Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
121276/19.8YIPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ARISTIDES RODRIGUES DE ALMEIDA
Descritores: PRAZO DE INTERPOSIÇÃO DE RECURSO
NORMA EXCEPCIONAL
INTERPRETAÇÃO DA LEI
Nº do Documento: RP20211007121276/19.8YIPRT.P1
Data do Acordão: 10/07/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFERÊNCIA
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO SINGULAR
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: A não suspensão dos prazos para interposição de recurso, arguição de nulidades ou requerimento da rectificação ou reforma da decisão, consagrada no artigo 6.º-B, n.º 5, alínea d), da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, na redacção da Lei n.º 4-B/2021, de 1 de Fevereiro, aplica-se quer as decisões tenham sido proferidas a partir de 22 de Janeiro de 2021 quer tenham sido proferidas antes dessa data.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso de Apelação
ECLI:PT:TRP:2021:121276.19.8YIPRT.P1
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Sumário:
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Em Conferência
Acordam os Juízes da 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:

I. Relatório:
Pelo relator foi proferido nos autos a seguinte decisão singular:
«A sentença recorrida foi notificada às partes mediante expediente elaborado em 21.01.2021, razão pela qual a notificação se considera feita no dia 25.01.2021.
No dia 26.01.2021, iniciou-se a contagem do prazo legal de interposição de recurso, o qual, no caso, por não incluir impugnação da decisão sobre a matéria de facto com fundamento em prova gravada, era de 30 dias.
Esse prazo conclui-se no dia 24.02.2021, razão pela qual, tendo sido apresentadas apenas no dia 05.05.2021, as alegações de recurso foram apresentadas após o termo do respectivo prazo.
Esta conclusão é afectada pela Lei n.º 4-B/2021, de 1 de Fevereiro?
A nosso ver, não.
Esta Lei alterou a Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, e estabeleceu um regime de suspensão de prazos processuais e procedimentais decorrente das medidas adoptadas no âmbito da pandemia da doença COVID-19.
Rompendo com a solução anterior a nova Lei não suspendeu todos os prazos e expressamente não suspendeu «os prazos para interposição de recurso, arguição de nulidades ou requerimento da rectificação ou reforma da decisão» [artigo 6.º-B, n.º 5, alínea d)].
Segundo dispõe o n.º 5 do artigo 6.º-B, «o disposto no n.º 1 (leia-se a suspensão dos prazos) não obsta: … d) A que seja proferida decisão final nos processos e procedimentos em relação aos quais o tribunal e demais entidades referidas no n.º 1 entendam não ser necessária a realização de novas diligências, caso em que não se suspendem os prazos para interposição de recurso, arguição de nulidades ou requerimento da rectificação ou reforma da decisão.
Existe quem interprete o disposto neste preceito legal como reportando-se apenas às sentenças proferidas após a entrada em vigor da Lei n.º 4-B/2021 [o “caso em que..” é lido como “no caso de vir a ser” proferida decisão final].
Sublinhe-se aliás que no caso concreto embora a decisão tenha sido proferida com data anterior àquela em que se produziram os efeitos da Lei n.º 4-B/2021 (cf. artigo 4.º - 22.01.2021) a sua notificação já se considera feita em data posterior a essa.
O nº 1 do artigo 6º-B, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, na redacção da Lei n.º 4-B/2021, de 1 de Fevereiro, prevê efectivamente a suspensão dos prazos para a prática de actos processuais, mas, afirma-o expressamente, «sem prejuízo do disposto nos números seguintes».
Portanto, é a própria lei, para evitar dúvidas, que consagra que o disposto nos números seguintes condicionam, modificam, alteram ou impedem essa suspensão. Logo a questão é inevitavelmente uma questão de interpretação das normas legais, de busca do seu sentido, finalidade e coerência lógica.
O artigo 9.º do Código Civil estabelece o seguinte regime legal:
«1. A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.
2. Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.
3. Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados
É sabido que toda a norma legal carece de interpretação, isto é, que sobre ela seja exercida uma tarefa de determinação do seu sentido para que ela possa ser aplicada correctamente a um caso concreto, uma tarefa de descoberta e atribuição de um significado ao enunciado linguístico da norma.
Interpretar é procurar a norma que o texto pretende manifestar, é ir além do que a norma expressa e alcançar a regra que ela pretende consagrar. O que implica ir além do texto, colocá-lo no respectivo contexto, recorrer aos fins da lei, às circunstâncias da lei, à mente do legislador. Tudo para lograr descobrir por trás da força das palavras a razão da lei, fixando-lhe o alcance e o sentido.
