Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
109/19.7GAARC.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOSÉ CARRETO
Descritores: CRIME DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
REQUISITOS
FACTOS GENÉRICOS
ALTERAÇÃO NÃO SUBSTANCIAL DOS FACTOS
Nº do Documento: RP20191113109/19.7GAARC.P1
Data do Acordão: 11/13/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL (CONFERÊNCIA)
Decisão: PARCIALMENTE PROVIDO O RECURSO DO ARGUIDO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Devem ser considerados não escritos e deixarem de fazer parte integrante dos elementos de facto a ponderar os factos genéricos e vagos sem indicação do tempo, local e modo de cometimento.
II - Não existe alteração não substancial de factos se a factualidade dada como provada no acórdão condenatório consiste numa mera redução daquela que foi indicada na acusação ou na pronúncia.
III - O crime de violência doméstica não é um crime residual, no âmbito do qual cabe tudo o que não cabe nos demais tipos legais de crime, mas antes é um crime específico ou especial e pressupõe um relacionamento especial que o tipo prevê.
IV - O crime de violência pressupõe uma relação de subjugação entre o arguido e a ofendida ou de domínio daquele sobre esta que ponha em causa de modo intolerável a dignidade da pessoa humana, ou seja, que traduza um tratamento degradante e desumano e que este decorra de uma posição de dominação e de prevalência do arguido sobre a vítima.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Rec nº 109/19.7GAARC.P1
TRP 1ª Secção Criminal
Acordam em conferência os juízes no Tribunal da Relação do Porto

No Proc. C. S. nº 109/19.7GAARC do Tribunal Judicial da Comarca Aveiro - Juízo de Competência Genérica de Arouca em que foi julgado o arguido B…

Após julgamento, por sentença de 29/7/2019 foi decidido:
“Em face do exposto, julgo a acusação parcialmente procedente, por parcialmente provada, e, em consequência, decido:
1º-Condenar o arguido B… pela prática de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152º nº 1, alíneas a) e c), do Código Penal, por factos praticados entre 10/02/2016 e 13/04/2019, na pena de 2 [dois] anos e 3 [três] meses de prisão.
2º-Suspender a execução da pena e prisão por 4 [quatro] anos, com sujeição a regime de prova e ao Plano de Reinserção Social a elaborar pela DGRSP e a homologar pelo Tribunal e na condição de o arguido:
2.1-não contactar com a ofendida, por qualquer meio.
2.2-não se aproximar da ofendida numa distância inferior a 500 metros.
2.3-manter-se afastado da residência ou do local de trabalho da ofendida, a uma distância nunca inferior a 500 metros.
2.4-não ser portador ou detentor de qualquer arma de fogo ou outra.
2.5-frequentar programa direcionado à questão da violência doméstica de molde a promover no mesmo consciência crítica para as suas atitudes e ainda a procura, por parte do mesmo, de comportamentos e reações mais adequadas em momentos de crise, nomeadamente frequentar programa ministrado pela DGRSP, sendo o programa constituído pelas seguintes etapas:
2.5.1-O acompanhamento individualizado assegurado pelo técnico de reinserção social, nomeadamente através da realização de entrevistas com a periodicidade mensal, nos primeiros seis meses, e posteriormente, bimestral, até ao fim da medida;
2.5.2-frequência do modelo psicoeducacional, de 20 sessões, organizadas semanal ou quinzenalmente;
2.5.3-a adesão à intervenção de outros serviços que se revele aconselhável em face de necessidades adjacentes de natureza social.
2.6-pagar à vítima C… a indemnização que vai ser arbitrada pelo Tribunal, no prazo de dezoito meses, devendo em cada mês pagar 1/18 do valor, ao abrigo do disposto no artigo 82º-A do CPP e artigo 21º nºs 1 e 2 da Lei nº 112/2009, de 16 de setembro.
3º-Determinar a fiscalização por meios técnicos de controlo à distância quanto ao cumprimento pelo arguido das condições de suspensão de proibição de contactos e afastamento da habitação e do local de trabalho da vítima, bem como desta, dispensando-se o consentimento do arguido, conforme acima fundamentado.
4º-Arbitrar à ofendida, ao abrigo do disposto no artigo 82º-A do Código Processo Penal, conjugado com o artigo 21º nºs 1 e 2 da Lei nº 112/2009, de 16 de setembro, indemnização no montante de 3.600,00€ [três mil e seiscentos euros].
5º- Condenar o arguido nas custas criminais, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC [artigo 513º nº 1 do CPP] e demais encargos do processo [artigo 514º nº 1 do CPP].”

Recorre o arguido qual no final da sua motivação apresenta as seguintes conclusões:
1º - Vem o arguido interpor recurso da, aliás, douta sentença proferida pelo M.mo Juiz de Direito junto do Juizo de Competência Genérica de Arouca, por se ter efectuado uma errada apreciação e valoração da prova produzida na audiência de julgamento, por se ter efectuado uma errada qualificação normativo-juridica dos factos dados como provados na douta sentença recorrida, e por se ter efectuado uma errada apreciação na determinação dos danos não patrimoniais;
2º -Não podia o Tribunal recorrido dar como provados os factos constantes da acusação, porque assentam apenas nas declarações da ofendida, parte interessada nos autos, e no depoimento de testemunhas que não presenciaram os factos;
3º -Ao fazê-lo efectuou uma errada apreciação da prova efectivamente produzida na audiência de julgamento;
4º -Entende também o arguido que os factos dados como provados na douta sentença recorrida não integram a prática de um crime de violência doméstica, mas antes a eventual prática de um crime de perseguição, p. e p. pelo art. 154o- A, do Código Penal;
5º -O que resulta dos factos dados como provados é que o arguido, após o terminus da relação marital que manteve com a ofendida, passou, através de deslocações físicas até aos locais em que a ofendida se encontrava, a perseguir a mesma, pretendendo dessa forma resolver as questões pessoais e profissionais que tinham pendentes entre si;
6º Os factos dados como provados só permitem a afirmação da prát ica de um crime de perseguição, o qual é punível, em abstracto, com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa;
7º 0 arguido, a ser condenado, só o pode ser numa pena de prisão não superior a 1 ano, sempre suspensa na sua execução por igual período de tempo;
8° Entende ainda o arguido que a sua condenação no pagamento da quantia de 3.600,00€ a favor da ofendida a título de danos não patrimoniais, não tem qualquer fundamento legal, e é manifestamente exagerada e inaceitável;
9º Não tem fundamento legal na perspectiva que defende o arguido no sentido de que não cometeu nenhum crime de violência doméstica, mas antes um eventual crime de perseguição;
10º Verifica-se ainda que o valor fixado na douta sentença recorrida – 3.600,00€ -, é manifestamente exagerado, sem qualquer correspondência com os eventuais danos não patrimoniais que a ofendida possa ter sofrido;
11° Decidindo-se como se decidiu, verifica-se uma errada apreciação da prova produzida em audiência de julgamento, vicio que se invoca para todos os efeitos legais, foi violado o disposto pelos arts. 152°, n°l, al. a) e 154°-A, ambos do Código Penal, e foi erradamente determinado o pagamento da quantia de 3.600,00€ a favor da ofendida, a titulo de indemnização por danos não patrimoniais.
Termos em que deverá dar-se provimento ao presente recurso, revogando-se, consequentemente, a douta sentença ora recorrida, devendo a mesma ser substituída por outra que absolva o arguido da prática do crime de violência doméstica, e do pagamento da quantia de 3 600,00€ a favor da Assistente”

O Mº Pº respondeu defendendo a improcedência do recurso
Nesta Relação o ilustre PGA emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.
Foi cumprido o artº 417º2 CPP

Cumpridas as formalidades legais, procedeu-se à conferência.
Cumpre apreciar.
Consta da sentença recorrida (transcrição):

“II-Fundamentação de facto:
Da discussão da causa resultaram os seguintes:
A-Factos provados:
A.1-Da acusação pública:
1º-A ofendida C… e o arguido B… contraíram casamento no dia 30 de novembro de 1991, o qual foi dissolvido por divórcio decretado por sentença proferida em 08 de novembro de 2012, transitada em julgado em 14 de dezembro de 2012.
2º-Do casamento nasceram, em 1 de maio de 1992, D… e, em 29 de maio de 1999, E….
3º-O seu agregado familiar fixou residência habitual lugar de …, …, Arouca.
4º-O arguido sempre ingeriu bebidas alcoólicas em excesso, encontrando-se assim com frequência embriagado.
5º-No âmbito do Processo n.º 329/10.0GAARC que correu termos no, ao tempo, Tribunal Judicial de Arouca, o arguido foi acusado da prática de um crime de violência doméstica contra a aqui ofendida, por factos ocorridos após o mês de junho de 2000 a junho de 2012, tendo sido condenado pela prática de um crime de violência doméstica na pena de vinte e cinco meses de prisão, suspenso na sua execução por igual período, com regime de prova.
6º-No âmbito do Processo n.º 29/16.7GAARC que correu termos na Comarca de Aveiro, ao tempo, Arouca - instância local – secção de competência genérica – J1, o arguido foi acusado da prática de um crime de violência doméstica contra a aqui ofendida, por factos ocorridos após o mês de Junho de 2012 a 9 de Fevereiro de 2016, tendo sido absolvido da prática do crime de violência doméstica e condenado pela prática de um crime de ameaça agravada, p. e p. pelo artigo 153.º, n.º 1, 155.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal na pena de 7 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de um ano, sujeito a regime de prova e com a obrigação de se sujeitar a consultas e tratamento à dependência alcoólica, caso clinicamente necessário e pelo período que se mostre adequado, não ultrapassando o período da suspensão.
7º-Não obstante, o arguido nunca aceitou o divórcio e, desde pelo menos o dia 10 de fevereiro de 2016, persegue a ofendida e, pelo menos uma vez, afirmou “ELES TIRARAM-ME AS ARMAS, MAS EU NÃO PRECISO DE ARMAS PARA TE MATAR”.
8º-Sempre que o arguido encontra a ofendida na via pública apoda-a de “PUTA”, “VACA” e “PROSTITUTA”, em alta voz.
9º-No dia 28 de março de 2019, pelas 21:00 horas, quando a ofendida saiu da sua residência em direção ao Centro Cultural e Recreativo F…, o arguido abordou-a de forma repentina agarrando-a pelo braço esquerdo enquanto afirmou “QUERO FALAR CONTIGO”, “OUVI DIZER QUE ANDAS NOS BAILES COM OUTROS”, “JÁ SABES QUE SE ARRANJARES ALGUÉM EU MATO-TE A TI E DEPOIS MATO-ME A MIM”.
10º-A ofendida solicitou ao arguido que este a largasse, o que o mesmo não fez até ouvir a voz de G… a chamar pela ofendida, altura em que o arguido soltou esta.
11º-A G…, entretanto, esteve à conversa com o arguido e o mesmo afirmou “ONDE É QUE JÁ SE VIU TER BAILE NA QUARESMA”, “EU NÃO GOSTO MUITO QUE A C… ANDE NOS BAILES”.
12º-No dia 11 de abril de 2019, pelas 21:05 horas, o arguido dirigiu-se à ofendida que se encontrava no interior do Centro Cultural e Recreativo F… – C.C.R.M., sito em F…, de forma agressiva, que foi necessário que as pessoas que estavam presentes tivessem que rodear o mesmo e impedi-lo de se aproximar da ofendida, afastando o arguido do local.
