Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
7254/21.7T8VNG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ANA LUÍSA LOUREIRO
Descritores: AÇÃO DE REIVINDICAÇÃO
CONTRATO DE COMODATO
Nº do Documento: RP202402227254/21.7T8VNG.P1
Data do Acordão: 02/22/2024
Votação: MAIORIA COM 1 DEC VOT
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA EM PARTE
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Reconhecido o direito de propriedade da autora e a ocupação do imóvel pela ré, a restituição pode ser recusada com fundamento na existência de uma relação, obrigacional ou real, tituladora da posse ou detenção da coisa.
II - A existência de um contrato de comodato configura, precisamente, uma relação obrigacional passível de obstar à obrigação de entrega.
II - Estando em causa um comodato sem prazo de imóvel propriedade de uma associação de solidariedade social, construído com donativos para proporcionar habitação a famílias carenciadas, e cuja entrega à ré foi efetuada pela referida associação de solidariedade social, no âmbito e em execução do seu objeto social, tendo por fim proporcionar-lhe a habitação que a mesma, em função e por causa da sua insuficiência económica, não tinha, não há obrigação de restituir a habitação enquanto continuar ou se mantiver a situação de carência económica que justifica e fundamenta esse uso determinado: proporcionar o uso gratuito de habitação por falta de condições económicas da ré para suportar os custos com habitação.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo – Apelação n.º 7254/21.7T8VNG.P1

Tribunal a quo – Juízo Central Cível de Vila Nova de Gaia - Juiz 3

Recorrente(s) – AA

Recorrido(a/s) – A..., Instituição Particular de Solidariedade Social e Associação de Solidariedade Social


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Sumário

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Acordam os juízes da 3ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:

I. Relatório

Identificação das partes e indicação do objeto do litígio

A autora A..., Instituição Particular de Solidariedade Social e Associação de Solidariedade Social, intentou ação de processo comum contra a ré AA, pedindo a condenação desta reconhecer que a autora é dona e legitima proprietária do prédio situado no lugar ..., freguesia ..., concelho de Vila Nova Gaia, descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia, sob o nº ... e inscrito na matriz sob o artigo ..., e a restituir tal prédio, imediatamente, à autora totalmente livre.

Para o efeito, alegou, em síntese, que é uma instituição particular de solidariedade social, sem finalidade lucrativa, reconhecida como pessoa coletiva de utilidade pública, tendo por objeto o apoio à família e que, com vista à prossecução desse seu objeto, lhe foram doados dois imóveis em 30 de setembro de 1983, que identifica e que veio a lotear, tendo ainda em data anterior ao loteamento, na prossecução do seu objeto social, cedido de forma gratuita à ré a casa n.º ... que a autora edificou no terreno, a qual a ré passou a habitar desde 14 de agosto de 1987, de forma gratuita, ciente que a casa pertence à autora. Alega que diligenciou junto da ré no sentido de lhe vender ou arrendar a casa que ocupa, o que a mesma recusou, face ao que pretende a restituição do imóvel em causa, uma vez que não foi convencionado prazo para a sua restituição, e relativamente ao qual goza de presunção emergente do registo de aquisição a seu favor  na CRPredial, invocando ainda que sempre seria a legítima proprietária do imóvel, por o ter adquirido por usucapião.

Citada, a ré contestou e deduziu reconvenção, impugnando parcialmente os factos e alegando, em síntese, que a doação dos imóveis foi efetuada à autora para que as famílias carenciadas pudessem construir uma habitação para lá residirem, colocando os lotes dos terrenos doados em nome das famílias a quem se destinavam, sendo essa cedência sempre sem qualquer contrapartida monetária em troca, e que já antes da doação dos terrenos à autora a ré havia dado início à construção da habitação onde atualmente reside, tendo tal construção sido efetuada totalmente pela ré e familiares e amigos, apenas tendo a autora colocado a expensas suas janelas, portas e persianas da habitação da ré.

Invoca ainda que o terreno foi doado verbalmente à ré, que desde 1981, altura em que deu início à edificação do imóvel que mantém na sua posse no terreno e habitação, designado apos o loteamento efetuado em 2012, como lote ... ou casa ..., pratica atos de utilização e fruição do imóvel, que descreve, sem oposição e sendo reconhecida por todos como legitima proprietária do imóvel, pelo que adquiriu o direito de propriedade sobre o imóvel por usucapião.

Em sede de reconvenção peticiona que se declare que adquiriu o terreno e imóvel por usucapião; que se reconheça a ré como dona e legítima proprietária do terreno e imóvel descrito nos autos; que se cancele o registo realizado pela autora em 26.05.2003 e que se ordene o registo a favor da ré na data de 30 de setembro de 1983.

A Autora apresentou réplica, impugnando a matéria de facto alegada na reconvenção e apresentando outra versão dos factos, alegando que a casa foi por si, autora, construída nos anos de 1983 a 1987, tendo gasto na sua execução, em materiais e mão de obra, pelo menos 1.581.991$00, e que a ré sempre soube que o imóvel era propriedade da autora e que o uso da casa lhe estava a ser facultado em virtude das suas dificuldades económicas.


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Realizado o julgamento, foi proferida sentença que julgou a ação procedente, condenando a ré AA a reconhecer a autora como proprietária do prédio situado no lugar ..., freguesia ..., concelho de Vila Nova Gaia, descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia, sob o nº ... e inscrito na matriz sob o artigo ..., e a entregar à autora o prédio livre de pessoas e bens, e que julgou a reconvenção improcedente, absolvendo a autora/reconvinda dos pedidos reconvencionais formulados.

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Inconformada com a sentença, a ré/apelante AA interpôs recurso de apelação, apresentando as seguintes conclusões:

1 - O Tribunal a quo julgou, de forma incorrecta, a matéria de facto dos autos e efectuou uma errada aplicação do direito à matéria de facto, a qual deveria ter conduzido, ao contrário do que sucedeu, à absolvição da Ré Recorrente.

2 - A Sentença proferida incorre em contradição entre factos provados, que não poderá subsistir.

(…)

15 - Como ficou demonstrado nos artigos 5.º a 35.º das presentes alegações, não podia o Tribunal a quo ter considerado como provados os factos provados 7., 8., 13. e 17. da Sentença.

16 - Porquanto, não podia o Tribunal a quo ter considerado como provados os factos provados 11. e 13. da Sentença

17 - Deve, portanto, a matéria de facto ser alterada, passando os factos provados 11. e 13. da Sentença para o elenco dos factos não provados.

18 - A factualidade vertida nos pontos 7., 8., 10. e 17. dados como provados, deverão ser alterados, passando, em consequência, a constar dos factos seguintes:

-“7. Em agosto de 1987 a Autora, na prossecução do seu objeto social, cedeu de forma gratuita à Ré, o terreno que veio a ser designado como n.º 2 para construção de uma casa nos imóveis doados”;

-“8. A casa edificada no terreno foi construída com materiais fornecidos pela Autora e materiais cedidos por terceiros, cuja construção foi suportada pelos moradores que as construíram, ainda que com alguma ajuda da Autora”;

-“10. A Ré passou a habitar tal casa desde, pelo menos, 1983 de forma gratuita, sem qualquer contrapartida”;

- “17. A Ré reside na habitação em causa de forma ininterrupta desde, pelo menos, 1983”.

19 - Estabelece o artigo 1311.º n.º 1 do Código Civil que, cumulativamente, o Autor deve fazer dois pedidos: «o reconhecimento do seu direito de propriedade e, a consequente restituição do que lhe pertence».

20 - Sendo os pedidos cumulativos, de acordo com o escopo da associação e de tudo o que foi referido pelo representante da Autora, o segundo pedido – «restituição do que lhe pertence» – é contrário a tudo o que foi anteriormente referido.

21 - Sendo, portanto, os pedidos cumulativos, a falta de um deles leva à improcedência da acção de reivindicação.

22 - A Autora, aquando da entrega das casas às famílias carenciadas, sempre o fez com o intuito das mesmas (famílias) lá residirem sem qualquer prazo associado.

23 - O requisito presente no artigo 1311.º n.º 1 para restituição da coisa que lhe pertence não poderá, consequentemente, proceder.

24 - Os terrenos foram doados por um casal de benfeitores, cuja intenção era doar esses terrenos directa e gratuitamente a pessoas necessitadas.

25 - Quem escolheria as pessoas a quem seriam atribuídos os lotes seria a paróquia, uma vez que tinha um conhecimento mais profundo das necessidades das pessoas residentes na paróquia.

26 - Sem que os beneficiários tivessem conhecimento, tais terrenos foram doados à Autora.

27 - Facto esse que só foi do conhecimento das pessoas a quem foram atribuídas as casas muitos anos mais tarde, quando a Autora os interpelou para legalização das casas, afirmando que as mesmas lhes pertenciam.

28 - As casas, na sua grande maioria foram construídas pelos próprios beneficiários.

29 - Sendo que a Autora disponibilizava alguns materiais que se destinavam a todas as habitações que estavam a ser construídas, sendo utilizadas por todos os beneficiários.

30 - Em momento algum a associação construiu as casas todas, conforme refere;

31 - Aliás, como decorre dos depoimentos, a associação não tinha meios financeiros para tal.

32 - Apesar da existência de alguns benfeitores que contribuíam com materiais, a sua grande maioria era adquirida, dada ou oferecida pelos beneficiários das casas, por seus familiares e amigos.

