Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 1.ª SESSÃO | ||
Relator: | MARIA CLARA SOTTOMAYOR | ||
Descritores: | RESPONSABILIDADE MÉDICA RESPONSABILIDADE CONTRATUAL PRAZO DE PRESCRIÇÃO PROVA DA CULPA ATO MÉDICO CONSENTIMENTO INFORMADO DEVER DE INFORMAÇÃO ÓNUS DA PROVA FACTO IMPEDITIVO OBRIGAÇÕES DE MEIOS E DE RESULTADO LEGES ARTIS TEORIA DA CAUSALIDADE ADEQUADA DANOS NÃO PATRIMONIAIS CÁLCULO DA INDEMNIZAÇÃO | ||
Data do Acordão: | 12/02/2020 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | CONCEDER EM PARTE A REVISTA | ||
Sumário : |
I – Tem sido maioritariamente entendido na jurisprudência deste Supremo Tribunal, que a responsabilidade civil por ato médico assume a natureza de responsabilidade contratual, por força do princípio da autonomia privada e por assim se assegurar uma maior proteção aos lesados, nomeadamente em relação ao prazo mais longo de prescrição (artigo 309.º do Código Civil) e ao ónus da prova da culpa (artigo 799.º, n.º 1, do Código Civil). II – As normas de direito nacional (os artigos 70.º, n.º 1, 81.º e 340.º, todos do Código Civil, e o artigo 157.º do Código Penal) e internacional (artigos 5.º da Convenção dos Direitos Humanos e Biomedicina e 3.º, n.º 2, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia) impõem, como condição da licitude de uma ingerência médica na integridade física dos pacientes, que estes consintam nessa ingerência e que esse consentimento seja prestado de forma esclarecida, isto é, estando cientes dos dados relevantes em função das circunstâncias do caso, entre os quais avulta a informação acerca dos riscos próprios de cada intervenção médica. III – Para apreciar as questões de direito a tratar, designadamente, o ónus da prova do consentimento informado e a extensão do dever de informação, é relevante a circunstância de se tratar de uma cirurgia estética, em que a intervenção não corresponde a uma necessidade terapêutica e a obrigação do médico é uma obrigação de resultado ou quase resultado. IV – A prova do consentimento informado, enquanto facto impeditivo do direito da autora (paciente), compete ao réu/recorrido (médico), nos termos do artigo 342.º, n.º 2, do Código Civil. V – Nas cirurgias estéticas, destinadas a melhorar a imagem de uma pessoa, os deveres de informação do médico são mais exigentes e rigorosos do que na cirurgia curativa ou assistencial e abrangem os riscos significativos e graves, mesmo que raros. O médico tem, assim, o dever de chamar a atenção dos pacientes para os prognósticos mais pessimistas de uma intervenção estética, ainda que pouco frequentes, mesmo que estes prognósticos possam funcionar como um desincentivo à intervenção. Este dever é tanto mais intenso quanto menor for a finalidade curativa. VI - O risco será significativo, em razão dos seguintes critérios: (1) a necessidade terapêutica da intervenção, (2) em razão da sua frequência (estatística), (3) em razão da sua gravidade, e (4) em razão do comportamento do paciente. VII - O conhecimento da gravidade dos riscos e do seu caráter significativo constitui um elemento que é controlado pelo médico especialista, que se presume dominar as leges artis e o estádio da ciência, devendo, portanto, ser ele a demonstrar que, ou forneceu a informação completa à paciente, ou que não a forneceu porque não existia à data qualquer conhecimento médico e farmacêutico sobre os riscos que vieram a verificar-se, sendo imprevisível a ocorrência das infeções sucessivas verificadas no rosto da paciente. VIII - Se o médico não provar que cumpriu os deveres de esclarecimento e que agiu ao abrigo de uma causa de justificação, recai sobre ele todo o risco de responsabilidade da intervenção médica, incluindo os fracassos da intervenção e os efeitos secundários não controláveis. IX – Como tem sido entendimento da jurisprudência deste Supremo Tribunal, o artigo 563.º do Código Civil consagra a doutrina da causalidade adequada na sua formulação negativa, que não pressupõe a exclusividade do facto condicionante do dano, nem exige que a causalidade tenha de ser direta e imediata, pelo que admite não só a ocorrência de outros factos condicionantes, contemporâneos ou não, como ainda a causalidade indireta, bastando que o facto condicionante desencadeie outro que diretamente suscite o dano. X - Tendo a consagração dos deveres de informação como escopo permitir regular a formação da vontade do paciente, uma vez demonstrada a omissão ou a deficiência da informação prestada perante os danos sofridos, deverá presumir-se que a omissão ou a deficiência da informação foi causa da decisão do paciente; que da lesão do bem jurídico protegido – o exercício do poder de autodeterminação sobre o próprio corpo e sobre os serviços de saúde, a correta formação da vontade – resultaram os danos patrimoniais e não patrimoniais concretamente sofridos pelo paciente. XI - Resulta da matéria de facto provada que a Autora, na sequência das infeções sofridas ficou com deformações físicas no rosto e “completamente desfigurada”, foi sucessivamente internada e submetida a cirurgias para debelar as infeções e proceder à remoção cirúrgica dos granulomas, tendo sofrido um quantum doloris de 6 numa escala 7, um dano estético de 7 numa escala de 7 e um dano de afirmação pessoal de 7 numa escala de 7. XII – O dano estético no rosto não é meramente um dano corporal ou físico, mas, em virtude de incidir sobre a parte do corpo mais importante para a personalidade, para a identidade e sentimento de si, e para a comunicação com os outros, repercute-se na relação da pessoa consigo mesma e com os outros, na alegria de viver, nas capacidades sociais e profissionais, na vida de relação, resumindo, na totalidade da existência da pessoa, no seu “eu” e na sua auto-estima. XIII - Assim, dada a natureza profunda e global dos danos não patrimoniais suportados, devido à particularidade de o dano estético ser no rosto e ter atingido o valor máximo na escala, afetando, de forma grave, todas as dimensões da personalidade humana e produzindo impacto negativo (tristeza, ansiedade, angústia e dor) nas condições da existência da autora enquanto pessoa, isolamento na sua vida social e relacional, incapacidade profissional, com perda da realização pessoal e da alegria de viver, julga-se equitativo arbitrar um valor de 150.000 euros a título de danos não patrimoniais. | ||
Decisão Texto Integral: | Processo n.º 359/10.1TVLSB.L1.S1
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça
I – Relatório 1. AA intentou contra BB; Rofil Medical Nederland B. V.; Corporación Dermoestética (Sucursal em Portugal) e CC a presente ação declarativa de condenação, com processo comum formulando os seguintes pedidos: Alega para tanto, muito em síntese, o seguinte: Citados os réus, contestou a ré Corporación Dermoestética, S. A. impugnando os factos constantes da petição inicial, referindo que quaisquer efeitos não desejados do tratamento com Amelan se encontravam descritos nos documentos de consentimento informado; mais alegou que foi a ré quem omitiu informações sobre a sua história clínica ao médico e que àquela foi explicado de forma clara e completa em que consistia o tratamento com Amelan, bem como sobre os efeitos indesejados, pelo que conclui pela ausência de qualquer responsabilidade pelos alegados prejuízos suportados pela autora e pela improcedência da ação e sua absolvição do pedido. Contestou também o réu BB alegando, em síntese, o seguinte: Concluiu, assim, pela procedência da exceção e sua absolvição do pedido, ou, assim se não entendendo, pela improcedência da ação e consequente absolvição do pedido. Deduziu ainda incidente de intervenção principal provocada pretendendo chamar a intervir a Axa Portugal, Companhia de Seguros, S. A., para quem transferiu a sua responsabilidade civil por danos causados no exercício da sua atividade profissional de médico. O réu CC foi citado editalmente (cf. fls. 356 a 365 dos autos), tendo sido citado o Ministério Público em sua representação (cf. fls. 367) Por requerimento de 7 de fevereiro de 2013, a autora veio desistir da instância relativamente à ré Rofil Medical Nederland B. V. (cf. fls. 374 dos autos), o que foi homologado por decisão de 19 de fevereiro de 2013, extinguindo-se a instância quanto àquela ré (cf. folhas 376 dos autos). A autora apresentou réplica sustentando que está em causa a responsabilidade contratual do réu BB, pelo que não se aplica o disposto no artigo 498º do Código Civil, sendo que, por outro lado, diversamente do que sustenta o réu, este não cumpriu a obrigação que sobre si impendia. Em 10 de outubro de 2013, foi proferida decisão que admitiu a intervenção principal provocada da Axa Portugal, Companhia de Seguros, S. A. e ordenou a sua citação. A interveniente principal deduziu articulado de contestação em que aceitou a celebração do contrato de seguro e identificou as garantias e capitais seguros e, quanto ao mais, declarou fazer sua a contestação apresentada pelo réu BB, nomeadamente quanto à exceção de prescrição, pugnando pela sua absolvição do pedido. A autora apresentou requerimento, dando por reproduzida, em face desta contestação, a réplica anteriormente apresentada. Procedeu-se a audiência prévia, com enunciação dos temas de prova. Em 7 de fevereiro de 2017, a interveniente principal comunicou aos autos a alteração da sua denominação social para Ageas Portugal – Companhia de Seguros, S. A. Em 10 de outubro de 2017, foi proferida decisão que julgou extinta a instância relativamente à ré Corporación Dermoestética (Sucursal em Portugal) por inutilidade superveniente da lide decorrente da sua declaração de insolvência (cf. fls. 632). Realizada a audiência final, em 17 de abril de 2019 foi proferida sentença que absolveu os réus BB e CC e a interveniente principal Ageas Portugal, S. A. do pedido.
2. Inconformada a autora, AA, recorre para o Tribunal da Relação, concluindo pela procedência do recurso, com alteração da decisão da matéria de facto e condenação do réu BB. O Tribunal da Relação, após ter procedido a alterações da matéria de facto dada como provada e não provada, pelo tribunal de 1.ª instância, e ter aditado factos novos, julgou a apelação improcedente e confirmou, com um fundamento essencialmente diverso, a decisão do tribunal de 1.ª instância, absolvendo o réu do pedido.