13º-Quis, o arguido, com a sua conduta reiterada, diminuir a ofendida na sua dignidade enquanto mulher, infligindo-lhe sofrimento físico e psíquico, incluindo castigos corporais, pese embora não ignorasse que devia à visada, na qualidade de ex-mulher e mãe dos filhos de ambos, especial respeito e consideração.
14º-O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente.
15º-Bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.

A.2-Que resultaram da discussão da causa e para efeitos de arbitramento de indemnização a que se refere o artigo 82º-A do CPP:
16º-Pelas razões descritas em 7º a 12º a ofendida inibiu-se de ir a bailes, à ginástica, de sair de casa mais vezes e quando sai fá-lo com medo sobre o que lhe possa acontecer e sobre a reação que os filhos possam ter se o arguido lhe fizer algum mal.
A.3-Que resultam da discussão da causa e não foram alegados na acusação ou na contestação, mas com relevo para a decisão da mesma:
17º-Como dados relevantes do processo de socialização do arguido:
17.1-B… cresceu em …/Arouca, junto dos progenitores e 9 irmãos. O pai foi trabalhador florestal e a mãe doméstica/agricultora. Salientando a dedicação do pai ao trabalho como forma de sustento da família, o arguido faz, contudo, referencia ao relacionamento difícil e agressivo do mesmo em relação à mãe extensivo a si e aos irmãos.
17.2-O arguido concluiu o 4.º ano de escolaridade sem especiais dificuldades. Aos 11 anos de idade abandonou os estudos e foi trabalhar para junto do pai "no monte", mudando-se para a construção civil decorridos dois anos.
17.3-Aos 23 anos de idade casou com C… (ofendida no processo). Desta união nasceram dois filhos.
17.4-O casal habitou em casa dos sogros do arguido, tendo este procedido ao longo dos anos a obras de melhoramento na habitação.
17.5-Esta situação de coabitação teve provavelmente influência no mau relacionamento entre os familiares de origem da ofendida e o arguido. Os problemas de relacionamento agravaram-se em 2006 quando a sogra do arguido passou a estar mais permanentemente em casa durante o dia, o que não acontecia anteriormente porque a mesma cuida la de um casal de idosos durante a noite e chegava a casa quando o arguido já tinha saído para ir trabalhar e não se encontravam.
17.6-O relacionamento conjugal degradou-se significativamente quando a vítima informou o arguido da sua pretensão de divórcio, que foi decretado em dezembro de 2012.
17.7-Os problemas com o sistema de administração da justiça penal iniciaram-se em 27/10/2010 quando a GNR de Arouca comunicou aos Serviços do Ministério Público de Arouca o auto de denuncia da CPCJ que originou o processo nº 329/10.0GAARC, processo que foi suspenso durante oito meses por despacho de 06-10-2011. No mesmo período da suspensão a então sogra do arguido denunciou a posse de armas pelo mesmo, denúncia de que resultou o processo n.º 141/11.9TAARC, suspenso por seis meses, condicionado à obrigação de o arguido prestar 65 horas de serviços de interesse público, que prestou na Junta de Freguesia F…. Assim foi julgado no processo 329/10.0GAARC e condenado na pena de vinte e cinco meses de prisão suspensa na sua execução pelo mesmo período de tempo, com regime de prova e o dever de se submeter a tratamento de alcoologia (caso fosse essa a indicação decorrente da avaliação clínica).
17.8-Efetivamente o arguido foi encaminhado para a Equipa de Tratamento Especializada ETE/CRI de Santa Maria da Feira. Compareceu às consultas que lhe foram marcadas no período de 23/10/2013 até 29 de dezembro de 2014. Nesta data a referida unidade de saúde informou que B… sempre tinha negado que tinha consumos abusivas de álcool, pelo que, recusando-se a manter o acompanhamento, teve alta a seu pedido.
18º-Como condições sociais e pessoais do arguido:
18.1-Em finais de 2012 o arguido foi residir para …, em Arouca, onde se mantém com a progenitora, de 80 anos de idade e dois irmãos. Não paga renda de casa, contribuindo para as suas despesas em montante e formas variáveis.
18.2-Ao arguido são reconhecidos hábitos de trabalho, mantendo-se a trabalhar na construção civil para a mesma entidade patronal há muitos anos. A sua remuneração de 650,00€, que é habitualmente superior por prestar horas extraordinárias.
18.3-Contribui com cerca de 150,00€ mensais para as despesas da casa.
18.4-Tem um terreno com cerca de 600 m2.
18.5-Tem uma viatura automóvel, Renault … do ano de 2002 e um ciclomotor com mais de 30 anos.
18.6-B… pertence a família de origem numerosa, onde se verifica coesão entre os seus elementos, particularmente no que se refere aos irmãos que o têm procurado ajudar a ultrapassar a rutura da relação com a ofendida e com os filhos. O arguido não aceita esta alteração na sua vida, o seu discurso é centrado na sua vivência conjugal e com os filhos, relembrando o que construiu, não tendo ainda conseguido interiorizar que tem que respeitar as decisões da ofendida no que se refere ao termo da relação entre os dois. Justifica as suas tentativas de abordagem à vítima como uma forma de tentar conversar sobre o termo da relação não pretendendo, segundo refere, agredi-la por qualquer meio.
18.7-Reconhece e assume o sofrimento psicológico que esta situação lhe causa, mas recusa aderir a aluda no sentido de conseguir ultrapassar a situação, nomeadamente apoio psicológico e/ou psiquiátrico e ao nível de alcoologia, não admitindo que os consumos de bebidas alcoólicas o afetam ao nível comportamental. Socialmente o arguido é estimado pelos elementos da comunidade local.
19º-O arguido tem como antecedentes criminais a prática de:
19.1-Um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelos artigos 292º nº 1 e 69º nº 1, alínea a); ambos do Código Penal, por factos praticados em 09/08/2007, condenado na pena de 30 dias de multa, à taxa de 3,00€, o que perfaz o total de 90,00€, com a pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 3 meses, nos autos com o processo nº 180/07.4GAARC, do então Tribunal Judicial de Arouca.
19.2-Um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152º nº 1, alínea a), do Código Penal, por factos praticados em 2011, condenado na pena de 25 meses de prisão, suspensa na sua execução com regime de prova, sujeito a plano de ressocialização a elaborar pela DGRSP, impondo-se ao arguido na execução desse plano o dever de efetuar consultas de alcoologia e se submeter a tratamento (em regime ambulatório) caso o mesmo venha a ser considerado necessário pelos respetivos clínicos, nos autos com o processo nº 329/10.0GAARC, do então Tribunal Judicial de Arouca.
19.3-Um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelos artigos 292º nº 1 e 69º nº 1, alínea a); ambos do Código Penal, por factos praticados em 24/05/2015, condenado na pena de 85 dias de multa, à taxa diária de 5,50€, o que perfaz o total de 467,50€, entretanto convertida em 85 horas de trabalho, e na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 6 meses, nos autos com o processo nº 132/15.0GAARC, do Juízo de Competência Genérica de Arouca.
19.4-Um crime de ameaça agravada, previsto e punido pelo artigo 153º nº 1 e 155º nº 1, alínea a), do Código Penal, por factos praticados em 09/02/2016, condenado na pena de 7 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de um ano, com regime de prova, com a obrigação de se sujeitar a consultas e tratamentos à dependência alcoólica, caso clinicamente se mostre necessário e pelo período que igualmente se mostrar adequado, não ultrapassando o período de suspensão.
B-Factos não provados:
B.1-Da acusação.
a)-As afirmações referidas em 7º, ocorreram várias vezes.
b)-As afirmações do arguido descritas em 9º foram ditas à ofendida e antes de a largar.
c)-Nas circunstâncias de tempo e lugar descritas em 12º o arguido agarrou a ofendida e afirmou “QUERO FALAR CONTIGO. TU OUVISTE BEM O QUE EU TE DISSE DA OUTRA VEZ?”, “OUVI DIZER QUE ANDAS AÍ NOS BAILES COM OUTROS”, “JÁ SABES QUE SE ARRANJARES ALGUÉM EU MATO-TE A TI E DEPOIS MATO-ME A MIM”.
d)-No dia 13 de abril de 2019, às 10:00 ou 22:00 horas, o arguido dirigiu-se ao Centro Cultural e Recreativo F…, em Arouca a ver se encontrava a ofendida, tendo abandonado o local às 23:00 horas.
C-Motivação da matéria de facto:
O Tribunal, para dar como provados os factos acima elencados, formou a sua convicção através das declarações do arguido [apenas no que diz respeito às suas condições pessoais e económicas], e das testemunhas C… [a ofendida, que fez um depoimento coerente, convicto, emocionado, sofrido e sério, portanto credível, a qual descreveu os factos, ainda que com sofrimento, sem qualquer empolamento], G… [também um depoimento coerente, convicto, sincero, portanto credível, também sem qualquer empolamento ou exagero, sendo igualmente incapaz de dizer o que não viu nem ouviu], H… [a qual, apesar de ser irmã da ofendida e cunhada do arguido, descreveu de forma isenta o que era do seu conhecimento, sem empolamentos ou exageros ou construções de factos].
O Tribunal, teve ainda em consideração os depoimentos das testemunhas I…, irmã do arguido e J… [testemunhas estas que se pronunciaram sobre a personalidade do arguido, sendo certo que demonstraram parcialidade, propósito de enobrecer as qualidades do arguido, mas sem convicção e evidenciando desconhecimento sobre o seu relacionamento interpessoal, quer em relacionamentos amorosos quer com amigos fora do contexto de trabalho].
O Tribunal não teve em conta as testemunhas D… e E…, filhos do arguido e da ofendida, que optaram por não prestar depoimento ao abrigo do artigo 135º nº 1, alínea a), do CPP].
O Tribunal, formou ainda a sua convicção, através da análise dos documentos juntos aos autos, nomeadamente fls. 43-44 [certidão de casamento do arguido com a ofendida, com averbamento do divórcio]; fls. 45-46 [certidão de nascimento do arguido]; fls. 47-48 e 49-50 [certidões de nascimento dos filhos do arguido e da ofendida]; fls. 65-75 [certidão da sentença proferida nos autos com o processo nº 29/16.7GAARC]; fls. 187-194 [certidão da sentença proferida nos autos com o processo nº 329/10.0GAARC]; fls. 284-294 [CRC do arguido]; fls. 300-305 [relatório social elaborado pela DGRSP em relação ao arguido].
Para dar como provados os factos descritos sob os nºs 1 e 2, o Tribunal formou a sua convicção através dos documentos juntos aos autos a fls. 43-44 [certidão de casamento do arguido com a ofendida, com averbamento do divórcio]; fls. 45-46 [certidão de nascimento do arguido]; fls. 47-48 e 49-50 [certidões de nascimento dos filhos do arguido e da ofendida].
O Tribunal, para dar como provados os factos descritos sob os nºs 3, 4, 5 e 6, teve e conta o que foi referido pela testemunha C…, tendo a mesma esclarecido onde passou a residir depois do casamento, bem como o que resulta do relatório social de fls. 300-305. Além disso, o Tribunal também teve em conta o que resulta das certidões de fls. 65-75 [certidão da sentença proferida nos autos com o processo nº 29/16.7GAARC]; fls. 187-194 [certidão da sentença proferida nos autos com o processo nº 329-10.0GAARC].