33 - Que para além da contribuição com materiais também ajudavam na construção das habitações.

34 - Tais habitações eram atribuídas às pessoas necessitadas, que as habitavam enquanto fossem vivas, ou seja, vitaliciamente, uma vez que à sua atribuição não foi estabelecido qualquer prazo.

35 - A associação cedia a casa vitaliciamente – sem qualquer tipo de prazo – conforme referido pelo representante da associação.

36 - Só após a morte dos beneficiários é que as casas revertiam novamente para a associação.

37 - O tribunal a quo ao condenar a Ré recorrente a entregar à associação a habitação livre de pessoas e bens não teve em consideração o desiderato da associação.

38 - Logo, não poderia em momento algum condenar a ré recorrente a abandonar a casa.

39 - A Ré exerceu durante mais de 15 anos a posse legítima do terreno em que construiu a sua habitação.

40 - Durante anos foi construindo a sua casa à frente de todos e sem que alguém da associação Autora colocasse em causa tal direito.

41 - A Ré durante mais de 15 anos exerceu de forma reiterada os poderes de facto sobre o bem.

42 - De forma ininterrupta e contínua, sem a oposição de ninguém e à vista de toda a gente.

43 - Pelo que deverá ser admitida a usucapião alegada pela Ré/Recorrente.

44 - Ainda que assim não se conceda, a Autora alega a existência de um comodato.

45- O contrato de comodato, pressupõe a obrigação de restituir a coisa móvel ou imóvel.

46 - No decorrer das declarações de parte do representante da Autora referiu que «foi realizado uma espécie de comodato» em que não existia qualquer prazo para entrega da coisa.

47 - Aliás, confirmado por várias testemunhas do Autor em que declararam que as famílias carenciadas viveriam nas habitações construídas durante toda a sua vida, sendo que existia a possibilidade de as mesmas se transmitirem de pais para filhos.

48 - Não poderá, portanto, proceder a disposto no n.º 2 do artigo 1137.º C.C..

49 - Face ao exposto, resulta dos autos não se encontrarem preenchidos os pressupostos essenciais e cumulativos da acção de reconhecimento/reivindicação conforme disposto no artigo 1311.º C.C..

50 - Indeferindo, desse modo, a entrega da habitação por parte da Ré/Recorrente à Autora.

51 - E concedendo à Ré/Recorrente a possibilidade de habitar a referida habitação até ao final dos seus dias.

52 - Com a sua decisão, violou o Tribunal a quo o disposto nos artigos 1311.º n.º 1 e 1137.º n.º 2, ambos do Código Civil.

Conclui a apelante nos seguintes termos:

a) Ser revogada a douta sentença proferida em 1.ª instância;

b) Admitir como provada a usucapião alegada pela Ré/Recorrente na sua Contestação;

c) Reconhecer a Ré/Recorrente como dona e legítima proprietária do imóvel descrito nos autos;

d) Ser julgada improcedente por falta de cumulação dos requisitos para a reivindicação e consequente entrega da habitação peticionada pelo Autor;

e) Seja declarada a possibilidade da Ré/Recorrente residir na habitação enquanto for viva, conforme intenção e escopo da Associação, ora Autora.

A autora/apelada apresentou resposta às alegações, defendendo, em síntese:

– A rejeição do recurso por incumprimento pela apelante do ónus que sobre si impende, atento o disposto no art. 640.º do Cód. Proc. Civil, ao apresentar conclusões, longas, confusas e contraditórias e não cumprindo com o ónus de especificar os concretos pontos em que funda a sua discordância;

– a manutenção da decisão quanto à matéria de facto, pelo valor probatório atribuído pelo tribunal a quo à prova documental junta que não foram impugnados e que foram olvidados no recurso, sustentando os meios de prova produzidos em julgamento a matéria de facto considerada na decisão recorrida;

– a manutenção da subsunção jurídica efetuada na decisão recorrida.

Conclui pela improcedência do recurso.

Foi admitido o recurso, tendo sido alterado o efeito devolutivo que lhe havia sido atribuído pelo tribunal a quo para efeito suspensivo da decisão apelada.

Após os vistos legais, cumpre decidir.

II. Objeto do recurso

Face às conclusões das alegações de recurso, são as seguintes as questões a apreciar:

1. Se estão preenchidos os requisitos de admissibilidade do recurso quanto à impugnação da decisão sobre a matéria de facto e, em caso afirmativo, apreciação da impugnação da matéria de facto.

2. Aquisição pela ré da propriedade do imóvel – lote ... – por usucapião.

3. Não preenchimento dos pressupostos cumulativos para a procedência da ação de revindicação quanto à restituição da casa, por a ré ter o direito de nela viver vitaliciamente, atenta a finalidade do comodato invocado pela autora, não sendo aplicável o regime do n.º 2 do artigo 1137.º Cód. Civil.

III. Apreciação dos fundamentos do recurso

1. Impugnação da decisão sobre a matéria de facto

Arguiu a apelante a existência de erro no julgamento da matéria de facto provada, defendendo que o tribunal a quo não podia ter considerado provados os factos constantes dos pontos 7., 8., 11., 13. e 17. dos factos provados, indicando nas conclusões do recurso que devem ser:

a)  considerados não provados os factos 11. e 13.;

b) alterados os factos dos pontos 7., 8., 10. e 17., para a redação que aí indica.

O modo de interposição do recurso está previsto no art. 637.º do CPC, resultando da leitura conjugada do n.º 2 deste art. 637.º com o disposto nos arts. 635.º, n.º 3, 636.º e art. 639.º, todos do Cód. Proc. Civil, no que concerne à delimitação objetiva do âmbito do recurso, que são as conclusões constantes das alegações de recurso (integrantes do/apresentadas com o requerimento de interposição de recurso) que «(…) delimitam a área de intervenção do tribunal ad quem, exercendo uma função semelhante à do pedido, na petição inicial, ou à das exceções, na contestação. Salvo quando se trate de matérias de conhecimento oficioso que possam ser decididas com base nos elementos constantes do processo e que, além disso, não se encontrem cobertas pelo caso julgado, as conclusões delimitam a esfera de atuação do tribunal. (…)».

Assim, e uma vez que só estes concretos pontos da matéria de facto são referidos nas conclusões, é este – e só este – o objeto do recurso quanto à impugnação da decisão de facto, não cabendo aqui apreciar as referências efetuadas nas alegações de recurso (ver arts. 40.º a 43.º do corpo das alegações), de resto, sem extração de qualquer consequência, à existência de erro na apreciação da matéria de facto quanto a factualidade considerada não provada.

1.1. (In)admissibilidade do recurso

Defende a apelada a rejeição do recurso por incumprimento pela apelante do ónus que sobre si impende, nos termos do art. 640.º do Cód. Proc. Civil. Como fundamento invoca laconicamente que a apelante “não cumpre com o ónus de especificar os concretos pontos em que funda a sua discordância”.

Vejamos.

Dispõe o art. 640.º do CPC sobre os Ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto nos seguintes termos:

1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:

a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;

b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.

3 - O disposto nos n.os 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º.

O art. 640.º do CPC estabelece como consequência da falta de cumprimento do determinado nas diversas alíneas do n.º 1 a rejeição do recurso quanto à impugnação da decisão sobre a matéria de facto.

Nas conclusões das alegações de recurso apresentadas – pontos 15 e 16 das conclusões –, a apelante identificou os factos que considera erradamente julgados: “não podia o Tribunal a quo ter considerado como provados os factos provados 7., 8., 13. e 17. da Sentença”; “não podia o Tribunal a quo ter considerado como provados os factos provados 11. e 13. da Sentença”, assim cumprindo o ónus previsto no art. 640.º, n.º 1, al. a), do Cód. Proc. Civil.

E indicou – pontos 17 e 18 das conclusões – a decisão que entende que dever ser proferida, assim cumprindo o ónus previsto no art. 640.º, n.º 1, al. c) do Cód. Proc. Civil.

De igual modo indicou – pontos 3 a 14 das conclusões – os meios probatórios que entende imporem a alteração da decisão de facto, assim cumprindo o ónus previsto no art. 640.º, n.º 1, al. b) do Cód. Proc. Civil.

Improcede a rejeição do recurso pretendida pela apelada com fundamento no incumprimento pela apelante dos ónus previstos no art. 640.º do CPC.

1.2. Apreciação da impugnação da decisão sobre a matéria de facto

A apreciação da impugnação efetuada quanto à decisão sobre a matéria de facto – restrita, como acima explicitado sob o ponto 1., à matéria de facto considerada provada – implica que se tenha em consideração a decisão proferida pelo tribunal a quo sobre a matéria de facto considerada provada.

É o seguinte o teor da fundamentação de facto da sentença recorrida, na parte que releva para o conhecimento do objeto do recurso quanto à decisão sobre a matéria de facto:

a) – Factos Provados

1. A Autora uma instituição particular de solidariedade social, sem fim lucrativo, sob a forma de associação de solidariedade social, reconhecida como pessoa coletiva de utilidade pública. (documento nº 1 junto com a petição inicial, que se dá por reproduzido)

2. Tem por objeto o apoio à família nas condicionantes, material, social e espiritual, designadamente, no apoio de bens alimentares, medicamentos e apoio na construção de habitações.