As normas legais carecem sempre de interpretação, não apenas quando a solução parece a mais óbvia ou conveniente. A interpretação jurídica realiza-se através de elementos, meios, factores ou critérios que devem utilizar-se harmónica e não isoladamente. Ela compreende elementos textuais e extratextuais que permitam alcançar a compreensão de um enunciado.
Desde logo, o chamado elemento literal que é a letra da lei; depois os elementos lógicos, como o histórico, o racional e o teleológico, que no seu conjunto e de modo concatenado permitirão apreender o sentido da norma.
Segundo o ensinamento de Santos Justo, in Introdução ao Estudo do Direito, 11.ª ed., 2020, Petrony Editora, págs. 312-313, o elemento literal, também dito gramatical, são as palavras em que a lei se exprime. Ele constitui apenas o ponto de partida da interpretação jurídica. As suas funções são duas: afastar a interpretação que não tenha uma base de apoio na letra lei, ainda que mínima; privilegiar de entre os vários significados possíveis, o técnico-jurídico, o especial e o fixado pelo uso geral da linguagem. Em relação ao primeiro, dever-se-á ter presente a suposição de que o legislador soube exprimir correctamente o seu pensamento e, por isso, serviu-se do vocabulário jurídico adequado. Quanto ao segundo, ocorre em matérias técnicas, onde assume um sentido próprio ou peculiar. E sobre o último, que é o sentido comummente entendido, dir-se-á que o legislador se dirige a todos os cidadãos e é necessário que o entendam.
Quanto aos elementos lógicos, o elemento histórico reflecte a história da lei (trabalhos preparatórios, elementos do preâmbulo ou relatório da lei) e as circunstâncias sociais ou políticas e económicas em que a lei foi elaborada; o elemento sistemático advém de a ordem jurídica formar um sistema e a norma dever ser tomada como parte de um todo, parte do sistema; e o elemento racional ou teleológico leva a atender-se ao fim ou objectivo que a norma visa realizar, à sua razão de ser (ratio legis).
Se o legislador entendeu que os prazos de interposição de recurso das decisões proferidas já em pleno período de confinamento não se suspendem, entendeu seguramente que as razões e as implicações do confinamento não impediam os mandatários de reagir em tempo, através da interposição de recurso, contra as decisões judiciais proferidas nesse contexto e período, isto é, que a actividade dos mandatários de estudo, preparação e apresentação de recursos não estava limitada pelo confinamento ao ponto de justificar a suspensão de prazos por se tratar de um trabalho exclusivo do mandatário que o mesmo pode executar sozinho, em isolamento social, sem necessidade de contacto pessoal com outras pessoas.
Sendo assim, por que razão haveria de entender que isso já não era assim em relação às decisões judiciais proferidas antes, cujos prazos já se tinham iniciado e para cujo termo os mandatários já se haviam preparado, planeando o respectivo trabalho?
Se o confinamento não justificava a suspensão dos prazos para esses actos no respectivo período, o que justificaria a suspensão de prazos absolutamente idênticos mas iniciados ainda antes do confinamento?! Se esses prazos (os relativos a actos que o mandatário podia perfeitamente praticar) não se suspenderam no confinamento, porque se haviam de suspender antes do confinamento?!
Basta equacionar esta perplexidade para alcançar que o segmento “caso em que” apenas pretende significar “nos casos de ser proferida sentença final”, ou seja, constitui uma previsão da situação (a situação de a decisão proferida ser final) em que o prazo (de interposição de recurso) não se suspende, não uma delimitação temporal do âmbito da estatuição legal.
Para ter esse sentido, como referimos estranho, anómalo e contraditório com a solução legal da não suspensão de prazos de interposição de recurso de decisões proferidas no período de confinamento legal, a norma devia então dizer que [o disposto no n.º 1, leia-se a suspensão de prazos não obsta: … d)] a que seja proferida decisão final nos processos …, caso em que não se suspendem os prazos para interposição de recurso, arguição de nulidades ou requerimento da rectificação ou reforma dessas decisões ou das decisões que vierem a ser proferidas (o que não corresponde ao texto da lei).
Que isso é assim parece também confirmar o processo legislativo de produção da Lei n.º 13-B/2021, de 5 de Abril, que veio fazer cessar o regime de suspensão de prazos processuais.