3. Novamente inconformada, a recorrente interpõe recurso para este Supremo Tribunal, formulando na sua alegação as seguintes conclusões: «i) A intervenção médica que se encontra, sobretudo, em causa nos autos decorre de um contrato celebrado entre Autora, ora Recorrente, e o médico, 1.° Réu, ora Recorrido, e que consta, resumidamente descrita, nos pontos 4 e 5 do relatório de facto constante da douta decisão; ii) O ónus da prova de que foi obtido o denominado consentimento informando é do médico (vd., entre outros, André Gonçalo Dias Pereira, "O Dever de Esclarecimento e a Responsabilidade Médica" in Responsabilidade Civil dos Médicos, 11, pag. 492); iii) O l.º Réu não cumpriu esse ónus, pois, a esse respeito apenas foi dado provado nos autos o que consta do ponto 55 do relatório de facto; iv) Tais informações não são suficientes para que possa entender-se como cumprido o dever de esclarecimento da Autora a respeito dos riscos do tratamento em questão; v) Só perante a ignorância de quais os riscos e cuidados inerentes às próteses que lhe haviam sido implantadas nomeadamente, a ignorância do que se deu como provado no ponto 38 dos factos dados como provados, se justifica que a Apelante, tenha posteriormente recorrido a um tratamento com "Amelan" (ponto 14 do relatório de facto); vi) A "substância infiltrada" para preenchimento das rugas era, como decorre da matéria de facto provada, na verdade uma prótese, objecto estranho ao corpo humano e não susceptível de ser por este absorvido, como resulta dos pontos 25 a 27 da decisão de facto; vii) O Recorrido não deveria ter deixado de informar a Recorrente, antes de lhe aplicar tal produto, das características essenciais desse produto e, nomeadamente, de acrescentar que a "substância" que infiltraria para preencher as rugas, seria, na realidade, uma prótese, estranha ao organismo; viii) E que a após a infiltração dessa prótese definitiva haveria alguns cuidados a ter e riscos a evitar, como ocorre, de resto, com qualquer paciente a quem seja colocada uma qualquer prótese; ix) A explicação, contexto da cirurgia plástica de que uma "substância" será infiltrada, deixa antever a ideia, comum a qualquer paciente, de que trata de uma substância susceptível de ser absorvida e não de uma prótese definitiva, muito mais comum a cirurgias com outra natureza; x) E escamoteia por completo as características e riscos inerentes às vulgares próteses de substâncias não absorvíveis e que são, de algum modo, reconhecidos pelos pacientes; xi) O risco em questão não poderia deixar de se considerar significativo para efeitos de explicação e obtenção de consentimento informado, pois, "o risco será considerado significativo em razão dos seguintes critérios: (1) necessidade terapêutica da intervenção, (2) em razão da sua frequência estatística, (3) em razão da sua gravidade e (4) em razão do comportamento do paciente (André Gonçalo Dias Pereira, obra citada, pags.443 e 444); xii) O "dever de esclarecer é mais intenso e mais rigoroso no caso das chamadas intervenções "d'agrément", tal como a cirurgia estética..." (André Gonçalo Dias Pereira, obra citada, pag. 444), que era exactamente a situação em causa nos autos; xiii) "Outro factor a avaliar é a novidade do tratamento, de tal forma que quanto mais recente seja um procedimento terapêutico (...) maior rigor há de presidir à informação a dar ao paciente André Gonçalo Dias Pereira, obra citada, pag. 447), e tanto quanto decorre da matéria de facto dada como provada, a utilização de tal produto era na data da intervenção relativamente recente; xiv) A gravidade de um determinado risco, mesmo não frequente, exige a sua comunicação, e o risco que decorre do ponto 30 dos factos provados, é essencialmente grave, devendo dele ter sido advertida a Recorrente e sendo irrelevante que, na data da aplicação como decorre do ponto 68 dos factos provados, essa consequência fosse pouco frequente; xv) A natureza da substância - prótese não absorvível - importaria uma informação concreta que tivesse sido dada à Recorrente, a qual, apenas com essa relevante informação a respeito do produto e, dos riscos que dessa natureza advêm, poderia conformar a sua decisão e, ainda, caso aceitasse a intervenção, toda a sua actuação posterior; xvi) Aliás, o anterior historial clínico da Recorrente, no campo da cirurgia plástica -que o Recorrido bem conhecia e que decorre dos pontos 1, 2, 3, 9, 10 e 12 do relatório de facto - impunham que essa explicação e a descrição de riscos tivesse sido efectuada, pois, como ensina André Dias Pereira, o dever de esclarecimento deve ter em conta, em relação ao paciente, "também as suas condições e os seus hábitos de vida, privados e profissionais" (obra citada, pag. 456); xvii) O dever de esclarecer cabalmente a Recorrente dos riscos do produto que lhe aplicou não foram cumpridos pelo Recorrido e, por isso, este violou o dever que para ele decorria do contrato que com ela celebrou; xviii) A não ter sido introduzido o "Artecoll", a Recorrente, teria seguramente tido uma infecção, mas, sem a formação de granulomas e as consequências catastróficas que ocorreram unicamente por força do produto referido, pois, um nexo de causalidade entre a aplicação de "Artecoll" e formação de granulomas resulta absolutamente claro por via do facto constante do ponto 30 do relatório de facto, o qual pode ser conjugado com os factos constantes dos pontos 44, 45, 47, 50 e 52, de onde resulta com clareza que os efeitos catastróficos sofridos pela Recorrente ficaram a dever-se essencialmente à formação de granulomas em volta da substância que lhe foi infiltrada; xix) Esse nexo de causalidade entre a aplicação do produto e dos danos sofridos pela Recorrente encontra-se estabelecido com clareza nos pontos 62 e 63 do relatório de facto constante da douta decisão; xx) De onde decorre que foi efectivamente o "Artecoll" que causou os granulomas que afectavam a Recorrente, como de resto, se diz o douto Acórdão: "o tratamento das rugas com "Artecoll" não pode ser tido como totalmente indiferente para o resultado que se veio a verificar, pois que a sua presença interferiu no processo de infecção, agravando-a, contribuindo para o resultado final que se traduziu na necessidade de excisão daquele produto e inerentes intervenções cirúrgicas, exponenciando também desse modo o grau de deformação que atingiu a autora"; xxi) Mas, sendo o consentimento obtido da Recorrente não informado, tal situação equivale a uma ausência de consentimento e, como tal, toda a intervenção efectuada corresponde a um acto ilícito que, como se viu, foi a causa adequada à produção dos danos; xxii) Devem, pois, ser indemnizados todos os danos sofridos pela Recorrente e que, como se viu, apenas ocorreram por via do acto médico sem consentimento praticado pelo Recorrido; xxiii) Aliás, ainda que se entendesse e se presumisse que a Recorrente teria aceite a intervenção conhecendo o risco, ainda assim, a falta da informação impediu que esta pudesse evitar os danos que sobrevieram; xiv) A Recorrente, a conhecer ainda que de modo genérico a natureza do produto infiltrado e os riscos a ele inerente teria tido outros cuidados no seu comportamento posterior, pois, não se sujeitara a um tratamento com o produto "Ameian", ou pelo menos, não faria esse tratamento da forma como este teve lugar, podendo para tanto ver-se os pontos 33, 59 e 61 dos factos provados;
Termos em que, deverá o presente recurso ser julgado procedente, julgando-se a acção procedente e condenando-se o 1.º Réu, ora Recorrido, tudo nos termos antes expostos, com o que se fará JUSTIÇA!»
O recorrido apresentou contra-alegações, nas quais concluiu o seguinte: «5. Se assim não se entender, sempre se dirá que a motivação explanada nas duas decisões judiciais demonstra, com clareza, que não foi violado, pelo recorrido, o dever de informação e esclarecimento da recorrida, disponível naquela data, sobre riscos conhecidos, previsíveis, razoáveis e significativos dos actos médicos por si praticados, e que esta não pretendeu ou mostrou qualquer interesse por qualquer informação adicional àquela que lhe foi prestada pelo recorrido, tendo tomado uma decisão livre e esclarecida sobre o acto médico a que se quis submeter. 6. Ficou igualmente provado que a recorrente “entre 1994 e 1996 tinha confiança no réu BB e estava satisfeita com os serviços que lhe foram prestados” (confronte-se a alteração à matéria de facto dos pontos 55. e 59., que passaram a constituir os pontos 13. e 32 dos factos provados). 7. No âmbito da presente ação foi produzida prova pericial e testemunhal e juntos outros relatórios aos autos, os quais são totalmente conclusivos no que se refere à observação escrupulosa do réu, ora recorrido, BB, dos procedimentos médicos adequados, de acordo com as melhores práticas vigentes à época dos factos, não tendo sido junto nenhum documento, da mesma natureza, ou de outra, ou produzida qualquer prova testemunhal capaz de pôr em causa a verificação das bases de facto sobre as quais se apoiou e sustentou a conclusão científica e as decisões jurídicas proferidas sobre a mesma. 8. Em consonância, nem pela existência de erro médico, nem em razão da violação do dever de informação e inerente obtenção de consentimento informado para a intervenção a que a recorrente se submeteu em 28 de Setembro de 1994, se identifica uma conduta ilícita e culposa imputável ao réu/recorrido, pelo que não se encontram verificados, cumulativamente, os pressupostos da responsabilidade contratual dos actos médicos por si praticados, não existindo qualquer obrigação de indemnização dos danos peticionados pela recorrente. 9. Muito embora a recorrente fundamente o seu recurso de revista apenas na alteração da matéria de facto no que respeita à questão do dever de informação e do conhecimento informado, questão que abordou de forma incipiente no articulado da petição inicial, retira conclusões de factos que não alegou e muito menos ficaram provados na presente ação, o que sucede com o alegado nas alíneas v), vii), viii), ix), x), xiv), xv), xvi), xvii), xviii), xix), xx), xxi), xxii), xxiii) e xiv) das suas conclusões, os quais, por esta razão, não deverão ser considerados para efeitos do presente recurso. Termos em que deverá ser recusado o presente recurso de Revista, ou, se assim não se entender, julgado totalmente improcedente, devendo manter-se integralmente o douto Acórdão recorrido, só assim se fazendo inteira Justiça!»