3. Por escritura de doação outorgada no dia 30 setembro de 1983, BB e mulher CC declararam doar à Autora os seguintes prédios:

- Uma leira de mato e pinhal, chamada “...”, situada no lugar ..., freguesia ..., concelho de Vila Nova Gaia, inscrita na matriz sob o artigo ...;

– Leira de mato e pinhal, situado no mesmo lugar ..., da referida freguesia inscrita na matriz sob o artigo .... (documento nº 2 e 3 juntos com a petição inicial, que se dá por reproduzido)

4. Os prédios encontram-se descritos na 2ª Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia sob o nº ... e inscritos a favor da Autora desde 26.05.2003. (documento nº 4 junto com a petição inicial, que se dá por reproduzido)

5. Os prédios foram doados à Autora com vista à prossecução do seu objeto.

6. Posteriormente, a 17.09.2012 a Autora procedeu ao loteamento urbano dos prédios que lhe foram doados.

7. Em agosto de 1987 a Autora, na prossecução do seu objeto social, cedeu de forma gratuita à Ré, a casa nº ... construída nos imóveis doados.

8. A casa edificada no terreno foi construída com materiais fornecidos pela Autora e materiais doados por terceiros, no valor global de 981.725$00.

9. A casa nº ..., encontra-se inscrita na matriz sob o artigo .... (documento nº 5 junto com a petição inicial, que se dá por reproduzido)

10. A Ré passou a habitar tal casa desde agosto de 1987 de forma gratuita, sem qualquer contrapartida.

11. De escrito intitulado de “Declaração de Compromisso”, datado de 14 de agosto de 1987, assinado pela Ré e DD consta “comprometemo-nos a conservar a casa em bom estado, a não fazer nenhuma alteração sem consentimento da direcção do A..., a usa-la apenas para a família (pais e filhos) (…) a colaborar com a Associação A... a quem pertence a casa.”. (documento nº 6 junto com a petição inicial, que se dá por reproduzido)

12. Os outorgantes, na data da assinatura, entregaram à Autora cópia dos seus Bilhetes de Identidade.

13. A Ré sabia que a casa pertence à Autora.

14. Autora e Ré encetaram negociações com vista à aquisição do imóvel pela Ré, não tendo as partes logrado obter acordo.

15. A Autora atua sobre os imóveis como coisa sua, à vista e com conhecimento de todos, sem oposição de ninguém, na convicção de ser a sua dona.

16. Aquando da doação, o intuito dos doadores era de que esses terrenos servissem para criar condições de habitação a famílias carenciadas.

17. A Ré reside na habitação em causa de forma ininterrupta desde 1987.

18 Em 08 de março de 1996 foi inscrito na matriz sob o artigo ..., prédio urbano sito na Rua .... (documento nº 3 junto com a contestação, que se dá por reproduzido)

19. A Ré procedeu a pagamento de IMI de imóvel inscrito na matriz sob o artigo ... de 2004 a 2014.

20. Por declaração datada de 28.03.2003, EE e a Ré declaram autorizar a Autora a requerer em seu nome contador de água. (documento nº 15 junto com a contestação, que se dá por reproduzido)

21. Da ata nº ... da Direção da Autora consta “Na casa que será para o cunhado da FF falta a electricidade e os estores. Ficou decidido nesta reunião que se pedisse um orçamento para estes acabamentos”. (documento nº 3 junto com requerimento de 11.02.2022)

22. A Autora tinha a prática de, previamente, à entrega de qualquer casa solicitar aos novos moradores a assinatura de um documento que provisoriamente titulasse a cedência.

23. No andar / sótão da referida casa ..., incluindo o logradouro norte, uma parte de terreno a quintal e uma cave, vivia a irmã da Ré, de nome FF, os quais, entregaram à Autora o espaço onde viveram.

24. Após a entrega passou a Autora a ocupar e a utilizar todo esse espaço para exercício da sua atividade, que destinou a armazém, onde passou a recolher e distribuir géneros alimentares, materiais de construção e equipamentos domésticos diversos, para distribuição às famílias apoiadas e onde ainda guarda diversos materiais e equipamentos, possuindo as chaves de acesso aos portões das duas entradas e ao andar/sótão.

25. Foi a Autora quem custeou o pagamento dos ramais de ligação às casas.

1.2.1. Modificabilidade da decisão de facto

Sobre a modificabilidade da decisão de facto no âmbito do recurso de apelação, dispõe o n.º 1 do art. 662.º do Cód. Proc. Civil que “A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.”

A reforma de 2013 veio consagrar um modelo no qual a Relação reaprecia a prova sobre os pontos impugnados com a mesma amplitude da apreciação da prova pela 1.ª instância, em termos de formação, por parte do tribunal de recurso, da sua própria convicção para efeitos de apreciação dos fundamentos do recurso sobre a matéria de facto. Neste sentido vai a jurisprudência consolidada do STJ, conforme resulta, além de outros, dos recentes Acórdãos do STJ de 09-02-2021 (processo n.º 26069/18.3T8PRT.P1.S1), de 08-03-2022 (processo n.º 656/20.8T8PRT.L1.S1) e de 24-10-2023 (processo n.º 4689/20.6T8CBR.C1.S1) [1] e anteriores decisões do STJ citadas nos arestos referidos.

Não se questionando, após a reforma de 2013, que «(…) a reapreciação não se contenta com a sindicância da convicção formada na primeira instância com o objectivo de apenas debelar erros grosseiros na valoração da prova, assente numa hipervalorização do princípio da livre apreciação (…) e da imediação por parte do juiz a quo, devendo ultrapassar o mero controlo formal da motivação da decisão da 1.ª instância em matéria de facto. [e que] Pelo contrário, o pleno exercício dos poderes de reapreciação da matéria de facto da Relação exige a formação de uma convicção própria, obtida activa e criticamente em face dos elementos probatórios indicados pelas partes ou mesmo adquiridos oficiosamente. (…)»[2] , entendemos que o poder/dever previsto no n.º 1 do art. 662.º do CPC, de “alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa” significa que tal alteração apenas pode e deve ser efetuada quando tal for necessário, ou seja, quando, face aos meios de prova existentes no processo, se constate/conclua pela falta de suporte probatório explicativo e justificativo da descrição factual dos eventos efetuada na sentença recorrida.

Com efeito, a garantia do duplo grau de jurisdição da matéria de facto não subverte o princípio da livre apreciação da prova que vigora e se aplica, designadamente, no âmbito do julgamento em primeira instância, e nos termos do qual  “O juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto”, excecionando-se deste princípio apenas “os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, nem aqueles que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes” – art. 607.º, n.º 5, do Cód. Proc. Civil.

Apreciando.


a) - Consideração como não provada da matéria de facto elencada nos pontos 11. e 13. dos factos provados

Defende a apelante que os pontos 11. e 13. dos factos provados deviam ter sido considerados não provados.

– Quanto ao ponto 11. dos factos –

Consta do ponto 11. dos factos provados:

11. De escrito intitulado de “Declaração de Compromisso”, datado de 14 de agosto de 1987, assinado pela Ré e DD consta “comprometemo-nos a conservar a casa em bom estado, a não fazer nenhuma alteração sem consentimento da direcção do A..., a usa-la apenas para a família (pais e filhos) (…) a colaborar com a Associação A... a quem pertence a casa.”. (documento nº 6 junto com a petição inicial, que se dá por reproduzido).

Nas alegações de recurso, após elencar, no art. 25.º do corpo das alegações, a matéria de facto que o tribunal a quo considerou provada no ponto 11. dos factos provados, transcreve a apelante:

– No art. 26.º das alegações, a seguinte parte do depoimento da testemunha GG:

10m:30 Advogado: Não tem conhecimento disso, mas tem conhecimento daquele formulário? Daquelas declarações? Testemunha: Sim, sim. Daquelas declarações que existiam.

15m19: Advogado: E essas casas depois transmitiam-se de pais para filhos? Tem algum conhecimento dessa situação? Testemunha: Isso agora depende de direcção para direcção, direcções que concordavam que se transmitisse, se calhar, assim como outras direcções que entendiam não deviam transmitir. Depois as direcções mudavam. (2) O que ficou combinado naquele tempo ali2 não sei. Sei que eram para alojar pessoas necessitadas (2).

– No art. 28.º das alegações, a seguinte parte do depoimento da testemunha HH:

21m:49s Advogado: Falou-se que as pessoas que para iam habitar tinham que assinar uma declaração. Referiu que não sabe. Uma vez que está desde o início da associação tem ideia se as habitações que eram cedidas às famílias carenciadas se depois se transmitiam de pais para filhos ou como é que se processava essa situação, ou seja, a habitação que foi cedida à D. AA?

Testemunha: Era ao casal.

Advogado: E o casal depois falecendo as casas revertiam novamente para a associação?

Testemunha: Claro, claro.

– No art. 29.º das alegações, a seguinte parte do depoimento da testemunha II:

6m:35s Advogado: Falou-se aqui de uma declaração que era assinada por todas as famílias que tinha direito aos tais terrenos para depois construir, tem conhecimento se essas declarações eram assinadas pelos beneficiários?

Testemunha: O meu pai nunca assinou nenhuma porque eu não deixei (2). O Dr. JJ foi a minha casa (2) para o meu pai assinar uns papeis e chamou por mim, e ele disse: olha está aqui do A... para eu assinar. E eu: para assinar o quê? Para assinar o terreno. E eu disse: o terreno foi-nos dado. Minha Sra. o terreno foi dado mas foi de boca.

Advogado: E relativamente à declaração da D. AA teve conhecimento?

Testemunha: Eu acho que ela, enganada pela irmã, acho que assinou um papel em branco.