Através da consulta do site da Assembleia da República apura-se que após a apresentação da proposta de Lei correspondente, um advogado quis influenciar o processo legislativo, seguramente intencionando a defesa do interesse público que qualquer lei deve servir, enviando aos Srs. Deputados uma missiva sugerindo a aprovação de uma norma interpretativa, portanto com eficácia retroactiva, que dissesse precisamente que os prazos de interposição de recurso de sentenças proferidas antes da entrada em vigor da Lei n.º 4-B/2021, de 1 de Fevereiro, se encontravam suspensos desde essa data.
Ora essa proposta não foi aceite e a Lei n.º 13-B/2021, de 5 de Abril, não contém qualquer norma interpretativa com esse conteúdo, apesar de os Srs. Deputados estarem alertados para a interpretação que o referido advogado acusava alguns magistrados de defenderem.
Cremos que esta circunstância tem relevância interpretativa à luz do argumento histórico. Com efeito, anteriormente também a propósito da suspensão de prazos nos processos, o artigo 5º da Lei nº 4-A/2020, de 6 de Abril, foi criado para ser precisamente uma norma interpretativa do artigo 10º da Lei nº 1-A/2020, no sentido de se entender que o disposto no seu artigo 7º produzia efeitos a 9 de Março, e não propriamente na data que parecia resultar desta disposição. Existe, portanto, um histórico de normas interpretativas quando o legislador as entendeu necessárias no decurso deste conturbado processo de produção legislativa para acorrer à doença Covid-19.
Em suma, as alegações de recurso foram apresentadas após o termo do respectivo prazo.
Pelo exposto, por ter sido apresentado quando já se encontrava precludido o direito ao recurso, rejeito o recurso de apelação da decisão proferida na 1.ª instância.»

A recorrente veio de seguida reclamar para a conferência ao abrigo do disposto no artigo 652.º do Código de Processo Civil, nos seguintes termos que se reproduzem integralmente:
«[…] 8. Ora, estamos em crer que se deve ler a norma do seguinte sentido: Apesar da suspensão dos prazos para a prática de actos processuais, tal suspensão, não obsta a que (após a entrada em vigor da Lei), seja proferida decisão final nos processos. E tal acontecendo, então:”... não se suspendem os prazos para a interposição de recurso...”
9. Ou seja, se for proferida uma decisão final, após a entrada em vigor da Lei, então, nesse caso, não se suspendem os prazos para a interposição do recurso.
10. Sucede, no entanto, que a decisão foi proferida a 21.01.2021.
11. E a Lei 4º-B/2021 de 1 de Fevereiro, entrou em vigor no dia 22.01.2021.
12. O Venerando Juiz Desembargador, considera que apesar da decisão do Douto Tribunal da Primeira Instância, tenha sido proferida antes da entrada em vigor da Lei, como a mesma foi notificada à Requerente após a entrada em vigor, então, entende o Venerando Juiz Desembargador, que se se aplica a alínea d) do nº 5 do artigo 6ºB, não se suspendendo o prazo para recurso.
13. Continuando o seu raciocínio, considera ainda que não faz sentido suspender os prazos para a interposição de recurso antes da entrada em vigor da Lei quando os mandatários já se teriam preparado e planeado o respectivo trabalho e não suspender prazos para interposição de recurso após a entrada em vigor da Lei.
14. Cremos entender a sua leitura, que se estaria a dar uma vantagem aos processos com os prazos já em curso, suspendendo-os, concedendo- lhes assim mais tempo, relativamente àqueles em que após a notificação, não beneficiariam das mesmas benesses temporais.
15. Discordamos desta opinião, porquanto, é normal que não exista essa benesse de suspensão dos prazos para interposição de recurso das decisões proferidas após a entrada em vigor da Lei.
16. Tanto assim é, que comos os restantes prazos para diligências, processos e procedimentos estavam suspensos, então os mandatários teriam mais disponibilidade de tempo para prepararem os seus trabalhos, pois tudo o resto (diligências, prazos processuais e procedimentais) estava suspenso, não se justificando manter a suspensão dos prazos nas decisões proferidas após a entrada em vigor da Lei, da mesma forma que foi estatuída a suspensão atribuída às decisões proferidas antes da entrada em vigor da Lei.
17. Porque se antes, os prazos estavam a correr, as diligências estavam a decorrer com os atrasos que se conhecem devido às regras estabelecidas para as audiências devida à Pandemia, que teve como consequência o arrastar de diligências por várias sessões devido aos limites impostos do número de pessoas, os seus cancelamentos, remarcações, novos cancelamentos sucessivos, que sobrecarregou a agenda dos mandatários, roubando-lhes tempo para outros trabalhos como preparação de trabalhos para interposições de recursos.
