risco os bens jurídicos que se pretendem proteger com o Decreto-Lei nº 124/06, mais especificamente pretende-se minimizar as consequências dos incêndios florestais. A arguida mesmo depois dos grandes incêndios florestais de junho de 2017, não realizou a gestão de combustíveis

(…)

A prova do elemento subjetivo (factos 20 a 24) extraiu-se da prova dos elementos objetivos e dos factos provados, conjugados com as regras da experiência comum e do normal acontecer em situações idênticas.

(…)

A recorrente requer subsidiariamente a aplicação de uma admoestação.

O artigo 51.º, do RCGO dispõe que:

A admoestação configura “uma medida alternativa para os casos de pouca relevância do ilícito contraordenacional e da culpa do agente, isto é, para as contraordenações leves ou simples” - Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Regime Geral das Contraordenações à luz da Constituição da República Portuguesa e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Universidade Católica Editora, 2011, página 22-223.

Tendo sido entendido que, pese embora a inserção sistemática do preceito em causa no Capítulo II, do RGCO, da “da aplicação da coima pelas autoridades administrativas” é de entender que a referência a “entidade competente”, usada na redação do referido normativo, leva a que a admoestação possa ser aplicada, quer na fase administrativa, quer na fase judicial, ou seja, na fase de recurso da decisão administrativa.

A gravidade da contraordenação depende do bem ou interesse jurídico que a mesma visa tutelar e, ainda o eventual benefício retirado pelo agente da prática daquela e do resultado ou prejuízo causado.

No caso em apreço, a contraordenação em causa, prevista na alínea a) do nº 2 do artigo 15º, do Decreto-Lei nº 124/06, não se encontra qualificada em termos de gravidade, pelo que temos de analisar a gravidade da mesma.

Cumpre, desde já, perceber os bens jurídicos tutelados, bem como os objetivos da lei em questão.

Do preâmbulo do Decreto-Lei nº 124/2004 consta dos seus objetivos os seguintes:

 “Promover a gestão ativa da floresta;

Implementar a gestão de combustíveis em áreas estratégicas, de construção e manutenção de faixas exteriores de proteção de zonas de interface, de tratamento de áreas florestais num esquema de mosaico e de intervenção silvícola, no âmbito de duas dimensões que se complementam, a defesa de pessoas e               bens e a defesa da floresta; Reforçar as estruturas de combate e de defesa da floresta contra incêndios; Dinamizar um esforço de educação e sensibilização para a defesa da floresta contra incêndios e para o uso              correto  do fogo; Adotar estratégias de reabilitação de áreas ardidas; Reforçar a vigilância e a fiscalização e aplicação do regime contraordenacional instituído.”.

Considerando os suprarreferidos objetivos, bem como a tutela dos bens jurídicos a proteger, neste caso, a proteção das florestas e das pessoas e dos seus bens contra incêndios, bem como o facto da recorrente ser uma entidade coletiva pública a quem incumbe a gestão dos combustíveis das zonas que lhe estão adstritas, o seu dever de cumprimento dos normativos é relevante e a sua falta gera um exemplo significativo a todos os particulares.

Para além disso, como é de conhecimento geral, há uma grande porção de área florestal, de mato ou de pastoreio que está sob a égide do cuidado da recorrente, bem como, como também é de conhecimento geral, todos os anos Portugal é sufragado com incêndios de norte a sul do país, causando prejuízos tanto patrimoniais como não patrimoniais.

Ora, o desconhecimento da propriedade, para além de não afastar a ilicitude dos factos, é demonstrativo da falta do dever de cuidado a que a recorrente estava e está obrigada.

Face a todo o exposto, a contraordenação em questão nos presentes autos é grave.

Além da gravidade da infração, temos ainda que atender que a recorrente é, como já se referiu, uma entidade de direito pública, de grandes dimensões e responsável por uma grande porção de território de floresta, de mato ou pastoreio em Portugal a quem cabe o dever de saber quais estão sob a tua tutela e agir em conformidade.

Releva ainda que, em janeiro de 2022, isto é, na data da realização do relatório de diligência externa, 4 anos após os factos aqui em questão, a recorrente ainda não havia efetuado a gestão dos combustíveis no local em questão.

