Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
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| Nº Convencional: | JTRP000 | ||
| Relator: | FILIPE CÉSAR OSÓRIO | ||
| Descritores: | RESPONSABILIDADE CONTRATUAL PRINCÍPIO DA CONSUNÇÃO ÓNUS DA PROVA PROCEDIMENTO ESTÉTICO | ||
| Nº do Documento: | RP202511242404/24.4T8PNF.P1 | ||
| Data do Acordão: | 11/24/2025 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
| Decisão: | CONFIRMADA | ||
| Indicações Eventuais: | 5ª SECÇÃO | ||
| Área Temática: | . | ||
| Sumário: | I - Atendendo a que as partes se encontram ligadas por um contrato, o regime legal aplicável é o da responsabilidade contratual, como acabou por se fazer na sentença recorrida, desde logo porque este regime é o mais favorável à lesada, dada a presunção de culpa que onera a devedora (art. 799.º, n.º 1 do CC), devendo aplicar-se, assim, o princípio da consunção. II - Com efeito, os pressupostos das duas formas de responsabilidade são iguais, distinguindo-se essencialmente pela circunstância de no domínio da responsabilidade civil contratual recair sobre o lesante uma presunção de culpa (artigo 799.º, n.º 1 do Código Civil), norma que, portanto, é mais favorável para o lesado do que o artigo 487.º, n.º 1, 1ª parte do Código Civil, que disciplina a matéria no domínio da responsabilidade civil extracontratual. III - Assim, são pressupostos da responsabilidade civil contratual a existência de um facto voluntário; a sua ilicitude; a culpa do autor do facto; a produção de um dano; e o nexo de causalidade entre o facto e o dano. IV - A alegação e prova dos pressupostos da responsabilidade civil da Ré incumbe à Autora (artigo 342.º, n.º 1 do Código Civil), com exceção da culpa, atenta a presunção legal acima indicada (artigo 350.º, n.º 1 do Código Civil). A alegação e prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos da sua responsabilidade incumbe à Ré (artigo 342.º, n.º 2 do Código Civil). V - O procedimento estético, realizado pela Ré na qualidade de enfermeira, de “levantamento de nádegas” através de colocação de fios de polidioxanona (PDO) nas nádegas da Autora, implantados sob a pele, em salão de cabeleireiro, sem qualificações para o efeito, tendo vindo a ocorrer inflamação – configura a prática de factos ilícitos pela Ré, por violação de obrigações secundárias e deveres acessórios de conduta (no caso da responsabilidade contratual por cumprimento defeituoso) e por violação de direitos absolutos da Autora (no caso de responsabilidade extracontratual). VI - O nexo de causalidade não se mostra afectado pela ocorrência de qualquer outra causa. VII - Mostram-se verificados todos os pressupostos da responsabilidade civil contratual por isso a Ré está obrigada a reparar o dano sofrido pela Autora. | ||
| Reclamações: | |||
| Decisão Texto Integral: | Apelação n.º 2404/24.4T8PNF.P1
(5.ª Secção Judicial, 3.ª Secção Cível) Comarca de Porto Este Juízo Central Cível de Penafiel – Juiz 2 Relator: Filipe César Osório 1.º Adjunto: Nuno Marcelo Nóbrega dos Santos Freitas Araújo 2.º Adjunto: Miguel Baldaia de Morais Sumário: ……………………………… ……………………………… ……………………………… * * * ACORDÃO NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO * I. RELATÓRIO Ação Declarativa, Processo Comum 1. As partes: Autora/Recorrida – AA Ré/Recorrente – BB * 2. Objecto do litígio – Responsabilidade civil da Ré, na qualidade de enfermeira, pela má execução de “procedimento estético de levantamento das nádegas com recurso a fios” (ato contra a “legis artis”), efetuado à Autora, consubstanciado nos seguintes pedidos: “A) A pagar à Autora a quantia de € 11.630,48 a título de danos patrimoniais referente a valores que pagou e quantias que deixou de receber no exercícios das suas atividades profissionais; B) A pagar à Autora a quantia de € 50.000,00 a título de danos não patrimoniais e dano biológico; C) A pagar à Autora a quantia de € 17.200,00 referente a danos patrimoniais futuros, para pagamento dos tratamentos psicológicos a que se irá submeter até ao último dos seus dias; D) A pagar à Autora a quantia de € 6.450,00 refente a danos patrimoniais futuros para pagamento da medicação que irá tomar também até ao último dos seus dias; E) A pagar à Autora a quantia de € 2.500,00 referente a danos patrimoniais futuros para pagamento da cirurgia estética a que se irá submeter; F) Em custas e condigna procuradoria.”. A Autora alega essencialmente que no dia 01/07/2022, a Ré, na qualidade de enfermeira, acorda com a primeira em efetuar-lhe um procedimento estético de levantamento das nádegas, com recurso a “fios”, através de um procedimento que se designa por “lipo enzimática”, a efetuar uma vez por semana, num total de 6 a 7 sessões, custando cada sessão a quantia de € 80,00, prática que ia ser executada no salão de cabeleireiro “A...”, situado no largo ..., em Paredes; o que veio efectivamente a suceder a partir de 04/07/2022; a Autora só aceitou que a Ré lhe efetuasse tal procedimento por a Ré ser enfermeira; aquele salão de cabeleireiro (ou qualquer outro), onde foi efetuada aquela intervenção não reúne o mínimo de condições de segurança, de higiene e salubridade para se efetuar qualquer intervenção invasiva num corpo humano, já que existem cabelos e pelos por todos os lados, lançados pelos secadores, abundam cheiros e produtos químicos nocivos, nomeadamente quando se está a aplicar lacas, géis, tintas, entre outros; a nádega esquerda da Autora infecionou; a Autora que sofreu danos patrimoniais e não patrimoniais com o procedimento em causa nos presentes autos. Em contraponto, a Ré alega ter tido formação como “técnica de harmonização” para poder realizar o procedimento à Autora, que esta foi informada quanto à sua tramitação, à forma de o realizar e seus materiais, bem como quanto aos seus riscos para o que, de forma livre e espontânea, expressamente consentiu, tendo utilizado todos os materiais necessários, adequados e esterilizados à realização do procedimento através de fios de sustentação em ambas as nádegas da Autora, em local devidamente higienizado, em plena consciência e com pleno conhecimento e consentimento prestado pela Autora e informado a Autora dos deveres de cuidado pós-procedimento; a Autora, após o procedimento, usou roupa desadequada à cicatrização, colocou-se em posição de sentada, participou em eventos com elevados níveis de humidade e transpiração, propícios à propagação de bactérias, incumpriu com o horário da medicação e a toma da totalidade dos comprimidos, bem como participou em eventos ingerindo bebidas alcoólicas num período em que, pretensamente, se encontrava a fazer a toma de antibiótico, o que fez com que a nádega esquerda da Autora infecionasse. * Realizada audiência final foi oportunamente proferida sentença com o seguinte dispositivo: «Pelo exposto decide-se julgar parcialmente procedente a presente ação e, em consequência: a) condenar a Ré, BB, a pagar à Autora, AA, as seguintes quantias: - € 1.610,48 pelos danos patrimoniais sofridos. - € 2.000,00, pelos danos não patrimoniais sofridos. b) absolver a Ré dos restantes pedidos contra si deduzidos. c) Custas por Autora e Ré na proporção dos respetivos decaimentos, sem prejuízo do apoio judiciário concedido à Autora. Registe e notifique.». * 4. Recurso de apelação: Inconformado com esta sentença, a Ré-Recorrente interpôs recurso de apelação onde formula as seguintes conclusões [transcrição]: (…) * 5. Resposta: A Autora-Recorrida apresentou contra-alegações onde pugna pela manutenção da decisão. * 6. Objecto do recurso – Questões a Decidir: Considerando que o objecto dos recursos está delimitado pelas conclusões neles insertas, salvo as questões de conhecimento oficioso - arts. 608.º, n.º 2, 609.º, 635.º n.º 4, 639.º e 663.º n.º 2, todos do Código de Processo Civil – são as seguintes as questões cuja apreciação aquelas convocam: * II. FUNDAMENTAÇÃO 7. É o seguinte o teor da decisão de facto constante da sentença recorrida: «III) Factos provados com relevância para a causa: 1 - No dia 01/07/2022, a Ré, enfermeira, acordou com a Autora em efetuar-lhe um procedimento estético de levantamento das nádegas, com recurso a “fios”, por solicitação da Autora, prática que ia ser executada no salão de cabeleireiro “A...”, situado no largo ..., em Paredes. 2 - Quando a Autora procurou a Ré para realizar o referido procedimento, foi informada quanto à tramitação do mesmo, à forma de o realizar e seus materiais, bem como quanto aos seus riscos – como qualquer procedimento estético – para o que, de forma livre e espontânea, expressamente consentiu. 3 - No dia 04/07/2022, às 11h00, no referido salão de cabeleireiro, que se encontrava encerrado ao público, a Ré realizou na Autora o primeiro procedimento, tendo procedido à colocação de fios de polidioxanona nas nádegas da Autora. 4 - Os referidos fios são bioestimuladores de colagénio, decorrente de uma reação entre o fio de sutura e o tecido mole circundante que pode resultar em bioestimulação e efeito lifting adicional. 