18. A nosso ver, a estatuição legal faz todo o sentido.
19. Resumindo, é o nosso entendimento que o Venerando Juiz Desembargador defende que, para efeitos de interposição de recurso, não se suspendem os prazos, pois no caso contrário, a lei deveria então dizer e passe-se a citar: “...das decisões que vierem a ser proferidas.”
20. Discordamos com a devida vénia deste entendimento.
21. E não estamos sozinhos na nossa posição. Partilham da mesma opinião, os Venerandos Desembargadores do Tribunal da Relação de Évora, os quais passamos a citar: “...Com efeito, a lei é bem expressiva ao aludir “[a] que seja proferida decisão final”, o que nos remete para a prolação das decisões após a vigência da lei: se o legislador pretendesse abarcar todas as decisões proferidas, quer antes quer após a entrada em vigor da lei, afigura-se que teria utilizado um diferente enunciado linguístico. Por isso, sendo de presumir que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil), a alínea d) ao aludir “[a] que seja proferida decisão final”, só pode reportar-se a decisão final proferida após a entrada em vigor da lei. Processo 476/18.0T9ENT-A.E1
22. E se nos é permitida a observação, com todo o respeito que é muito, então se se defende que para efeitos de interposição de recurso não se suspendem os prazos, porque justifica a sua decisão de que, como a notificação foi efectuada após a entrada em vigor, aplica-se a dita alínea d) do nº5 do artigo 6ºB, a Requerente não beneficia da suspensão dos prazos para efeitos de interposição de recurso?
23. Há que sublinhar a contradição. Se por um lado, acredita que não se devem suspender os prazos para efeitos de interposição de recurso, porque se estaria a dar uma vantagem aos processos com decisões proferidas antes da entrada em vigor da Lei relativamente aos processos com decisões proferidas após a entrada em vigor, no fundo - passando por cima do estatuído no nº 1 do artigo 6ºB que determina a suspensão de todos os prazos processuais - por outro lado, justifica a sua decisão, com base de que a notificação foi efectuada após a entrada em vigor da Lei.
24. Ora, tal norma, a ser assim aplicada, sempre será inconstitucional por violar o art. 2.º CRP, ao atacar o princípio da confiança no Estado de Direito e nos seus órgãos de soberania.
25. Por último, considera o Venerando Juiz Desembargador, que o que interessa é a notificação da decisão e não que seja proferida a decisão como a Lei diz expressamente.
26. Novamente, discordamos desta interpretação e não nos rogamos a citar novamente os Venerandos Desembargadores da Relação de Évora, com uma adenda nossa, devidamente assinalada: se o legislador pretendesse abarcar todas as decisões proferidas e notificadas (itálico nosso), quer antes quer após a entrada em vigor da lei, afigura-se que teria utilizado um diferente enunciado linguístico. Por isso, sendo de presumir que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil), a alínea d) ao aludir “[a] que seja proferida decisão final”, só pode reportar-se a decisão final proferida após a entrada em vigor da lei. […].
Cumpre decidir:
O argumento de que tem de se aplicar a suspensão de prazos prevista no nº 1 do artigo 6º-B, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, na redacção da Lei n.º 4-B/2021, de 1 de Fevereiro, por ser isso que resulta da redacção do preceito desmente-se a ele mesmo.
O preceito estabelece de facto a suspensão dos prazos para a prática de actos processuais, mas, afirma-o expressamente, «sem prejuízo do disposto nos números seguintes». Portanto, é a própria lei, para evitar dúvidas, que consagra que o disposto nos números seguintes condicionam, modificam, alteram ou impedem essa suspensão. Este é um dado inultrapassável: a redacção da norma não estabelece que se suspendem todos os prazos, estabelece uma regra, a suspensão dos prazos, e estabelece excepções a essa regra, a não suspensão dos prazos conforme previsto nos números seguintes.
Logo a questão é sempre inevitavelmente uma questão de interpretação das normas legais, de busca do seu sentido, finalidade e coerência lógica. As normas legais carecem de interpretação, e carecem sempre, não apenas quando a solução parece a mais óbvia ou conveniente.
O sucedido no processo legislativo de aprovação da Lei n.º 13-B/2021, de 5 de Abril, que veio fazer cessar o regime de suspensão de prazos processuais e procedimentais adoptado no âmbito da pandemia da doença COVID-19, alterando a Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, com a tentativa de introdução de uma norma interpretativa, não é despiciendo.