Todavia, importa ainda referir que, quanto à culpa da recorrente, que atuou com negligência, que é a forma menos grave da culpa, esta é menos significativa.

Desta feita, não poderá ser aplicada uma admoestação à recorrente por não se verificarem os respetivos pressupostos e se tratar de sanção que se afigura desadequada e proporcional à culpa e à gravidade que a infração reveste, neste caso concreto.

Em conformidade, e porque nenhuma outra questão foi suscitada, impõe-se julgar improcedente o presente recurso, mantendo a decisão administrativa, nos seus precisos termos. (…)»


*

III.

Conhecimento do recurso

… ([1]).

Nos termos do art. 75º, n.º 1, do Regime Geral das Contraordenações, a 2ª instância conhece apenas de matéria de direito, não cabendo efetuar uma reapreciação da matéria de facto provada – sem prejuízo do conhecimento, mesmo oficioso, dos vícios a que se refere o art. 410º, n.º 2, do Código de Processo Penal.

Será com esta limitação que se conhecerão os fundamentos do recurso interposto.

O objeto do presente recurso, tendo em conta as conclusões formuladas, resume-se às seguintes questões:

a) Nulidade do procedimento por insuficiência da matéria de facto constante do auto de notícia;

b) Nulidade do procedimento por falta de indicação do elemento subjetivo da conduta da arguida no auto de noticia e na decisão final;

c) Erros de julgamento (falta de consciência da ilicitude; vigência do PMDFCI e da inserção em espaço florestal).

Oficiosamente, conheceremos no local próprio do vício de insuficiência da matéria de facto para a decisão.


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Conhecendo,

    

A recorrente alega não lhe terem sido fornecidos todos os elementos necessários à sua defesa, em violação do disposto no art. 50º do RGCO. Consagra esta norma um direito fundamental dos sistemas legais democráticos, a saber, o direito de audição e defesa do arguido.

No auto de notícia elaborado pela GNR, consta a seguinte “descrição dos factos”: “em 20 de agosto de 2018, pelas 10:50, o participante… deslocaram-se ao local supra descrito no sentido de ser verificada a execução das faixas de gestão de combustível da rede secundária. O referido local está inserido em espaço rural – constituído por floresta e é abrangido pelo raio de 50 metros, contados a partir da alvenaria exterior da edificação com relevância urbanística, estando ocupado com povoamento de mimosas/acácias, sendo apurado que a arguida identificada … é o responsável daquela parcela uma vez que é a proprietária. A faixa onde está inserido o local dos factos tem uma largura maior ou igual a 20 metros e uma área superior a 5000 metros quadrados, onde se verifica a presença de mimosas/acácias. Na referida faixa, constatou-se que as mimosas/acácias com uma altura de 3 metros, ocupante uma percentagem de 100%, as quais não tinham as suas copas afastadas entre si os 04 metros estipulados por Lei, porquanto foi verificada que as mesmas tocavam umas nas outras…”. Foi-lhe imputada, com estes fundamentos fácticos, a infração da al. a) do n.º 2 do art. 15º do DL 124/2006, com a redação introduzida pelo DL n.º 10/2018, de 14.2, punida como contraordenação pelo art. 38º, n.ºs 1 e 2, al. a), do mesmo diploma.

Anexou a GNR ao auto um ortofotomapa com indicação da área “propriedade da arguida”, referindo-se que “a arguida não apresentou qualquer documento relativo à mesma” e resultando os limites do que foi percecionado pelo autuante, bem como registos fotográficos do local.

O art. 50º do Dec.-Lei n.º 433/82 (RGCO) consagra o princípio da audição do arguido, assegurando-lhe o direito de se pronunciar sobre a contraordenação que lhe é imputada e a sanção correspondente. Para a efetivação do direito de audição, o arguido tem de ter conhecimento da descrição dos factos imputados, o que implica a “descrição sequencial, narrativamente orientada e espácio-temporalmente circunstanciada, dos elementos imprescindíveis à singularização do comportamento contraordenacionalmente relevante e essa descrição deve contemplar a caraterização, objetiva e subjetiva, da ação ou omissão de cuja imputação se trate” ([2]).