5 - Após a implantação do fio na pele, os níveis de colágeno tipo 1 e fator de crescimento são aumentados por meio dessa reação tecidual, sendo a polidioxanona um material totalmente absorvível. 6 - A função dos fios de sustentação é o tratamento de flacidez cutânea e reposicionamento dos tecidos moles. 7 - A Ré utilizou todos os materiais necessários, adequados e esterilizados à realização do procedimento através de fios de sustentação em ambas as nádegas da Autora. 8 - A Ré realizou o procedimento estético referido no ponto 1, na qualidade de técnica em harmonização através de fios de sustentação, formação que lhe garantiu competências para a realização do procedimento aplicado à Autora. 9 - A Ré procedeu à colocação dos “fios” numa das nádegas com a Autora na posição de pé, mas debruçada sobre uma cadeira. 10 - A Ré informou a Autora dos deveres de cuidado pós-procedimento, nomeadamente: Não fazer atividade física por 7 dias, não se expor a calor, sol, piscina ou sauna por 7 dias, usar roupa confortável, de preferência de algodão; não ingerir álcool por 7 dias; não fumar durante 7 dias; Controlar o movimento corporal da região, minimizando ao máximo movimentos como: cruzar pernas, dormir de barriga para cima, evitar estar sentada; Evitar ingestão de aspirina durante 10 dias; Bolsas de gelo nas primeiras 48 horas; Não massagear a área tratada por 2 meses. 11 - Aquele salão de cabeleireiro (ou qualquer outro), onde foi efetuada aquela intervenção, não reúne o mínimo de condições de segurança, de higiene e salubridade para se efetuar qualquer intervenção invasiva num corpo humano, por ser um local com proliferação de cabelos, pelos, com cheiros de produtos químicos de lacas, géis, tintas, entre outros. 12 - No dia 08/7/2022, a Autora deu conhecimento à Ré que a nádega esquerda apresentava vermelhidão, tendo a Ré aconselhado a proceder à desinfeção por água oxigenada e bacitracina como forma de mitigar a vermelhidão. 13 - No dia 11/7/2022, a Autora enviou à Ré a foto da nádega esquerda, junta na p.i. como documento 3, que aqui se dá por reproduzida. 14 - Tendo a Ré aconselhado a Autora a tomar Amoxlina e ácido clavulamico 875/125, de 12 em 12 horas, durante 8 dias, pedindo-lhe que tente obter aquele medicamento. 15 - Nesse mesmo dia, a Autora deslocou-se a uma farmácia, não lhe sendo possível comprar aquele medicamento por se tratar de um antibiótico, só o vindo a conseguir com receita médica, pelo que teve que marcar consulta num médico. 16 - No dia 13/07/222, a Autora informa a Ré que está a sair muita “matéria”, enviando-lhe as fotos juntas na p.i., como documentos 7 e 8, que aqui se dão por integralmente reproduzidas, tendo a Ré aconselhado a Autora a pôr compressa e bacitracina. 17 - A Autora apresentou melhorias logo no dia 18/07/2022. 18 - No dia 26/07/2022, a Autora envia à Ré a foto junta na p.i. como documento 9, que aqui se dá por reproduzida, onde é visível uma melhoria significativa, com diminuição da vermelhidão. 19 - No dia 16/08/2022, a Autora deslocou-se a casa da Ré para que esta verificasse o estado da infeção e fizesse o penso. 20 - No dia 17/08/2022, a Autora voltou a queixar-se da nádega esquerda, já alarmada, envia foto do estado da infeção, referindo que o seu médico a aconselhara a ir a um cirurgião plástico. 21 - Nesse mesmo dia, a Ré aconselha a Autora a ir às urgências. 22 - No dia 19/08/2022, a Autora deslocou-se às urgências do hospital ..., em Penafiel, onde foi intervencionada e encaminhada para curativos no seu centro de saúde. 23 - Por indicação do médico, a partir do dia 19/08/2022, a Autora iniciou os curativos, diariamente, no Centro de Saúde .... 24 - Para efetuar o procedimento estético a que se alude no ponto 1, a Autora pagou à Ré, no dia 04/07/2022, por Mbway, a quantia de € 600,00. 25 - A partir do dia 12/9/2022, a Autora, por sua iniciativa, passou a ser seguida no Hospital 1..., tendo pago, na Cirurgia geral, 1.ª consulta, a quantia de € 50,00. 26 - No dia 19/9/2022, a Autora efetuou eletrocardiograma tendo pago a quantia de € 7,00 euros. 27 - No dia 26/9/2022, de Cirurgia geral, 2.ª e restantes consultas, a Autora pagou a quantia de € 50,00. 28 - No dia 28/9/2022, pelo ARN SARS-CoV-2 (Covid-19), PCR, prod, a Autora pagou a quantia de € 70,00. 29 - No dia 29/9/2022, a Autora efetuou cirurgia “Excisão de tumor profundo”, no qual foi identificado um “corpo estanho (fio) com 0,5 cm”, efetuada no Hospital 1..., tendo pago a quantia de € 683,48 euros. 30 - No dia 10/3/2022, por cirurgia geral, 2.ª e restantes consultas, a Autora pagou a quantia de € 50,00. 31 - No dia 10/10/2022, por cirurgia geral, 2.ª e restantes consultas, a Autora pagou a quantia de € 50,00. 32 - No dia 17/10/2022, por cirurgia geral, 2.ª e restantes consultas, a Autora pagou a quantia de € 50,00. 33 - No dia 24/10/2022, por cirurgia geral, 2.ª e restantes consultas, a Autora pagou a quantia de € 50,00. 34 - No dia 31/10/2022, por cirurgia geral, 2.ª e restantes consultas, a Autora pagou a quantia de € 50,00. 35 - A Autora suportou despesas com a deslocações para os tratamentos a que teve que se submeter, em quantia não concretamente apurada, mas não superior a 200 euros. 36 - A Autora teve alta a 9/1/2023. 37 - Os factos a que se alude nos pontos 12 a 35 causaram sofrimento físico e psicológico à Autora. 38 - A Autora nasceu em ../../1982. Não se provaram com relevância para a causa os restantes factos, nomeadamente que: a) Que o procedimento a que se alude no ponto 1 se designa por “lipo enzimática”, a efetuar uma vez por semana, num total de 6 a 7 sessões, custando cada sessão a quantia de €80,00. b) Que a Ré realizou o procedimento a que se alude no ponto 1 na qualidade de enfermeira e a Autora só aceitou que a Ré lhe efetuasse tal procedimento, por aquela exercer essa profissão. c) Para além do referido no ponto 10, que o procedimento a que se alude no ponto 1 foi efetuado em local devidamente higienizado. d) Para além do referido no ponto 10, que aquando da execução do procedimento, os cabelos e pelos estavam a ser lançados pelos secadores e que no cabeleireiro estavam a ser aplicadas lacas e géis. e) Para além do referido no ponto 9, que a Ré procedeu à colocação dos “fios” na nádega esquerda com a Autora na posição de pé. f) O médico que operou a Autora ficou estupefacto e até exaltado, ao constatar o estado em que estavam as infeções, motivo pelo qual pediu insistentemente à Autora que identificasse a enfermeira que a colocou naquele estado, com o objetivo de a denunciar ao Ministério Público e à Ordem dos Enfermeiros. g) Todavia, a Autora, de modo a proteger a Ré, recusou-se a denunciá-la ao clínico. h) O cirurgião que efetuou a operação informou a Autora de que estes procedimentos nunca são efetuados com a paciente de pé, muito menos num salão de cabeleireiro. i) A Ré estava a efetuar os curativos à Ré de forma incorreta. j) Para além do referido no ponto 35, que a Autora suportou a quantia de 450 euros com despesas com a deslocações para os tratamentos a que teve que se submeter. l) Tem ainda que despender a quantia de € 2.500,00 para pagamento da cirurgia estética a que se vai submeter, de modo a tentar disfarçar os buracos que resultaram da intervenção da Ré. m) A Autora desempenhava as funções de empregada de escritório num gabinete de contabilidade, auferindo o ordenado mínimo. n) E exercia a atividade promotora imobiliária, ganhando uma comissão sobre as vendas que efetuava. o) Decorrente e por causa da situação descrita, deixou de trabalhar no gabinete de contabilidade desde o dia 04/07/2022 (data da intervenção) até ao final do mês de janeiro de 2023, motivo pelo qual acabou por ser dispensada pela sua entidade empregadora. p) E no mesmo período não conseguiu vender um único imóvel. q) Relativamente à atividade exercida no gabinete de contabilidade, a Autora passou a receber a título de baixa médica uma média de € 360,00. r) Relativamente à sua atividade de vendedora de imóveis, a Autora vendia em média um imóvel a cada dois meses, ganhando, em média, € 2.000,00 por cada venda. s) A nádega da Autora ficou em pior estado do que estava antes da intervenção da Ré. t) A Autora correu risco de vida. u) O médico que a operou informou-a que, durante a operação, correu mesmo risco de vida, pelo facto do seu estado de saúde se ter agravado consideravelmente durante a intervenção. v) Ainda hoje a Autora sofre dores na nádega esquerda, sobretudo perante mudanças de tempo e tais dores nunca desaparecerão. x) A Autora sente desgosto por ter ficado com duas marcas visíveis na nádega esquerda. z) Sempre que a Autora veste roupa mais fina, sejam calças, vestidos ou saias, são percetíveis aqueles dois buracos. a) Há peças de roupa que nunca mais vestiu. b) A Autora ficou complexada e deixou as suas idas à praia, a uma piscina, ou até em situações do foro íntimo. cc) A vida íntima e sexual da