Basta afinal ter presente que anteriormente também a propósito da suspensão de prazos nos processos, o artigo 5º da Lei nº 4-A/2020, de 6 de Abril, foi criado para ser precisamente uma norma interpretativa do artigo 10º da Lei nº 1-A/2020, no sentido de se entender que o disposto no seu artigo 7º produzia efeitos a 9 de Março, e não propriamente na data que parecia resultar desta disposição. Existe, portanto, um histórico de normas interpretativas quando o legislador as entendeu necessárias no decurso deste conturbado processo de produção legislativa para acorrer à doença Covid-19.
O argumento baseado no princípio da confiança é, no caso, abusivo.
Conforme se referiu é a própria norma a estabelecer que a suspensão de prazos prevista no nº 1 do artigo 6º-B, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, é decretada «sem prejuízo do disposto nos números seguintes».
Qualquer mandatário sabe que a norma carece de ser interpretada e que essa interpretação pode conduzir a uma resultado que lhe é mais favorável ou menos favorável. Logo que a norma foi aprovada ela permitia essa dúvida, a qual foi manifestada de imediato por alguns intérpretes reconhecidos. Por exemplo, na WebConferência realizada no dia 10 de Fevereiro de 2021 sob a égide do Conselho Distrital do Porto da Ordem dos Advogados sobre o tema «O novo regime da suspensão de prazos e diligências» (a qual pode ser visualizada em https://www.direitoemdia.pt) o professor e processualista Paulo Pimenta sustentou que essa interpretação não era a dela mas era possível e podia vir a fazer carreira.
Se o princípio tivesse a abrangência que o recorrente refere então teríamos de aceitar sempre a interpretação da norma que fosse mais favorável ao destinatário porque é nesse sentido que ele tem interesse e é o correspondente resultado que ele acredita sempre que pode alcançar. Ora não se pode aceitar que seja esse o sentido do princípio constitucional da confiança.
A decisão da Relação de Évora citada pelo recorrente não é um Acórdão, é uma decisão singular do Presidente daquela Relação datada de 03-05-2021, publicada in http://www.dgsi.pt/jtre. Ao contrário dela, decidiu o Acórdão da mesma Relação de 13-05-2021, Mata Ribeiro, processo n.º 2161/19.6T8PTM.E1, in http://www.dgsi.pt/jtre, que «o fim visado pelo legislador ao editar a norma contida na al. d) do n.º 5 do art.º 6-B) foi o de impedir que operasse a suspensão nos prazos de recurso, quando se esteja perante decisão final proferida no processo, independentemente do momento em que se dê a prolação da sentença
Para assim concluir, aquele Acórdão apresentou a seguinte argumentação que aqui se acompanha:
«Este preceito legal teve origem na Proposta de Lei n.º 70/XIV que em face do agravamento da situação pandémica provocada pela Covid-19 em Portugal, surgiu como medida excepcional de carácter urgente no âmbito do desenvolvimento da actividade judicial e administrativa, e à semelhança do sucedido no primeiro semestre de 2020, suspendeu a generalidade dos prazos processuais e procedimentais, mas mitigando tal suspensão, tal como se diz na exposição dos motivos de modo a garantir, mesmo no que respeita aos processos não urgentes “a tramitação daqueles que se apresentem como indispensáveis estabelecendo-se uma série de excepções que permitem mitigar os efeitos genéricos da suspensão”, assegurando a realização de todos os actos que razoavelmente possam ter lugar, sendo de notar que a segunda parte da al. d) do n.º 5 do aludido artº 6º - B foi transposta na sua redacção da proposta de alteração à proposta de Lei n.º 70/XIV, alteração que foi apresentada pelo Grupo Parlamentar do Partido Socialista.
Este Grupo Parlamentar, pela palavra do deputado Pedro Delgado Alves, salientava a “necessidade imperiosa de tentar provocar o mínimo de dano ao funcionamento da justiça, procurando acautelar o funcionamento tão normal quanto possível do sistema judiciário e garantir os princípios fundamentais que o norteiam, tendo em conta, naturalmente, as muitas condicionantes a que todos estamos vinculados” reconhecendo ser necessário ter em conta um conjunto de excepções à suspensão dos prazos e diligências “para se poderem praticar aqueles actos que são indispensáveis: os tribunais superiores poderem continuar a tramitar por via electrónica; a prática de actos por via remota quando há condições e acordo das partes para que se assegure que, nas circunstâncias em que todos estão de acordo, ela pode prosseguir; assegurar que as decisões finais podem ser proferidas”.