No caso, da transcrição efetuada retira-se que a descrição objetiva dos factos é suficiente para que seja exercido o direito de defesa quanto aos mesmos, como efetivamente sucedeu.

No entanto, a descrição constante do auto de notícia não contém os elementos subjetivos da infração imputada, referindo apenas a notificação efetuada o seguinte: “Não há elementos que permitam imputar a contraordenação a título doloso, entendendo-se que a conduta do(a) arguido(a) descrita no auto se consubstancia numa contraordenação a título de negligência”, remetendo a punibilidade para o art. 38º, n.º 4, do Dec.-Lei n.º 124/2006 (que prevê a punibilidade da tentativa e da negligência). Em termos factuais, nada é referido.

Ora, o art. 8º do RGCO consagra o princípio da culpa, estatuindo que “Só é punível o facto praticado com dolo ou, nos casos especialmente previstos na lei, com negligência”. Consiste a negligência na “falta de cuidado devido, que tem como consequência a realização do facto proibido por lei” ([3]). O auto de notícia nada refere quanto a factos suscetíveis de preencher este elemento.

O mesmo se diga relativamente à decisão administrativa, que nos 10 pontos dos factos provados que descreve nada fez constar quanto ao elemento subjetivo, nomeadamente a concreta violação dos deveres de cuidado impostos por lei à arguida fundante da pretendida e, a final, imputada atuação negligente. O que foi efetuado na decisão administrativa resumiu-se ao tratamento genérico da negligência no capítulo da decisão em que é abordada a imputação subjetiva, que se limita à transcrição do art. 5º do RGCO e considerações doutrinárias, referindo a norma que em concreto pune a conduta negligente na contraordenação em causa (art. 38º, n.º 4, do DL 124/2006). Estas considerações encontram-se descritas em 5 pontos diferentes.

Ora, a “matéria” relativa ao elemento subjetivo do ilícito terá de incluir-se na decisão administrativa, pois só assim resulta assegurado o exercício efetivo do direito de defesa, o qual apenas «poderá existir com um conhecimento perfeito dos factos que lhe são imputados, das normas legais em que se enquadram e condições em que pode impugnar judicialmente aquela decisão.» ([4]).

Depois desta decisão, de forma inaudita, o tribunal de 1ª instância, na sentença proferida, veio a transmover aquela matéria de direito para a factualidade “provada”, consignando, como factos provados os seguintes:
20. Quanto aos elementos subjetivos correspondentes ao ilícito considero, nos termos do art. 5º do Regime Geral das Contraordenações “o facto considera-se praticado no momento em que o agente atuou ou, no caso da omissão, deveria ter atuado, independentemente do momento em que o resultado típico se tenha produzido”;
21. Significa que, para que exista culpabilidade do agente no cometimento dos factos imputados, é necessário que os mesmos lhe possam ser “arguidos” a título de negligência ou dolo;
22. Cabia à arguida ter diligenciado e informar-se quanto à obrigação de realizar a gestão de combustível próximo de edificações. Efetivamente, à luz do conhecimento do “homem médio” e atendendo a que são inúmeras as ações de sensibilização realizadas hoje em dia com o propósito de se acautelar a gestão de terrenos confinantes em edificações, a fim de evitar prejuízos maiores para bens e pessoas que à lei cumpre proteger, entende-se que a arguida agiu de forma negligente (art. 8º do RGCO e nº 4 do art. 38º do Dec. Lei 124/2006), sob égide de negligência consciente, porquanto tinha um dever objetivo de cuidado que não acautelou devidamente;
23. Face à factualidade dada como provada, conclui-se que sobre a arguida recaía o dever de cuidado a que se encontrava obrigada e de que era capaz. Era previsível que a arguida, nas circunstâncias em que se encontrava, tivesse representado, como possíveis, as consequências dos seus atos da não realização da gestão de combustível existente no local dos factos, a que se encontrava obrigada e de que era capaz;
24. O facto de não ter diligenciado, a limpeza do terreno fá-la incorrer num ilícito contraordenacional, sancionável com coima, uma vez que tal conduta coloca em risco os bens jurídicos que se pretendem proteger com o Decreto-Lei nº 124/06, mais especificamente pretende-se minimizar as consequências dos incêndios florestais. A arguida mesmo depois dos grandes incêndios florestais de junho de 2017, não realizou a gestão de combustíveis”

Correspondem estes 5 pontos, sem tirar nem por, à apreciação jurídica efetuada na decisão administrativa do (indispensável) elemento subjetivo da contraordenação. No entanto, essa apreciação foi feita sem qualquer suporte factual e sem que sobre tal elemento tenha sido exercido o direito de defesa pela arguida.