4. Sabido que o objeto do recurso, ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, se delimita pelas conclusões da alegação de recurso, as questões a decidir, enquadradas no instituto da responsabilidade civil por atos médicos, são as seguintes:
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação de facto O Tribunal da Relação, após ter procedido a modificações da matéria de facto, deu como provados os seguintes factos, enunciando os mesmos por ordem cronológica, para uma melhor perceção dos atos praticados:
A primeira instância considerou não provados os seguintes factos: O Tribunal da Relação aditou aos factos não provados as seguintes novas alíneas: A autora/recorrente invoca a responsabilidade contratual do médico, por incumprimento do dever de informação e de obtenção do consentimento informado. Nos termos do facto provado n.º 2, a Autora contactou o 1º Réu, que é um médico reconhecido na especialidade de cirurgia plástica, tendo sido recebida por este numa consulta que teve lugar em 26 de julho de 1994. A jurisprudência deste Supremo Tribunal tem concebido a responsabilidade civil médica como uma responsabilidade contratual, por força do princípio da autonomia privada e por deste modo se assegurar uma maior proteção aos lesados, nomeadamente em relação ao prazo mais longo de prescrição (artigo 309.º do Código Civil) e ao ónus da prova da culpa (artigo 799.º, n.º 1, do Código Civil). Apesar de o lesado gozar, quer da tutela contratual, quer da tutela que deriva da responsabilidade extracontratual, por estar em causa a violação de direitos fundamentais de personalidade (a integridade moral e pessoal, o livre desenvolvimento da personalidade, a saúde, a integridade física e psíquica), pode o mesmo optar pelo regime que lhe for mais favorável (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19-06-2001, processo n.º 01A1008). Para apreciar as questões de direito a tratar, designadamente, o ónus da prova do consentimento informado e a extensão do dever de informação, é relevante a circunstância de se tratar de uma cirurgia estética ou de uma cirurgia curativa ou assistencial, na medida em que em relação ao primeiro tipo os deveres do médico são acrescidos e a proteção do lesado mais intensa. Como tem sido reconhecido na jurisprudência, «Nas cirurgias estéticas, que se destinam a corrigir um determinado defeito físico ou a melhorar a aparência ou a imagem de uma pessoa, a dimensão do resultado assume maior relevo nas obrigações contratuais dos médicos do que nas cirurgias curativas ou assistenciais, típicas obrigações de meios, sendo também densificados os requisitos de manifestação da vontade dos pacientes e os deveres de esclarecimento dos médicos (Acórdão deste Supremo Tribunal, de 02-06-2016, Revista n.º 1263/06.3TVPRT.P1.S1 - 1.ª Secção). No mesmo sentido, afirmou-se no acórdão deste Supremo Tribunal, de 21-02-2019, Revista n.º 3784/15.8T8CSC.L1.S1 - 7.ª Secção, que, «Estando em causa uma cirurgia destinada a corrigir defeito físico e/ou a melhorar a aparência, a importância do resultado assume maior acuidade. Neste tipo de casos, pese embora a obrigação do médico continue a não ser uma obrigação de resultado, com o médico a comprometer-se “em absoluto” com a melhoria estética desejada, tem vindo a ser entendido que se trata de uma obrigação de quase resultado porque é uma obrigação em que “só o resultado vale a pena”, donde, qualquer médico, cumpridor dos seus deveres legais e deontológicos, e ciente das vicissitudes de qualquer cirurgia, apenas se deve empenhar com a utilização dos meios que, em concreto, se adequarem à respectiva situação, satisfazendo a sua obrigação quando, depois de esclarecer o doente dos riscos associados à intervenção cirúrgica, e usando de toda a diligência, emprega os conhecimentos e as técnicas ditadas pela leges artis da especialidade». Assim, na jurisprudência deste Supremo Tribunal, tem-se considerado a cirurgia estética como obrigação de resultado (acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 15-12-2011, processo n.º 1209/06. 3TVPRT.P1.S1), como obrigação de quase-resultado (acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17-12-2009, proc. n.º 544/09.9YFLSB), ou como uma intervenção em que a dimensão do resultado assume maior relevo (acórdão de 02-06-2015, Revista n.º 1263/06.3TVPRT.P1.S1 - 1.ª Secção). As normas de direito nacional (os artigos 70.º, n.º 1, 81.º e 340.º, todos do Código Civil, bem como o artigo 157.º do Código Penal), internacional (artigos 5.º da Convenção sobre os Direitos Humanos e a Biomedicina) e comunitário (3.º, n.º 2, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia) impõem, como condição da licitude de uma ingerência médica na integridade física dos pacientes, que estes consintam nessa ingerência e que esse consentimento seja prestado de forma esclarecida, isto é, estando cientes dos dados relevantes em função das circunstâncias do caso, entre os quais avulta a informação acerca dos riscos próprios de cada intervenção médica. Tem-se entendido que «O consentimento do paciente prestado de forma genérica não preenche, só por si, as condições do consentimento devidamente informado, sendo, além disso, necessário, em caso de repetição de intervenções, que tais esclarecimentos sejam actualizados, tendo em conta, designadamente, que os riscos se podem agravar com a passagem do tempo» (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 22-03-2018, Revista n.º 7053/12.7TBVNG.P1.S1 - 2.ª Secção). A informação transmitida deve ser simples, aproximativa e sobretudo leal, compreendendo os riscos normalmente previsíveis, salientando-se, porém, como tem feito a jurisprudência, «(…)uma maior exigência e rigor de informação nos casos de intervenções não necessárias» (acórdão, de 16-06-2015, Revista n.º 308/09.0TBCBR.C1.S1, 1.ª Secção). Tanto na doutrina como na jurisprudência, vem prevalecendo o entendimento de que compete ao médico provar que prestou as informações devidas. Assim, enquanto facto impeditivo do direito da autora competia ao réu/recorrido (médico), fazer a prova do consentimento informado, nos termos do artigo 342.º, n.º 2, do Código Civil (cf. os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 02-06-2015, processo nº 1263/06.3TVPRT.P1.S1; de 16-06-2015, processo n.º 308/09.0TBCBR:c1.S1; de 22-03-2018, processo n.º 7053/12.7TBVNG.P1.S1). Esta tese é a que promove a ideia de igualdade de armas no processo e de igualdade na aplicação do direito, protegendo o lesado da incumbência, considerada diabólica pela literatura processualista, de provar um facto negativo (Cf. André Dias Pereira, “Responsabilidade médica e consentimento informado. Ónus da prova e nexo de causalidade”, disponível para consulta in https://estudogeral.sib.uc.pt/bitstream/10316/10577/1/Responsabilidade%20m%C3%A9dica.pdf)). Já para o médico, dado ter um consultório ou trabalhar numa instituição de saúde, é mais fácil organizar os serviços de forma a reunir os documentos necessários para demonstrar que obteve o consentimento informado, por exemplo, dispensar a informação por escrito ao paciente e dispor de um registo das informações clínica e de um bom preenchimento do dossier clínico (cf. André Dias Pereira, “Responsabilidade médica…”, ob. cit.). Conforme nos informa André Dias Pereira (“Responsabilidade médica…”, ob. cit.), seguindo a doutrina alemã, se o médico não provar que cumpriu os deveres de esclarecimento e que agiu ao abrigo de uma causa de justificação, recai sobre ele todo o risco de responsabilidade da intervenção médica, incluindo os fracassos da intervenção e os efeitos secundários não controláveis. No mesmo sentido se tem orientado, a doutrina portuguesa (Orlando de Carvalho, Teoria Geral do Direito Civil, pp. 193 e ss; Figueiredo Dias/Sinde Monteiro, “Responsabilidade Médica em Portugal”, BMJ, n.º 332, 1984, p. 30; Capelo de Sousa, O Direito Geral de Personalidade, Coimbra Editora, 2011, p. 292). Importa também frisar que o mercado das intervenções estéticas é um mercado específico, que tem estado em expansão, e os seus riscos são graves, podendo as complicações e infeções pós-operatórias causar dores prolongadas, efeitos secundários indesejados ou até a morte, sendo, por isso, particularmente amplo e exigente o dever de informação dos médicos. Para além destas caraterísticas, sabe-se, também, que é um mercado altamente rentável dadas as quantias elevadas que as mulheres estão dispostas a pagar pela beleza desejada. A este propósito, constata-se um contexto cultural que ao mesmo tempo que sobrevaloriza a beleza feminina, induzindo as mulheres a procurar a cirurgia estética e normalizando essa procura, por outro lado, critica ou considera desviantes as mulheres que recorrem a este mercado (cf. Kathryn P. Morgan, “Women and the Knife: Cosmetic Surgery and the Colonization of Women’s Bodies”, Hypatia vol. 6, no. 3, 1991, disponível para consulta in http://faculty.uml.edu/kluis/59.240/Morgan_WomenandtheKnife.pdf).
2. No presente recurso de revista, está em causa a análise da procedência ou não do pedido da autora/recorrente de condenação do réu/recorrido BB, a título de responsabilidade civil por ato médico, a pagar uma indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais, causados pela aplicação, em cirurgias estéticas ao rosto, de um produto designado por Artecoll, alegadamente sem a prestação de informação sobre as suas características, nomeadamente sem a advertir das contra-indicações e dos riscos que advinham do produto aplicado. As instâncias declararam a ação improcedente com um fundamento distinto. O Tribunal Judicial da Comarca ....... considerou não verificados os requisitos da responsabilidade civil médica, por entender que a autora não provou a violação do dever de informação, nem o nexo de causalidade entre os procedimentos médicos utilizados pelo réu e os danos sofridos, enquanto factos constitutivos do seu direito à indemnização. O acórdão recorrido, no decurso das alterações de facto a que procedeu, entendeu que a autora não foi informada das caraterísticas do produto utilizado no tratamento, o Artecoll, designadamente do caráter definitivo do tratamento e do facto de o produto infiltrado nas rugas se comportar como uma prótese. Contudo, considerou que o ónus da prova do consentimento informado se repartia entre o réu (médico) e a entre a autora (lesada), cabendo a esta a demonstração da previsibilidade dos riscos, do seu caráter significativo e grave. Assim, no sumário do acórdão recorrido, concluiu-se que «Enquanto facto impeditivo do direito da apelante compete ao réu/recorrido (médico), fazer a prova do consentimento informado, mas essa prova não abrange a demonstração de que os riscos que não foram informados eram imprevisíveis, irrazoáveis ou não significativos, cabendo antes ao lesado demonstrar que o risco de cuja verificação resultaram os danos era um dos riscos conhecidos, previsíveis, razoáveis e significativos que lhe deviam ter sido transmitidos».