Desde logo, para dar como provados os factos acima elencados, nomeadamente os factos descritos sob os nºs 7, 8, 9, 10, 11 e 12, o Tribunal formou a sua convicção essencialmente do depoimento da testemunha e ofendida C…, depoimento esse que, como já referimos atrás, se mostrou coerente, convicto, sentido, emocionado e sofrido, espontâneo, sincero.
Na verdade, a testemunha e vítima descreveu o que foi acontecendo desde fevereiro de 2016, referindo que, se até ao divórcio em 2012 foi um sofrimento constante, depois do divórcio esse sofrimento manteve-se, mas que, entretanto, os factos já haviam sido julgados no processo nº 29/16.7GAARC, pelo que a partir de fevereiro de 2016 o arguido muitas vezes a procurava, dizendo querer falar consigo, querendo retomar a relação conjugal, mas, como lhe era negado, o arguido insultava-a de “vaca”, “puta” e “prostituta”, para além de a ameaçar, como aconteceu, nomeadamente, em 10/02/2019 e 28/03/2019, como explicou desenvolvidamente.
Acrescentou a vítima e testemunha C… que o arguido a perseguia, a pretexto de dizer querer falar com ela, mas antes andava era a vigiar a mesma.
Mais referiu a testemunha que o arguido não aceitou a separação e divórcio, que por essa razão a persegue e, cada vez que a encontra, a insulta de “vaca”, “puta”, “prostituta”, que, por isso, poucas vezes sai de casa.
Prosseguiu a vítima, emocionada, com sofrimento, mas convicta, explicando o que se passou em 28 de março de 2019 e em 11 de abril de 2019, evidenciando a mágoa, a tristeza, a angústia, o sofrimento, até desabafando, nomeadamente “estou cansada de tanto sofrimento. Eu por mim já não me importo, mas tenho medo pelos meus filhos”.
Convidada a testemunha a esclarecer o que queria dizer com tal desabafo, a mesma explicou que por ela já não tinha medo do que mais tarde ou mais cedo lhe vai acontecer, que o arguido lhe vai fazer mal grave, mas que pelos filhos tinha medo, que os mesmos numa altura em que o arguido fizesse alguma coisa à ofendida, os mesmos poderiam reagir contra o pai de forma agressiva e prejudicarem a vida deles.
O Tribunal bem percecionou que o desabafo, era uma consequência do sofrimento a que a mesma vem estando sujeita, pois que pouco sai de casa, com medo que o arguido a encontre, que o mesmo passa muitas vezes por sua casa, de carro e a grande velocidade para dar nas vistas, que quando a mesma vai à ginástica no Centro Cultural, tenta ir acompanhada, que tem medo que o mesmo, mesmo assim, surja no Centro.
Que as poucas vezes que sai de casa e o arguido logo aparece próximo do local onde vai e que o mesmo, sempre que a vê, lhe faz ameaças e a insulta, nos mesmos termos que referiu e que resulta provado.
Ora, o depoimento da testemunha apesar de por si só estar imbuído de consistência e credibilidade, foi corroborado em vários aspetos pelos depoimentos das testemunhas G…, quer porque os factos de 28 de março, foram em grande medida pela mesma verificados, sendo que esta testemunha, quando também se dirigia para o Centro Cultural, tal como a ofendida, ao ouvir a voz do arguido e da ofendida a discutirem chamou por esta, altura em que a ofendia surgiu chorosa, pelo que a testemunha resolveu ficar mais para trás para falar com o arguido e que o mesmo lhe manifestara que queria falar com a ofendida, que queria jantar com ela, e afirmou à testemunha “ONDE É QUE JÁ SE VIU TER BAILE NA QUARESMA”, “EU NÃO GOSTO MUITO QUE A C… ANDE NOS BAILES”. Portanto, se necessário fosse corroborar o que a vítima referiu, o que não é face à consistência do seu depoimento, tal depoimento da testemunha G… reforça tal consistência.
Por outro lado, a testemunha G…, embora tenha referido que não questionava muito a ofendida sobre o que andava a acontecer, bem percebia que a mesmo andava a sofrer muito, embora também tenha referido que o arguido sofria por causa do divórcio.
A testemunha G… também presenciou o que ocorreu em 11 de abril de 2019, quando o arguido entrou no Centro Cultural em direção à ofendida, de forma agressiva e a falar alto [que não ouviu o que o arguido estava a dizer por causa da música alta], mas que as pessoas que estavam presentes logo se aperceberam do que ia acontecer e rodearam o arguido impedindo-o de se aproximar da ofendida, tendo sido o mesmo convidado a ir embora.
O Tribunal também reforçou a consistência do depoimento da testemunha C… através do depoimento da testemunha H…, que apesar de irmã da ofendida e cunhada do arguido, por ser casada com um irmão deste, assumiu que não presenciou os factos de 28 de março e 11 de abril, mas que teve conhecimento dos mesmos pela irmã que, logo na altura, lhe contou a chorar, amargurada e em sofrimento.
Importa aqui também referir que, apesar de a testemunha I…, irmã do arguido, ter sido indicada como testemunha sobre a personalidade do arguido, referiu, o que não é despiciendo, que o arguido é uma pessoa muito nervosa, que não aceitou nem aceita o divorcio, que ainda gosta da ofendida, que a procura porque quer conversar com ela, mas que seria incapaz de ameaçar ou insultar a mesma.
Na verdade, sendo o arguido alguém nervoso, não se tendo conformado com o divórcio, alegadamente gostar da ofendida, tal é adequado a que o mesmo arguido efetivamente tenha praticado os factos que a ofendida descreveu e estão dados por provados, desde a perseguição que faz à mesma, as abordagens que faz à mesma, os insultos e ameaças que o arguido dirige à ofendida.
Assim, face ao que se vem expondo, necessário é concluir como provados os factos descritos sob os nºs 8, 9, 10, 11 e 12.
Por outro lado, o Tribunal, para dar como provados os factos descritos sob os nºs 13, 14 e 15, formou a sua convicção através da conjugação dos demais factos provados com as regras da experiência comum e do normal acontecer.
Na verdade, alguém [homem médio] que foi marido e é pai dos filhos da ofendida, que por a mesma não aceder às suas investidas para conversar consigo, para se relacionar novamente consigo, a insulta, a persegue, a ameaça sobre se a mesma se relacionar com outro homem, exprime ser contrário a que a mesma vá a bailes, conviva com outras pessoas, vai aos locais onde a mesma se encontra, nomeadamente onde faz ginástica, e se dirige à mesma de forma agressiva, na presença de terceiras pessoas, não pode deixar de atingir a dignidade, a liberdade, a autodeterminação da ofendida, o desrespeito para com a mãe dos seus filhos e sua ex-mulher.
E, pelas mesmas razões, esse alguém, ao agir da forma como o arguido agiu, não podia deixar de o estar a fazer na plenitude da sua liberdade de decisão, de agir voluntariamente e com a consciência que magoava a ofendida, que coartava a sua liberdade de agir, de ser mulher, de conviver livremente, como também não pode deixar de saber que tal comportamento é contrário à lei penal e como tal proibido e punido pela mesma.
O Tribunal, para dar como provados os factos descritos sob o nº 16, formou a sua convicção através dos depoimentos das testemunhas C…, G… e H….
Na verdade, desde logo do depoimento da ofendida, o Tribunal verificou que a mesma tinha sofrido e continuava a sofrer pelos comportamentos do arguido; que se inibiu de ir a bailes, de sair mais vezes de casa, de conviver, com o medo de ser perseguida pelo arguido, de ser insultada e ameaçada, como várias vezes aconteceu, de ser abordada em frente de outras pessoas, nomeadamente na ginástica ou nos bailes.
Acrescentou a ofendida, de forma já desinteressada do seu destino, que já não tinha medo do que lhe pudesse acontecer, pois que já estava cansada da vida, de tudo o que o arguido lhe fez e continuava a fazer, que sabe que mais cedo ou mais tarde o arguido lhe ira fazer algo grave, mas que o seu medo é da reação que os seus filhos possam ter para com o pai, quando algo lhe acontecer.
Esta angústia, esta tristeza, estes medos, foram reiterados pela testemunha H…, que observava como a irmã lhe descrevia o que se passava, como se sentia.
Também o Tribunal valorou o depoimento da testemunha G…, a qual referiu que via e percebia o quanto sofria a ofendida, por causa dos comportamentos do arguido, sem prejuízo de também dizer que percebia que o arguido sofria pela separação.
Para dar como provados os factos descritos sob os nºs 17 a 18.7, o Tribunal formou a sua convicção através da conjugação das declarações do arguido, dos depoimentos das testemunhas I… e J… [ainda que, como se referiu, não tivessem prestado depoimentos isentos, despretensiosos, e até pouco ou nada conhecedores da vida pessoal do arguido] e do que resulta do relatório social elaborado pela DGRSP em relação ao arguido, junto aos autos a fls. 300-305.
Para dar como provados os descritos sob os nºs 19 a 19.4, ou seja, os antecedentes criminais do arguido, o Tribunal valorou o CRC do mesmo junto aos autos a fls. 284-294.
No que concerne aos factos não provados:
O Tribunal, para dar como não provados os factos descritos sob a alínea a), teve em conta o facto de a testemunha C… não ter referido quantas vezes o arguido referiu tais expressões.
Assim, face à insuficiência de prova, o Tribunal apenas deu como não provado que o arguido proferiu tais expressões mais do que uma vez.
Para dar como não provados os factos descritos sob a alínea b), o Tribunal teve em conta o que em contrário resultou provado através dos depoimentos das testemunhas C… e G….
O Tribunal, deu como não provados os factos descritos sob a alínea c), face à insuficiência de prova nesse sentido.
Na verdade, embora tenha ficado apurado que o arguido esteve no local e nas circunstâncias descritas em 11º, e que o mesmo quando se dirigiu à ofendida de forma agressiva ia a falar alto, no dizer de uma testemunha, a barafustar, mas não lograram as testemunhas referir qual o teor do falar, do barafustar, quais as expressões proferidas pelo mesmo, por alegadamente a música estar alta e não terem ouvido.
Para dar como não provados os factos descritos sob a alínea d), o Tribunal teve em conta também a insuficiência de prova no sentido descrito, pois que as testemunhas não lograram referir, já que a ofendida ali não se encontrava.