Ora, é inaceitável que o tribunal de 1ª instância faça constar da sentença proferida, como factos provados, citações legais, generalidades doutrinais e conclusões. “Factos” é uma realidade distinta dessas asserções: são realidades, acontecimentos ocorridos espácio-temporalmente determinados, constatáveis objetivamente, sendo sobre estes que se devem extrair as inferências relevantes para o preenchimento dos elementos típicos de determinada conduta.

A autoridade administrativa não fixou os factos e respetivos meios de prova, parecendo entender que quando não há elementos para a verificação do dolo, terá necessariamente de existir negligência, olvidando existirem causas de exclusão da culpa que podem afastar a própria negligência. Mas mais grave é um tribunal judicial de 1ª instância não demonstrar capacidade para separar factos, meios de prova e conclusões jurídicas, tomando a lei e referências doutrinárias e conclusivas como matéria de facto!

Posto isto,

O art. 58º, n.º 1, al. b), do RGCO impõe que da decisão que aplique uma coima conste “A descrição dos factos imputados, com indicação das provas obtidas” (factos ou omissões, naturalmente), abrangendo os seus elementos objetivos e subjetivos. Esta imposição não foi cumprida, incorrendo assim a decisão administrativa na nulidade a que se refere o art. 379º, n.º 1, al. a), do Código de Processo Penal, aplicável ex vi art. 32º do RGCO.

O mesmo se diga no que respeita à sentença proferida em 1ª instância no âmbito do recurso de contraordenação, que omite a factualidade respeitante ao elemento subjetivo da contraordenação – vício que nunca poderia, aliás, suprir, remetendo neste particular para o Acórdão Uniformizador proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça em 27.1.2015 e integralmente aplicável ao caso (Ac. n.º 1/2015: “A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjetivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no artigo 358.º do Código de Processo Penal”).

Assim, nunca a ausência de factos integradores do elemento subjetivo da contraordenação, quer no auto de notícia quer na decisão administrativa e ainda na sentença de 1ª instância, poderá ser suprida. Recorde-se que o princípio da vinculação temática vigora também no processo contraordenacional, valendo a decisão administrativa como acusação (art. 62º, n.º 1, do RGCO), não sendo pois admitida a integração de novos factos, como decorre do aresto vindo de citar.

Daqui decorre necessariamente a absolvição da arguida da prática da contraordenação que lhe foi imputada. 


**


Mas não ficam por aqui as nulidades cometidas na sentença sob recurso:

É manifesto que da sentença não constam nem dos factos provados, nem dos factos não provados (que afirma não existirem), todo o acervo factual invocado pela arguida no recurso de contraordenação interposto, designadamente na parte em que invoca factos suscetíveis de afastar a sua culpa no incumprimento atempado da obrigação que está no cerne da contraordenação em causa nos autos [mormente nos pontos 41, 44, 45 (2ª parte). 46, 47, 48, 49, 62, 65, 70 e 71].

Também por esta razão se verifica a nulidade a que se refere a norma processual referida – com a diferença que esta poderia ser suprida na 1ª instância, o que se mostra inútil face às demais patologias de que a sentença padece.

Não pode ainda deixar de se referir um manifesto erro na indicação e aplicação da norma legal aplicável à recorrente. Vejamos:

O art. 15º, n.º 2, al. a), norma cuja violação é imputada à IP, estabelece o seguinte: “Os proprietários, arrendatários, usufrutuários ou entidades que, a qualquer título, detenham terrenos confinantes a edifícios inseridos em espaços rurais, são obrigados a proceder à gestão de combustível, de acordo com as normas constantes no anexo do presente decreto-lei e que dele faz parte integrante, numa faixa com as seguintes dimensões: a) Largura não  inferior a 50 m, medida a partir da alvenaria exterior do edifício, sempre que esta faixa abranja terrenos ocupados com floresta, matos ou pastagens naturais”.