3.Na situação sub judice, a autora contactou o réu BB, enquanto especialista em cirurgia plástica, procurando uma melhoria da sua aparência, designadamente, ao nível do rejuvenescimento, tendo ambos acordado as intervenções que visavam modificar a forma e perfil do nariz (rinoplastia) e corrigir as rugas cervico-faciais (ritidectomia cervico-facial) – cf. pontos 3., 4. e 8. da matéria de facto provada. A autora realizou as diversas cirurgias estéticas entre os anos de 1994 e 1996. Resultou demonstrado que, neste período temporal, a autora tinha confiança no médico e que estava satisfeita com os serviços médicos prestados pelo réu (facto provado n.º 32). O problema surgiu quando, mais tarde, já após ter realizado outras intervenções estéticas na empresa Corporación Dermoestética (Sucursal em Portugal), foi confrontada com uma infeção que lhe causou inchaço da face, culminando num grave episódio de celulite pan-facial, que veio a exigir, após o insucesso do tratamento com antibióticos e corticoterapia, a excisão em bloco dos focos granulomatosos da região interciliar, sulcos naso-labio-genianos e lábio inferior. Verificou-se, então, que a existência do produto que lhe fora infiltrado para supressão das rugas profundas, o Artecoll, teria contribuído para agravar a infeção que a afetou, imputando a autora ao réu BB a violação do dever de informação sobre o produto utilizado, suas características e riscos. O acórdão recorrido entendeu que não ficou provado qualquer cumprimento defeituoso das leges artis pelo médico: “Em face do acervo factual provado e não provado não é possível detectar, quanto a esta concreta intervenção, qualquer desvio do padrão de comportamento diligente e competente, uma qualquer desconformidade da actuação do réu/recorrido face às leges artis, designadamente, tal como propugnado pela autora, que não tenha tomado os cuidados exigíveis antes da aplicação do produto, ou seja, que não tenha realizado o estudo prévio e os testes que se impunham para aferir da segurança na sua aplicação (o que, aliás, se mostra claramente refutado pelo parecer que consta de fls. 597 e seguintes, quando aí se refere que “dos registos clínicos confirma-se a realização do teste bem como dos exames pré e a descrição da aplicação do produto corresponde à técnica correcta.”). Com efeito, segundo os factos provados, a autora foi sujeita a uma avaliação prévia e completa de toda a estrutura facial e nasal e a exames prévios, bem como foi realizado um estudo fotográfico da face (factos provados n.ºs 6 e 7). O médico é experiente (facto provado n.º 31) e realizou os testes prévios à operação. A paciente confiava nele (facto provado n.º 32) Contudo, entende-se, hoje, que a medicina é uma atividade de risco e o dano ocorre mesmo que não tenha havido, da parte do médico, qualquer negligência ou má prática médica. A matéria de facto dada como provada indica que estamos perante danos inerentes à atividade em si: riscos próprios da cirurgia estética feita com o produto “Articoll”, que funciona como uma prótese inserida na face da paciente. Ora, não sendo necessária a prova de uma má prática médica nas ações baseadas no incumprimento do dever de informar, importa analisar se foi ou não cumprido o dever de esclarecimento acerca dos riscos da intervenção. A este propósito, tem-se entendido que, em matéria de intervenções cirúrgicas, só o consentimento devidamente esclarecido permite transferir para o paciente os referidos riscos que de outro modo deverão ser suportados pelo médico (cf. André Dias Pereira, Direitos dos pacientes…ob. cit., p. 366). Permanece, assim, a questão de saber se o médico deve ser responsabilizado pelo incumprimento ou cumprimento defeituoso do dever de informação que sobre si impendia. A recorrente invocou que o réu BB nunca a informou sobre as características da substância Artecoll e dos riscos inerentes à aplicação deste produto, e que se tivesse tido conhecimento dos riscos do produto nunca teria aceitado a aplicação do mesmo.
4. Sobre o dever de informação entendeu o acórdão recorrido “(…) que por via da alteração introduzida na matéria de facto provada e não provada, resulta não provado que o réu tenha prestado esclarecimentos globais e individuais de todo o processo cirúrgico a realizar e que foram ponderados e discutidos os riscos e os benefícios associados, o que foi compreendido pela autora ou que durante todo o processo, pré e pós-operatório, tenha sido discutido entre as partes os pormenores das intervenções em causa”. (…) No entanto, no caso concreto, a densidade da informação a prestar à autora não poderia ser maior do que aquela que resultava do estado do conhecimento existente à data sobre o funcionamento do produto. (…) Mas o que ficou seguramente demonstrado é que o produto era fornecido à generalidade dos cirurgiões plásticos em Portugal com a garantia de ser inofensivo, podendo ser utilizado sem risco para os pacientes para o tratamento de rugas – cf. ponto 19. (…) a verdade é que não está demonstrado que houvesse então notícia de efeitos secundários adversos e menos ainda com a dimensão, gravidade e repercussão que a autora veio a suportar. (…) Não foram demonstrados dados objectivos factuais que permitam afirmar que em 1994 era conhecido o comportamento do produto e que então tivessem sido já descritos casos similares ao que está em causa nestes autos. Não obstante, o acórdão recorrido reconheceu que «É evidente que a informação transmitida à autora não abrangeu a referência à definitividade da aplicação do produto e menos ainda o facto de este funcionar como uma prótese e, como tal, em caso de infecção, ser um local potenciador de desenvolvimento e agravamento da infecção, sendo de admitir que, estando em causa um tratamento estético, tais riscos, a serem conhecidos, teriam de ser comunicados». Em síntese, o acórdão recorrido, em virtude de o produto ser comercializado junto dos cirurgiões como inofensivo e de à data não existirem estudos estatísticos sobre a sua ocorrência, decidiu onerar a paciente com uma parte do ónus da prova, exigindo-lhe a demonstração do caráter significativo dos riscos não informados (dos quais resultaram os danos), bem como que esses riscos eram conhecidos, previsíveis e razoáveis à data da aplicação do produto.
5. Ónus da prova do consentimento informado e extensão do dever de informação A primeira questão – o ónus da prova do consentimento informado – está ligada à segunda – a extensão do dever de informação – pelo que serão tratadas conjuntamente. Inscreve-se no âmbito do recurso de revista a apreciação do modo como as instâncias qualificaram a atuação de uma das partes no contexto da inversão do ónus da prova, nos termos do artigo 344º, nº 2, do Código Civil (acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, processo n.º 85/14.2T8PVZ.P1.S1). A propósito desta questão seguiremos de perto o acórdão deste Supremo Tribunal, datado de 08-09-2020 (proc. n.º 148/14.4TVLSB.L1.S1), onde se consagrou a seguinte orientação:
O acórdão citado adere a uma conceção que faz recair inteiramente sobre o médico o ónus da prova do cumprimento do dever de informação, diferentemente do acórdão recorrido, que reparte o ónus da prova entre médico e paciente, considerando que cabia a esta a prova da gravidade dos riscos e do seu caráter significativo. Ora, de acordo com a realidade da vida, constata-se a existência de uma relação de dependência do paciente em relação ao médico, e a lei tutela a posição do paciente que, por não ser portador de conhecimentos médicos e científicos na área, confia – e deve poder confiar – que o médico lhe transmite toda a informação necessária para tomar uma decisão esclarecida. Aliás, o conhecimento sobre a gravidade dos riscos e o seu caráter significativo constitui um elemento que é dominado e controlado pelo especialista, que se presume dominar as leges artis e o estádio da ciência, devendo, portanto, ser ele a demonstrar que, ou forneceu a informação completa à paciente, ou que não a forneceu porque não existia à data qualquer conhecimento médico e farmacêutico sobre os riscos agravados de infeção que vieram a verificar-se, sendo imprevisível a ocorrência das infeções sucessivas verificadas na paciente. A circunstância de o medicamento ser amplamente divulgado em Portugal à data, não retira ao médico o dever de conhecer as suas caraterísticas e contra-indicações, nem o dispensa de fazer essa investigação, pois só ele, e não a paciente, tem conhecimentos e meios para tal. Julgamos, portanto, que a transferência parcial do ónus da prova do médico para a paciente, efetuada pelo acórdão recorrido, não é ajustada à diversidade de conhecimentos e domínio da informação entre médico e paciente. Neste juízo de ponderação há que ter em conta a novidade do tratamento, circunstância que contribui para conformar o conteúdo do dever de informação a cargo do médico, na medida em que só o especialista pode e deve advertir a paciente de que, sendo o tratamento novo, não houve ainda tempo de elaborar estudos sobre os seus efeitos secundários e riscos para a saúde. É certo que a matéria de facto não demonstra que o produto fosse novo no mercado, pois não indica a data de utilização do mesmo, mas a circunstância de ter sido proibido, permite deduzir que a sua utilização em 1994 e 1996 seria ainda pioneira, apesar de estar amplamente divulgado, circunstâncias que não são incompatíveis. Apesar de