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São as seguintes as questões a apreciar:
-impugnação da matéria de facto
- qualificação jurídica – crime de perseguição
- medida da pena ( não superior a 1 ano suspensa)
- indemnização exagerada
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O recurso é delimitado pelas conclusões extraídas da motivação que constituem as questões suscitadas pelo recorrente e que o tribunal de recurso tem de apreciar (artºs 412º, nº1, e 424º, nº2 CPP, Ac. do STJ de 19/6/1996, in BMJ n.º 458, pág. 98 e Prof. Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal” III, 2.ª Ed., pág. 335), mas há que ponderar também os vícios e nulidades de conhecimento oficioso ainda que não invocados pelos sujeitos processuais – artºs, 410º, 412º1 e 403º1 CPP e Jurisprudência dos Acs STJ 1/94 de 2/12 in DR I-A de 11/12/94 e 7/95 de 19/10 in DR. I-A de 28/12 - tal como, mesmo sendo o fundamento de recurso só de Direito: a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; ou o erro notório na apreciação da prova (Ac. Pleno STJ nº 7/95 de 19/10/95 do seguinte teor :“ é oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no artigo 410º, nº2 do CPP, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito”) mas que, terão de resultar “ do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum” – artº 410º2 CPP, “ não podendo o tribunal socorrer-se de quaisquer outros elementos constantes do processo” in G. Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, III vol. pág. 367, e Simas Santos e Leal Henriques, “C.P.Penal Anotado”, II vol., pág. 742, sendo tais vícios apenas os intrínsecos da própria decisão, considerada como peça autónoma, não sendo de considerar e ter em conta o que do processo conste em outros locais - cfr. Ac. STJ 29/01/92 CJ XVII, I, 20, Ac. TC 5/5/93 BMJ 427, 100 - e constitui a chamada “ revista alargada” como forma de sindicar a matéria de facto.
Tais vícios não são alegados em si mesmo e vista a decisão recorrida também não os vislumbramos
- impugnação da matéria de facto.
Apreciando:
Nos termos do n.º 1 do art.º 428º do CPP, as Relações conhecem de facto e de direito, e podem modificar a decisão do tribunal de 1ª instância sobre matéria de facto artº 431º CPP), pela via da “ revista alargada” dos vícios do artº 410º2 CPP (supra) e através da impugnação ampla da matéria de facto regulada pelo artº 412º CPP.
Na revista alargada está em causa a apreciação dos vícios da decisão, cuja indagação tem de resultar do texto da decisão recorrida por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo admissível o recurso a elementos estranhos à decisão, como os dados existentes nos autos ou resultantes da audiência de julgamento (cf. Maia Gonçalves, CPP Anotado, 10 ª ed. pág. 729, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal Vol. III, verbo 2ª ed. pág. 339, e Simas Santos et alli, Recursos em Processo Penal, 6ª ed. pág. 77), nos termos explanados já;
No 2º caso - impugnação ampla - a apreciação da matéria de facto alarga-se à prova produzida em audiência (se documentada) mas com os limites assinalados pelo recorrente em face do ónus de especificação que lhes é imposto pelos nºs 3, 4 do artº 412º CPP, nos termos dos quais:
“3. Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
a) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas;
4. Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta nos termos do nº2 do artigo 364º devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação. (…)
6. No caso previsto no nº4 o tribunal procede à audição ou visualização das passagens indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa.”
Mas há que ter presente que tal recurso não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, com base na audição de gravações, mas constitui apenas um remédio para eventuais erros ou incorrecções da decisão recorrida (erros in judicando ou in procedendo) na forma como o tribunal recorrido apreciou a prova, na perspectiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente, pelo que não pressupõe a reapreciação total dos elementos de prova produzidos em audiência e que fundamentaram a decisão recorrida, mas apenas aqueles sindicados pelo recorrente e no concreto ponto questionado, constituindo uma reapreciação autónoma sobre a bondade e razoabilidade da apreciação e decisão do tribunal recorrido quanto aos “concretos pontos de facto” que o recorrente especifique como incorrectamente julgados.
Para essa reapreciação o tribunal verifica se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida e em caso afirmativo avalia-os e compara-os de molde a apurar se impõem ou não decisão diversa (cf. Ac. STJ 14.3.07, Proc. 07P21, e de 23.5.07, Proc. 07P1498, in www. dgsi.pt/jstj).
A especificação dos “concretos pontos de facto” constituem a indicação dos factos individualizados que constam da sentença recorrida e que se consideram incorrectamente julgados, e as “concretas provas” consistem na identificação e indicação do conteúdo especifico do meio de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual essas “provas” impõem decisão diversa da recorrida, e havendo gravação das provas, essas especificações devem ser feitas com referência ao consignado na acta, e dentro destas tem o recorrente de indicar concretamente as passagens (das gravações) em que se funda a impugnação;
Mas o Tribunal pode sempre apreciar outras que ache relevantes (nº 4 e 6 do artº412º CPP).
Todavia o conhecimento da prova indicada pelo recorrente está limitado à sua concreta indicação (e/ou transcrição) na medida em que o recorrente delimita desse modo a impugnação e o conhecimento, delimitação que o STJ através do nº Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 3/2012 in DR 18/4/2012 legitima “Visando o recurso a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, com reapreciação da prova gravada, basta, para efeitos do disposto no artigo 412.º, n.º 3, alínea b), do CPP, a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas, na ausência de consignação na acta do início e termo das declarações”
Mas mesmo essa reapreciação, como assinala o STJ ac. de 2/6/08, no proc. 07P4375, in www.dgsi.pt. sofre as limitações consistentes nas que decorrem
- da necessidade de observância pelo recorrente do ónus de especificação, restringindo como assinalado o conhecimento aos concretos pontos de facto que o recorrente entende incorrectamente julgados e às concretas razões de discordância, sendo necessário que se especifiquem as provas que imponham decisão diversa da recorrida e não apenas a permitam, e
- da falta de oralidade e de imediação com as provas produzidas em audiência, circunscrevendo-se o “contacto” com as provas ao que consta das gravações, postergando-se assim a “sensibilidade” que decorre de tais princípios; e resultam
- de a análise e ponderação a efectuar pela Relação não constituir um novo julgamento, porque restrita à averiguação ponto por ponto, da existência ou não dos concretos erros indicados pelo recorrente; e de
- o tribunal só poder alterar a matéria de facto impugnada se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida (al. b) do nº 3 do citado art. 412º) (cf. também o Ac. RLx de 10.10.07, no proc. 8428/07, em www.dgsi.pt/jtrl), e não apenas a permitirem;
Acresce, em consonância com o descrito, que a reapreciação da prova na 2ª instância, limita-se a controlar o processo de formação da convicção decisória da 1ª instância e da aplicação do princípio da livre apreciação da prova, tomando sempre como ponto de referência a motivação/ fundamentação da decisão, e neste recurso de impugnação da matéria de facto, o Tribunal da Relação não vai à procura de uma nova convicção - a sua - mas procura saber se a convicção expressa pelo Tribunal recorrido na fundamentação tem suporte adequado na prova produzida e constante da gravação da prova por si só ou conjugados com as regras da experiencia e demais prova existente nos autos (documental, pericial etc..) e, em face disso, obviamente o controlo da matéria de facto apurada tendo por base a gravação e/ou transcrição dos depoimentos prestados em audiência, mas não pode subverter ou aniquilar a livre apreciação da prova do julgador, construída, dialecticamente, na base da imediação e da oralidade, tendo presente que como expressa o Prof. Figueiredo Dias, in Dto Proc. Penal, 1º Vol. Coimbra ed. 1974, pág. 233/234, só aqueles princípios da imediação e da oralidade “… permitem …avaliar o mais correctamente possível a credibilidade das declarações pelos participantes processuais”.
Tal significa que sem dispor da apreciação directa e imediata da prova, ao tribunal de recurso cabe apenas averiguar se existe o erro de julgamento na fixação da matéria de facto, por se evidenciar que as provas valoradas pelo tribunal recorrido eram provas proibidas ou o foram com violação das regras sobre a apreciação da prova, e nomeadamente o principio da livre apreciação, do princípio in dubio pro reo ou prova vinculada, ou as regras da experiencia ou ainda se a convicção formada pelo tribunal de recurso não era possível, pois se for uma das possíveis não pode o tribunal de recurso interferir nessa apreciação.
Mesmo assim a apreciação que o tribunal pode fazer está condicionada à concreta passagem gravada indicada pelo recorrente na motivação e na transcrição que efectua, pois não pode reapreciar toda a prova como se de um 2º julgamento se tratasse;

No caso o recorrente indica como matéria de impugnação os factos provados na sua totalidade e sem os individualizar e indica como prova as declarações / depoimento da ofendida “a que não podia dar a credibilidade que lhe foi dada” e das testemunhas G… que teria apenas presenciado um facto e Zaida que nada presenciou, sem em momento algum indique a passagem das gravações dos respectivos depoimentos que imporiam decisão diversa ou proceda á sua transcrição, e sem que individualize a que concretos factos se referem os depoimentos em causa.
Este modo de impugnar do recorrente ao não indicar ponto por ponto e em relação a cada ponto a concreta prova que imporia decisão diversa, impõe constatar que o recorrente não cumpre os requisitos legais da impugnação da matéria de facto em face da exigência legal do dever de “especificar”, “os concretos pontos de facto” - artºs 412º 3 a) CPP, nem “as concretas provas” que devem ser especificadas em relação a cada facto ( e transcrevendo-as ou indicando a passagem da gravação que impõe a decisão diversa), sendo certo que como expende o STJ no seu ac. de 27/4/2006 proc 06P120 www.dgsi.pt/“III - Com a exigência do n.º 3 do art. 412.º do CPP visou-se, manifestamente, evitar que o recorrente se limitasse a indicar vagamente a sua discordância no plano factual e a estribar-se probatoriamente em referências não situadas, porquanto, de outro modo, os recursos sobre a matéria de facto constituiriam um encargo tremendo sobre o tribunal de recurso, que teria praticamente em todos os casos de proceder a novo julgamento na sua totalidade. Terá pois de se adoptar uma exigência rigorosa na aplicação deste preceito.”
Vai no mesmo sentido o ac. RP 2/12/2015 (Artur Oliveira) in www.dgsi.pt “III- Visando o recurso sobre a matéria de facto remediar erros de julgamento, estes erros devem ser indicados ponto por ponto e com a menção das provas que demonstram esses erros, sob pena de não o fazendo a impugnação não ser processualmente válida”.
Por seu lado expressa Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Cod Proc Penal, 2ª ed. pág. 1131 (notas ao artº 412º) “ a especificação das concretas provas, só se satisfaz com a indicação do conteúdo especifico do meio de prova ou de obtenção de prova que impõe decisão diversa da recorrida (…) mais exatamente no tocante aos depoimentos gravados na audiência, a referencia aos suportes magnéticos só se cumpre com a indicação do numero de “voltas” do contador em que se encontram as passagens dos depoimentos gravados que impõem diferente decisão, não bastando a indicação das rotações correspondentes ao inicio e ao fim de cada depoimento.”
“ (…) acresce que o recorrente deve explicitar a razão porque essa prova “ impõe” decisão diversa da recorrida. É este o cerne da especificação. O grau acrescido de concretização exigido pela Lei 48/2007 de 29/8 visa precisamente impor ao recorrente que relacione o conteúdo especifico do meio de prova que impõe decisão diversa da recorrida com o facto individualizado que considera incorrectamente julgado (…)”.
Mas cremos que se impõe ainda ir mais longe nessa exigência, pois tais especificações relacionam-se não apenas com a inteligibilidade do pedido e consequentemente pela sua cognoscibilidade pelo tribunal e por isso são dirigidas ao tribunal, mas o certo é que também são fundamentais para o exercício legítimo do contraditório (e até com o assegurar todas as garantias de defesa do arguido se não for ele o recorrente, como é por parte dos sujeitos processuais interessados com o desfecho do recurso - arguido, assistente, Mº Pº - e por isso também imbuídos pelo principio da lealdade processual), que seriam prejudicados e até inviabilizado na prática esse princípio do contraditório pela falta de clareza ou inteligibilidade da impugnação (cf. ac R Ev. 24/9/2009 www.dgsi.pt).