Autora nunca mais será a mesma. dd) Além da nádega continuar descaída, tem agora a agravar o seu complexo os dois buracos que resultaram da intervenção da Ré. ee) A Autora irá ter que se submeter a uma operação estética, intervenção esta que apenas visará reduzir a profundidade dos buracos na nádega e não eliminar as cicatrizes. ff) A Ré cortou relações com a Autora, deixando-a completamente sozinha. gg) A Autora perdeu por completo a sua autoestima, motivo pelo qual, necessitará ainda para o resto da vida de acompanhamento médico e medicamentoso para o tratamento da síndrome depressivo ansioso que, praticamente curada, se agravou consideravelmente em resultado da intervenção efetuada pela Ré. hh) Por causa das alterações na imagem corporal, a Autora passou a ter dificuldade nos relacionamentos interpessoais, diminuição de relações sociais, sentimentos de isolamento e de constrangimento. ii) Muita da sua roupa já nem sequer a veste. jj) As suas nádegas eram o segmento corpóreo mais valorizado no seu corpo e por isso o mais representativo da sua pessoa e como centro das atenções para uma busca estética. ll) A deformação e desfiguração da nádega esquerda faz a Autora reagir com um profundo sentimento de dor, medo e ansiedade, relacionado com o grau de afetividade reprimida dentro de si, isso leva-a à depressão, à marginalização e à alienação social. mm) Por força da intervenção efetuada pela Ré e dos danos psicológicos que causou, a Autora necessitará para o resto da sua vida de acompanhamento psicológico, designadamente a cada três, quatro ou seis meses. nn) A Autora irá gastar anualmente com psicólogos quantia nunca inferior a €400,00. oo) A Autora necessitará ainda para o resto da vida também de acompanhamento medicamentoso para o tratamento da síndrome depressivo ansioso que, praticamente curada, se agravou em resultado da intervenção efetuada pela Ré, para o qual, em média anual, despenderá quantia nunca inferior a € 150,00. pp) A Autora, após o procedimento, usou roupa desadequada à cicatrização, colocou-se em posição de sentada, participou em eventos com elevados níveis de humidade e transpiração, propícios à propagação de bactérias, incumpriu com o horário da medicação e a toma da totalidade dos comprimidos, bem como participou em eventos ingerindo bebidas alcoólicas num período em que, pretensamente, se encontrava a fazer a toma de antibiótico. qq) Para além do referido no ponto 17, que a Autora viajou para férias após o dia 18/07/2022. rr) A Autora foi ao batizado do sobrinho, utilizando roupa justa e ingerindo bebidas alcoólicas num momento em que combatia uma infeção, tomando antibiótico. ss) A Autora incumpriu com o horário da medicação.». * 8. Impugnação da decisão da matéria de facto 8.1. A Recorrente-Ré considera que foram incorretamente julgados os factos dos pontos 1, 11, 15, 20 e 35 dos factos provados, e das alíneas pp), qq), rr) e ss) dos factos não provados, os quais, ou deveriam ter outra redacção, ou passar a não provados ou excluídos, devendo ainda ser aditados outros factos cuja redacção indica – cumprindo-se assim minimamente o disposto no art. 640.º, do CPC. Na sequência da impugnação da decisão da matéria de facto, a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa (art. 662.º, n.º 1, do CPC). Devem ser tidos em conta todos os meios de prova produzidos nos autos e não apenas daqueles que foram indicados pelo Recorrente. Além disso, se a impugnação da decisão da matéria de facto interfere ou está interligada com outros pontos de facto a sua apreciação deve incluí-los. A propósito desta norma, importa ter em conta que «O art. 662º do CPC constitui a norma central de atribuição de autonomia decisória à Relação em sede de reapreciação da matéria de facto, traduzida numa convicção própria de análise dos meios de prova indicados pelas partes ou daqueles que se encontrem disponíveis no processo. Começa tal atribuição por estar plasmada na prescrição-matriz da competência de reavaliação factual do n.º 1, sem dependência de provocação pelas partes em sede de recurso para esse efeito: «A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.» Depois, o n.º 2 estabelece verdadeiros poderes-deveres funcionais e qualificados (a lei diz «deve ainda, mesmo que oficiosamente») sempre que, aquando da reapreciação da prova sujeita à livre apreciação, não resulte uma convicção segura e fundamentada sobre os factos, uma vez confrontada com a motivação e a decisão reflectidas na 1.ª instância.»[1]. * 8.2. Análise do ponto 1 dos factos provados: 1 - No dia 01/07/2022, a Ré, enfermeira, acordou com a Autora em efetuar-lhe um procedimento estético de levantamento das nádegas, com recurso a “fios”, por solicitação da Autora, prática que ia ser executada no salão de cabeleireiro “A...”, situado no largo ..., em Paredes. Proposta alternativa da Recorrente: 1- No dia 01/07/2022, a Ré, enfermeira, acordou com a Autora em efetuar-lhe um procedimento estético de levantamento das nádegas, com recurso a “fios”, por solicitação da Autora, prática que ia ser executada no salão de cabeleireiro “A...”, situado no largo ..., em Paredes, local escolhido pela Autora. A Recorrente entende essencialmente que, ao contrário do que se faz constar na motivação da sentença a quo, o local não foi escolhido pela Ré, que da prova produzida apurou-se que a Autora era cliente do salão de cabeleireiro há largos anos e conhecia a sua proprietária e que a Ré não fazia destes procedimentos uma prática habitual e quando os fazia realizava-os em sua própria casa ou na casa desses clientes e a Autora confirmou ainda, no depoimento prestado, que nunca havia visto a Ré naquele local, em momento anterior. Apreciando. A factualidade em causa (iniciativa do local escolhido) não consta do elenco dos factos provados, mas deveria, uma vez que na fundamentação jurídica da sentença escreveu-se o seguinte: “Sabendo que o procedimento não logrou obter o resultado acordado e pretendido por ambas as partes, entendemos que o local da sua realização – salão de cabeleireiro-, escolhido pela Ré, com o consentimento da Autora, é uma decorrência de negligência ou imprudência da Ré, sendo-lhe exigível, atendendo à sua profissão de enfermeira e na qualidade de técnica em harmonização através de fios de sustentação, formação que lhe garantiu competências para a realização do procedimento aplicado, fazê-lo em local, que garanta as condições mínimas de higiene, segurança e salubridade.” (cfr. pág. 15, 3.º parágrafo da sentença) [sublinhado nosso]. Existem elementos circunstanciais importantes que resultaram das declarações da Autora e que mereceram toda a credibilidade pelo modo espontâneo e natural como prestou as mesmas, essencialmente: - foi precisamente nesse salão de cabeleireiro que a Autora tomou conhecimento que a Ré fazia estes procedimentos (“Que trabalhava, que ia lá uma enfermeira e que fazia estes procedimentos a clientes dela.”); - foi da iniciativa da Ré a marcação no salão de cabeleireiro a data para a realização do “procedimento”. Portanto, é perfeitamente plausível, de acordo com as regras da lógica e do senso comum, que tenha sido a Ré a “escolher” o local onde se realizou o “procedimento” em causa. Em contraponto, as declarações da Ré a este propósito não foram credíveis, porque não têm qualquer coerência lógica. Deste modo, independentemente da relevância de quem escolheu o local, a apreciar no enquadramento jurídico, impõe-se alterar o ponto 1 dos factos provados do seguinte modo 1 - No dia 01/07/2022, a Ré, enfermeira, acordou com a Autora em efetuar-lhe um procedimento estético de levantamento das nádegas, com recurso a “fios”, por solicitação da Autora, prática que ia ser executada no salão de cabeleireiro “A...”, situado no largo ..., em Paredes, local escolhido pela Ré. Na sequência da análise da prova a propósito do local, constatou-se ainda que resultou provado, com referência ao ponto 3 dos factos provados, que durante a realização daquele procedimento, apesar do cabeleireiro se encontrar encerrado ao público geral, a dona do cabeleireiro estava presente porque ali prestava o serviço de lavagem de cabelo a uma cliente. Ora, apesar de não ter sido impugnado este facto, a impugnação da decisão da matéria de facto interfere e está interligada a este ponto de facto, por isso a apreciação da impugnação da decisão de facto deve incluí-lo, como acima já mencionado. Nesta sequência, deve rectificar-se o ponto 3: 3 - No dia 04/07/2022, às 11h00, no referido salão de cabeleireiro, a Ré realizou na Autora o primeiro procedimento, tendo procedido à colocação de fios de polidioxanona nas nádegas da Autora. E passar a constar como factos provados os seguintes: 3.1. Durante a realização daquele procedimento, apesar do cabeleireiro estar encerrado para o público geral, a dona do cabeleireiro estava presente e ali prestava o serviço de lavagem de cabelo a uma cliente. * 8.3. Análise do ponto 11 dos