A recorrente Infraestruturas de Portugal, SA, é uma empresa pública sob a forma de sociedade anónima que está sob a tutela do Ministério das Infraestruturas, tendo por objeto a conceção, projeto, construção, financiamento, conservação, exploração, requalificação, alargamento e modernização das redes rodoviária e ferroviária nacionais, incluindo-se nesta última o comando e controlo da circulação. Os seus estatutos estão publicados no Dec.-Lei n.º 91/2015, de 29.5, que procedeu à fusão, por incorporação, da Estradas de Portugal, SA, e da REFER, EPE. A IP assumiu, por essa via, nomeadamente a posição de gestor de infraestruturas, nos termos do contrato de concessão geral da rede rodoviária nacional (art. 6º, n.º 2, do Dec.-Lei n.º 91/2015).

No que respeita às infraestruturas rodoviárias, são bens do domínio público do Estado, insuscetíveis de apropriação (art. 28º da Lei 34/2015), estabelecendo o art. 14º, n.º 2, da Lei 34/2015, de 27.4 (Estatuto das Estradas da Rede Rodoviária Nacional): “Sem prejuízo das obrigações decorrentes da legislação de defesa da floresta contra incêndios, a vegetação na área do domínio público rodoviário é da responsabilidade das entidades gestoras das infraestruturas rodoviárias, e na sua gestão devem ser tomados em consideração critérios estéticos, funcionais, ambientais e económicos, atento o adequado enquadramento paisagístico e a segurança dos utilizadores.”

Por sua vez, no Dec.-Lei n.º 222/98, de 17.7, que redefine o Plano Rodoviário Nacional, ficou estabelecido, quanto aos itinerários principais (caso da via em causa neste processo), o Estado expropriaria “uma faixa de cada lado da plataforma, a revestir por cortina de vegetação adequada, de modo a reforçar a proteção da estrada” (art. 7º, n.º 4). Tal faixa é, assim propriedade do Estado, encontrando-se legalmente concessionada à IP, SA, por via de contrato de concessão. O que é distinto de tratar a IP, SA, como proprietária daquelas faixas de terreno – qualidade que lhe é imputada no auto de notícia, na decisão administrativa e depois na sentença proferida em 1ª instância.

Assim, a obrigação de gestão de combustíveis para efeitos de prevenção dos incêndios na área de jurisdição da administração rodoviária (art. 41º da Lei n.º 34/2015) incumbirá à concessionária IP, SA, mas não na qualidade de proprietária daqueles terrenos.

Em consequência, é manifestamente pertinente a invocação pela recorrente deste erro na aplicação da lei, uma vez que a gestão de combustível que incumbe à entidade responsável pela rede viária se encontrava à data dos factos prevista no art. 15º, n.º 1, al. a), do Dec.-Lei n.º 124/2006, de 28.6, norma cuja violação nunca lhe foi imputada (nem poderia, uma vez que não existiria definição prévia dos espaços florestais no PMDFCI).


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A última questão que cabe analisar prende-se com os vícios da decisão, de conhecimento oficioso, concretamente o que se encontra previsto no art. 410º, n.º 2, al. a), do Código de Processo Penal da seguinte forma:

Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:
a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada”.

A sentença incorre neste vício quando se verifica lacuna no apuramento dos factos necessários à decisão de direito. Dito de outra forma, este vício ocorre nos casos em que a matéria de facto apurada, no seu conjunto (factos provados e factos não provados), é incapaz de suportar em abstrato a decisão, condenatória ou absolutória ([5]).

Na verdade, a imputação de uma contraordenação a uma pessoa coletiva depende sempre de uma ação ou omissão «livre na causa», ou seja, de uma “estruturação do direito sancionatório a partir do facto” ([6]).