Assim e em face do incumprimento de tal ónus não é possível conhecer da impugnação, por esta via, e que leva à rejeição do recurso por manifesta improcedência quanto à impugnação da matéria de facto;

Questiona o recorrente a qualificação jurídica dos factos alegando que inexiste o crime de violência doméstica mas eventualmente o crime de perseguição.
Vejamos
Para o crime de perseguição dispõe o artº 154º A CP que é cometido por “1 - Quem, de modo reiterado, perseguir ou assediar outra pessoa, por qualquer meio, direta ou indiretamente, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido com pena de prisão até 3 anos ou pena de multa, se pena mais grave não lhe couber por força de outra disposição legal”, ora no que se refere à perseguição, consta apenas dos factos provados e da acusação, que “…desde pelo menos o dia 10 de fevereiro de 2016, persegue a ofendida e, pelo menos uma vez, afirmou “ELES TIRARAM-ME AS ARMAS, MAS EU NÃO PRECISO DE ARMAS PARA TE MATAR”, descrevendo a seguir um outro contacto (28/3/2019) e uma tentativa de contacto (11/4/2019), o que quer-nos parecer evidente não traduz uma perseguição ou assédio de modo reiterado, pois estamos apenas perante dois contactos espaçados no tempo e uma tentativa de contacto.
Isto sem prejuízo de tais actos poderem integrar-se numa conduta mais vasta como é o crime de violência doméstica, como se escreve no ac. RP 11/3/2015 www.dgsi.pt “II - Pode enquadrar-se no crime de Violência doméstica a conduta que se reveste das notas caraterísticas do chamado stalking, isto é, uma perseguição prolongada no tempo, insistente e obsessiva, causadora de angústia e temor, com frequência motivada pela recusa em aceitar o fim de um relacionamento”.
Todavia quer num campo da tipicidade criminal quer noutro, outra questão se suscita, que tem a ver com a forma e descrição dos factos quer na acusação, quer na sentença (nos factos provados), de molde a averiguar se os mesmos preenchem o tipo legal de crime de violência domestica.
Na verdade dá-se como provado que “desde pelo menos o dia 10 de fevereiro de 2016, persegue a ofendida”, todavia não concretiza em que consistiu essa perseguição, o que fazia, quando o fazia, onde o fazia, porque o fazia e para que o fazia, ou seja é usada na acusação e na sentença uma expressão sem conteúdo fáctico, sendo certo que os contactos descritos entre o arguido e a ofendida se resumiram a três, na melhor das hipóteses, e uma tentativa de contacto, o que, parece-nos manifesto não chega para considerarmos que existe uma perseguição com conteúdo penalmente relevante. Até pode existir perseguição, mas na acusação e nos factos provados ela não se evidencia, pois tem de ter conteúdo concreto (actos e condutas onde essa perseguição se revele), sendo que “pelo menos uma vez, afirmou “ELES TIRARAM-ME AS ARMAS, MAS EU NÃO PRECISO DE ARMAS PARA TE MATAR”, e será esse um contacto, outro no dia 28 de março de 2019, em que a ameaçou e outro numa tentativa de contacto no dia 11 de abril de 2019 em que foi impedido de contactar com a ofendida, sendo certo que querer estabelecer contacto é diverso de persegui-la.
Por outro lado diz-se que “Sempre que o arguido encontra a ofendida na via pública apoda-a de “PUTA”, “VACA” e “PROSTITUTA”, em alta voz”, mas não se diz sequer quando é que isso aconteceu.
Afinal sempre que a encontra é quando?
Afinal, quando e onde é que a encontrou e lhe chamou tais nomes?
Da acusação não consta e dos factos provados também não.
Constam dos factos provados 2 encontros e ninguém diz que neles a apodou com tais epítetos. Assim sendo não pode considerar-se que tal acto tenha ocorrido mais que uma vez.
De igual modo, diz-se que o arguido no dia 11/4/2019 “dirigiu-se à ofendida … de forma agressiva” tendo sido impedido de se aproximar daquela, mas nem a acusação nem a sentença descrevem concretamente em que consistiu essa agressividade. Como se lhe dirigiu, o que disse, como ia …, e eventualmente porquê.
Ora por um lado, nas situações descritas estamos perante conceitos vagos e indeterminados, o que implica a sua analise e ponderação:
a) O crime de violência domestica não é um crime residual, no âmbito do qual cabe tudo o que não cabe nos demais tipos legais de crime, mas antes é um crime específico ou especial, e pressupõe um relacionamento especial que o tipo prevê.
Como escrevemos no ac RP de 8/7/2015 www.dgsi.pt “…estamos no âmbito do direito penal, o qual revestindo quanto ao processo natureza acusatória, e sendo regido pelos princípios da tipicidade e da legalidade quanto ao crime impõe particulares exigências ao nível da certeza, da clareza e da precisão e da completude dos actos imputados de tal forma que o arguido acusado deles se possa eficazmente defender, e daí que a própria norma processual impunha a narração dos factos imputados e sendo possível “ o lugar, o tempo e a motivação da sua pratica…” artº 283º 1b) CPP, o que é relevante não apenas para eficazmente o arguido/ acusado poder exercer o seu direito de defesa (porque no dia X estava no local Y e não no local A, etc …), mas também para averiguar da ausência de condições de procedibilidade (v.g exercício do dto de queixa) ou factos extintivos do procedimento criminal (v.g. prescrição) ou até da existência de crime. (…)
Desde há muito o STJ tem entendido que devendo os factos imputados ser claros e precisos, não podem ser utilizados / imputados na acusação (e consequentemente na sentença) conceitos vagos e imprecisos, genéricos e conclusivos porquanto isso não apenas impede um eficaz exercício do direito de defesa, como impede o exercício do contraditório ínsito naquele.
A esse propósito (embora relativo a outro tipo de crime) diz-se no Ac.STJ de 17/1/2007 Proc 06P3644 Silva Flor www.dgsi.pt que “ uma imputação genérica …, sem individualização dos actos integrantes dessa actividade, não podendo relevar para o efeito do enquadramento jurídico-penal dos factos, já que inviabiliza o exercício do direito de defesa consagrado no art. 32.º da CRP.”, por ficar “ impedido de organizar adequadamente a sua defesa, contraditando as provas apresentadas e oferecendo provas de que não cometeu actos …. Este o sentido em que se tem pronunciado alguma jurisprudência deste STJ – Acs. de 06-05-2004, Proc. n.º 908/04, de 04-05-2005, Proc. n.º 889/05, e de 07-12- 2005, Proc. n.º 2942/05, entre outros.”
O que é reafirmado no ac STJ 21/2/2007 Proc 06P3932 ao expressar que:
VIII - O arguido só pode contrariar a acusação ou a pronúncia, de forma adequada e eficaz, se naquelas peças processuais se encontrarem vertidos especificadamente e com clareza os factos imputados, isto é, o caso concreto ou particular submetido a julgamento. De outro modo, ou seja, perante uma acusação ou uma pronúncia constituídas por factos genéricos, não individualizados, fica ou pode ficar prejudicada a possibilidade de o arguido se defender.
IX - Com efeito, ninguém pode contestar, eficazmente, a imputação de uma situação abstracta ou vaga, muito menos validamente contraditar a prova de uma tal situação. Neste preciso sentido tem-se pronunciado este STJ, designadamente em matéria de tráfico de estupefacientes, ao defender que não são factos susceptíveis de sustentar uma condenação penal as imputações genéricas, em que não se indica o lugar, nem o tempo, nem a motivação, nem o grau de participação, nem as circunstâncias relevantes, mas um conjunto fáctico não concretizado, visto que as afirmações genéricas não são susceptíveis de impugnação, pois não se sabe o lugar em que o agente vendeu os estupefacientes, o local em que o fez, a quem, o que foi efectivamente vendido, sendo que a aceitação das afirmações genéricas como «factos» inviabiliza o direito de defesa que ao arguido assiste, constituindo grave ofensa aos direitos constitucionais previstos no art. 32.° da CRP.
E … no ac. 15/12/2011 Proc 17/09.0TELSB.L1.S1 Raul Borges www.dgsi.pt se confirma esta Jurisprudência:
“XXI - Como vem sendo afirmado pela jurisprudência dominante deste STJ, as imputações genéricas, …, sem qualquer especificação das condutas em que se concretizou o imputado comércio e do tempo e lugar em que tal aconteceu, por não serem passíveis de um efectivo contraditório e, portanto, do direito de defesa constitucionalmente consagrado, não podem servir de suporte à qualificação da conduta do agente.”
Temos assim que na sequência do expendido, que não podem ser valorados os factos genéricos e vagos sem indicação do tempo, local e modo de cometimento dos factos, tal como não pode ser valorados os factos que não constituíam crime à data da sua ocorrência”
Daí que se siga o também expresso pelo ac. RP de 30/9/2015 www.dgsi.pt : “I- As imputações genéricas sem indicação precisa do tempo, lugar e circunstancialismo em que ocorreram, inviabilizam um efetivo direito de defesa devem considerar-se não escritas” tal ponderação não poderá deixar de estar ligada ao facto fundamental de tal como se expressa no ac. RP de 20/4/2016 www.dgsi.pt :“I - O crime de violência doméstica é um crime habitual, constituindo modalidade dos crimes ou de trato sucessivo, por a realização do tipo incriminador supor que o agente pratique determinado comportamento de forma reiterada. II - Neles é decisiva a conexão temporal que liga os vários momentos da conduta do agente”, pelo que como ali se decide: “II - … a interrupção dos actos criminosos durante um determinado lapso de tempo relevante (v.g. um ano) não autoriza a sua unificação. IV - O crime de violência domestica abrange a pratica de uma multiplicidade de condutas, reiteradas (e não sucessivas) ao longo de determinado período de tempo (e sem hiatos significativos) que se praticaram na pessoa do cônjuge ainda que de natureza diversa, desde que todas elas se tenham reportado a maus tratos físicos ou psíquicos, constituindo um estado de agressão permanente como modo de exercício de uma relação de poder ou domínio” ou concluindo o ac RP 17/6/2015 www.dgsi.pt “II – Carece de relevância jurídico-penal a imputação genérica de factos e deve considerar-se como não escrita.”
Ora visto o expendido e tendo em conta a factualidade a que se refere inserta na decisão, cremos efectivamente não dever ser de ponderar, e por isso deverem ser considerados não escritos e deixarem de fazer parte integrante dos elementos de facto a ponderar quanto ao crime de violência domestica (e não podendo ser avaliados para qualquer outro acto ilícito criminal)
b) Em face do expendido, mais se anota que inexiste o crime imputado de violência domestica, por os factos em si mesmos tal como devem ser apreciados e juridicamente valorados, não preenchem os elementos típicos do mesmo, visto que a nosso ver o cerne da questão está no bem jurídico protegido e na sua ofensa.
Como temos expressado (vg. ac. RP de 12/10/2016 www.dgsi.pt) e nos parece correcto “Característica indelével do crime de violência doméstica é o seu bem jurídico, que lhe confere não apenas autonomia mas legitimidade constitucional (artº 18º CRP) de interferência / regulação/ limitação, nas relações humanas e sociais, num âmbito específico destas (relações familiares ou análogas).