factos provados: 11 - Aquele salão de cabeleireiro (ou qualquer outro), onde foi efetuada aquela intervenção, não reúne o mínimo de condições de segurança, de higiene e salubridade para se efetuar qualquer intervenção invasiva num corpo humano, por ser um local com proliferação de cabelos, pelos, com cheiros de produtos químicos de lacas, géis, tintas, entre outros. A Recorrente entende que deve ser considerado como não provado pelos seguintes motivos: «E/ Fosse o local motivo direto para a produção da infeção e teria ocorrido intercorrência em ambas as nádegas, o que não aconteceu. F/ Além disso, tanto pela Ré como pela testemunha CC, enfermeiras de profissão, foi esclarecido que não é relevante o local em si, mas antes a assepsia do local anatómico e a esterilização adequada dos materiais utilizados – o que foi cumprido pela Ré (factos provados 2, 7, 8 e 10) G/ Em segundo plano, o tribunal a quo caracterizou o procedimento como “invasivo” quando se deu como provado que o mesmo não requer anestesia e utiliza materiais de calibre menor do que uma agulha de tirar sangue, a título de exemplo. H/ Não se produziu prova no sentido de se aferir que o espaço onde foi feito o procedimento é um espaço inadequado e que tal teve direta interferência no resultado, pelo que o ponto 11 dos factos provados deve ser dado como não provado.». Na sentença recorrida, a este propósito, na motivação, consta o seguinte: “No que se reporta ao local onde foi efetuado o procedimento em questão, cabeleireiro, que à data não se encontrava em funcionamento, de acordo com as coincidentes declarações da Autora e da Ré, atendeu-se, igualmente, às regras da normalidade e da experiência, sendo inequívoco que o local em questão não se destina a este tipo de procedimentos, não garantindo, pela sua natureza, local com proliferação de cabelos e de cheiros, devido às tintas, vernizes, géis, independentemente de se encontrar encerrado à data da prática do procedimento em questão, condições mínimas de higiene, salubridade e segurança para se efetuar qualquer intervenção invasiva num corpo humano.”. Esta factualidade, no modo como se encontra redigida, comporta duas partes distintas: - Uma parte respeitante àquele concreto cabeleireiro onde foi realizado o procedimento melhor descrito nos pontos 3, 4, 5 e 6 (caso individual); - Outra parte respeitante a todos os cabeleireiros (em geral e abstracto). Portanto, parte-se do caso individual para se generalizar por todos os cabeleireiros. Contudo, não se produziu qualquer prova sobre o estado do cabeleireiro em concreto onde foi realizado o aludido procedimento para saber se possuía as necessárias condições de segurança, portanto, não pode ser considerado provado relativamente ao caso individual nem generalizar. Questão diversa – em face da ausência de prova sobre as condições de segurança do cabeleireiro – é poder utilizar presunções judiciais, a averiguar em sede de enquadramento jurídico, para se tecerem considerações sobre as condições de segurança dos cabeleireiros em geral para a realização deste tipo de procedimentos ou mesmo sobre a relevância do local utilizado. O que tem relevância para o caso em apreciação é que o local onde o procedimento foi realizado era efectivamente um cabeleireiro e, saber se era ou não o local mais adequado ou apropriado já nos localiza no domínio conclusivo da apreciação jurídica, como se verá infra. Deste modo, tal factualidade, deve considerar-se excluída dos factos provados, ou seja, não se considera provada nem não provada. * 8.4. Análise do ponto 15 dos factos provados: 15 - Nesse mesmo dia, a Autora deslocou-se a uma farmácia, não lhe sendo possível comprar aquele medicamento por se tratar de um antibiótico, só o vindo a conseguir com receita médica, pelo que teve que marcar consulta num médico. A Recorrente entende que se deve considerar como não provado essencialmente porque não consta da motivação expendida qualquer referência a este facto, nem existiu produção de prova em audiência de julgamento que o escore. Com efeito, a este propósito, não resulta da motivação qualquer referência à convicção do tribunal nem ela resulta de qualquer meio de prova, por isso deve passar ao elenco dos factos não provados. * 8.5. Análise do ponto 20 dos factos provados: 20 - No dia 17/08/2022, a Autora voltou a queixar-se da nádega esquerda, já alarmada, envia foto do estado da infeção, referindo que o seu médico a aconselhara a ir a um cirurgião plástico. Proposta alternativa da Recorrente: 20 - No dia 17/08/2022, a Autora enviou uma mensagem à Ré onde se voltou a queixar da nádega esquerda, enviando foto do estado da infeção, referindo que o seu médico a aconselhara a ir a um cirurgião plástico. A Recorrente considera que o ponto 20 dos factos provados contém um adjetivo “alarmada” que não encontra qualquer sustento na prova produzida, pelo que também deve ser alterado. Vejamos. Ora, a circunstância da Autora se mostrar “já alarmada” contém duas expressões conclusivas: A expressão “já” configura um advérbio que significa “de modo imediato ou sem demora”[2]. A expressão “alarmada”, neste contexto, caracteriza o estado interno psicológico de uma pessoa que sente “inquietação, medo ou sobressalto”[3]. Deste modo, ambas as expressões, por serem conclusivas e irrelevantes, devem ser excluídas do ponto 20, passando a ter a seguinte redacção: 20- No dia 17/08/2022, a Autora enviou uma mensagem à Ré onde se voltou a queixar da nádega esquerda, enviando foto do estado da infeção, referindo que o seu médico a aconselhara a ir a um cirurgião plástico. * 8.6. Análise do ponto 35 dos factos provados: 35 - A Autora suportou despesas com a deslocações para os tratamentos a que teve que se submeter, em quantia não concretamente apurada, mas não superior a 200 euros. A Recorrente entende que este facto deve ser excluído essencialmente porque desconhece qual o cálculo elaborado pelo tribunal a quo que subsistiu à quantia arbitrada, que não se fez prova, nomeadamente documental, quanto aos custos de deslocação, o que poderia e deveria ter sido junto pela Autora, tais como recibos de combustível, mapas de quilómetros. A este propósito consta da motivação daquela decisão o seguinte: «Relativamente aos gastos com a deslocação suportados pela Autora com consultas e tratamento, atendeu-se ao número de consultas e deslocações para tratamentos em conjugação com as regras da normalidade e da experiência para este tipo de situações.». Da referida motivação resulta minimamente qual foi o raciocínio lógico seguido pelo julgador para apurar tais factos, sem necessidade de se exigir a realização concreta do cálculo matemático, uma vez que consta do elenco dos factos provados, não impugnados, os locais onde a Autora realizou tratamentos e consultas para daí se depreender a necessidade de deslocação da mesma aos mesmos como algo evidente e notório, bem como, o quantitativo concreto apurado parece-nos perfeitamente plausível e consentâneo com os locais para onde teve de se deslocar (factos provados 22 a 34). Termos em que improcede esta impugnação. * 8.7. Análise do ponto 8 dos factos provados: “8- A Ré realizou o procedimento estético referido no ponto 1, na qualidade de técnica em harmonização através de fios de sustentação, formação que lhe garantiu competências para a realização do procedimento aplicado à Autora.” Apesar deste facto não ter sido impugnado pela Recorrente, impõe-se a sua reapreciação oficiosa em face dos elementos de prova constantes dos autos, porque na reapreciação da decisão de facto procedeu-se à análise de toda a prova produzida, já que a prova não pode ser analisada isoladamente mas sempre em conjugação entre os vários elementos. Consta da motivação da sentença relativamente a este facto que: «No que se reporta aos esclarecimentos prévios sobre o procedimento a efetuar, consentimento da Autora, à forma como o procedimento foi efetuado e cuidados a seguir, relevou-se as convincentes e objetivas declarações da Ré, enfermeira de profissão, sobre tal matéria, em conjugação com as declarações da testemunha CC, enfermeira, tendo tirado a especialidade de obstetrícia com a Ré, em 2015, que, com credibilidade e isenção, descreveu a competência técnica e profissional da Ré, tratando-se de uma profissional absolutamente competente, cuidadosa e minuciosa, aludindo às habilitações da Ré para o exercício desta atividade, o que se encontra corroborado pelo certificado emitido pela Academia ..., relativa à participação daquela no curso de Harmonização orofacial de fios de sustentação, com uma duração de 32 horas, junto aos autos em 2/4/2025, que aqui se dá por reproduzido.» (sublinhado nosso). Contudo, ressalta desde logo à evidência que do certificado emitido pela Academia ... apenas resulta a prova de que a Ré, na qualidade de enfermeira, fez um curso de especialização em “Harmonização orofacial de fios de sustentação”, significando isto que lhe conferiu