o Articoll ser um produto amplamente divulgado em Portugal para tratamentos estéticos e de ainda não serem conhecidos estudos que atestassem o grau de risco e a sua frequência estatística, como afirma o acórdão recorrido, a informação fornecida à autora pelo médico não incluiu aspetos importantes sobre as características do produto para a paciente poder tomar uma decisão informada: a definitividade da aplicação do produto e o facto de este funcionar como uma prótese e, como tal, ser um local potenciador de riscos de desenvolvimento e agravamento da infeções, bem como de formação de granulomas. Ora, segundo a lei, o direito internacional e o direito comunitário, a autodeterminação nos cuidados de saúde implica, não só que o paciente consinta ou recuse uma intervenção, mas também que disponha de toda a informação relativa às diversas possibilidades de tratamento e aos riscos de cada tratamento. Este dever, como vimos, é acentuado quando estamos perante intervenções cirúrgicas, desnecessárias do ponto de vista terapêutico, em que tem de se presumir que os pacientes só formam a sua vontade de a elas se sujeitarem, se os riscos forem menores e controlados. Neste sentido, tem que se presumir que o paciente ou a paciente média de uma cirurgia estética é um ser racional que só a ela se sujeita, se tal não provocar riscos para a sua vida, dores excessivas, deformações físicas ou incapacidades. Aliás, a autora era pessoa culta e interessada em conhecer os métodos utilizados pelo réu (facto provado n.º 81). A exigência do paciente de que o tratamento não seja perigoso, nem portador de riscos graves, é maior em relação a uma operação estética do que em relação a uma operação que tenha uma finalidade curativa de uma doença ou disfunção orgânica. Neste sentido, o médico tem o dever de chamar a atenção dos pacientes para os prognósticos mais pessimistas de uma intervenção estética, ainda que pouco frequentes, mesmo que estes prognósticos possam funcionar como um desincentivo à intervenção. Este dever é tanto mais intenso quanto menor for a finalidade curativa. A cirurgia estética enquadra-se, hoje, dentro de uma visão ampla do direito à saúde, enquanto direito de personalidade. Contudo, os deveres de informação dos médicos, e de obtenção do consentimento informado, devem ser mais rigorosos para as intervenções médico-cirúrgicas não terapêuticas (cf. André Dias Pereira, Direitos dos pacientes e responsabilidade médica, Dissertação de doutoramento, Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, dezembro de 2012, disponível para consulta in https://estudogeral.sib.uc.pt/bitstream/10316/31524/1/Direitos%20dos%20pacientes%20e%20responsabilidade%20m%C3%A9dica.pdf, p. 183). A este propósito o autor (Direito dos pacientes…ob. cit., p. 370) afirma que «quanto menos necessário for o tratamento, mais rigorosa deve ser a informação, devendo ser extrema nas intervenções estéticas e, em geral, na denominada cirurgia voluntária (vasectomias, ligaduras de trompas, rinoplastias, mamoplastias, dermolipetomias), em contraposição com a cirurgia curativa ou assistencial, em que a informação pode ser menos rigorosa». (…) No mesmo sentido se tem orientado a jurisprudência francesa e a alemã, como nos informa o citado Autor (Direito dos pacientes…ob. cit., p. 370, p. 373), “em matéria de atos médicos e cirúrgicos de natureza estética, a obrigação de informação deve abranger não apenas os riscos graves da intervenção, mas também todos os inconvenientes que daí possam resultar”, de acordo com o princípio segundo o qual “quanto menos necessária e menos possibilidades de sucesso tiver uma dada operação, tanto maior é a exigência de fornecer uma informação detalhada”.
6. Conforme o artigo 5.ª da Convenção dos Direitos Humanos e Biomedicina, “1. Qualquer intervenção no domínio da saúde apenas pode ser efetuada depois da pessoa em causa dar o seu consentimento de forma livre e esclarecida. 2. A esta pessoa deverá ser dada previamente uma informação adequada quanto ao objetivo e à natureza da intervenção, bem como às suas consequências e os seus riscos. 3. A pessoa em causa poderá, a qualquer momento, revogar livremente o seu consentimento”. Por outro lado, segundo o artigo 3.º, n.º 2, al. a), da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (incorporada no Tratado de Lisboa, dispõe que “No domínio da medicina e da biologia, devem ser respeitados, designadamente: o consentimento livre e esclarecido da pessoa, nos termos da lei”. O consentimento informado assumiu também dimensão universal com a aprovação, na Assembleia Geral da UNESCO, da Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos, em outubro de 2005 (artigos 6.º e 7.º). O direito ao consentimento informado constitui a expressão mais clara do princípio da autonomia. O dever de obter um consentimento informado é para os médicos uma exigência de respeito pela dignidade da pessoa humana (artigo 1.º da CRP) e pelos seus direitos fundamentais à integridade pessoal, na tríplice dimensão física, psíquica e moral, e ao livre desenvolvimento da personalidade (artigos 25.º e 26.º, n.º 1, da CRP). Ao nível do direito civil o direito ao consentimento informado está abrangido pela tutela geral de personalidade consagrada no artigo 70.º n.º 1, do Código Civil. O dever de informar estava, também, consagrado no artigo 38.º, n.º 1, do Código Deontológico da Ordem dos Médicos, na versão vigente à data da prática dos factos, onde se previa que “o médico deve procurar esclarecer o doente, a família ou quem legalmente o represente, acerca dos métodos de diagnóstico ou de terapêutica que pretende aplicar”, e tem a natureza de um dever profissional, sindicável independentemente de ter sido celebrado um contrato com o paciente. Este dever veio a ser descrito com mais pormenor pelo artigo 44.º do Regulamento n.º 14/2009, de 13 de janeiro, em que se estipula que «1 - O doente tem o direito a receber e o médico o dever de prestar o esclarecimento sobre o diagnóstico, a terapêutica e o prognóstico da sua doença. 2 - O esclarecimento deve ser prestado previamente e incidir sobre os aspectos relevantes de actos e práticas, dos seus objectivos e consequências funcionais, permitindo que o doente possa consentir em consciência. 3 - O esclarecimento deve ser prestado pelo médico com palavras adequadas, em termos compreensíveis, adaptados a cada doente, realçando o que tem importância ou o que, sendo menos importante, preocupa o doente. 4 - O esclarecimento deve ter em conta o estado emocional do doente, a sua capacidade de compreensão e o seu nível cultural. 5 - O esclarecimento deve ser feito, sempre que possível, em função dos dados probabilísticos e dando ao doente as informações necessárias para que possa ter uma visão clara da situação clínica e optar com decisão consciente». A norma fundamental do direito português relativamente ao dever de esclarecimento é o artigo 157.º do Código Penal, que dispõe o seguinte:
7. Estamos num domínio de casuísmo da avaliação jurisdicional, que depende necessariamente dos factos concretos de cada caso, não havendo uma fórmula jurídica abstrata que resolva todos os problemas da prática judiciária. O problema aqui colocado é o do dever de informação dos riscos graves de uma cirurgia estética, mas raros e ainda não comprovados em termos estatísticos. Têm entendido a doutrina e a jurisprudência (por todos, Acórdão STJ 08-09-2020) que a intensidade e a extensão dos deveres de informação do médico dependem das circunstâncias do caso concreto. Essa informação deve ser completa para evitar uma imagem parcelar, distorcida, da realidade, ou que induza o paciente a desvalorizar ou a menorizar os riscos. Assim, o médico deve explicitar ao paciente, com um grau suficiente de particularização, a natureza e os riscos associados ao tipo de tratamento proposto. Nos termos do já citado acórdão deste Supremo Tribunal, de 08-09-2020, «Os riscos relevantes para o cumprimento do dever de prestar informação completa são aqueles em que, em abstrato, o paciente pode vir a incorrer considerando o concreto tratamento em causa. Quanto a estes, a forma extrema que possam apresentar deve, em princípio, ser comunicada em virtude da relevância de que se reveste para a decisão do paciente». Ora, não se pode entender, como no acórdão recorrido, que a não comprovação estatística da frequência dos riscos, bem como a circunstância de o Articoll ser divulgado de forma generalizada em Portugal, isentassem o médico de cumprir o dever de informar quanto ao caráter significativo dos riscos e quanto à característica do produto, deslocando o ónus da prova para a paciente. Numa intervenção não terapêutica, em que se usa um produto, em relação ao qual aparentemente não existem estudos sobre a frequência estatística dos riscos, nem sobre a sua gravidade, à semelhança de um ensaio clínico, o médico deve informar o paciente com mais detalhe, sobre a natureza, o alcance, as consequências e os riscos do estudo. Revela-se, assim, ser essencial a informação de que o Articoll funciona como uma prótese e que tem uma natureza definitiva depois de aplicado. O médico tinha a obrigação de saber estas caraterísticas do produto, pois não dependem de investigação científica nem da evolução dos conhecimentos, e estes dois aspetos revelam-se essenciais à autodeterminação de uma pessoa que se sujeita a uma operação estética, porque lhes é inerente uma maior possibilidade de