Advogado: Não sabe o intuito?

Testemunha: O intuito não sei, mas sei que assinou mas enfoliada pela associação e pela irmã.

E, no art. 27.º das alegações, refere a apelante que «Destes depoimentos resultam que as testemunhas não tem um conhecimento concreto acerca dessas declarações, mas que era grande a probabilidade das pessoas a quem eram atribuídas as casas poderem ficar lá durante toda a vida – até à sua morte – inclusive que as mesmas pudessem ser transmitidas de pais para filhos

Como emerge da leitura da sentença recorrida, o tribunal a quo fundou a sua convicção quanto à matéria de facto do ponto 11., desde logo, no teor do documento n.º 6 junto com a petição inicial, documento esse “(…) que a Ré aceitou ter assinado […], embora tenha alegado que se encontrava em branco na altura em que o fez.” E esclareceu o tribunal a quo que  “(…) Tal versão não logrou criar convicção no tribunal nesse sentido uma vez que apenas foi relatada pela Ré em declarações de parte e não é compatível com a própria imagem gráfica do documento, do qual se verifica que o mesmo não foi só assinado, mas preenchido com o nome da Ré e marido e com identificação das suas datas de nascimento, perfeitamente enquadradas nos espaços em branco destinados a tal informação, sendo a letra de preenchimento em tudo idêntica à do marido da Ré. Da análise do documento verifica-se que os “dizeres” manuscritos e local em que se encontram são incompatíveis com preenchimento e assinatura de tal documento totalmente em branco com inserção posterior da parte datilografada. (…)”. Inatacável a convicção assim formada pelo tribunal a quo quanto à falta de credibilidade da versão apesentada pela ré da assinatura de uma folha em branco, ulteriormente preenchida com o texto datilografado que a integra.

As declarações das testemunhas acima transcritas em nada contrariam a matéria considerada provada – que é o facto de a autora ter assinado a declaração junta como doc. 6 – nem colocam em causa o juízo valorativo da prova produzida na formação da convicção quanto à referida factualidade.

Acresce que o legal representante da autora, nas declarações por si prestadas, deu conta das circunstâncias e razões pelas quais existiam tais declarações, esclarecendo que “Todos os moradores quando entram para as casas assinam uma declaração de compromisso em como reconhecem que é uma mera detenção” e que por isso a ré também a assinou. Confrontado com o referido documento 6, esclareceu que “O que está à máquina era a declaração tipo, declaração de compromisso. Era essa declaração que o senhor Padre KK fez e que usávamos para todas as casas. Eu presumo que … tem a data de 14 de agosto, presumo que terá sido no dia em que efetivamente lhe deram a chave da casa.”.

Também a testemunha GG, quando questionada sobre se a associação havia deliberado que os utentes antes de irem para a casa tinham que assinar uma declaração, não obstante ter dito que “Não assisti, não sou desse tempo”, acrescentou “Mas às vezes falava-se.”, e disse ainda que “Essas declarações existiam para os 3 bairros.” que o A... construiu (o da Rua ... era apenas um desses 3 bairros).

– Quanto ao ponto 13. dos factos –

Consta do ponto 13. dos factos provados:

 13. A Ré sabia que a casa pertence à Autora.

Nas alegações de recurso, após elencar, no art. 30.º do corpo das alegações, a matéria de facto que o tribunal a quo considerou provada no ponto 13. dos factos provados, transcreve a apelante:

– No art. 31.º das alegações, a seguinte parte do depoimento da ré AA:

7m:45s – MM. Juiz: Mas então sabe que em 83 houve uma escritura de doação à instituição, não às pessoas? Isso não foi depois da morte dos senhores.

Ré: não chegou a ser feita a nós, não chegou a ser feita a nós individualmente.

MM. Juiz: Então a Senhora sabia disso? Na altura quando foi essa situação dos terrenos não sabia que esses senhores tinham feito uma doação à instituição dos terrenos e que os terrenos estavam em nome da instituição?

Ré: Oh Sra. Dra. Juíza, eu não tinha esse conhecimento. Eu achava, como ainda penso, que o grupo como assim me foi apresentado, o grupo da associação que nos iria ajudar. Agora, se estava ou não no nome deles eu não me preocupei com isso, porque eles é que me puseram à vontade para nós começarmos a construir. Foi uma coisa, sei lá, foi uma coisa por inocência, por falta de conhecimento.

9m:12s – MM. Juiz: Os senhores não conheciam os terrenos, nem estavam nos terrenos ainda? Ou já estavam a construir nos terrenos?

Ré: Já estávamos a começar a construir.

MM. Juiz: então os senhores estavam a construir num terreno que não lhes pertencia? Não era?

Ré: Não. Mas que nos foi dito pelo Sr. Padre KK e pelo grupo …”.

– No art. 32.º das alegações, a seguinte parte do depoimento da testemunha II:

3m:20s – Advogado: Mas antes disso, a doação? Testemunha: A doação foi dada pelo Sr. BB e a Sra. CC. Advogado: Mas a quem?

Testemunha: A nós.

Advogado: Às famílias carenciadas?

Testemunha: Exatamente.

Advogado: Não à associação?

Testemunha: Não, na altura não. Depois é que passou, não me lembro o ano mas depois foi doada a cada família.

O tribunal a quo fundamentou a sua convicção quanto à decisão de facto constante do ponto 13. dos factos provados nos seguintes termos:

«(…) Da análise das comunicações entre as partes resulta, ainda, de forma clara a intenção da Ré de adquirir o imóvel, o que, em conciliação com a demais prova a que infra se fará referência, contribuiu para a convicção do tribunal de a Ré saber desde sempre que o imóvel não lhe pertencia, mas que apenas lhe tinha sido cedido pela Autora para usar como habitação do seu agregado familiar em virtude das dificuldades económicas do mesmo. De facto, ninguém se propõe a pagar o que já é seu.

(…)

Em sede de declarações de parte a Ré, apesar de declarar que o Padre KK lhe tinha comunicado que um casal tinha uma leira para lhes dar e que os terrenos se destinavam a ser doados às pessoas e não à instituição, mostra ter conhecimento que o prédio não lhe pertencia; que foi a instituição que fez o projeto de construção; que determinou a limpeza do terreno e as construções que iriam ser feitas e que consistiam em casas todas iguais e que lhe foi comunicado que não podia vender a casa. Quanto à construção referiu que foi a mesma e família que construiu, o que não foi corroborado por outra prova, admitido que a Autora ajudou com fornecimento de materiais.

Das declarações em audiência, declaração junta pela Autora e comunicações entre as partes resulta de forma clara que a Ré sabia que a casa não era sua e que lhe foi entregue em virtude das dificuldades económicas que, à data, o agregado enfrentava.

(…)

A prova testemunhal assumiu especial relevância para a convicção formada quanto à matéria de facto relacionada com o conhecimento, pela Ré, de que a casa não lhe pertence e de a mesma nunca ter agido na convicção de ser a sua proprietária.

Dentro deste meio de prova destacou-se, pelo conhecimento dos factos, honestidade, segurança e sinceridade, o depoimento de LL, que integra a associação desde o início e relatou que acompanhava o Padre KK nas visitas aos mais carenciados para ajudar com bens alimentares; que em data anterior à doação conheceram família que vivia em condições de total miséria; que tendo ficado com muita pena de tal família e sabendo que D. CC (a doadora) tinha dado um pequeno terreno a um caseiro da mesma, abordou a mesma no sentido de lhe pedir um pequeno terreno para alojar a família em causa; que a mesma acedeu a dar-lhe os prédios descritos nos factos provados e que como os mesmos eram suficientemente grandes para fazer mais do que uma habitação, a Autora decidiu “fazer talhões para os pobres” e construir mais de uma casa. Foi perentória a afirmar que a casa em causa foi de inicio contruída para uma irmã da Ré, que tinha grandes dificuldades e não tinha um braço e já depois de a mesma já estar instalada é que pediu para a irmã ir para a casa ao que a Autora acedeu e construiu um piso superior, que passou a ser habitado pela irmã da Ré. Mais refere que quando esta irmã da Ré deixou a casa, foi a Autora quem ocupou tal piso, usando-o até hoje como arrecadação. Afirma de forma clara que foi tudo construído para a Autora e pela Autora com ajuda de doações de terceiros, admitindo que as famílias que iam ocupar as casas e familiares ajudavam, como mão de obra, na construção.

GG, técnico superior da autarquia, não demonstrou conhecimento direto dos factos anteriores a 1993 por só nessa data ter passado a colaborar com a Autora, foi, no entanto, perentório a afirmar que a associação construiu três bairros e desde sempre se considerou dona das casas construídas.

No que se refere à prova testemunhal da Ré é de relevar que, a testemunha II, não demonstrou conhecimento direto dos factos relacionados com a Ré mas apenas que, no caso dos pais da testemunha, que viviam na casa ..., foram os mesmos que construíram e custearam a construção de tal casa, tendo a testemunha, em 2021, adquirido o terreno à Autora, admitindo que a mesma apenas lhe peticionou o preço do terreno e não da construção por saber que a construção tinha sido levada a cabo pelos seus pais.

As demais testemunhas admitiram que a doação dos terrenos foi à Autora e que a mesma entregava as casas a famílias para lá viveram, mas que sabiam que não as podiam vender. A testemunha MM afirmou expressamente que em tempos foi pedir uma casa a LL e que esta lhe explicou que a casa nunca seria sua, mas que poderia viver na mesma enquanto fosse viva.