Ora, o art. 7º, n.º 2, do Dec.-Lei n.º 433/82, de 27.12 (Regime Geral das Contraordenações, doravante RGCO), estabelece que “As pessoas coletivas ou equiparadas serão responsáveis pelas contraordenações praticadas pelos seus órgãos no exercício das suas funções” (sublinhado nosso).

Encontra-se, pois, consagrada no direito contraordenacional português a regra da responsabilidade da pessoa coletiva de acordo com o modelo de imputação orgânica: “só o ato cometido no exercício das suas funções responsabiliza a pessoa coletiva (…). Para responsabilizar a pessoa coletiva é suficiente que a conduta seja praticada ou determinada em seu nome por órgão juridicamente vinculante da vontade coletiva, sendo irrelevante a circunstância de não se ter identificado o nome do titular do órgão ou representante a quem seja atribuída pessoalmente a conduta da pessoa coletiva” ([7]).

Se não se encontrarem concretizadas as condutas que, por ação ou omissão, são imputadas à pessoa coletiva na decisão, não será possível retirar o alcance, objetivo e subjetivo, das condutas em causa, pelo que não poderá haver responsabilidade contraordenacional ([8]).

Ora, na sentença sob recurso em lado algum se encontra identificado o ou os legais representantes da arguida/recorrente, ignorando-se o responsável legal, ou a cadeia de responsáveis da IP pela gestão de combustíveis, ou seja, quem foi o autor da conduta/omissão contraordenacional em causa nos autos. Tal identificação e imputação factual mostram-se imprescindíveis à imputação (orgânica) da ação ou omissão à pessoa coletiva, por se não revelar minimamente indiciado o preenchimento do pressuposto exigido pela 2ª parte do n.º 2 do art. 7º do RGCO, transcrito (praticadas pelos seus órgãos no exercício das suas funções).

Na realidade, a pessoa coletiva só poderá ser responsabilizada por uma contraordenação se existir conexão entre a atuação ou omissão geradora da ilicitude por parte do órgão, agente, representante ou trabalhador e as suas funções no âmbito da prossecução do objeto da pessoa coletiva. É fundamental para a imputação da contraordenação à pessoa coletiva que o representante naquela situação concreta tenha atuado por causa das suas funções.

No caso dos autos, percorrida a matéria de facto provada verifica-se que em lado algum são identificados o ou os representantes legais da arguida, sequer o responsável do departamento da arguida que deveria atuar na gestão dos combustíveis na rede viária concessionada e que omitiu a obrigação, bem como a que representante legal da IP cabia tutelar o cumprimento daquela específica tarefa.

Em suma, nada consta dos factos provados que nos permita ajuizar se podemos imputar a uma pessoa que integre os órgãos da pessoa coletiva a conduta ilícita aqui em causa, bem como que a pessoa que representa a arguida terá atuado no exercício das suas funções.

A responsabilização da pessoa coletiva exige, no domínio do direito penal e do direito contraordenacional, que o facto seja imputável à conduta ou violação de deveres de uma pessoa qualificada, detentora da qualidade de titular de órgão ou de representante da pessoa coletiva. “O juízo sobre a responsabilidade da pessoa coletiva pressupõe que se atenda ao quadro de competências da pessoa física e ao modo como elas foram concretamente exercidas” (…). Só desta forma se pode aferir da gravidade, objetiva e subjetiva, do facto, realizado em nome e no interessa da pessoa jurídica, por aqueles que têm o poder de a vincular” ([9]).

Ora, os factos que suportam o juízo de imputação do ilícito contraordenacional à pessoa coletiva integram o objeto do processo, pelo que têm de constar do despacho de acusação, constituindo a respetiva prova pressuposto da condenação da pessoa coletiva.

O que não sucede no caso de que nos ocupamos.

Não sendo a matéria de facto suficiente para sustentar a imputação à arguida/recorrente da conduta ilícita geradora de responsabilidade contraordenacional impõe-se concluir pela insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, conforme previsto no art. 410º, n.º 2, al. a), do Código de Processo Penal ([10]).