causar danos do que um produto que com o tempo desaparece do organismo ou é eliminado. Está ultrapassada a tese tradicional que só exigia ao médico a revelação dos riscos previsíveis, normais ou a prever razoavelmente, excluindo o dever de informar dos riscos graves, anormais, particulares ou hipotéticos. A doutrina e a jurisprudência, como nos dá nota a investigação de André Dias Pereira (“Responsabilidade médica e consentimento informado…”, ob. cit.), aderem à tese da «(…) obrigação de comunicar os riscos “significativos”, isto é, aqueles que o médico sabe ou devia saber que são importantes ou pertinentes, para uma pessoa normal colocada nas mesmas circunstâncias do paciente, chamado a consentir com conhecimento de causa no tratamento proposto». Para esta orientação, «(…) o risco será significativo, em razão dos seguintes critérios: (1) a necessidade terapêutica da intervenção, (2) em razão da sua frequência (estatística), (3) em razão da sua gravidade, e (4) em razão do comportamento do paciente». Ora, na cirurgia estética, em contraposição com a cirurgia curativa ou assistencial, não há motivos para flexibilizar, diminuir ou relativizar de alguma maneira o dever de informação, pois esta cirurgia apresenta-se como uma obrigação de resultado (ou quase resultado), é desprovida de necessidade terapêutica ou de qualquer tipo de urgência na sua realização. Assim, deve ser mais intensa, ampla e rigorosa a informação prestada nestas intervenções, enquanto cirurgia voluntária, em que se integra a rinoplastia e a mamoplastia. O argumento do acórdão recorrido, para deslocar o ónus da prova para a paciente, segundo o qual, à data das intervenções estéticas dos autos, este produto (Articoll) era amplamente divulgado em Portugal e considerado inofensivo (facto provado n.º 19), como vimos, não é decisivo. O que atesta o facto n.º 19 é que o produto era fornecido (depreende-se, pelo mercado) à generalidade dos cirurgiões com a garantia que era inofensivo, não que houvesse uma comprovação médica ou fosse consensual na comunidade científica o caráter inofensivo do produto. O ónus da prova de que a comunidade científica reputava como inofensivo este produto cabe, em nosso entender, ao médico, desde logo porque está em melhores condições, por ser especialista na área, de o fazer. Assim, o facto provado n.º 19 não dispensa o médico da obrigação de informar a paciente da totalidade dos riscos, mesmo dos que não fossem previsíveis ou frequentes à data, desde que esses riscos pudessem resultar, em abstrato, das caraterísticas do produto, como se demonstra nos factos provados, que esclarecem que o produto funcionava como uma prótese. O médico não está assim dispensado da sua responsabilidade individual de analisar as caraterísticas do produto, ponderar possíveis riscos, ainda que remotos (como também se entendeu no acórdão de 08-09-2020), e de informar a paciente da sua possibilidade de ocorrência. O facto provado n.º 19 não permite, assim, diminuir o alcance do dever do médico e transferir o ónus da prova para a paciente, devendo enfatizar-se a gravidade e caráter significativo dos riscos, cuja possibilidade de ocorrência o médico não podia ignorar dada a natureza do produto, que ficou demonstrado funcionar como uma prótese, que se alojava definitivamente no corpo dos pacientes e que era, por isso, potencialmente causador de infeções e de granulomas. Cabe-lhe, portanto, a ele, até por ser especialista e ter mais acesso à informação, provar que à data do tratamento o conhecimento médico atestava que o produto não apresentava riscos graves e que aqueles riscos que produziram os danos na face da autora eram imprevisíveis, prova que não logrou fazer. Note-se que há uma grande assimetria informativa entre um especialista e uma cidadã leiga na matéria: era o médico que dispunha da informação sobre as caraterísticas do produto, não a paciente, era o médico, o único sujeito, naquela relação contratual, que tinha conhecimentos para saber os perigos de uma prótese inserida no rosto e para conhecer o estádio do conhecimento científico. A doutrina tem exigido que a gravidade de um risco, ainda que este não seja frequente, tem de ser comunicada ao paciente, e tem definido alguns critérios para fundamentar este dever de informação, no sentido em que quanto mais perigosa for a intervenção, mais ampla deve ser a informação a prestar e quanto mais recente o procedimento, maior o rigor e o pormenor da informação exigível (André Pereira, “Responsabilidade médica…”ob. cit.). A jurisprudência francesa e alemã têm entendido que devem ser objeto de uma informação clara, leal e apropriada os riscos graves, mesmo que hipotéticos, raros ou que só se realizem excecionalmente (André Dias Pereira, Responsabilidade médica…ob. cit.). Relativamente ao comportamento da paciente, fator a ter em conta no juízo de ponderação sobre a extensão do dever de informação, estamos a falar de uma mulher que já tinha feito operações estéticas na face e no abdómen antes de contactar o réu (facto provado n.º 1), que era saudável e estava na força da vida (facto provado n.º 64), instruída e de bom nível cultural e que sempre se mostrou interessada em conhecer os métodos cirúrgicos utilizados (facto provado n.º 81), e cuja profissão implicava exposição e contacto com o público (factos provados n.º 66 e 67). Se os dois primeiros aspetos – a experiência na realização de operações estéticas e a boa saúde da paciente – podem contribuir para um aligeiramento do conteúdo do dever de informação do médico, já quanto aos restantes não se pode dizer o mesmo. Pelo contrário, dada a profissão da autora fica acentuado o caráter de obrigação de resultado da intervenção estética e a maior necessidade de informação sobre efeitos secundários indesejados suscetíveis de poder frustrar o resultado, e de impedir, como veio a acontecer, a exposição pública, por ter ficado desfigurada no rosto (facto provado n.º 63), na sequência de infeções provocadas pelo Artecoll nove anos mais tarde (facto provado n.º 62). Confirmando esta ideia, André Dias Pereira refere que alguns Autores entendem que o médico deve informar o paciente dos riscos atípicos quando está em causa a possibilidade de afetação da sua capacidade profissional (cf. André Dias Pereira, Direitos dos pacientes…ob. cit., p. 383). O facto de a autora ser instruída e ter bom nível cultural, e de ser uma pessoa interessada nestes métodos, também acentua a extensão e abrangência do dever de informação do médico, pois estão garantidos, dadas as suas qualidades pessoais, quer a capacidade de autodeterminação da paciente para escolher em função das informações fornecidas, mesmo que complexas, quer o seu nível de compreensão intelectual em relação a detalhes técnicos, porventura pouco acessíveis ao comum das pessoas.
8. Em consequência, procedendo a uma ponderação valorativa de todos os elementos e critérios atrás expostos, num pano de fundo legal e jurisdicional de proteção crescente da autodeterminação dos pacientes, não podemos deixar de entender que o médico incumpriu o seu dever de informação. Cabia-lhe, para fazer recair sobre a paciente as consequências da operação estética, demonstrar o caráter não significativo e imprevisível dos riscos de inserir um produto no rosto da paciente, que funciona como uma prótese, prova que não logrou fazer. Assim, é sobre ele que recai a consequência da falta de prova, e não sobre a paciente. O ónus da prova funciona como uma regra de decisão, na medida em que é suscetível de influir no conteúdo da decisão do tribunal que aprecia as provas produzidas. A parte a quem compete o encargo de fornecer a prova do facto visado incorre nas desvantajosas consequências de se ter como líquido o facto contrário, se omitiu ou não conseguiu realizar essa prova; ou, sofre, em todo o caso, tais consequências se os autos não contiverem prova bastante desse facto (cf. Manuel A. Domingues de Andrade, Noções elementares de Processo Civil, Coimbra, Coimbra Editora, 1979, pp.196-197).
9. O consentimento viciado por falta de informação adequada equivale a uma intervenção sem consentimento, que torna a intervenção médica arbitrária, traduzindo-se tecnicamente numa ofensa corporal. Sendo o consentimento informado uma causa de justificação ou de exclusão da ilicitude de uma lesão à integridade física, a sua ausência constitui um facto impeditivo do direito da autora, cuja demonstração no processo cabe, nos termos do artigo 342.º, n.º 2, do Código Civil, ao médico. Assim, não tendo o médico provado o consentimento informado (justificante), não foi validamente consentida a aplicação do medicamento “Articoll” – designadamente porque a Autora não foi devida e adequadamente informada e esclarecida sobre os respetivos riscos. A cirurgia estética assim realizada constitui uma ofensa ao direito à integridade física/psíquica da autora, por falta de justificação, conforme resulta dos artigos 70.º, n.º 1, 81.º e 340.º, todos do Código Civil. O médico responde pelos danos causados, desde que atue com culpa, a qual se presume, nos termos do artigo 799.º, n.º 1, do Código Civil. Mesmo em caso de culpa leve, o médico responde pela totalidade dos danos, não beneficiando da aplicação do artigo 494.º do Código Civil como entende a doutrina (cf. André Dias Pereira, “Breves notas sobre a responsabilidade médica em Portugal”, Revista Portuguesa do Dano Corporal, Nov. 2007, Ano XVI, n.º 17, p. 14).