Ponderada toda a prova produzida resultou convicção absolutamente segura de os prédios em causa nos autos terem sido doados à Autora, para construir habitação social, sendo a mesma que escolhia as famílias que iam habitar as casas em função das necessidades económicas que apresentavam, que foi a Autora que elaborou divisão do terreno, projeto de construção e que procedia a construção com materiais adquiridos por si ou a si doados e com a ajuda das próprias famílias, sendo as mesmas entregues às famílias para aí residirem enquanto os membros do casal fossem vivos, tendo as mesmas plena consciência que a casa pertencia à Autora. (…)».

O tribunal a quo, como resulta da leitura da motivação da sua convicção acima transcrita, deu conta, de forma lógica e fundamentada, das razões subjacentes à formação da mesma, analisando crítica e conjugadamente os diversos meios de prova produzidos, sendo que, efetuada a audição integral da gravação do julgamento, não merece qualquer reparo a avaliação crítica dos meios de prova determinante da decisão proferida pelo tribunal a quo, sendo de acrescentar que não se vislumbra que as transcrições dos dois depoimentos supra efetuadas (ou qualquer outras das transcrições efetuadas pela apelante ao longo das alegações de recurso)  imponham a pretendida consideração dos factos vertidos no ponto 13. como não provados.

Improcede, deste modo, a pretensão da apelante de consideração dos factos 11. e 13. como não provados.
b) – Alteração da matéria de facto considerada provada sob os pontos 7., 8., 10. e 17. dos factos provados

– Quanto ao ponto 7. dos factos –

Pretende a apelante a alteração do ponto 7. dos factos provados [Em Agosto de 1987 a Autora, na prossecução do seu objecto social, cedeu de forma gratuita à Ré, a casa n.º ... construída nos imóveis doados.] para a seguinte redação:

7. Em agosto de 1987 a Autora, na prossecução do seu objeto social, cedeu de forma gratuita à Ré, o terreno que veio a ser designado como n.º 2 para construção de uma casa nos imóveis doados.

Não existe qualquer fundamento para a pretendida alteração, como resulta da leitura da motivação da convicção da decisão de facto efetuada pelo tribunal a quo (em parte já acima transcrita).

A versão que a apelante pretende ver considerada provada é infirmada, desde logo, por diversa prova documental junta aos autos, a qual corrobora que o que sucedeu foi a construção no lote ... de uma casa que se destinava, inicialmente, à irmã da ré (que se chamava FF, como resultou de forma unânime da prova produzida), tendo, no entanto, sido entregue à ré o R/C da construção aí efetuada e à irmã desta o sótão dessa habitação. Tais meios de prova documental são:

Ata n.º ... da assembleia geral extraordinária da associação autora, realizada em 26 de setembro de 1983 (doc. 1 junto ao processo com a resposta apresentada pela autora em 11-02-2022, Ref. 31342278), realizada para “deliberar sobre a aceitação, para a referida Associação, de um terreno de mato e pinhal, sito no lugar ..., freguesia ..., (…) que se destina à construção de casas para famílias de poucos recurso”, na qual foi “deliberado conceder ao director da referida Associação, Sr. NN   (…) autorização para outorgar e aceitar a doação do referido terreno que vão fazer BB e sua esposa D. CC (…)”;

Ata n.º ... da reunião da direção da associação autora realizada no dia 7 de março de 1987 (doc. 3 junto ao processo com a resposta apresentada pela autora em 11-02-2022, Ref. 31342278), na qual consta que “Foi dito nesta reunião que a FF foi ontem (seis de Março) habitar a sua nova casa, que está praticamente pronta.

Na casa que será para o cunhado da FF falta a eletricidade e os estores. Ficou decidido nesta reunião que se pedisse um orçamento para estes acabamentos.

Ata n.º ... da reunião da direção da associação autora realizada no dia 16 de Julho de 1987 (doc. 5 junto ao processo com a resposta apresentada pela autora em 11-02-2022, Ref. 31342278), na qual consta que “A irmã da FF veio pedir para ir para a casa nova. Foi despejada da casa onde vivia. Ficou decidido que brevemente ela viria para a casa de ....

Ficou decidido que ninguém entrará nas casas sem assinar um documento. Nesse documento também constarão algumas normas sobre a conservação das casas. (…)”.

Estes documentos corroboram os depoimentos prestados pelas testemunhas LL – questionada esta testemunha se a casa onde vive a ré havia sido construída nessa altura, respondeu ‘Foi construída para a irmã que não tinha um bracinho, a FF.’; ´A certa altura tinha uma irmã, sei que a FF cedeu essa casa à irmã e fez-se a parte de cima para a FF habitar’; ´Foram os samaritanos que fizeram, havia um senhor que já morreu, o Sr, NN, e outro senhor que também já morreu eram os encarregados das obras. O material pedíamos, o meu irmão também andou lá, ajudou. A AA não tinha onde estar, como a casa era grande aumentou-se.’ – e HH –;  questionada pelo advogado quanto ao facto de ter referido que a casa havia sido construída para a FF e que esta cedeu a casa à autora, respondeu que ‘A casa foi feita para uma irmã, a FF e depois esta AA foi posta fora e a irmã cedeu a casa a AA e o A... aumentou para cima para a FF também ficar lá. A intenção era fazer bem. A FF cedeu à AA a casa que era para ela. Aumentaram em cima e a FF ficou lá.’; quando questionado se a casa não tinha sido atribuída as duas, respondeu ‘De maneira nenhuma. Quando a casa estava pronta a FF falou se podia a irmã ir para lá. A casa estava pronta, só que por cima, não tinha … tinha que se aumentar as obras para a FF ficar por cima e ceder a casa à irmã.

De tais meios de prova resulta corroborado que o que a associação autora cedeu à aqui ré foi o R/C da casa construída no lote ..., e não o terreno onde a casa foi edificada.

Resultou ainda do depoimento da testemunha GG (e das declarações de parte do representante da autora) que, atualmente, e desde que a irmã da ré, chamada FF, saiu da parte de cima da casa, aquele sótão é ocupado pela associação, que o utiliza como armazém e para as finalidades da associação, não tendo sido produzida qualquer prova contrária a estes depoimentos quanto à atual utilização dessa parte da casa (sótão) que foi ocupada pela irmã da ré até 2003. Tal situação também não é compatível com a versão que a ré pretende que seja considerada provada.

Uma redação mais conforme com os meios de prova que foram produzidos passa, assim, pela precisão de que o que foi cedido de forma gratuita à ré em 1987 foi o rés do chão da casa n.º ... (e não a totalidade da casa, uma vez que o sótão da casa foi cedido para ser ocupado pela irmã da ré, e atualmente é ocupado pela associação).

Assim, improcedendo a alteração requerida pela apelante, determina-se, no entanto, ao abrigo do disposto no art. 662.º, n.º 1, do Cód. Proc. Civil, que o ponto 7. dos factos provados passe a ter a seguinte redação:

7. Em Agosto de 1987 a Autora, na prossecução do seu objecto social, cedeu de forma gratuita à Ré, o R/C da casa n.º ... construída nos imóveis doados.

– Quanto ao ponto 8. dos factos –

Pretende igualmente a apelante a alteração do ponto 8. dos factos provados [A casa edificada no terreno foi construída com materiais fornecidos pela Autora e materiais doados por terceiros, no valor global de 981.725$00.] para a seguinte redação:

8. A casa edificada no terreno foi construída com materiais fornecidos pela Autora e materiais cedidos por terceiros, cuja construção foi suportada pelos moradores que as construíram, ainda que com alguma ajuda da Autora.

Afigura-se-nos que a pretensão da apelante será fazer constar dos factos provados que foram os moradores das casas que as construíram, ainda que com alguma ajuda da autora.

A ré alegou na contestação/reconvenção o seguinte:

13.º -  A Ré em 1981/1982 deu início à construção da habitação em causa, onde ainda reside actualmente;

14.º - A Ré recorda-se perfeitamente que iniciou a construção antes da escritura de doação, uma vez que ajudava nessa construção ainda estando grávida;

15.º - Ora, em 1983 – data da escritura da doação – a filha já era nascida;

16.º - Bem como a referida habitação já tinha as paredes edificadas;

17.º - Tal construção foi totalmente efectuada pela Ré, seus familiares e amigos;

18.º - Em momento algum a Autora ajudou na construção;

19.º - Apenas em situações pontuais a Ré chegou a colocar areia, cimento e alguns tijolos num local de acesso a todas as famílias que se encontravam nessa situação para ajuda na edificação das habitações;

20.º - A Autora apenas colocou às suas expensas as janelas, portas e persianas da habitação da Ré.

O conjunto dos meios de prova produzidos não suporta tal versão apresentada pela ré na contestação. A testemunha LL deu conta da forma como conseguiu que o casal dono do pinhal doasse o terreno à associação autora: ‘Havia um casal que tinha uns poucos de filhos e não tinham alojamento. Eu pedi um bocadinho de terreno para construir a casa para a família. Falei com a D. CC (…). Estava cansada de pedir a junta e porque sabia que a D. CC tinha cedido terreno a uma caseira, fui pedir um pedaço de terreno para a casa n.º ... que era para essa família. Ela disse: eu dou-lhe o terreno todo. Telefonei logo para o Padre KK, fomos logo lá a casa dela dar os parabéns.’