qualificações, ainda no âmbito da qualidade de enfermeira, para a colocação de fios de sustentação “orofacial”, ou seja, na boca e na face e não nas nádegas que exigem outra especialidade diversa. Além disso, as habilitações para tal efeito não dependem de prova testemunhal mas documental. Deste modo, apesar de ser enfermeira, a Recorrente-Ré não estava habilitada a exercer aquele procedimento. Por outro lado, não existe a profissão de “Técnica em Harmonização”, apenas existe o curso de especialização nessa valência para profissionais habilitados em medicina estética. Portanto, daqui resulta desde logo que a Ré realizou o procedimento apenas na qualidade de enfermeira, aliás, por isso mesmo faz todo o sentido, tem lógica e é plausível que a Autora tenha aceitado submeter-se a este procedimento precisamente por a Ré ser enfermeira, deixando aquela mais tranquila. Em consequência, a factualidade constante do ponto 8 deve passar ao elenco dos factos não provados e a factualidade da al. b) dos factos não provados deve passar a factos provados, do seguinte modo: “8- A Ré realizou o procedimento a que se alude no ponto 1 na qualidade de enfermeira e a Autora só aceitou que a Ré lhe efetuasse tal procedimento, por aquela exercer essa profissão”. * 8.8. Por sua vez, resulta ainda do ponto 5 dos factos provados que “5 - Após a implantação do fio na pele, os níveis de colágeno tipo 1 e fator de crescimento são aumentados por meio dessa reação tecidual, sendo a polidioxanona um material totalmente absorvível.” Contudo, deve ser retificado este ponto de facto para lhe conferir maior precisão: A mera referência a que o fio é colocado na pele parece que é colocado “por cima da pele” mas na verdade ele é colocado “sob a pele”, precisamente por isso é que se trata de aplicação de PDO ou polidioxanona, daí a necessidade de esterilização, entre outros cuidados a ter. Deste modo, deve ser rectificado o ponto 5 do seguinte modo: 5 - Após a implantação do fio sob a pele, os níveis de colágeno tipo 1 e fator de crescimento são aumentados por meio dessa reação tecidual, sendo a polidioxanona um material totalmente absorvível. * 8.9. Impugnação dos seguintes factos não provados: pp) A Autora, após o procedimento, usou roupa desadequada à cicatrização, colocou-se em posição de sentada, participou em eventos com elevados níveis de humidade e transpiração, propícios à propagação de bactérias, incumpriu com o horário da medicação e a toma da totalidade dos comprimidos, bem como participou em eventos ingerindo bebidas alcoólicas num período em que, pretensamente, se encontrava a fazer a toma de antibiótico. qq) Para além do referido no ponto 17, que a Autora viajou para férias após o dia 18/07/2022. rr) A Autora foi ao batizado do sobrinho, utilizando roupa justa e ingerindo bebidas alcoólicas num momento em que combatia uma infeção, tomando antibiótico.”. ss) A Autora incumpriu com o horário da medicação. Em alternativa, a Recorrente entende que deve ser declarado provado que: - A Autora não seguiu os cuidados de pós-procedimento fornecidos pela Ré nem cumpriu os mais elementares cuidados de quem combatia uma infeção (não recebeu cuidados médicos por sua iniciativa, frequentou eventos festivos, viajou e utilizou roupas de material inadequado sem proteger o local). - A Autora adotou comportamentos de risco, tendo permitido que pessoas sem formação na área da saúde, fizessem intervenções na nádega esquerda através de procedimentos e materiais desaconselhados. - A Autora não recebeu cuidados médicos no dia 19 de agosto de 2022, por sua inteira decisão, uma vez que queria frequentar um evento festivo no sábado seguinte – o que fez. - A Autora incumpriu com o horário da medicação. Na motivação da sentença sobre os factos não provados consta que: «Os restantes factos não provados ficaram a dever-se à total ausência de prova credível, nomeadamente no que se reporta ao incumprimento do horário da medicação por parte da Autora, já que a mesma apenas admitiu atrasos pontuais na hora da medicação, o que, por si só, é manifestamente insuficiente para que possamos concluir que ocorreu incumprimento do horário de medicação. Relativamente ao batizado do sobrinho da Autora, não foi produzida qualquer prova credível que esta tivesse utilizado roupa justa nessa festa e ingerindo bebidas alcoólicas, pelo que tal matéria foi considerada não provada.». Iniciando a análise pela factualidade proposta pela Recorrente como provada: A parte em que a Recorrente pretende ver como provado que “A Autora não seguiu os cuidados de pós-procedimento fornecidos pela Ré nem cumpriu os mais elementares cuidados de quem combatia uma infeção” é conclusiva e genérica, encerra um juízo valorativo – não é apta a ser considerada no elenco dos factos. A parte em que a Recorrente pretende ver como provado que “(não recebeu cuidados médicos por sua iniciativa…” é uma conclusão que teria de resultar de concretos “cuidados médicos” não recebidos e não se refere a quais, nem sequer está localizada no tempo e no espaço para se poder considerar como facto – não podendo assim ser considerado no elenco dos factos. A parte em que a Recorrente pretende ver como provado que “…frequentou eventos festivos, viajou e utilizou roupas de material inadequado sem proteger o local)” além de ser genérico não resultou da prova produzida que a Autora tenha praticado estes factos com utilização de roupas de material inadequado e/ou sem proteger o local, bem como, ouvidas as declarações da Ré das mesmas não mereceram a necessária credibilidade, para além de que a Ré não acompanhou permanentemente a Ré no seu dia a dia para poder fazer tal afirmação generalizando-a a todo o período de tempo. E não se compreende como se pode pretender retirar da circunstância da Autora ter referido que foi um dia a Barcelona que a mesma “viajou e utilizou roupas de material inadequado sem proteger o local” porque não se produziu qualquer prova sobre o tipo de roupa ser ou não adequada ou se foi ou não protegido o local visado, sendo que a possibilidade da Autora se poder deslocar (a Barcelona, ao Porto ou a qualquer outro local) não estava em causa. Deste modo, deve manter-se como não provado. A parte em que a Recorrente pretende ver como provado que “A Autora adotou comportamentos de risco…” é de igual modo conclusiva e genérica, encerra um juízo valorativo – não é apta a ser considerada no elenco dos factos. A parte em que a Recorrente pretende ver como provado que “…tendo permitido que pessoas sem formação na área da saúde, fizessem intervenções na nádega esquerda através de procedimentos e materiais desaconselhados”, para além de vago e genérico, não pode ser considerada porque trata-se de factualidade nova que não foi alegada pela Ré-Recorrente na sua Contestação. A Recorrente pretende se considere como provado que “A Autora não recebeu cuidados médicos no dia 19 de agosto de 2022, por sua inteira decisão, uma vez que queria frequentar um evento festivo no sábado seguinte – o que fez.” essencialmente com base nas declarações da Autora e mensagem desta do “Wathsapp” (doc 10 da Contestação). Contudo, a invocada mensagem da Autora à Ré, através do “Wathsapp”, em que refere “Só não fui ao bloco por causa do batizado sábado” não tem qualquer correspondência com a realidade porque, confrontada com isso, a Autora declarou (a partir do minuto 31:53) claramente que o médico lhe disse para fazer tratamentos e se não melhorasse então tinha de ir ao bloco, o que veio efectivamente a suceder posteriormente. Acresce ainda que resultou provada a seguinte factualidade não impugnada: “22- No dia 19/08/2022, a Autora deslocou-se às urgências do hospital ..., em Penafiel, onde foi intervencionada e encaminhada para curativos no seu centro de saúde. 23 - Por indicação do médico, a partir do dia 19/08/2022, a Autora iniciou os curativos, diariamente, no Centro de Saúde ....”. Daqui resulta como provado que a Autora recebeu cuidados médicos no dia 19/08/2022 nada mais havendo a realizar nesse dia. Termos em que improcede a impugnação pretendida. A Recorrente pretende se considere como provado que “A Autora incumpriu com o horário da medicação.”. Em primeiro lugar, a expressão “A Autora incumpriu com o horário da medicação” configura uma conclusão vaga e genérica e não factualidade concreta enquanto pedaço da vida real. Contudo, a própria Autora admitiu efectivamente que tomou alguns medicamentos com meia hora de atraso no máximo, devendo por isso constar dos factos provados a seguinte factualidade: A Autora tomou alguns dos medicamentos com meia hora de atraso em relação ao horário estipulado. * 8.10. Na sequência de todo o exposto, deve passar a considerar-se a seguinte factualidade: FACTOS PROVADOS: 1 - No dia 01/07/2022, a Ré, enfermeira, acordou com a Autora em efetuar-lhe um procedimento estético de levantamento das nádegas, com recurso a “fios”, por solicitação da Autora, prática que ia ser executada no salão de cabeleireiro “A...”, situado no largo ..., em Paredes, local escolhido pela Ré. 2 - Quando a Autora procurou a Ré para realizar o referido procedimento, foi informada quanto à tramitação do mesmo, à forma de o realizar e seus materiais, bem como quanto aos seus riscos – como qualquer procedimento estético – para o que, de forma livre e espontânea, expressamente consentiu. 