10. Nexo de causalidade 10.1. Nexo de causalidade entre a aplicação do produto Articoll e os danos sofridos pela autora Importa ainda averiguar se existe nexo de causalidade entre o facto ilícito e culposo e os danos. Ora, a matéria de facto provada é elucidativa sobre esta questão, demonstrando que existe este nexo de causalidade entre o tratamento com o produto “Articoll” e os danos sofridos mais tarde pela autora aquando da aplicação de outro produto, o “Amelan”. É certo que o Articoll não foi a única causa a provocar o dano, que foi potenciado também por outra intervenção cirúrgica que contribuiu para as infeções. O tratamento com “Amelan”, feito em 2003, foi o acontecimento que proporcionou a ocasião para o risco de infeção na face se desencadear. Mas a circunstância de a autora ter um produto semelhante a uma prótese no rosto foi a principal causa da multiplicação das infeções e dos graves danos sofridos. De qualquer forma, é doutrina assente que «(…)o artigo 563.º do Código Civil consagra a doutrina da causalidade adequada na sua formulação negativa, que não pressupõe a exclusividade do facto condicionante do dano, nem exige que a causalidade tenha de ser direta e imediata, pelo que admite não só a ocorrência de outros factos condicionantes, contemporâneos ou não; como ainda a causalidade indirecta, bastando que o facto condicionante desencadeie outro que directamente suscite o dano» (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 07-04-2005, proc. n.º 05B294). Como se afirma no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 27-04-2017, proc. n.º 1523/13.7T2AVR.P1.S1, «Um dano não é, apenas, a consequência da sua causa imediata; em regra, é produto de um encadeamento ou sequência de causas». Prossegue o mesmo acórdão, afirmando que ainda que um determinado facto não tenha sido a única causa do dano, “não está o STJ impedido de analisar o encadeamento factual que veio a culminar nessa infecção respiratória hospitalar e na morte”. A factualidade provada atesta que o Artecoll provoca granulomas suscetíveis de desencadear infeções como a destes autos que conduziram às deformações do rosto da autora. Segundo o facto provado n.º 30, o “Artecoll” pode provocar granulomas e, por esse motivo, foi a sua utilização já proibida desde data não concretamente apurada. Afirma ainda o facto n.º 33, que “dado que a infiltração com o produto PMMA não se consegue remover nem é reabsorvida com facilidade da área em que o mesmo foi colocado, qualquer tratamento agressivo efetuado numa área adjacente deveria ter sido executado sob total cobertura antibiótica prévia, cuidado clínico que poderia ter evitado a infecção e as complicações a ela associadas, que se vieram a desencadear”. Em 08.04.2003, a Autora realizou citologias aspirativas na raiz do supracílio direito, sulcos naso-genianos e lábio inferior que revelaram focos de esteatonecrose (facto provado n.º 44) e em 09.04.2003, a Autora fez uma TAC crânio-encefálica onde foi revelada celulite em toda a face, incluindo as regiões periorbitária e frontal, sem sinais de coleção abecdada ou fleimão e possível discreta coleção líquida sob o músculo frontal, tendo-se identificado algumas formações subcutâneas hiperdensas, compatíveis com corpo estranho, localizadas na linha média frontal sobre os malares e os lábios (facto provado n.º 45). O exame anátomo-patológico revelou intensa reação granulomatosa do tipo corpo estranho em relação com material de aspeto lipídico (lipogranulomas) – facto provado n.º 47. Segundo o facto 50, «o material enviado para exame anátomo-patológico revelou intensa e difusa reação inflamatória crónica caracterizada por linfócitos, numerosos histiócitos epitelióides e raros pequenos granulomas com células gigantes multinucleadas, em relação com vacúolos redondos de diferentes tamanhos predominantemente extracelulares, vazios e sem refrigência». O facto provado n.º 52 afirma que os fragmentos enviados para exame anátomo-patológico revelaram aspetos semelhantes aos referidos em 50. A partir de setembro de 2005, a Autora recorreu novamente ao H....., desta feita, ao Serviço de Pneumologia, com sintomas de insuficiência respiratória, provocada por fibroses e granulomas nos pulmões, tendo sido detetado que a sua situação clínica era provocada por uma alergia a um alveolítico estranho (Facto provado n.º 55). Segundo o facto n.º 59, o tratamento com “Amelan” é agressivo e provoca deterioração das camadas superficiais da pele, o que poderá facilitar a penetração de bactérias até à zona onde se encontrava infiltrada a substância “Artecoll”, a qual pode ter sido contaminada, desencadeando-se, de seguida, a infeção ao seu redor. O “Amelan” atua na pele eliminando as suas camadas superficiais, o que, por um lado, permite remover manchas e rugas, mas, por outro lado, diminui a barreira protetora da pele face a eventual contaminação bacteriológica, facilitando, assim, a passagem de bactérias para o interior do organismo (facto provado n.º 61). Esta circunstância fez com que um produto que se manteve estável durante 9 anos, ao ser atingido por uma infeção desenvolveu uma violenta reação imunológica em que o organismo, ao tentar isolar esta infeção, fabrica milhares de células em torno do foco infecioso, formando, assim, os granulomas inflamatórios, que foi o que sucedeu à ora A. (facto provado n.º 62). Aqueles granulomas foram tratados por diversos esquemas terapêuticos que culminaram com a sua remoção cirúrgica, que condicionou o grau de deformação estética apresentado nas fotografias anexas aos autos (facto provado n.º 63). O nexo de causalidade entre o facto e o dano não exige a demonstração de uma certeza científica ou naturalística, mas apenas um juízo de probabilidade de que o facto foi a causa adequada, em sentido normativo, da produção do dano. Ora, dadas as explicações contidas na matéria de facto sobre as caraterísticas do produto Artecoll e o contexto em que surgiram as infeções, bem como a sua relação com um corpo estranho existente no rosto da autora, não há dúvida que estão preenchidos os critérios de determinação da existência de uma causalidade adequada entre o facto e o dano, nos termos do artigo 563.º do Código Civil. À mesma conclusão se chegaria à luz da doutrina das esferas de risco (Mafalda Miranda Barbosa, Responsabilidade civil extracontratual, Principia, 2014, p. 60), segundo a qual a questão da causalidade reside em saber se a ação comporta ou não, no seu seio, os riscos dos quais pode resultar um determinado dano, não se exigindo que este juízo implique uma indagação de probabilidade estatística, nem um determinismo físico, tratando-se apenas de um critério de possibilidade. De acordo com esta tese, violados determinados deveres para com o outro, in casu, os deveres de informação, para além do juízo de censura em que se vem a traduzir a culpa, o agente chama a si o risco de suportar as consequências da lesão dos direitos do outro que venham a verificar-se (Mafalda Miranda Barbosa, ob. cit., p. 63). Esta conclusão é verdadeira sobretudo para casos como o destes autos, em que o sujeito, o médico, ocupa uma especial posição que determina o nascimento de deveres especiais para com o outro, a paciente. Assim, conclui-se pela verificação do nexo de causalidade entre a aplicação do Articoll e os danos no rosto da paciente.
10.2. Nexo de causalidade entre a deficiência da informação e a decisão da paciente Para alguma doutrina e jurisprudência estrangeiras, a autora teria de demonstrar, ainda, que, caso conhecesse as caraterísticas do produto aplicado na cirurgia e os seus riscos, não teria consentido na intervenção estética em causa, ou pelo menos, seria plausível que não consentisse. Mas dada a impossibilidade de fazer esta demonstração, relacionada com o foro íntimo dos pacientes, tem-se entendido que o paciente só tem de provar que ficaria numa situação de conflito de decisão e que o juiz não deve ser muito exigente quanto à plausibilidade dos fundamentos apresentados pelo paciente (André Dias Pereira, “Responsabilidade médica…”, ob. cit.), devendo, em todo o caso, o critério de aferição dessa causalidade ter por referência o paciente concreto e não o paciente razoável. Estamos perante uma situação de causalidade psíquica, pelo que o tribunal deve decidir com base em “balanços de verosimilhança” (André Dias Pereira, “Responsabilidade médica...”, ob. cit.). Apesar de alguma jurisprudência anglo-saxónica fazer esta exigência ao paciente, no direito continental, dada a dificuldade probatória que cria para o lesado, tem-se entendido que deve ser o médico a suportar o ónus da prova do consentimento hipotético, ou seja, que o paciente teria consentido na intervenção mesmo que lhe tivesse sido fornecida a informação acerca dos riscos. Contudo, a doutrina e a jurisprudência portuguesas não admitem a invocação da figura do consentimento hipotético pelo réu, quando estejam em causa violações graves dos deveres de conduta do médico, como sucede quando este omite informações fundamentais ou essenciais para a autodeterminação do paciente (cf. André Dias Pereira, Direitos dos pacientes e responsabilidade médica, ob. cit; Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 02-06-2015, Proc. n.º 1263/06.3TVPRT.P1.S1 e o já citado Acórdão de 08/09/2020). A jurisprudência e a doutrina fundamentam-se em presunções para o efeito de estabelecer este nexo de causalidade, nem sempre fácil de provar diretamente.
\ Como se refere no acórdão deste Supremo Tribunal, de 08-09-2020:
Com efeito, como também se afirma no citado acórdão: Num contexto distinto, mas aludindo à mesma problemática jurídica do comportamento conforme à informação, veja-se o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 06-11-2012, Proc. n.º 4068/06.8TBCSC.L1.S1, segundo o qual:
Regressando ao caso concreto, constata-se que a autora consentiu na infiltração de um produto na face para corrigir as rugas mais profundas, mas desconhecia a natureza e caraterísticas do produto utilizado, o Artecoll, designadamente, que este produto podia provocar granulomas e riscos significativos e graves de infeção. A questão que se coloca é a de saber se teria consentido, ou não, na intervenção caso soubesse das caraterísticas do tratamento e dos riscos de infeção que podia gerar. Ora, nesta matéria, por força da natureza fundamental da informação omitida, da gravidade do sofrimento (facto n.º 78) e das deformações faciais (facto n.º 63 e 79) que a autora veio a suportar por via da infeção desencadeada (factos provados n.º 57 e 59), é de presumir que se a autora soubesse que a existência do Artecoll no seu organismo poderia determinar, em caso de penetração de bactérias na zona, uma contaminação do produto, desencadeando uma violenta reação imunológica, em que o organismo fabrica milhares de células em torno do foco infecioso, formando os granulomas inflamatórios (facto provado n.º 62), não teria aceitado correr o risco de introduzir o Artecoll na face. Mais do que isso, como pessoa culta e racional que é, se tivesse conhecimento da definitividade do tratamento, e que o Artecoll se comportaria como uma prótese, e que, em qualquer situação de infeção, veria aumentado o risco de uma reação como aquela que veio a ter lugar, a autora não teria consentido na intervenção estética feita nestas condições. Aplica-se, assim, a presunção de comportamento conforme à informação, a qual está amplamente fundamentada na matéria de facto provada, quer numa perspetiva subjetiva, tendo em conta as qualidades pessoais da paciente, quer numa perspetiva objetiva em relação ao paciente abstrato e razoável.