Assim fundamental na apreciação de tal ilícito é que os factos em que se desdobra (ou o facto em que se traduz - pois que tanto pode ser um como vários - de modo reiterado ou não, infligir maus tratos – artº 152º 1 CP) signifiquem a afectação da dignidade pessoal da vítima através do seu desrespeito como pessoa traduzida a mais das vezes no desejo de sujeição/dominação sobre a mesma e a sua manipulação.
Dos termos legais do artº 152º1 CP resulta a nosso ver que o conceito de violência doméstica podendo traduzir-se em actos reiterados ou não, deles têm de resultar “ maus tratos físicos ou psíquicos”, o resultado da actuação tem de traduzir uma gravidade que vá para além da simples ofensa em causa.
Mau trato, traduz ..., uma ofensa à dignidade humana (em concreto da pessoa visada, e em toda a sua plenitude: física e mental), bem jurídico abrangente que (para além da saúde) está subjacente a toda a protecção legal (cfr. Comentário Conimbricense do Cód Penal, I, Coimbra, 1999, pág. 232), o que tem de ser entendido para além da integridade física ou da honra (objecto de protecção de outras normas penais, cf. ac RG.10/7/2014 www.dgsi.pt: “Essencial é que os comportamentos assumam uma gravidade tal que justifique a sua autonomização relativamente aos ilícitos que as condutas individualmente consideradas possam integrar”), e se não necessita de uma reiteração (face à norma legal) não prescinde de uma gravidade que vá para além e ultrapasse a ofensa à integridade física ou à honra (sob pena de o crime de violência doméstica se traduzir apenas num crime familiar), ou seja é necessário que justifique a sua autonomia, pondo em causa a relação existente entre agressor e ofendido.
Por isso cremos dever entender que infligir maus tratos físicos e/ou psíquicos, significa na economia do artº 152º CP, pôr em causa a saúde do ofendido nas suas diversas vertentes: física (ofensa á integridade física), psíquica (humilhações, provocações, ameaças, coacção ou moléstias), desenvolvimento e expressão da personalidade e dignidade pessoal (castigos corporais, privações de liberdade e ofensas sexuais, etc.) - que constituem o complexo bem jurídico protegido pela norma incriminadora e traduzem-se num complexo de acções por parte do agente que pressupõem na maioria das vezes “uma reiteração das respectivas condutas” – cfr. por todos, Comentário Conimbricense ao Cód Penal, tomo I, págs. 332 a 334, ou quando assim não seja - sendo uma só acção - como se expressa o STJ no Ac de 14/11/97 CJ III, 235 “… as ofensas corporais, ainda que praticadas uma só vez, mas que revistam uma certa gravidade, ou seja, que traduzam crueldade, insensibilidade ou até vingança desnecessária da parte do agente é que cabem na previsão do art. 152.º do Código Penal” ou quando a conduta do arguido “se revista de uma gravidade tal que seja suficiente para … comprometer a possibilidade de vida em comum” -Ac. R. Évora 23/11/99 CJ V, 283, ou “se revelar de uma certa gravidade ou traduzir, da parte do agente, crueldade, insensibilidade ou até vingança” -Ac. R. E. 25/1/05, CJ I, 260, ou ainda “O crime de maus tratos exige uma pluralidade de condutas ou, no mínimo, uma conduta complexa, que revista gravidade e traduza, por exemplo, crueldade ou insensibilidade” - Ac. R. Porto 12/5/04, www.dgsi.pt, proc. 0346422.
Assim à luz do bem jurídico protegido os factos devem apresentar-se perante a vítima como dotados de um especial desvalor (pondo em causa a dignidade da pessoa enquanto tal, nomeadamente pelo desejo de domínio da relação familiar existente), sob pena de não se verificar o ilícito de violência doméstica.
Cremos ser este o sentido do Ac. RC 21/10/2009 www.dgsi.pt, e do ac. R.P 30/1/2013 www.dgsi.pt/jtrp, sob pena de não revelando a conduta do agente o “especial desvalor da acção” ou a “particular danosidade social do facto” (cf. Valadão e Silveira, Maria Manuela “Sobre o Crime de Maus Tratos Conjugais”, in APMJ, Do Crime de Maus Tratos, Lisboa, 2001, pág.21) o crime não se mostrar fundamentado.
O que fundamenta tal ilícito são pois os actos que, como expressa o Ac. TRP 28/9/2011 www.dgsi.pt/jtrp “… pelo seu caráter violento ou pela sua configuração global de desrespeito pela pessoa da vítima ou de desejo de prevalência de dominação sobre a mesma, evidenciem um estado de degradação, enfraquecimento ou aviltamento da dignidade pessoal quanto de perigo ou de ameaça de prejuízo sério para a saúde e para o bem-estar físico e psíquico da vítima.” e nos casos de actos singulares tem de se verificar esta especial qualidade da acção, sob pena de não se mostrar preenchido o ilícito em causa. Cfr. Ac.R.P de 30/1/2008 www.dgsi.pt/jtrp “Muito embora, em princípio, o preenchimento do tipo do crime de maus-tratos previsto no art. 152º do C. Penal não se baste com uma acção isolada (nem tampouco com vários actos temporalmente muito distanciados entre si), vem entendendo a generalidade da jurisprudência que existem casos em que uma só conduta, pela sua excepcional violência e gravidade, basta para considerar preenchida a previsão legal.”
Daí resulta, e em conclusão, que é à luz da ofensa do bem jurídico protegido e logo da mens legislatoris que as condutas ilícitas únicas ou reiteradas devem ser apreciadas no sentido de preencherem ou não o tipo legal, no sentido de revelarem um tratamento insensível ou degradante da condição humana da pessoa atingida. (cfr. também ac. TRP 26/5/2010 www.dgsi.pt/jtrp), e de modo a evitar uma situação de “…domínio ou uma subjugação sobre a pessoa da vítima, sobre a sua vida ou (e) sobre a sua honra ou (e) sobre a sua liberdade e a reconduz a uma vivência de medo, de tensão e de subjugação.” in Ac. TRP 9/1/2013 www.dgsi.pt/jtrp, ou de desprezo ou desconsideração por parte do agente (ac TRG de 1/07/2013 www.dgsi.pt), ou mais amplamente como expressa a RLisboa no ac. de 05/07/2016 www.dgsi.pt “ 1. O crime de violência doméstica, p. e p. no art. 152.º, do Código Penal, após a autonomização operada pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, visa, acima de tudo, proteger a dignidade humana, tutelando, não só, a integridade física da pessoa individual, mas também a integridade psíquica, protegendo a saúde do agente passivo, tomada no seu sentido mais amplo de ambiente propício a um salutar e digno modo de vida.”
Estão assim em causa situações degradantes em que em face das condições e necessidades actuais não são prestados os cuidados necessários e adequados ao bem estar de uma pessoa enquanto tal dotada de dignidade, princípio informador e suporte de toda a sociedade (artº 1º CRP)
Por isso se justifica que no tipo legal caibam as situações reais traduzidas em privações de bens essenciais, que lesam esse bem jurídico e ofendem o bem estar necessário à vida pessoal e a que todas as pessoas têm direito como pessoas dotadas de dignidade como se expressa no ac. TRC de 16/01/2013 www.dgsi.pt: “ O bem jurídico protegido no tipo legal de crime de violência doméstica reside na dignidade da pessoa humana, incluindo-se todos os comportamentos que lesem essa dignidade. Tendo o arguido privado a sua esposa do acesso á água, gás, electricidade, telefone e correio, na casa onde ambos habitavam, deve interpretar-se tal conduta, segundo as regras da experiência comum, como a privação dos bens essenciais no espaço da residência que será o reduto de maior tranquilidade de qualquer pessoa, constituindo uma forte humilhação e privação do que de mais essencial se espera desse espaço privado, atentatória da dignidade humana e quem assim actua não pode desconhecer esse facto (basta que se coloque mentalmente na mesma situação).”, aceitando-se e fazendo sentido por isso que, como expende Ribeiro de Faria, M. Paula, Os crimes praticados contra idosos, UCE, Porto, 2015, pág. 15 (cf. motivação do recurso) sofre maus tratos físicos e psicológicos a pessoa de idade que não é alimentada, não beneficia de cuidados médicos necessários, o que tudo ou a nosso ver se traduz (ou pode traduzir) na omissão das acções adequadas a evitar tal resultado, fazendo sentido e aceitando-se por isso que em causa está “ a protecção de um estado de completo bem estar físico e mental” como defende Nuno Brandão, A tutela penal especial da violência domestica, Julgar, 12 especial, Set/ Dez 2010 pág.16;”
Acrescem a tais ensinamentos e em conclusão, ser necessário, para a existência do crime, que os factos praticados: afectem de modo grave e saúde física, psíquica ou emocional da vítima; essa afectação comprometa de igual modo gravemente o desenvolvimento (ou a revelação / manifestação), da sua personalidade (e da sua maneira de ser), e com isso ponha em causa (ou seja susceptível de pôr em causa), a dignidade da pessoa humana (ser livre e responsável)
Assim o crime de violência doméstica é a incriminação de condutas existentes no seio familiar (ou para-familiar) ou de cariz sentimental equivalente, resultado da interferência social nas relações familiares e da consciencialização da existência de condutas social e individualmente gravosas lesiva da dignidade humana, exigindo a doutrina, como evidenciado pelo Ac R G 2/1/2015 www.dgsi.pt citando André Lamas Leite, in “Estudo publicado na Revista Julgar, nº 12, página 25 e ss, que a incriminação tem como fim o “(…) asseguramento das condições de livre desenvolvimento da personalidade de um indivíduo no âmbito de uma relação interpessoal próxima de tipo familiar ou análogo (…)” sendo este bem jurídico multímodo “(…) uma concretização do direito fundamental (artigo 25º da C.R.P.) mas também do direito ao livre desenvolvimento da personalidade (artigo 26º da C.R.P.), nas dimensões não recobertas pelo artigo 25º da Lei Fundamental, ambos emanações diretas do princípio da dignidade da pessoa humana.