3 - No dia 04/07/2022, às 11h00, no referido salão de cabeleireiro, a Ré realizou na Autora o primeiro procedimento, tendo procedido à colocação de fios de polidioxanona nas nádegas da Autora. 3.1. – Naquele momento, o referido salão de cabeleireiro estava encerrado ao público em geral, encontrando-se presente a respectiva dona que estava a realizar o serviço de lavagem do cabelo a uma cliente. 4 - Os referidos fios são bioestimuladores de colagénio, decorrente de uma reação entre o fio de sutura e o tecido mole circundante que pode resultar em bioestimulação e efeito lifting adicional. 5 - Após a implantação do fio sob a pele, os níveis de colágeno tipo 1 e fator de crescimento são aumentados por meio dessa reação tecidual, sendo a polidioxanona um material totalmente absorvível. 6 - A função dos fios de sustentação é o tratamento de flacidez cutânea e reposicionamento dos tecidos moles. 7 - A Ré utilizou todos os materiais necessários, adequados e esterilizados à realização do procedimento através de fios de sustentação em ambas as nádegas da Autora. 8- A Ré realizou o procedimento a que se alude no ponto 1 na qualidade de enfermeira e a Autora só aceitou que a Ré lhe efetuasse tal procedimento, por aquela exercer essa profissão. 9 - A Ré procedeu à colocação dos “fios” numa das nádegas com a Autora na posição de pé, mas debruçada sobre uma cadeira. 10 - A Ré informou a Autora dos deveres de cuidado pós-procedimento, nomeadamente: Não fazer atividade física por 7 dias, não se expor a calor, sol, piscina ou sauna por 7 dias, usar roupa confortável, de preferência de algodão; não ingerir álcool por 7 dias; não fumar durante 7 dias; Controlar o movimento corporal da região, minimizando ao máximo movimentos como: cruzar pernas, dormir de barriga para cima, evitar estar sentada; Evitar ingestão de aspirina durante 10 dias; Bolsas de gelo nas primeiras 48 horas; Não massagear a área tratada por 2 meses. 11 – (excluído). 12 - No dia 08/7/2022, a Autora deu conhecimento à Ré que a nádega esquerda apresentava vermelhidão, tendo a Ré aconselhado a proceder à desinfeção por água oxigenada e bacitracina como forma de mitigar a vermelhidão. 13 - No dia 11/7/2022, a Autora enviou à Ré a foto da nádega esquerda, junta na p.i. como documento 3, que aqui se dá por reproduzida. 14 - Tendo a Ré aconselhado a Autora a tomar Amoxlina e ácido clavulamico 875/125, de 12 em 12 horas, durante 8 dias, pedindo-lhe que tente obter aquele medicamento. 14.1. A Autora tomou alguns dos medicamentos com meia hora de atraso em relação ao horário estipulado. 15 – (não provado). 16 - No dia 13/07/222, a Autora informa a Ré que está a sair muita “matéria”, enviando-lhe as fotos juntas na p.i., como documentos 7 e 8, que aqui se dão por integralmente reproduzidas, tendo a Ré aconselhado a Autora a pôr compressa e bacitracina. 17 - A Autora apresentou melhorias logo no dia 18/07/2022. 18 - No dia 26/07/2022, a Autora envia à Ré a foto junta na p.i. como documento 9, que aqui se dá por reproduzida, onde é visível uma melhoria significativa, com diminuição da vermelhidão. 19 - No dia 16/08/2022, a Autora deslocou-se a casa da Ré para que esta verificasse o estado da infeção e fizesse o penso. 20- No dia 17/08/2022, a Autora enviou uma mensagem à Ré onde se voltou a queixar da nádega esquerda, enviando foto do estado da infeção, referindo que o seu médico a aconselhara a ir a um cirurgião plástico. 21 - Nesse mesmo dia, a Ré aconselha a Autora a ir às urgências. 22 - No dia 19/08/2022, a Autora deslocou-se às urgências do hospital ..., em Penafiel, onde foi intervencionada e encaminhada para curativos no seu centro de saúde. 23 - Por indicação do médico, a partir do dia 19/08/2022, a Autora iniciou os curativos, diariamente, no Centro de Saúde .... 24 - Para efetuar o procedimento estético a que se alude no ponto 1, a Autora pagou à Ré, no dia 04/07/2022, por Mbway, a quantia de € 600,00. 25 - A partir do dia 12/9/2022, a Autora, por sua iniciativa, passou a ser seguida no Hospital 1..., tendo pago, na Cirurgia geral, 1.ª consulta, a quantia de € 50,00. 26 - No dia 19/9/2022, a Autora efetuou eletrocardiograma tendo pago a quantia de € 7,00 euros. 27 - No dia 26/9/2022, de Cirurgia geral, 2.ª e restantes consultas, a Autora pagou a quantia de € 50,00. 28 - No dia 28/9/2022, pelo ARN SARS-CoV-2 (Covid-19), PCR, prod, a Autora pagou a quantia de € 70,00. 29 - No dia 29/9/2022, a Autora efetuou cirurgia “Excisão de tumor profundo”, no qual foi identificado um “corpo estanho (fio) com 0,5 cm”, efetuada no Hospital 1..., tendo pago a quantia de € 683,48 euros. 30 - No dia 10/3/2022, por cirurgia geral, 2.ª e restantes consultas, a Autora pagou a quantia de € 50,00. 31 - No dia 10/10/2022, por cirurgia geral, 2.ª e restantes consultas, a Autora pagou a quantia de € 50,00. 32 - No dia 17/10/2022, por cirurgia geral, 2.ª e restantes consultas, a Autora pagou a quantia de € 50,00. 33 - No dia 24/10/2022, por cirurgia geral, 2.ª e restantes consultas, a Autora pagou a quantia de € 50,00. 34 - No dia 31/10/2022, por cirurgia geral, 2.ª e restantes consultas, a Autora pagou a quantia de € 50,00. 35 - A Autora suportou despesas com a deslocações para os tratamentos a que teve que se submeter, em quantia não concretamente apurada, mas não superior a 200 euros. 36 - A Autora teve alta a 9/1/2023. 37 - Os factos a que se alude nos pontos 12 a 35 causaram sofrimento físico e psicológico à Autora. 38 - A Autora nasceu em ../../1982. FACTOS NÃO PROVADOS: a) Que o procedimento a que se alude no ponto 1 se designa por “lipo enzimática”, a efetuar uma vez por semana, num total de 6 a 7 sessões, custando cada sessão a quantia de €80,00. b) (passou ao elenco dos factos provados) c) Para além do referido no ponto 10, que o procedimento a que se alude no ponto 1 foi efetuado em local devidamente higienizado. d) Para além do referido no ponto 10, que aquando da execução do procedimento, os cabelos e pelos estavam a ser lançados pelos secadores e que no cabeleireiro estavam a ser aplicadas lacas e géis. e) Para além do referido no ponto 9, que a Ré procedeu à colocação dos “fios” na nádega esquerda com a Autora na posição de pé. f) O médico que operou a Autora ficou estupefacto e até exaltado, ao constatar o estado em que estavam as infeções, motivo pelo qual pediu insistentemente à Autora que identificasse a enfermeira que a colocou naquele estado, com o objetivo de a denunciar ao Ministério Público e à Ordem dos Enfermeiros. g) Todavia, a Autora, de modo a proteger a Ré, recusou-se a denunciá-la ao clínico. h) O cirurgião que efetuou a operação informou a Autora de que estes procedimentos nunca são efetuados com a paciente de pé, muito menos num salão de cabeleireiro. i) A Ré estava a efetuar os curativos à Ré de forma incorreta. j) Para além do referido no ponto 35, que a Autora suportou a quantia de 450 euros com despesas com a deslocações para os tratamentos a que teve que se submeter. l) Tem ainda que despender a quantia de € 2.500,00 para pagamento da cirurgia estética a que se vai submeter, de modo a tentar disfarçar os buracos que resultaram da intervenção da Ré. m) A Autora desempenhava as funções de empregada de escritório num gabinete de contabilidade, auferindo o ordenado mínimo. n) E exercia a atividade promotora imobiliária, ganhando uma comissão sobre as vendas que efetuava. o) Decorrente e por causa da situação descrita, deixou de trabalhar no gabinete de contabilidade desde o dia 04/07/2022 (data da intervenção) até ao final do mês de janeiro de 2023, motivo pelo qual acabou por ser dispensada pela sua entidade empregadora. p) E no mesmo período não conseguiu vender um único imóvel. q) Relativamente à atividade exercida no gabinete de contabilidade, a Autora passou a receber a título de baixa médica uma média de € 360,00. r) Relativamente à sua atividade de vendedora de imóveis, a Autora vendia em média um imóvel a cada dois meses, ganhando, em média, € 2.000,00 por cada venda. s) A nádega da Autora ficou em pior estado do que estava antes da intervenção da Ré. t) A Autora correu risco de vida. u) O médico que a operou informou-a que, durante a operação, correu mesmo risco de vida, pelo facto do seu estado de saúde se ter agravado consideravelmente durante a intervenção. v) Ainda hoje a Autora sofre dores na nádega esquerda, sobretudo perante mudanças de tempo e tais dores nunca desaparecerão. x) A Autora sente desgosto por ter ficado com duas marcas visíveis na nádega esquerda. z) Sempre que a Autora veste roupa