E deu conta da subsequente atuação da associação e como foi efetuada a construção das casas: ‘Depois na organização do A... fez-se o terreno em lotes. (…) Dividiu-se a nível do A..., dividiu-se em talhões e começou-se a dividir para as pessoas que precisavam. (…) Tudo isto foi oferecido para a A... e foi feito com esmolas, ofertas para essas obras. (…) Foram os samaritanos que fizeram, havia um senhor que já morreu, o Sr, NN e outro senhor que também já morreu eram os encarregados das obras. O material pedíamos, o meu irmão também andou lá, ajudou. (…) Havia vizinhos que iam para lá fazer isto ou aquilo. Tudo a nível do A.... (…)’. Questionada se os moradores também colaboravam, respondeu ‘Sim, alguma coisa.’, em ‘mão de obra e ofertas’.

Do conjunto da demais prova produzida resultou que, efetivamente, as pessoas que iriam morar nas casas também andaram a colaborar e ajudar a associação na construção das mesmas, assim como vizinhos, amigos e familiares, ao nível da mão de obra.

Tal resultou da apreciação conjugada e crítica do depoimento da testemunha HH – ‘O A... cedia o terreno e eles também, eram pessoas que viviam da construção, rapazes novos, colaboravam (…) como as pessoas eram da construção, iam fazendo.’; da testemunha LL, já acima transcrito; da testemunha MM (‘Sempre ouvi dizer que os samaritanos que ajudou a construir mas eles também tinham que dar mão de obra e materiais. Agora também isso eu não sei porque não sabia, não tinha conhecimento. Agora isso também não sei. Mas ouvia dizer. Sei que vi familiares da Sr.ª. AA lá a construir, um tio, que andava lá a arranjar a casa de trolha, ainda me disse quando andava na construção da minha casa, andar lá o trolha, andar lá um cunhado meu também a fazer de carpinteiro, isso sim…  e o marido também a zelar pela casa, também a vê-lo lá a cuidar, assim a fazer os muros e essas coisas…’); da testemunha OO (‘mas eu confio no meu pai porque ele era carpinteiro e chegou a ir ajudar essas pessoas … Lembro-me perfeitamente de a minha mãe ficar chateada porque o meu pai ia ajudar os vizinhos da frente e chegava tarde para jantar’).

No entanto, a prova produzida não suporta a alegação de que toda a construção foi efetuada pela ré e família desta. Tal foi assim com os pais da testemunha II, mas não com a construção da casa do lote .... Afigura-se-nos, de resto, que o depoimento desta testemunha foi influenciado pela confusão entre a situação referente à construção da casa dos seus pais, onde a mesma vive, e a situação – distinta – da casa onde vive a ré.

O legal representante da autora, nas declarações de parte prestadas, deu conta da diferença de situações, quando questionado se havia um lote que havia sido cedido a uma família escolhida pelo casal de doadores: ‘Era a casa ... porque não entrou depois no nosso loteamento. No loteamento só entraram 6 lotes, portanto o terreno foi dividido em 6, em 6 lotes, e portanto foram construídas, à responsabilidade da associação foram construídas 5 habitações: A do lote ... que é da D. II, ou que era dos pais, não foi construída pela associação, e esse terreno já foi cedido, foi legalizado agora aos herdeiros, à herdeira D. II. As outras 5 foram feitas pela associação, logicamente, presumo com apoio pelo menos de algumas famílias, também não íamos fazer tudo e dar de mão beijada, mas foram sempre da responsabilidade da associação. Na compra de materiais, na procura da mão de obra o mais barata possível, de alguns associados também a trabalhar nas próprias casas, foram feitas casas para pobres, casas de habitação social, na medida das possibilidades, elas foram sendo feitas assim, com a ajuda de muitos benfeitores, de muitas empresas.’; questionado sobre quem construiu a casa onde vive a testemunha II, respondeu: ‘Foram os pais. A associação não teve qualquer intervenção. O único vínculo que tínhamos era relativamente à legalização do terreno, uma vez que o terreno fazia parte integrante de todo o terreno, e aquele terreno foi integrado no nosso loteamento como lote ....’. Situação diferente da ocorrida com a casa onde vive a ré: ‘Não, o lote ... não tem nada a ver … aliás havia uma indicação expressa nas atas que o lote ... a construção não era da responsabilidade da associação. Depois de legalizar todo o terreno, ou melhor o loteamento, depois ceder-lhes, pagando eles as despesas, claro. Foi o que D. II fez.’.

Quanto ao valor considerado no ponto 8., tal resulta da apreciação conjugada das declarações de parte prestadas pelo representante da autora com o documento 2 junto com a réplica apresentada pela autora (em 11-02-2022, ref. 31342278) consistente na escrituração efetuada pelo tesoureiro da associação autora com o que foi gasto na casa ..., tendo no final os totais do que foi gasto: ‘Relativamente à casa ..., o que o tesoureiro diz e a direção aprovou na altura, na  casa ... gastamos até 85, 981.725 mil escudos’.

O que consta provado não é, assim, infirmado pelos meios de prova produzidos. Admite-se, no entanto, que possa ser aditado, porque conforme com o que resultou do julgamento, a colaboração de moradores e terceiros ao nível de mão de obra no processo de construção das habitações.

Assim, procede apenas parcialmente a alteração pretendida, passando o ponto 8. dos factos provados a ter a seguinte redação:

8. A casa edificada no terreno foi construída com materiais fornecidos pela Autora e materiais doados por terceiros, no valor global de 981.725$00, tendo familiares, amigos e vizinhos da ré auxiliado na construção da casa, ao nível de mão de obra.

– Quanto aos pontos 10. e 17. dos factos provados –

Pretende a apelante, por fim, a alteração da data a partir da qual o tribunal a quo considerou que ocorreu a ocupação/habitação pela ré da casa para o ano de 1983 (em substituição da data de 1987 considerada na decisão recorrida).

Requer, neste âmbito, que o ponto 10. – A Ré passou a habitar tal casa desde agosto de 1987 de forma gratuita, sem qualquer contrapartida. – seja alterado para “A Ré passou a habitar tal casa desde, pelo menos, 1983 de forma gratuita, sem qualquer contrapartida.”, e que o ponto 17. – A Ré reside na habitação em causa de forma ininterrupta desde 1987.” seja alterado para “A Ré reside na habitação em causa de forma ininterrupta desde, pelo menos, 1983”.

A data de 1987 considerada provada encontra suporte nas atas 31 e 32 da reunião da direção da associação já acima referidas.

Acresce ainda o depoimento da testemunha OO, que referiu que foi viver para uma casa situada em frente às casas construídas no terreno doado, aqui em discussão ‘(…) no ano letivo de 1986/1987’, e que, não obstante ‘a ideia que tinha, como criança, era que as casas já estavam feitas, lembro-me de os meus pais dizerem que não tinham casa de banho, que tinham terra.’ tendo ainda referido lembrar-se que o pai, que era carpinteiro, ia ajudar os vizinhos da frente na construção.

Assim, também este depoimento infirma a pretensão de considerar que a casa já estava construída e era habitada pela ré desde 193.

Por fim, mas não menos importante, nem a ré, no seu depoimento, situou a data em que passou a habitar na casa em 1983. O que a ré disse na sessão de julgamento de 11 de abril de 2023 foi que ´tenho uma filha que vai fazer 40 anos e antes disso já tínhamos começado a construção da casa. Ela faz em outubro 40 anos. Fomos para lá viver com a casa ainda em construção.’, e ‘Essa minha filha que eu estava grávida foi para lá com 3 anos.’ Assim, mesmo de acordo com a versão da ré, tendo a filha da mesma nascido em outubro de 1983 e ido viver para a casa com 3 anos de idade, a ré só se teria mudado para a casa depois de outubro de 1986, e nunca em 1983.

Improcede, deste modo, a pretendida alteração da matéria de facto dos pontos 10. e 17..

1.3. Síntese conclusiva

Concluímos, deste modo, pela improcedência do recurso quanto à impugnação da decisão de facto no que concerne aos pontos 11., 13., 10. e 17., que se mantêm inalterados, procedendo apenas parcialmente a pretendida alteração dos pontos 7. e 8., os quais são alterados nos seguintes termos:

O ponto 7. dos factos provados da sentença recorrida ­– Em Agosto de 1987 a Autora, na prossecução do seu objecto social, cedeu de forma gratuita à Ré, a casa n.º ... construída nos imóveis doados. – passa a ter a seguinte reação:

7. Em Agosto de 1987 a Autora, na prossecução do seu objecto social, cedeu de forma gratuita à Ré, o R/C da casa n.º ... construída nos imóveis doados.

O ponto 8. dos factos provados da sentença recorrida ­– A casa edificada no terreno foi construída com materiais fornecidos pela Autora e materiais doados por terceiros, no valor global de 981.725$00. – passa a ter a seguinte reação:

8. A casa edificada no terreno foi construída com materiais fornecidos pela Autora e materiais doados por terceiros, no valor global de 981.725$00, tendo familiares, amigos e vizinhos da ré auxiliado na construção da casa, ao nível de mão de obra.

2. Reapreciação da subsunção jurídica dos factos

2.1. Aquisição do direito de propriedade sobre o imóvel por usucapião

Defende a apelante, no recurso interposto, que adquiriu a propriedade sobre o terreno onde construiu a casa que constitui a sua habitação por, construindo a casa à frente de todos e sem oposição da autora, que nunca pediu a restituição do terreno, e ter atuado com a convicção de ser dona do terreno, o que ocorre há mais de 15 anos, adquirindo o direito a cujo exercício corresponde a sua atuação, nos termos do art 1287.º do Cód. Civil.