11. Direito de indemnização da autora por danos patrimoniais e não patrimoniais Verificados os pressupostos da responsabilidade civil, importa determinar o quantum da indemnização por perdas e danos a arbitrar à autora. Por danos não patrimoniais, a autora pediu uma indemnização com um valor global de 232.100 euros: 25.000 pelo quantum doloris; 100.000 pelo dano estético, 100.000 pela tristeza e ansiedade provocadas pela limitação no exercício da sua atividade profissional, pelo período de internamento (70 dias), 2100,00 euros e pelo prejuízo de afirmação pessoal, 5000,00 euros. Resulta da matéria de facto provada que a Autora, na sequência das infeções sofridas ficou com deformações físicas no rosto e “completamente desfigurada” (factos provados n.º 63 e 68), e foi sucessivamente internada e submetida a cirurgias e tratamentos para debelar as infeções e proceder à remoção cirúrgica dos granulomas (factos provados n.º 48, 49, 51, 53 55 60, e 63), tendo sofrido um quantum doloris de 6 numa escala 7 (facto provado n.º 78), um dano estético de 7 numa escala de 7 (facto provado n.º 79) e um dano de afirmação pessoal de 7 numa escala de 7 (facto provado n.º 80). A Autora nasceu em ...... e, antes dos factos, era uma pessoa que estava na força da vida, bem-parecida e a gozar de boa saúde (facto provado n.º 64). Era uma pessoa perfeitamente integrada na sociedade, reconhecida como pessoa afável, simpática, de trato fácil, alegre, mantendo uma intensa vida de sociedade, muito para além daquela que seria necessária por força da sua atividade profissional (facto provado n.º 65). A autora desempenhava uma profissão de........, que impunha um contacto constante com outras pessoas, sendo necessária a comparência em eventos, com exposição pública (facto provado n.º 67). A autora despendeu quantias não concretamente apuradas com os tratamentos médicos feitos com o Artecoll e o Amelan, bem como com as intervenções cirúrgicas necessárias para a sua recuperação, internamentos, consultas, medicamentos, farmácia, viagens para o estrangeiro, tradução e consultas no estrangeiro (factos provados n.º 70 a 72). A autora terá ainda de suportar periodicamente despesas necessárias para resolver problemas de saúde no futuro (facto provado n.º 73). As complicações de saúde que sofreu causaram-lhe um enorme desgosto e tristeza, ansiedade e consternação (facto provado n.º 75). O estado desfigurado em que se encontra leva a que a Autora viva em quase isolamento, evitando o contacto com outras pessoas (facto provado 76). Segundo o facto 77, a Autora mantém fácil irritabilidade, ansiedade, fadiga, dificuldade de concentração, perturbações do sono (insónias), humor deprimido e dificuldades ao nível das funções executivas (desorganização no planeamento e na orientação para a tarefa). O Código Civil consagra, em pleno, o princípio da ressarcibilidade dos danos não patrimoniais (artigo 496.º, n.º 1) e o critério da fixação equitativa da indemnização correspondente (artigo 496.º, n.º 3). Os danos não patrimoniais, embora insuscetíveis de uma verdadeira e própria reparação ou indemnização, porque não avaliáveis em dinheiro, podem ser, de algum modo compensados. Na verdade, a reparação dos prejuízos, precisamente porque estes são de natureza moral (e, nessa exata medida, irreparáveis) é uma reparação indireta (cf. acórdão de 19-10-2004, Revista n.º 2897/04, 6.ª Secção). Os interesses cuja lesão desencadeia um dano não patrimonial são infungíveis (a vida, a integridade física, psíquica e sexual, a saúde, a liberdade, o bem-estar físico e psíquico, a alegria de viver, a beleza) e não podem ser reintegrados por equivalente. A fixação do montante da indemnização por danos não patrimoniais não obedece a critérios matemáticos ou rígidos, baseando-se antes em juízos de equidade, necessariamente incindíveis das particularidades de cada caso concreto, mas com tendência a uma valorização crescente por estarem ligados a bens jurídicos pessoais constitucionalmente tutelados e que correspondem a direitos humanos fundamentais – o direito à integridade física e psíquica, o direito à saúde e à autonomia, o direito à liberdade e ao livre desenvolvimento da personalidade, o direito à identidade, o direito ao trabalho e ao lazer, o direito a uma vida de relação, etc. O Código Civil não enumera os danos não patrimoniais, confiando ao tribunal o encargo de os apreciar, no quadro das várias situações concretas. A própria noção de dano sai fora das tradicionais categorias, e abrange várias sub-categorias, de forma a melhor expressar os aspetos da dignidade humana que são efetivamente lesados: por exemplo, o dano estético, o dano existencial, o dano da perda de autonomia, o dano sexual, o dano biológico, a perda da alegria de viver e dos anos de juventude, a perda do lazer e do repouso. Atualmente há uma preocupação superadora da tradicional categoria de “dano moral“, ampliando o seu espectro, de molde a abranger outras manifestações que a lesão provoca na pessoa, e já não a simples perturbação emocional, a dor ou o sofrimento, visando-se, assim, erigir um novo modelo centralizado no “dano pessoal” correspondendo ao “dano ao projeto de vida”, como núcleo do “dano existencial” (Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 20-10-2015, proc. n.º 335/09.7TBNLS.C1). A jurisprudência adota, para a determinação do montante da compensação dos danos não patrimoniais, critérios de equidade e de justa medida, que tenham em conta a gravidade dos prejuízos, o grau de culpabilidade do agente, e demais circunstâncias do caso, todos decorrentes da lei, nos termos do artigo 496.º, n.ºs 1 e 4, do Código Civil. Em Portugal, as indemnizações não costumam ser muito elevadas e apesar de cada pessoa e o seu sofrimento serem sempre únicos e singulares, tem-se entendido, na jurisprudência deste Supremo Tribunal, que se deve respeitar, na medida do possível, uma ideia de igualdade entre os lesados, que se encontram numa situação semelhante. Assim, o recurso à equidade “não afasta a necessidade de observar as exigências do princípio da igualdade, o que implica a procura de uma uniformização de critérios, naturalmente não incompatível com a devida atenção às circunstâncias do caso” (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, 08-06-2017, Proc. n.º 2104/05.4TBPVZ.P1.S2). Nos acidentes de viação, quando os lesados ficam incapacitados, as indemnizações por danos não patrimoniais não excedem valores entre 125.000 e 180.000 euros, conforme resulta do elenco de decisões citadas no Acórdão deste Supremo tribunal, de 08-09-2020: Num caso de responsabilidade médica, decidido nesta Secção, no citado acórdão de 8 de setembro, foram computados em 140.000 euros os danos morais sofridos pela paciente:
Neste quadro normativo e jurisprudencial, há que considerar o caráter invulgar do caso concreto, agora em juízo, na dimensão dos danos. Foi atingido o rosto da autora, que ficou com deformações físicas em virtude das lesões sofridas, atingindo um dano estético de 7 numa escala de 7. Ora, este dano não é meramente um dano corporal ou físico, mas, em virtude de incidir sobre a parte do corpo mais importante para a personalidade, para a identidade e sentimento de si, e para a comunicação com os outros, repercute-se, de forma particularmente grave, na relação da pessoa consigo mesma e com os outros, na alegria de viver, nas capacidades sociais e profissionais, na vida de relação, resumindo, na totalidade da existência da pessoa, no seu “eu” e na sua auto-estima. Por outro lado, a autora padeceu de dores de valor 6 numa escala de 7, de intervenções cirúrgicas sucessivas e períodos de internamento, limitações na atividade profissional, e de um dano de afirmação pessoal de 7 numa escala de 7, tendo suportado praticamente o máximo do sofrimento físico e psíquico dentro das escalas tecnicamente utilizadas para o medir. Assim, dada a natureza profunda e global dos danos não patrimoniais suportados, devido à particularidade de o dano estético ser no rosto e ter atingido o valor máximo na escala, afetando, de forma grave, todas as dimensões da personalidade humana e produzindo impacto negativo (tristeza, ansiedade, angústia e dor) nas condições da existência da autora enquanto pessoa, isolamento na sua vida social e relacional, incapacidade profissional, com perda da realização pessoal e da alegria de viver, julga-se equitativo arbitrar um valor de 150.000 euros a título de danos não patrimoniais. A avaliação dos danos está feita de acordo com o critério atualista definido no n.º 2 do artigo 566.º do Código Civil, vencendo o montante arbitrado juros de mora a partir da data desta decisão e até efetivo e integral pagamento.
Quanto aos danos patrimoniais, afirma a matéria de facto o seguinte:
As infeções sofridas pela autora implicaram despesas em tratamentos, consultas, viagens ao estrangeiro, medicamentos e intervenções cirúrgicas durante um longo período de tempo e que podem ainda não ter cessado, pelo que a autora suportou e pode vir a suportar no futuro danos patrimoniais, de valor indeterminado, que devem ser ressarcidos. A Autora suportou também, e suportará no futuro, prejuízos decorrentes de uma incapacidade permanente para a atividade profissional, mas não se provou o valor dos rendimentos anuais que auferia (facto não provado l), nem que tenha deixado de auferir, até aos 70 anos, a quantia total de 48.000 euros (facto não provado m). Por não ser possível determinar o montante exato destes danos, remete-se, pois, para execução de sentença, a liquidação do valor concreto dos danos patrimoniais, emergentes e lucros cessantes, nos termos do artigo 564.º, n.º 1, e dos danos futuros, nos termos dos artigos 564.º, n.º 2, e 569.º, todos do Código Civil. Aos danos patrimoniais, emergentes e lucros cessantes (artigo 564.º, n.º 1, do Código Civil) acrescem juros de mora a partir da citação e até efetivo e integral pagamento. Condena-se, em consequência, o 1.º Réu, BB, e a interveniente principal, Ageas Portugal – Companhia de Seguros, S. A., com quem o 1.º Réu celebrou um contrato de seguro de responsabilidade civil profissional decorrente da sua atividade médica, no âmbito “Cirurgia Plástica” (facto provado n.º 82), a suportar o valor da indemnização por danos não patrimoniais e patrimoniais, nos termos descritos.
IV – Decisão Pelo exposto, decide-se, na 1.ª Secção deste Supremo Tribunal de Justiça, conceder parcialmente a revista, e condenar o 1.º réu, BB, e a interveniente principal, Ageas Portugal – Companhia de Seguros, S. A., ao pagamento à autora das seguintes indemnizações: 1. Indemnização por danos não patrimoniais no valor de 150.000 euros, com juros de mora a partir desta decisão e até efetivo e integral pagamento; 2. Indemnização por danos patrimoniais, nos termos do artigo 564.º, n.º 1, do Código Civil), a liquidar em execução de sentença, acrescidos de juros de mora a partir da citação e até efetivo e integral pagamento. 3. Indemnização por danos patrimoniais futuros (artigo 564.º, n.º 2, e 569.º, n.º1, ambos do Código Civil), a liquidar em execução de sentença.
Custas da revista pelos recorridos.
Nos termos do artigo 15.º-A do DL 20/2020, de 1 de maio, atesto o voto de conformidade do Juiz Conselheiro Alexandre Reis (1.º Adjunto) e do Juiz Conselheiro Pedro de Lima Gonçalves (2.º Adjunto).
Supremo Tribunal de Justiça, 2 de dezembro de 2020
Maria Clara Sottomayor (Relatora) Alexandre Reis Pedro de Lima Gonçalves |