(…) A degradação, centrada na pessoa do ofendido, desses valores jurídico constitucionais deve ser a pergunta operatória no distinguo entre o crime de violência doméstica e todos os outros que, por via do designado concurso legal, com ele se relacionam” exigindo-se por isso que as situações de violência evidenciem um estado de degradação, enfraquecimento ou aviltamento da dignidade pessoal quanto de perigo ou de ameaça de prejuízo sério para a saúde e para o bem-estar físico e psíquico da vítima. Acórdão de Relação do Porto de 28/09/2011 relatado por Artur Oliveira e pesquisado em http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/, daqui decorrendo uma “posição de evidente dominação e prevalência sobre a pessoa daquela” traduzida no sumário de tal ac. “O tipo legal do artº 152º, do CP previne e pune condutas perpetradas por quem afirme e actue, dos mais diversos modos, um domínio, uma subjugação, sobre a pessoa da vítima, sobre a sua vida ou (e) sobre a sua honra ou (e) sobre a sua liberdade e que a reconduz a uma vivência de medo, de tensão, de subjugação”, sendo que como se afirma no ac RLx, 13/12/2016 www.dgsi.pt “a acção do agente há-de constituir o comportamento violento, visto em toda a sua amplitude, que, “… seja tal que, pela sua brutalidade ou intensidade, ou pela motivação ou estado de espírito que o anima, seja de molde a ressentir-se de modo indelével na saúde física ou psíquica da vítima. …” tendo presente também que “VI - No crime de violência doméstica, a violência desenvolvida pelo agente sobre a vítima deve redundar num abuso de poder daquele e numa situação de degradação e humilhação desta. VII - Uma vez que qualquer crime contra as pessoas atenta contra a sua dignidade, então esta violação que remete aquelas acções para o tipo legal da violência doméstica terá que revelar uma especial ofensa à dignidade humana que determinou o surgimento deste tipo especial que a tutela. VIII - A distinção entre o crime de violência doméstica, enquanto tal, e o concurso dos crimes de ofensas, ameaça, injúria, etc., que as concretas acções podem configurar, faz-se com recurso ao conceito de maus tratos e este exige o desprezo, humilhação, especial desconsideração pela vítima e a gravidade destas manifestações” como expressa o ac R C 27/11/2017 www.dgsi.pt
Ora dos factos ora provados tal como devem ser valorados em face do supra expresso, afigura-se-nos que não emerge uma relação de subjugação entre o arguido e a ofendida ou de domínio daquele sobre esta que ponha em causa de modo intolerável a dignidade da pessoa humana, ou de outro modo, traduza um tratamento degradante e desumano e que este decorra de uma posição de dominação e de prevalência do arguido sobre a ex-esposa, não apenas pelas expressões provadas constante das acusação e da sentença (tendo presente que a realidade pode ser diferente da que a acusação e a sentença espelham, mas é só a esta que o tribunal pode atender) e não sejam o resultado de condutas já julgadas e que não podem ser objecto de nova apreciação, para além da sua própria valoração, pois para além do efeito do ou dos actos estes, como expressa o ac R Ev. 6/12/2/2016 www.dgsi.pt, devem ser “idóneos a reflectir-se negativamente sobre a saúde física ou psíquica da vítima, sendo ainda necessária a avaliação da “situação ambiente” e da “imagem global do facto” para se decidir pelo preenchimento, ou não, do tipo legal de crime em questão” (sublinhado nosso) não emergindo dos factos provados qualquer efeito de domínio na relação que ponha em causa e aniquile a personalidade do outro, ou uma “intensa crueldade, insensibilidade, desprezo, aviltamento da dignidade humana” pelo que se nos afigura que inexiste o apontado crime.

Todavia há factos ilícitos que têm a gravidade normal e não especial subjacente ao crime de violência domestica.
Na verdade, pelo menos uma vez a apodou de “PUTA”, “VACA” e “PROSTITUTA”, em alta voz, com o que preenche o ilícito criminal de injurias, p. p. pelo artº181º CP, e ao dizer-lhe no “No dia 28 de março de 2019…“JÁ SABES QUE SE ARRANJARES ALGUÉM EU MATO-TE A TI E DEPOIS MATO-ME A MIM”, preenche o tipo legal de crime de ameaça agravada, p.p. pelos artºs 153º e 155º 1 a) CP aquele revestindo natureza particular (artº 188º1 CP), necessitando a ofendida de se queixar, constituir-se assistente e acusar (artºs 113º, 115º e 117º CP), o que não tendo ocorrido impõe que não se pode conhecer dos mesmos por carência de legitimidade do Mº Pº, para levar ao conhecimento do tribunal tais factos (artº 50º CPP), e este de natureza publica, detendo o Mº Pº de legitimidade para promover o procedimento criminal e acusar (artºs 48º e 49º CPP).
Ora em face do exposto os factos são integradores de um crime de ameaça agravado, p. p pelo artº 153º 1 CP: “Quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, … de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação…”e pelo artº 155º1 a) CP: “Quando os factos previstos nos artigos 153.º a 154.º-C forem realizados:
a) Por meio de ameaça com a prática de crime punível com pena de prisão superior a três anos; ou (…) o agente é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias, nos casos dos artigos 153.º e 154.º-C (…), pois os factos assinalados no dia 10/2 e a expressão usada não traduzem uma ameaça de morte, “… EU NÃO PRECISO DE ARMAS PARA TE MATAR” mas apenas tal ocorre no dia 28/3 quando expressa que ““JÁ SABES QUE SE ARRANJARES ALGUÉM EU MATO-TE A TI E DEPOIS MATO-ME A MIM”.
Nada impede, por outro lado, o conhecimento de tais factos ainda que não ocorra a comunicação do artº 358º ou do artº 359º CPP, pois como expresso no nosso ac. RP de 8//2015 rec nº 1133/13.9PHMTS.P1 www.dgsi.pt “IV – Inexiste uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia relevante – a exigir a comunicação prevista no n.º 1 do art. 358.º do CPP – se os factos provados são menos do que os que consta da acusação ou pronúncia” e ali se escrevendo no seu texto que: “…apesar de se tratar de crime diverso no seu nomen juris se trata da mesma matéria de facto imputada na acusação e pronúncia, da qual resultou apenas menos factos provados, em resultado do que o crime verificado estava em concurso aparente com o acusado/ pronunciado. Existe entre o crime de violência de domestica, pronunciado e o crime de ofensa à integridade física, verificado, uma relação de menos que naquele se contém, não há que proceder à comunicação a que se refere o artº 358º1 CPP, nem é aplicável o artº 358º3 CPP o qual pressupõe os mesmos factos e apenas diversa qualificação jurídica.
É que para além dos casos em que o tribunal se limita a pormenorizar ou a concretizar os factos que já constam da acusação e em que não ocorre qualquer alteração relevante, há também aqueles em que os factos provados são menos do que aqueles que constam da acusação e da pronuncia (desiderato de qualquer defesa: a não prova ou a menor prova possível dos factos acusados) em que obviamente não existe uma qualquer alteração dos factos existindo apenas menos factos provados, pelo que não ocorre uma alteração de factos juridicamente relevante.
Tal é também o caso assinalado no Ac. TRP de 18/04/2007 www.dgsi.pt/ em que não ocorre uma alteração de factos “quando a factualidade dada como provada no acórdão condenatório consiste numa mera redução daquela que foi indicada na acusação ou na pronúncia, por se não terem dado como assentes todos os factos aí descritos, ou quando apenas existam alterações de factos relativos a aspectos não essenciais, manifestamente irrelevantes para a verificação da factualidade típica ou da ocorrência de circunstâncias agravantes.”. (…)
No mesmo sentido se expressa a R. Ev. no seu ac de 5/3/2013 www.dgssi.pt/ ao entender que “1. O crime de ameaça é um minus relativamente ao crime de violência doméstica. 2. Não carece de ser comunicada nos termos do artº 358º do CPP a alteração resultante da imputação de um crime menos grave (ameaça) que o constante da acusação (violência doméstica), em consequência da simples redução da matéria de facto na sentença”, ou a R C no ac. 14/5/2014 www.dgsi.pt/ “A condenação de arguido pela prática, em autoria material, de um crime de ofensa á integridade física qualificada p. e p. pelos arts. 143.º, n.º 1, 145.º, n.ºs 1, al. b), e 2, por referência á al. b) do n.º 2 do art. 132.º (todas estas normas são do CP), num contexto em que, pelos mesmos factos, ao mesmo estava imputado, na acusação pública, um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.ºs 1 e 2, do referido diploma legal, consubstancia tão só alteração de qualificação jurídica, que não carece de comunicação, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 358.º, n.ºs 1 e 3, do CPP, porquanto, constituindo o primeiro dos ilícitos um «minus» em relação ao segundo, o visado teve necessariamente conhecimento de toda a factualidade integrante dos seus elementos constitutivos.”
Sendo que tal interpretação é conforme à constituição, como decidiu o TC no seu ac. nº 330/97 - http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/19970330.html onde “Não julga inconstitucionais as normas dos artºs 358 e 359º do CPP quando interpretadas no sentido de permitirem a condenação por infracção diversa e menos grave do que aquela que vinha acusada, em consequência da redução da matéria de facto constante da acusação”. No mesmo sentido, em situação paralela, o recente ac. RP de 14/3/2018 www.dgsi.ptI – Não ocorre qualquer alteração para efeitos da comunicação prevista no artº 358º1 CPP, quando da audiência de julgamento resulta a prática do crime acusado, mas menos grave por afastamento por ausência de prova, do elemento qualificador ou agravativo que constava daquela; II – A relação entre o crime de violência domestica e o crime de ofensa à integridade física é de consumpção, protegendo aquele mais intensamente a vítima, integrando-se este naquele; III – Numa relação de concurso aparente, caindo (por falta de prova ou qualquer outra razão), o crime mais grave o agente é punido pelo crime menos grave sem que se justifique a comunicação da alteração da qualificação jurídica.” e jurisprudência que cita (…).
Já o acórdão da Relação de Coimbra, de 14.05.2014, citado pelo MP na resposta ao recurso, apreciou uma questão idêntica e ponderou o seguinte:
“(…) Neste caso, restou a punição por aplicação das normas penais gerais, que representam um “minus” em relação ao crime de que o arguido vinha acusado.
O arguido teve conhecimento de todos os elementos constitutivos do crime de ofensas à integridade física qualificada, designadamente dos relativos ao facto da ofendida ser seu cônjuge e à consciência da ilicitude, como se verifica dos pontos 1, 9, 11 e 12 da sentença recorrida, e teve possibilidade de os contraditar, pois todos esses factos constavam da acusação (cfr. factos 1, 13, 15 e 16 da acusação).
Por isso, e em relação ao crime de ofensa à integridade física qualificada por que o arguido veio a ser condenado, e na esteira dos já supra mencionados acórdãos do STJ de 03/04/1991, de 12/11/2003 e de 12 de Setembro de 2007, bem como do Acórdão da Relação de Coimbra de 23.11.2011 e do Acórdão da Relação do Porto de 12.01.2011 (ambos acessíveis através do site www.dgsi.pt), nem sequer tinha o arguido que ser notificado nos termos e para efeitos do artigo 358º nº 3 do Código de Processo Penal.
Não tendo, pois, a sentença recorrida condenado o arguido por factos diversos dos descritos na acusação e fora dos casos e das condições previstos nos artigos 358.º e 359.º do C.P.P., não se reconhece a invocada nulidade da sentença recorrida, nos termos do art.379.º, n.º1, al. b), do C.P.P. (…).”
Também o acórdão da Relação do Porto, de 12.01.2011 (citado nesse acórdão), proferido num caso idêntico, justificou a desnecessidade de comunicação ao arguido, nos seguintes termos:
“(…) Deste modo, aos casos ressalvados na própria Lei, tem a jurisprudência adicionado outros que com eles partilham a mesma irrelevância negativa para os direitos de defesa do arguido.
Referimo-nos, por exemplo, aos casos em que a alteração resulta da imputação de um crime simples, ou «menos agravado», quando da acusação ou da pronúncia resultava a atribuição do mesmo crime mas em forma mais grave, por afastamento do elemento qualificador ou agravativo inicialmente imputado [Ac. STJ de 7.11.2002]: entende-se que não há qualquer alteração relevante para o efeito em causa, uma vez que o arguido se defendeu em relação a todos os factos, embora venha a ser condenado por diferente crime (mas consumido pela acusação ou pronúncia).