A insuficiência detetada não é suprível nesta instância de recurso, desde logo por não ter sido requerida a renovação da prova (art. 430º, n.º 1), o que determinaria o reenvio dos autos para novo julgamento (arts. 426º, n.º 1, e 426º-A) a fim de determinar a pessoa que representa a arguida e a pessoa que concretamente agiu e/ou praticou os factos, bem como se o fez no exercício das suas funções ou de ordens transmitidas pelo representante da arguida. No entanto, o reenvio resultaria na violação do princípio da vinculação temática do tribunal, a que já nos referimos, pois não pode a 1ª instância indagar factos que não constem da decisão administrativa impugnada, que vale como acusação mediante a sua apresentação em juízo pelo Ministério Público na sequência de impugnação deduzida (art. 62º, n.º 1, do RGCO). Recorde-se que a acusação fixa os poderes de cognição do tribunal, emanação do princípio do acusatório e dos mais basilares direitos de defesa do arguido.

Os factos em falta extravasam, por outro lado, os conceitos de alteração não substancial e de alteração substancial dos factos, não cabendo no caso recurso aos mecanismos previstos nos arts. 358º e 359º do Código de Processo Penal.

Assim, outra solução não resta senão a absolvição da arguida, conforme decidiu esta Relação nos recentes acórdãos de 13.12.2022 (proc. 11/22.5T8CNF.C1, rel. Pedro Lima) e de 11.1.2023 (proc. 411/22.0T8CVL.C1, da aqui relatora) ([11]).

            Não sendo supríveis a nulidade por falta de descrição factual do elemento subjetivo da contraordenação e o vício de insuficiência da matéria de facto, torna-se inútil o conhecimento das restantes questões suscitadas no recurso interposto.


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IV.

DECISÃO



Pelo exposto, julgam-se verificados a nulidade da sentença prevista no art. 379º, n.º 1, al. a), e o vício previsto no art. 410º, n.º 2, al. a), ambos do Código de Processo Penal, e, por insupríveis, absolve-se a arguida “Infraestruturas de Portugal, SA” da contraordenação por cuja prática havia sido condenada.

Sem tributação.


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Coimbra, 10 de maio de 2021

Ana Carolina Cardoso (relatora – processei e revi)

João Novais (adjunto)

Pedro Lima (adjunto)





[1] v. Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, 2015, págs. 335-336.
[2] - Em Ac. do TC n.º 99/2009, que impõe que a notificação contenha os elementos subjetivos da infração, citado por Paulo Pinto de Albuquerque, “Comentário do Regime Geral da Contraordenações”, 2ª es., pág. 256.
[3] - Ac. desta Relação de 11.3.2009, rel. Jorge Gonçalves, proc. 529/08.2TBTMR.C1, em www.dgsi.pt.
[4] - Cf. o Ac. desta Relação de 11.11.2020, rel. Maria José Nogueira (em www.dgsi.pt), citando Simas Santos e Lopes de Sousa, in “Contraordenações, Anotações ao Regime Geral”, 3.ª edição, Vislis Editores, anotação ao artigo 58.º.
[5] Pereira Madeira, “Código de Processo Penal Comentado”, 2ª ed., em anotação ao art. 410º, pág. 1274. No mesmo sentido, Paulo Pinto de Albuquerque, “Comentário do Código de Processo Penal”, 4ª ed., pág. 1080 e ss.
[6] Paulo Pinto de Albuquerque, “Comentário do Regime Geral das Contraordenações”, 2ª ed., 2022, pág. 53.
[7] Ob. cit. na nota anterior, pág. 58.
[8] Ob. cit., págs. 58-59, e Ac. da Relação de Évora de 16.12.2021, rel. Maria Clara Figueiredo, em www.direitoemdia.pt.
[9] Cf. Susana Aires de Sousa, “Questões Fundamentais de Direito Penal da Empresa”, pág. 109.
[10] No mesmo sentido, Paulo Pinto de Albuquerque, ob. cit., pág. 59, bem como o Ac. da RE citado, divergindo neste caso da solução aí adotada.
[11] No mesmo sentido, Paulo Pinto de Albuquerque, ob. e loc. cit., e ainda o Ac. desta Relação cit. no aresto referido, de 18.3.2015, rel. Alcina Ribeiro.