mais fina, sejam calças, vestidos ou saias, são percetíveis aqueles dois buracos. a) Há peças de roupa que nunca mais vestiu. b) A Autora ficou complexada e deixou as suas idas à praia, a uma piscina, ou até em situações do foro íntimo. cc) A vida íntima e sexual da Autora nunca mais será a mesma. dd) Além da nádega continuar descaída, tem agora a agravar o seu complexo os dois buracos que resultaram da intervenção da Ré. ee) A Autora irá ter que se submeter a uma operação estética, intervenção esta que apenas visará reduzir a profundidade dos buracos na nádega e não eliminar as cicatrizes. ff) A Ré cortou relações com a Autora, deixando-a completamente sozinha. gg) A Autora perdeu por completo a sua autoestima, motivo pelo qual, necessitará ainda para o resto da vida de acompanhamento médico e medicamentoso para o tratamento da síndrome depressivo ansioso que, praticamente curada, se agravou consideravelmente em resultado da intervenção efetuada pela Ré. hh) Por causa das alterações na imagem corporal, a Autora passou a ter dificuldade nos relacionamentos interpessoais, diminuição de relações sociais, sentimentos de isolamento e de constrangimento. ii) Muita da sua roupa já nem sequer a veste. jj) As suas nádegas eram o segmento corpóreo mais valorizado no seu corpo e por isso o mais representativo da sua pessoa e como centro das atenções para uma busca estética. ll) A deformação e desfiguração da nádega esquerda faz a Autora reagir com um profundo sentimento de dor, medo e ansiedade, relacionado com o grau de afetividade reprimida dentro de si, isso leva-a à depressão, à marginalização e à alienação social. mm) Por força da intervenção efetuada pela Ré e dos danos psicológicos que causou, a Autora necessitará para o resto da sua vida de acompanhamento psicológico, designadamente a cada três, quatro ou seis meses. nn) A Autora irá gastar anualmente com psicólogos quantia nunca inferior a €400,00. oo) A Autora necessitará ainda para o resto da vida também de acompanhamento medicamentoso para o tratamento da síndrome depressivo ansioso que, praticamente curada, se agravou em resultado da intervenção efetuada pela Ré, para o qual, em média anual, despenderá quantia nunca inferior a € 150,00. pp) A Autora, após o procedimento, usou roupa desadequada à cicatrização, colocou-se em posição de sentada, participou em eventos com elevados níveis de humidade e transpiração, propícios à propagação de bactérias, incumpriu com o horário da medicação e a toma da totalidade dos comprimidos, bem como participou em eventos ingerindo bebidas alcoólicas num período em que, pretensamente, se encontrava a fazer a toma de antibiótico. qq) Para além do referido no ponto 17, que a Autora viajou para férias após o dia 18/07/2022. rr) A Autora foi ao batizado do sobrinho, utilizando roupa justa e ingerindo bebidas alcoólicas num momento em que combatia uma infeção, tomando antibiótico. ss) A Ré realizou o procedimento estético referido no ponto 1, na qualidade de técnica em harmonização através de fios de sustentação, formação que lhe garantiu competências para a realização do procedimento aplicado à Autora. tt) Nesse mesmo dia, a Autora deslocou-se a uma farmácia, não lhe sendo possível comprar aquele medicamento por se tratar de um antibiótico, só o vindo a conseguir com receita médica, pelo que teve que marcar consulta num médico. * 9. Reapreciação jurídica da causa A Recorrente entende que não se verificaram os pressupostos da responsabilidade civil desta essencialmente pelas seguintes razões: - a sentença considerou verificada a ilicitude apenas porque o procedimento foi realizado no cabeleireiro, mas da prova testemunhal resultou que o local não é importante, mas antes a assepsia do material utilizado; - Não ocorreu inspecção ao local nem perícia para associar o local à produção do dano; - O local foi escolhido pela Autora; - O consentimento do lesado exclui a ilicitude; - Ocorreu comportamento de risco da Autora; - Não se verifica nexo de causalidade entre a actuação da Ré e o dano da Autora. Apreciando. A sentença recorrida inicia a sua fundamentação jurídica pela apreciação dos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual, salientando que a prova da culpa incumbe ao lesado, mas termina por considerar que “ocorreu ilicitude contratual (independentemente de considerações sobre a culpa), um juízo de imputação objetivo que revela incumprimento do contrato de prestação de serviço prestado pela Ré, na perspetiva da obrigação de meios e da obrigação lateral de defesa da integridade física e da saúde da paciente Autora.” e conclui afirmando que “ocorreu a ilicitude, o nexo de causalidade entre o facto (realização de procedimento num salão de cabeleireiro) e os danos sofridos pela infeção de que a Autora foi vítima, devendo a Ré ser responsabilizada.”. Com efeito, no caso concreto em apreciação, movemo-nos diante de um concurso entre a responsabilidade civil contratual decorrente de incumprimento ou cumprimento defeituoso de um contrato de prestação de serviços (art. 798.º, do CC) e a responsabilidade civil extracontratual fundada na violação dos direitos subjetivos da Autora à sua integridade física e moral (arts. 25.º, n.º1 e 26.º, n.º 1 da CRP e 483.º e 70.º, n.º 1 do CC). A este propósito, «A distinção entre a responsabilidade civil contratual e a extracontratual, relacionada com a dicotomia direito relativo/direito absoluto, tem vindo a ser questionada pela doutrina, que salienta as analogias e aproximações crescentes entre as duas modalidades de responsabilidade civil e o surgimento de tipos de responsabilidade civil autónomos em relação a esta dualidade tradicional como a responsabilidade pela confiança. Admite-se o cúmulo das duas responsabilidades, podendo o lesado escolher a que mais lhe convém ou aproveitar de cada regime as soluções mais vantajosas para os seus interesses. Em regra, como a responsabilidade contratual é mais favorável ao lesado, a jurisprudência aplica o princípio da consunção, de acordo com o qual o regime da responsabilidade contratual consome o da extracontratual, solução mais ajustada aos interesses do lesado e a mais conforme ao princípio geral da autonomia privada. Foi esta a solução defendida pelo acórdão deste Supremo Tribunal, de 22-09-2011, relatado pelo Conselheiro Bettencourt de Faria, processo n.º 674/2001.PL.S1, onde se afirma que “estando em causa direitos absolutos, como de integridade básica, põe-se a questão de saber se não concorrem na negligência médica a responsabilidade contratual e a extracontratual. (…) [e]xiste, por isso, um concurso aparente de normas, que deve ser resolvido pela prevalência da responsabilidade contratual, por ser a mais adequada para a defesa dos interesses do lesado.” Deve notar-se também que a compensação por danos não patrimoniais não é exclusiva da responsabilidade extracontratual, e tem sido aceite também na responsabilidade contratual, com base na violação dos deveres de proteção da esfera pessoal da outra parte.»[4]. No caso concreto, atendendo a que as partes se encontram ligadas por um contrato, o regime legal aplicável é o da responsabilidade contratual, como acabou por se fazer na sentença recorrida, desde logo porque este regime é o mais favorável à lesada, dada a presunção de culpa que onera a devedora (art. 799.º, n.º 1 do CC), devendo aplicar-se, assim, o princípio da consunção. Com efeito, os pressupostos das duas formas de responsabilidade são iguais, distinguindo-se essencialmente pela circunstância de no domínio da responsabilidade civil contratual recair sobre o lesante uma presunção de culpa (artigo 799.º, n.º 1 do Código Civil), norma que, portanto, é mais favorável para o lesado do que o artigo 487.º, n.º 1, 1ª parte do Código Civil, que disciplina a matéria no domínio da responsabilidade civil extracontratual. Assim, são pressupostos da responsabilidade civil contratual a existência de um facto voluntário; a sua ilicitude; a culpa do autor do facto; a produção de um dano; e o nexo de causalidade entre o facto e o dano. A alegação e prova dos pressupostos da responsabilidade civil da Ré incumbe à Autora (artigo 342.º, n.º 1 do Código Civil), com exceção da culpa, atenta a presunção legal acima indicada (artigo 350.º, n.º 1 do Código Civil). A alegação e prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos da sua responsabilidade incumbe à Ré (artigo 342.º, n.