Dada a improcedência do recurso quanto à pretensão de consideração dos factos elencados nos pontos 11. e 13. como não provados, é manifesto que a factualidade provada, mesmo considerando as alterações introduzidas nos pontos 7. e 8., não suporta a pretendida aquisição por usucapião do direito de propriedade sobre a casa e/ou terreno onde se encontra implantada tal construção, desde logo, por falta de verificação do animus possidendi, como emerge claramente da factualidade provada nos pontos 7., 11., 13. e 14 da fundamentação de facto.

Mantém-se inalterada a fundamentação da decisão sob recurso no que concerne à improcedência do pedido reconvencional.

 

2.2. Improcedência do pedido de condenação da ré na restituição da casa

Defende a apelante que não pode proceder o pedido de restituição da casa dado que a entrega das casas foi efetuada às famílias carenciadas para as mesmas aí viverem sem qualquer prazo associado, vitaliciamente, enquanto fossem vivos, o que também se verificou relativamente à ré, pelo que a ré mantém o direito de ocupar e habitar a casa enquanto viva for, quer de acordo com a finalidade da doação do terreno efetuado à autora, quer de acordo com os fins da associação autora.

Para a procedência da ação de reivindicação incumbe ao autor “(…) provar que é proprietário da coisa e que esta se encontra na posse ou detenção do réu (…) O réu, por sua vez, tem o ónus da prova de que é titular de um direito (real ou de crédito) que legitima a recusa da restituição.” – Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. III, 2.ª Edição, pág. 116, Coimbra Editora.

 Assim, afirmado que esteja o direito de propriedade da aqui autora e a ocupação pela aqui ré do imóvel propriedade da autora, o (segundo) pedido de condenação na restituição apenas pode ser negado se existir um título (direito real ou obrigacional) que legitime tal ocupação do imóvel pela ré.

Afastada que está a aquisição por usucapião invocada pela ré (ver supra ponto 2.1.), e não estando posta em causa a presunção de titularidade do direito da autora derivada do registo – cf. artigo 7.º do Código do Registo Predial –, afirmada na sentença recorrida, resta apreciar se, como defende a apelante nas alegações de recurso, a ré detém algum título que lhe permita habitar a casa cuja restituição é peticionada vitaliciamente.

Como acima foi referido, reconhecido o direito de propriedade da autora e a ocupação do imóvel pela ré, a restituição pode ser recusada com fundamento na existência de uma relação, obrigacional ou real, tituladora da posse ou detenção da coisa.

A existência de um contrato de comodato configura, precisamente, uma relação obrigacional passível de obstar à obrigação de entrega.

Na sentença recorrida foi qualificada a relação jurídica subjacente à entrega pela autora à ré, efetuada em 1987, da casa onde a mesma atualmente ainda habita, como um contrato de comodato sem prazo e foi considerado que “no caso dos autos não foi fixado prazo e apenas se apurou que o imóvel foi cedido à Ré para habitação da mesma”, tendo a decisão recorrida, apreciando a questão de saber se, face à factualidade apurada, se poderia concluir ter sido estipulado um uso determinado, concluído em sentido negativo.

Fundamentou assim a decisão recorrida tal conclusão:

É entendimento dominante que o uso só é “uso determinado” se se delimitar em termos temporais a necessidade que o comodato visa satisfazer, ou seja, o “uso” da coisa para que seja “determinado” deve conter em si a definição do tempo de uso. Neste sentido, Acórdão da RL de 04 de fevereiro de 2021, in www.dgsi.pt onde se refere que “o “uso determinado a que se refere o art. 1137º, do CC, pressupõe uma delimitação da necessidade temporal que o comodato visa satisfazer, não podendo considerar-se como determinado o uso de certa coisa se não se souber, quando aquele uso não vise a prática de atos concretos de execução isolada mas antes atos genéricos de execução continuada, por quanto tempo vai durar, caso em que se deve haver como concedido por tempo indeterminado. Assim, o uso só é determinado se o for também por tempo determinado ou, pelo menos, determinável”.

No mesmo sentido, Acórdãos da RE, de 19 de novembro de 2020 e do Supremo Tribunal de Justiça, de 21 de março de 2019, também in www.dgsi.pt referindo o último que “a coisa entregue para um uso determinado, tem-se em vista a utilização da coisa para uma certa finalidade, não a utilização da coisa em si. Por isso, não será ao abrigo do uso determinado da coisa que ficará impedido o comodante de exigir a restituição ad nutum, nos termos do art. 1137.º, n.º 2, do Código Civil.  Daí que no comodato sejam necessários dois requisitos para caracterizar o uso determinado do empréstimo da coisa: 1.º que ele esteja expresso de modo claro; 2.º que esse uso seja de duração limitada.”.

Assim, o uso determinado tem de ter delimitação temporal da necessidade que o comodato visa satisfazer, não podendo ser considerado como “uso determinado” o uso de coisa, se não se souber por quanto tempo vai durar, se foi concedido por tempo indeterminado, o que contraria a essência do contrato de comodato, assente em relações de cortesia, de gentileza, ou de solidariedade, como se verifica no caso dos autos.

Atendendo a que dos autos resulta que a casa foi cedida para habitação, sem indicação de prazo certo para a restituição, tem de concluir-se que não foi fixado uso determinado e, consequentemente, que a pretensão da Autora se encontra regulada pelo disposto no artigo 1137º/2, do Código Civil.

De facto, a utilização da coisa para habitação sem fixação de prazo é válida, mas tem de ser interpretada no sentido de que de que o comodante pode sempre denunciar o contrato ad nutum. Cf. Acórdão do STJ, de 15.12.2011, in www.dgsi.pt e Acórdão da RG, de 06.11.2014, mesmo sitio, que refere expressamente que “Não constitui comodato para uso determinado o mero empréstimo de uma casa para habitação e, por isso, não obsta à restituição da coisa comodada a circunstância de esse específico fim ainda ocorrer.”.

Interpretação noutro sentido, além de ir contra o disposto no artigo 237º do Código Civil, implicaria que o comodatário ficasse numa posição mais favorável do que um arrendatário, que paga contrapartida pela ocupação e a cujo contrato o legislador estabelece prazo de duração máxima – artigo 1025º do Código Civil. Mais, um comodato perpétuo, a manter-se durante toda a vida do comodatário e sua família, converteria comodante numa espécie de doador e descaracterizava de forma total e inadmissível o contrato de comodato.

Por todo o exposto, tem de concluir-se que a restituição do imóvel que é pedida nesta ação se mostra regulada pelo nº 2 do artigo 1137º do Código Civil, norma que impede a perpetuação das relações obrigacionais de comodato e, consequentemente, que o comodante (Autora) tem direito a exigir, em qualquer momento, a restituição do imóvel. Cf. Ac. da RE, de 19 de novembro de 2020, in www.dgsi.pt.

No sentido de tratamento dos “comodatos vitalícios” como contratos de duração indeterminada e da aplicabilidade aos mesmos do disposto no artigo 1137º/2 do Código Civil, cf.  Menezes Cordeiro, in “Tratado de Direito Civil”, Vol. XII, 2ª Ed., pg. 166 e ss.

Cumpre, por fim, referir que entendemos que a situação dos autos não pode ser enquadrada como direito de habitação – artigo 1484º do Código Civil, sendo, ainda, de relevar que tal direito também não seria passível de aquisição por usucapião – artigos 1485º e 1293º/b), ambos do Código Civil. 

Por outro lado, nada tendo sido alegado pelas partes quanto à atual condição económica da Ré, ao facto de a casa constituir casa de morada de família e a existência de garantia dada pela Autora de manter a Ré na habitação enquanto tal situação se mantivesse, também não pode ser equacionada uma eventual situação de abuso de direito por parte da Autora.

Tal como referido no Ac. do STJ, de 26 de novembro de 2020, in www.dgsi.ptEsta orientação não colide com a consagração constitucional do direito à habitação, uma vez que, de acordo com a jurisprudência consolidada do Tribunal Constitucional, integrando a categoria dos direitos económicos, sociais e culturais, tal direito tem como destinatários primaciais o Estado e demais entidades públicas, dele não resultando, em princípio, uma vinculação directa para os proprietários de imóveis.”, sendo de acrescentar que mesmo o Estado e demais entidades públicas não têm obrigação de dar habitação gratuita, mas garantir condições de habitação social de acordo com as condições económicas do cidadão, o que neste caso se desconhece em absoluto.

Sendo exata a explanação jurídica efetuada na decisão recorrida quanto ao que se considera ser “uso determinado”, consideramos que da factualidade apurada se retira mais do que o tribunal a quo considerou para efeitos do enquadramento dos termos do contrato de comodato celebrado.

Afigura-se-nos que – diferentemente do que foi entendido na sentença em recurso –, no caso dos autos, não se apurou só “que o imóvel foi cedido à Ré para habitação da mesma”. Apurou-se mais que isso, atenta a seguinte factualidade constante dos seguintes factos provados:

1. A Autora uma instituição particular de solidariedade social, sem fim lucrativo, sob a forma de associação de solidariedade social, reconhecida como pessoa coletiva de utilidade pública. (documento nº 1 junto com a petição inicial, que se dá por reproduzido)

2. Tem por objeto o apoio à família nas condicionantes, material, social e espiritual, designadamente, no apoio de bens alimentares, medicamentos e apoio na construção de habitações.