21. O mesmo entendimento deve ser seguido no caso presente, em que o recorrente, acusado pela prática de um crime “composto” – na medida em que integra condutas que em si mesmo já são consideradas crime mas que obtêm uma cominação mais grave em resultado da qualidade especial do autor ou o dever que sobre ele impende [Maus-tratos] -, acaba condenado por um dos crimes integrantes [Ofensa à integridade simples].(…)”.
Ainda nesta Relação do Porto, em acórdão de 09/03/2005, proferido no processo n.º 0411496 (…), foi feita uma análise da questão onde se defendeu semelhante posição, nos termos seguintes: (…) A ideia do legislador é pois, segundo pensamos, a de que o arguido não possa ser surpreendido, nem prejudicado na sua defesa, pela alteração da qualificação jurídica. Sempre que dessa alteração não surja qualquer surpresa, nem prejuízo na sua defesa, (por resultar de factos alegados pelo próprio arguido, ou de adesão do tribunal à qualificação jurídica pela qual o mesmo pugnou), não é necessária a comunicação ao arguido “para preparação da defesa” (art. 358,1 CPP).
Esta interpretação corresponde ao entendimento dominante da jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça e da doutrina, como se refere no sumário do Acórdão de 7-11-2002, recurso 02P3158: “Resulta da jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça e da Doutrina que se a alteração resulta da imputação de um crime simples, ou «menos agravado», quando da acusação ou da pronúncia resultava a atribuição do mesmo crime, mas em forma mais grave, por afastamento do elemento qualificador ou agravativo inicialmente imputado, não há qualquer alteração relevante para este efeito, pois que o arguido se defendeu em relação a todos os factos, embora venha a ser condenado por diferente crime (mas consumido pela acusação ou pronúncia).
O mesmo se diga quando a alteração da qualificação jurídica é trazida pela defesa, pois que também aqui se não verifica qualquer elemento de surpresa que exija a atribuição ao arguido de maior latitude de defesa.”.
O Supremo Tribunal de Justiça explicita, no referido Acórdão, que este entendimento não põe em causa a menor garantia de defesa do arguido: “Com efeito, (argumenta o Acórdão) resulta da jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça e da Doutrina (2 cfr. Castanheira Neves, Sumários de Direito Criminal, Simas Santos, Alteração substancial dos factos, RMP, n.º 52, págs. 113 e BMJ 423-9, Frederico Isaac, Alteração Substancial dos Factos e Relevância no Processo Penal Português RPCC, 1, 2, 221, Duarte Soares, Convolações, CJ, Acs. STJ II, 3, 13, Marques Ferreira, Da Alteração Substancial dos Factos Objecto do Processo, Souto Moura, Notas sobre o Objecto do processo, RMP n.º 48, 41, Germano Marques da Silva, Objecto do Processo Penal. A Qualificação Jurídica dos Factos - Comentário ao «Assento» n.º 2/93 in Direito e Justiça, III, tomo 1 e Teresa beleza, Apontamentos de Direito Processual Penal, III, 93) que se a alteração resulta da imputação de um crime simples, ou «menos agravado», quando da acusação ou da pronúncia resultava a atribuição do mesmo crime, mas em forma mais grave, por afastamento do elemento qualificador ou agravativo inicialmente imputado, não há qualquer alteração relevante para este efeito, pois que o arguido se defendeu em relação a todos os factos, embora venha a ser condenado por diferente crime (mas consumido pela acusação ou pronúncia).
Ou seja, o arguido defendeu-se em relação a todos elementos de facto e normativos que lhe eram imputados, em julgamento, pelo que nada havia a notificar, uma vez que se verificou não uma adição de elementos, mas uma subtracção.
O mesmo se diga quando a alteração da qualificação jurídica é trazida pela defesa, pois que também aqui se não verifica qualquer elemento de surpresa que exija a atribuição ao arguido de maior latitude de defesa (cfr. Leal - Henriques e Simas Santos, CPP Anotado, II, pág. 415) (…) ”.

Deparamo-nos assim com um entendimento jurisprudencial dominante, no sentido de que a comunicação a que alude o art. 358º, 1 do CPP não é necessária nas situações em que da acusação ou da pronúncia “resultava a atribuição do mesmo crime, mas em forma mais grave e, por afastamento do elemento qualificador ou agravativo inicialmente imputado, não há qualquer alteração relevante para este efeito, pois que o arguido se defendeu em relação a todos os factos, embora venha a ser condenado por diferente crime (mas consumido pela acusação ou pronúncia)”
Assim, e estando preenchidos os elementos típicos do crime de ameaça agravada impõe-se, proceder à determinação da pena a aplicar ao arguido por tal crime.
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Para tanto e dado que o tipo legal em causa tem como penas alternativas a prisão ou multa, impõe-se nos termos do artº 70º CP proceder à escolha da pena aplicável, tendo presente que a lei impõe que “ o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”. Todavia atendendo aos factos e seus antecedentes criminais e suas penas, o seu envolvimento e razão deste, e o concreto facto ameaçado, afigura-se-nos que a pena de multa não satisfaz aqueles exigências de protecção dos bens jurídicos e de reintegração do agente na sociedade (artº40ºCP) desiderando de toda a pena, pelo que optamos pela pena de prisão.
Na determinação da pena concreta a aplicar ao arguido atender-se-á nos termos do artº 71º CP, à sua culpa,- como suporte axiológico de toda a pena, ou “ A culpa é o pressuposto e fundamento da responsabilidade penal. A responsabilidade é a consequência ou efeito que recai sobre o culpado. (...) Sendo pressuposto e fundamento da responsabilidade deve ser também a sua medida, (...). O domínio do facto pelo agente é o domínio da sua vontade racional e livre, e é esta que constitui o substrato da culpa” - Prof. Cavaleiro Ferreira, Lições de Dto. Penal, I, págs. 184 e 185, sendo que o principio da culpa é a “consequência da exigência incondicional da defesa da dignidade da pessoa humana que ressalta dos artigos 1º, 13º, n.º 1 e 25º, n.º 1 da Constituição da Republica Portuguesa”, Prof. Figueiredo Dias, As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, pág. 84, - e às exigências de prevenção quer geral quer especial, e que (e assim Figueiredo Dias, Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Editorial Notícias, 1993, págs. 227 e sgt.s) as finalidades da aplicação de uma pena residem primordialmente na tutela dos bens jurídicos e, na medida do possível, na reinserção do agente na comunidade e que, neste quadro conceptual, o processo de determinação da pena concreta seguirá a seguinte metodologia: a partir da moldura penal abstracta procurar-se-á encontrar uma sub-moldura para o caso concreto, que terá como limite superior a medida óptima de tutela de bens jurídicos e das expectativas comunitárias e, como limite inferior, o quantum abaixo do qual já não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem pôr irremediavelmente em causa a sua função tutelar. Dentro dessa moldura de prevenção actuarão, de seguida, as considerações extraídas das exigências de prevenção especial de socialização. Quanto à culpa, compete-lhe estabelecer o limite inultrapassável da medida da pena a estabelecer; Cf. também o Ac. STJ Ac. 17/4/2008 in www.dgsi.pt/jstj.
E vistos ao factos provados e tendo em conta a moldura penal (até 2 anos de prisão), o grau elevado da ilicitude do facto e a ameaça concreta proferida, o modo como foi proferido, a razão subjacente, o dolo, o modo de execução e local e suas consequências, o seu modo e condições de vida, a situação económica apuradas, os antecedentes criminais e a sua conexão com os factos em analise e o seu modo de vida, e as exigências de prevenção quer geral, quer especiais revelando-se estas prementes, pois o arguido demonstra não ter superado o fim do casamento, e o que o tem levada a procurar a ex-esposa, afigura-se- nos justa a pena de 10 meses de prisão.
Nos termos do artº 50º CP “o tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”
No caso em análise o arguido mantém uma vida social e de trabalho normal, evidenciando-se apenas as questões com a ex- esposa e o consumo de álcool, que já vem de antes do seu relacionamento (nº 4 dos factos provados) e cuja aceitação se tem tornado problemática. Nessa medida afigura-se-nos ser possível emitir um juízo de prognose favorável ao arguido, posto que fiquem salvaguardados tais aspectos e se promova a consciencialização do mesmo com vista a evitar esses comportamentos problemáticos, para o que será de conceder ajuda ao arguido. Neste sentido cf. o ac. STJ de 18/12/2008, www.dgsi.pt, expressando uma jurisprudência constante, “… não são considerações de culpa que interferem na decisão sobre a execução da pena, mas apenas razões ligadas às finalidades preventivas da punição, sejam as de prevenção geral positiva ou de integração, sejam as de prevenção especial de socialização, estas acentuadamente tidas em conta no instituto da suspensão, desde que satisfeitas as exigências de prevenção geral, ligadas à necessidade de correspondência às expectativas da comunidade na manutenção da validade das normas violadas”
Afigura-se-nos por outro lado que só esta pena de substituição tem essa capacidade preventiva e reintegradora, pelo que a pena de prisão será substituída por pena suspensa com submissão ao regime de prova com vista a consciencializar o arguido da cessação do casamento e da necessidade de minorar o consumo de álcool e de se afastar da ofendida, de modo a evitar o cometimento de novos crimes em idêntica situação e motivação e a gerar a capacidade de vencer a vontade de os praticar, evitando as situações propícias.
Por fundamentos diversos procede nesta parte o recurso

No que respeita à indemnização arbitrada, ela foi-o com base na condenação pelo crime de violência doméstica, oficiosamente, ao abrigo do artigo 82º-A do CPP conjugado com o artigo 21º nºs 1 e 2 da Lei nº 112/2009, de 16 de Setembro, o qual estabelece “1 - À vítima é reconhecido, no âmbito do processo penal, o direito a obter uma decisão de indemnização por parte do agente do crime, dentro de um prazo razoável. 2 - Para efeito da presente lei, há sempre lugar à aplicação do disposto no artigo 82.º-A do Código de Processo Penal, exceto nos casos em que a vítima a tal expressamente se opuser”
Desaparecendo tal crime, deixa de existir base jurídica para o arbitramento oficioso, e dado que a ofendida não deduziu pedido civil de indemnização, esta não poderá ser arbitrada.
Assim procede também, por fundamentos diversos, nesta parte o recurso
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Pelo exposto, o Tribunal da Relação do Porto, decide:
Julgar parcialmente procedente o recurso interposto pelo arguido B… e em consequência:
- absolve o arguido B… do crime de violência doméstica de que fora acusado e condenado.
- como autor de um crime de ameaça agravado p. p pelos artºs 153º e 155º 1 a) CP condena o arguido B… na pena de dez meses de prisão.
Ao abrigo dos artºs 50º, 53º e 54º CP, suspender a execução da pena de prisão pelo período de 2 anos, com submissão ao regime de prova, de cujo plano devem constar as medidas necessárias a combater o alcoolismo do arguido, a consciencializá-lo do seu estado de divorciado e da necessidade de salvaguarda da autonomia da ofendida, e promover o afastamento físico entre ambos.
- Absolve o arguido B… da indemnização arbitrada à ofendida.
Transitado, o tribunal recorrido solicitará à DGRS elaboração do plano de reinserção social.
Sem custas.
Notifique.
Dn
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Porto, 13/11/2019
José Carreto
Paula Guerreiro