º 2 do Código Civil). Entre Autora e Ré estabeleceu-se uma relação contratual, caraterizada como contrato de prestação de serviço, tipificado no artigo 1154º do CC, que o define como «aquele em que uma das partes se obriga a proporcionar à outra certo resultado do seu trabalho intelectual ou manual, com ou sem retribuição». Importa referir que, aparentemente, o resultado a que alude esta norma não é o “levantamento das nádegas” mas a “colocação dos fios de PDO nas nádegas da Autora” – esta é a obrigação principal a cargo da Ré. Contudo, há quem entenda que neste tipo de procedimentos existe mesmo a obrigação de resultado e não apenas de meios – ou há quem afirme mesmo uma obrigação de “quase resultado”[5] – contudo, acaba por ser uma questão lateral sem interferência no desfecho do mérito da causa, como se verá. Ou seja, saber se o referido procedimento obtém mesmo o efeito pretendido pela Autora não fará parte da obrigação – aliás, não é sequer o objecto do litígio, por isso não será aprofundada esta problemática. Então, pelo menos, a Ré está obrigada a fazer os procedimentos mais adequados (obrigação de meios) para a obtenção de tal resultado – o levantamento das nádegas. Por isso, considerando-se que a obrigação da Ré é apenas uma obrigação de meios, sobre esta recai o ónus da prova de que agiu com a diligência e perícia devidas, se se quiser eximir à sua responsabilidade, nos termos do art. 799.º, n.º 1, do CC, que consagra uma presunção de culpa do devedor. As intervenções estéticas, tal qual as cirurgias estéticas, com similitudes com este caso concreto, para além da especificidade de comportarem obrigações de “quase resultado”, exigem um dever de esclarecimento mais intenso e mais rigoroso de quem as realiza, pelo facto de serem intervenções que não são necessárias do ponto de vista da saúde. Na relação contratual entre a Ré e a Autora, a par de deveres de prestação com vista a atingir um determinado resultado, coexistem outros deveres de conduta articulados entre si de forma orgânica e igualmente orientados para o mesmo objetivo. É que as obrigações decorrentes da prestação de serviços estéticos caraterizam-se pela designada “relação obrigacional complexa” ou “relação obrigacional em sentido amplo”, em que coabitam deveres laterais, alguns dos quais persistem mesmo após a extinção da relação contratual e que, mesmo que não contemplados em norma legal expressa, encontram no princípio geral da boa fé a sua razão de ser (cfr. art. 762.º, do CC). Nesta sequência, no caso do contrato de prestação de serviços da Ré, esta está obrigada a uma constelação de obrigações secundárias e deveres acessórios de conduta, entre outros, inteirar-se previamente à prática do acto da compatibilidade geral da saúde da Autora com o procedimento estético, alergias existentes, contraindicações, bem como, informar a Autora dos tratamentos e terapêuticas aconselhados à referida situação e dos riscos que os mesmos comportam e ainda dos cuidados pós procedimento a observar, para além da utilização dos mais adequados materiais e utilização de local adequado. Apesar de não se tratar aqui propriamente de uma ação fundada em “negligência médica”, pois a Ré é enfermeira tendo realizado autonomamente um “procedimento estético”, existe manifesta similitude entre as duas situações[6], devendo ser-se particularmente exigente quanto às obrigações secundárias e deveres acessórios, entre outros: deveres de informação, até porque o tratamento em causa é invasivo, independentemente de se qualificar como muito ou pouco invasivo, sublinhando a maior exigência dos deveres de informação como sucede no âmbito da cirurgia estética[7]. No caso concreto verifica-se um cumprimento defeituoso da obrigação (consubstanciada na violação de obrigações secundárias e deveres acessórios), uma vez que ocorreu infecção da nádega da Autora, não tendo a Ré provado – nem sequer alegado, que procedeu à análise prévia do estado de saúde da Autora e sua compatibilidade para a prática do acto e, além disso, a Ré, apesar de ser enfermeira, não tinha as necessárias qualificações para o efeito e, finalmente, o procedimento foi realizado em salão de cabeleireiro, o qual, apesar de fechado ao público em geral estava a ser simultaneamente utilizado para lavar o cabelo a cliente. Aqui chegados, podemos considerar, sem sombra para dúvidas, que um salão de cabeleireiro não é o local adequado para a realização do procedimento em causa, à luz das mais elementares regras da experiência, da lógica e do bom senso, obrigação acrescida tratando-se a Ré de uma enfermeira. Por isso, também entendemos, como na sentença recorrida, que um salão de cabeleireiro não reúne o mínimo de condições de segurança, de higiene e salubridade para se efetuar qualquer intervenção, muito ou pouco invasiva, num corpo humano, por ser um local com proliferação de cabelos, pelos, com cheiros de produtos químicos de lacas, géis, tintas, entre outros. Com efeito, ao contrário do que entende a Ré, a realização deste procedimento estético – melhor descrito nos factos provados – em salão de cabeleireiro não é de somenos importância e revela bem o modo displicente como aquele procedimento foi realizado, sem necessidade de outros comentários. Aliás, basta atentar nos cuidados a ter e nas advertências feitas pela Ré à Autora para o período pós procedimento para se compreender o grau de intervenção no corpo da Autora. A Ré entende que o lugar onde foi realizado o procedimento não é importante mas antes a assepsia dos materiais utilizados. Que dizer? Parece-nos que nessa lógica o procedimento em causa poderia ter sido realizado em qualquer lugar, o que não nos parece ser de todo esse o caso. Acresce ainda que a Ré nem sequer tinha as qualificações necessárias para realizar o referido procedimento. Nesta sequência, a ilicitude ocorre duplamente, porque resulta da violação pela Ré dos aludidos deveres acessórios e obrigações secundárias (responsabilidade civil contratual) e ainda da violação do direito de personalidade da Autora (responsabilidade civil extracontratual). A integridade física, a saúde e a imagem da Autora mostram-se, pois, afetadas (artigo 70.º, n.º 1 do Código Civil), o que representa um dano, causado pelo tratamento que lhe foi aplicado pela Ré (artigo 563.º do Código Civil). A Ré argumenta ainda que o consentimento do lesado exclui a ilicitude, contudo, com o devido respeito, parece-nos que há um equívoco, porque o consentimento da Autora para a prática do acto apenas torna lícita a intervenção da Ré no corpo da Autora, ou seja, da obrigação principal de colocação de PDO nas nádegas da Autora, não é abrangente de todos os demais deveres acessórios de conduta e obrigações secundárias, acima aludidas, aliás, que a Autora não é sequer obrigada a conhecer porque não é pessoa desta área de actuação médica ou de enfermagem. Portanto, a ilicitude não consiste na intervenção não consentida no corpo de Autora (caso não houvesse consentimento), mas antes, pela violação pela Ré das aludidas obrigações secundárias e deveres acessórios de conduta. Precisamente porque se trata de um pressuposto da responsabilidade civil contratual. Deste modo, a Ré está obrigada a proceder à reparação dos danos causados pelo incumprimento ou cumprimento defeituoso, nos termos dos artigos 798.º e 562.º e seguintes do Código Civil, quando, por facto que lhe seja imputável, não cumpre, ou cumpre de forma deficiente, alguma das obrigações que integram o complexo de deveres que a oneram, previamente, durante e após a realização do procedimento estético em causa. Finalmente, a Ré coloca em causa os comportamentos de risco da Autora, bem como, a intervenção sucessiva de outros intervenientes nas nádegas desta para discordar da verificação do nexo de causalidade. * 10. Responsabilidade Tributária As custas são da responsabilidade da Recorrente. * III. DISPOSITIVO Nos termos e fundamentos expostos, - Acordam os Juízes do Tribunal da Relação do Porto em julgar totalmente improcedente o recurso de apelação e confirmar a sentença recorrida. - Custas a cargo da Recorrente. * Porto, 24/11/2025 Filipe César Osório Nuno Marcelo de Nóbrega dos Santos Freitas Araújo Miguel Baldaia de Morais ____________________ [1] Ac. STJ de 15/06/2023 (Ricardo Costa, proc. n.º 6132/18.1T8ALM.L1.S2, www.dgsi.pt) https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/66d9524607ffba87802589d000483f11?OpenDocument [2] Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, Academia das ciências de Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, Verbo, 2001, pág. 2179. [3] Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, …, pág. 147. [4] Ac. STJ de 02/12/2020 (Maria Clara Sottomayor, proc. n.º 359/10.1TVLSB.L1.S1, www.dgsi.pt). https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/44f9ffe87381ef358025866900570924?OpenDocument [5] Ac. STJ de 17/12/2009 (Pires da Rosa, proc. n.º 544/09.9YFLSB), disponível em https://juris.stj.pt/ecli/ECLI:PT:STJ:2009:544.09.9YFLSB.69?search=Ok6n1AJ8WQ-MWjGjlLo [6] Como se considerou no Ac. TRE de 18/09/2025 (Sónia Moura, proc. n.º 784/19.2T8ABF.E1, www.dgsi.pt) https://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/f44fece35f34d95d80258d160057239e?OpenDocument [7] Neste sentido, vide o já citado Ac. STJ de 02/12/2020 (Maria Clara Sottomayor, proc. n.º 359/10.1TVLSB.L1.S1, www.dgsi.pt). [8] Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. I, 10.ª Edição, Almedina, 2009, pág. 992-994. |