3. Por escritura de doação outorgada no dia 30 setembro de 1983, BB e mulher CC declararam doar à Autora os seguintes prédios:

- Uma leira de mato e pinhal, chamada “...”, situada no lugar ..., freguesia ..., concelho de Vila Nova Gaia, inscrita na matriz sob o artigo ...;

– Leira de mato e pinhal, situado no mesmo lugar ..., da referida freguesia inscrita na matriz sob o artigo .... (documento nº 2 e 3 juntos com a petição inicial, que se dá por reproduzido).

(…)

5. Os prédios foram doados à Autora com vista à prossecução do seu objeto.

6. Posteriormente, a 17.09.2012 a Autora procedeu ao loteamento urbano dos prédios que lhe foram doados.

7. Em Agosto de 1987 a Autora, na prossecução do seu objecto social, cedeu de forma gratuita à Ré, o R/C da casa n.º ... construída nos imóveis doados.

(…)

16. Aquando da doação, o intuito dos doadores era de que esses terrenos servissem para criar condições de habitação a famílias carenciadas.

Resulta da apreciação conjugada dos factos supra transcritos que a cedência gratuita do R/C da casa n.º ... (construída em terreno que foi doado à autora com o objetivo – causa subjacente à doação efetuada – de que tais terrenos servissem para criar condições de habitação a famílias carenciadas, e com vista à prossecução do objeto social da autora), que foi efetuada em 1987 pela autora à ré, o foi na prossecução do  objeto social da autora.

Ora, consta dos Estatutos da associação autora, juntos como documento 1 referido no ponto 1. dos factos provados, além do mais, o seguinte:

CAPÍTULO PRIMEIRO

Da denominação, sede, âmbito e fins

Artigo 1º

A Associação A... é uma instituição particular de solidariedade social, sem finalidade lucrativa, sob a forma de associação de solidariedade social.

(…)

Artigo 3.º

1- Tem por objetivo o apoio à família nas condicionantes, material, social e espiritual, procurando que cada família viva em adequadas condições de abrigo, higiene e conforto, à luz dos princípios fundamentais dos Direitos do Homem, dentro de um espírito de beneficência e caridade cristãs.

2- Especificamente procurará apoiar a família:

-» Na sua integração social e comunitária;

-» Na sua proteção em situações de falta ou diminuição dos meios de subsistência ou de capacidade para o trabalho;

-» Na resolução da carência de habitação de famílias desprovidas de recursos próprios para, por si sós, a conseguirem adquirir.

3- Para a realização dos objetivos definidos, a Associação procurará criar e manter:

-» (…)

-» Um serviço de apoio financeiro para comparticipação nos encargos com rendas, com consumos de água, eletricidade e gás e com serviços médicos;

-» Um serviço de apoio na construção, reparação e conservação de habitações próprias, arrendadas ou em comodato quem competirá a legalização dos terrenos, a elaboração e legalização dos respetivos projetos, o fornecimento de materiais, a orientação na execução das obras e sua fiscalização,

-» Um serviço de gestão corrente das habitações que são propriedade da Associação, provendo pela sua manutenção e reparação e arrecadando os proveitos que  possam resultar do seu uso. (…)

O contrato de comodato celebrado com a ré foi-o para uma finalidade determinada: resolver a carência de habitação desta como uma das ´famílias desprovidas de recursos próprios para, por si sós, a conseguirem adquirir.’ (3.º ponto do n.º 2 do art. 3.º dos Estatutos).

Não se está assim, perante uma mera cedência sem prazo de habitação à ré; mas sim perante um comodato de uma habitação para a resolução da carência económica da ré que a impedia de ter uma habitação. Afigura-se-nos que tal cedência gratuita, atento o fim da mesma emergente dos factos provados – comodato do R/C de uma casa para a ré ter uma habitação que a sua carência económica a impedia de ter – tem um uso determinado, na medida em que só se justifica que o contrato de comodato subsista enquanto se verificar a carência económica que motivou a referida cedência gratuita da referida habitação à ré.

Tendo tal uso determinado – a cedência gratuita de habitação à autora foi efetuada por causa e em razão da sua carência económica para, por si, poder ter uma habitação, o que pressupõe que o título para tal utilização só subsista enquanto durar a carência económica que fundamentou a aludida cedência gratuita da habitação –, não estamos perante um “comodato precário”, em que a “(…) todo o momento o comodante poderá exigir a restituição da coisa comodatada.

A diferença entre o precário e o comodato consiste, portanto, no facto de que neste último a duração está predeterminada por acordo das partes (expressa ou tácita), enquanto no precário o prazo fica totalmente dependente da vontade do concedente.” – Fernando Jorge Marques de Matos, Contrato de Comodato, Almedina, págs. 48 e 49.

Não se afigura conforme com a finalidade da cedência efetuada, inserida na prossecução do objeto social da associação autora, abstrair da finalidade e fundamento dessa mesma cedência. O enquadramento do comodato efetuado num comodato precário, abstraindo completamente da finalidade do uso da habitação (uso para família carenciada), permite a cessação imotivada da referida cedência, sem qualquer consideração relativamente à existência ou subsistência da situação de carência económica que esteve na base da cedência gratuita à ré da referida habitação cuja restituição é peticionada.

Afigura-se-nos que, no caso sub judice, a causa do comodato não é apenas uma mera gentileza ou favor, no sentido de que a cedência efetuada o foi, no âmbito e em execução do objeto de beneficência da associação autora, para o uso habitacional da ré, em função e por causa da sua incapacidade económica para suportar o custo de uma habitação, o que define o tempo de duração do comodato: enquanto subsistir tal carência económica. No sentido de inexistência de obrigação de restituição de uma habitação entregue para uso de habitação familiar enquanto durar tal uso, veja-se o Ac. do STJ de 05-06-2018, proc. 1281/13.5TBMTR.E1.S1 e o Ac. do TRG de 21-09-2023, proc. 3015/21.1T8VNF.G1.

O afastamento da denúncia do contrato de comodato ad nutum não afasta a ocorrência de qualquer das restantes causas de extinção do contrato: caducidade, denúncia ou resolução, incumbindo, no entanto, ao comodante alegar e provar o fundamento da caducidade, da denúncia ou da resolução do contrato de comodato – alegar e provar, por exemplo, que as condições económicas da ré lhe permitem suportar o custo com a aquisição de uma habitação ou o pagamento de uma contrapartida (renda) pela ocupação de uma habitação condigna, fazendo assim prova da cessação do uso determinado subjacente ao comodato celebrado em 1987.

Concluímos, deste modo, pela procedência parcial da apelação, no que concerne à condenação da ré na restituição.

 

IV. Dispositivo:

Pelo exposto, acordam os juízes que compõem o tribunal coletivo desta 3.ª Secção na procedência parcial da apelação, em alterar a sentença recorrida, absolvendo a ré AA do pedido de condenação a entregar à autora A..., Instituição Particular de Solidariedade Social e Associação de Solidariedade Social, o imóvel onde habita, livre de pessoas e bens, no mais se mantendo a decisão apelada.

Custas, no recurso e na ação, a cargo de autora e réu (sem prejuízo da isenção e de apoio judiciário de que beneficiem), na proporção do decaimento, nos termos do artigo 527.º Cód. Proc. Civil.

Notifique.


***

Porto, 22/02/2024
Ana Luísa Loureiro
Isoleta de Almeida Costa
João Venade [vencido conforme declaração de voto junta.
Declaração de voto:
Apesar do doutamente mencionado no Acórdão, pensamos que a necessidade da habitação não faz com que o comodato tenha um uso determinado. Como se refere no Ac. da R. C. de 11/03/2014, processo n.º 886/11.3TBVIS.C1 «a afectação do imóvel à habitação dos Réus, enquanto para eles perdurassem as insuficiências económicas para angariação desse bem, não tem que ver com a função do imóvel. Respeita à causa ou à motivação que presidiu à celebração do comodato. Diversamente, o uso determinado é aquele que é possível prever e antecipar no tempo em que se esgota. Por conseguinte, o uso determinado de que fala o art.º 1137 diz necessariamente respeito a um acto ou uma série de actos de execução temporalmente delimitada ou delimitável logo no momento da celebração do contrato.». Em igual sentido, Ac. da R. P. de 31/05/2016, processo n.º 409/15.5T8PVZ-A.P1, Acs. do S.T.J. de 14/12/2021, processo n.º 1580/14.9TBVNG.P1.S2, 26/11/2020, processo n.º 3233/18.0T8FAR.E1.S1, 21/03/2019, processo n.º 2/16.5T8MGL.C1.S1, todos em www.dgsi.pt. Confirmaria assim a decisão recorrida.]
________________
[1] Acórdãos citados acessíveis, na íntegra, na base de dados de jurisprudência do IGFEJ, em http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/.
[2] MARIA ADELAIDE DOMINGOS, “Recursos, um olhar convergente sobre aspectos dissonantes: questões práticas”, Caderno II – O Novo Processo Civil, Contributos da doutrina no decurso do processo legislativo, designadamente à luz do anteprojecto e da proposta de lei n.º 113/XII, Coleção de Formação Contínua do Centro de Estudos judiciários, novembro de 2013, disponível em https://www.oa.pt/upl/%7B5a01c252-3701-453a-8426-8116f7d1cff0%7D.pdf.