Também o grupo parlamentar do PSD, pela palavra da deputada Mónica Quintela, defendeu que não obstante a situação epidemiológica não poderia haver uma paralisação da tramitação processual considerando “fundamental para a realização da justiça, designadamente para a recuperação de pendências, na vertente económica, que determinados actos que não careçam da presença dos intervenientes possam ser praticados. Podem ser proferidas sentenças e interpostos os competentes recursos e os tribunais superiores podem continuar a trabalhar, minimizando os prejuízos causados pela pandemia. O que norteou a proposta do PSD foi o compromisso entre a salvaguarda da saúde dos cidadãos e dos demais intervenientes processuais, por um lado, e a possibilidade da prática de actos que permitam o funcionamento possível do sistema judicial, mitigando os graves efeitos que a paralisação, necessariamente, acarreta”.
Por sua vez, na sua intervenção final no debate, o Secretário de Estado da Justiça salientou que eram de acolher as contribuições resultantes das diversas propostas de alteração apresentados pelas diversas bancadas parlamentares (o que, efectivamente, pelo teor das respectivas votações se constata que em grande maioria veio a acontecer) e na impossibilidade de referir todas referiu expressamente que “a proposta para que não se suspendam os prazos de interposição de recurso, de arguição de nulidades ou de requerimento de rectificação nos casos em que seja preferida a decisão final nos tribunais.”
Da análise que fazemos do regime inicial da suspensão dos prazos no âmbito da pandemia, que vigorou no primeiro semestre de 2020, com o regime que foi instituído pela Lei n.º 4-B/2021, resulta que no âmbito deste último regime, sem pôr em causa a regras da segurança das pessoas, pretendeu-se, na mediada do possível, que a máquina do judiciário, continuasse a tramitar e julgar os processos, constituindo, assim, uma das diferenças concretas entre os dois regimes o facto de proferida sentença em processos não urgentes pelos tribunais de 1.ª instância, os prazos para a prática dos actos subsequentes não se suspenderem, devendo os recursos ser interpostos nos prazos legalmente fixados (de 15 ou 30 dias consoante os casos).
Resulta que existiu preocupação do legislador em não parar totalmente a tramitação dos processos e procedimentos não urgentes, aceitando que possa avançar quando não implique contactos presenciais com sujeitos ou participantes processuais, o que é o caso da interposição de recursos que é efectuada por via electrónica.
[…] Embora o texto da norma pareça apontar para futuro, a ratio legis a ter em consideração visa limitar ao essencial a presença física nas diligências e permitir que, desde que haja decisão final, o processo possa prosseguir os seus termos até tal decisão se tornar definitiva, sendo que nos recursos, quer as decisões tenham sido proferidas antes ou depois da entrada em vigor da norma, a sua interposição que é efectuada via electrónica, não implica presença física de qualquer pessoa ou interveniente processual no tribunal, pelo que nessa medida, não há justificação para distinção entre decisões anteriores ou posteriores à entrada em vigor da lei.
Acresce que, se na vigência da legislação mais restritiva em que a generalidade dos prazos estão suspensos, das decisões que no âmbito da mesma vierem a ser proferidas, quanto a elas, não se suspendem os prazos de interposição de recurso, não faz sentido, até por maioria de razão, que das decisões já proferidas nos processos em que a legislação até era menos restritiva se faça operar a suspensão do prazo para interposição do recurso, que se encontrava em curso, por tal conduzir a situações de manifesta desigualdade ao deixar paralisadas de produção de efeitos as decisões mais antigas, permitindo-se que decisões mais recentes consigam alcançar tal desiderato em virtude da inexistência de barreiras à contagem de prazos à tramitação e julgamento dos recursos.
Entendemos assim, que o fim visado pelo legislador ao editar a norma contida na al. d) do n.º 5 do artº 6-B) foi o de impedir que operasse a suspensão nos prazos de recurso, quando se esteja perante decisão final proferida no processo, independentemente do momento em que se desse a prolação da mesma, por ser essa a interpretação que se deve dar ao texto por ser mais consentânea e correspondente quer ao pensamento legislativo quer à razão e espírito da lei.» (sublinhados nossos).
Por fim, importa referir que não existe qualquer contradição no entendimento de não aplicar a suspensão da contagem dos prazos mesmo às decisões proferidas antes da entrada em vigor da lei em apreço.
Como qualquer lei, esta podia interferir com os prazos em curso ou apenas com os prazos iniciados após a sua entrada em vigor. Os prazos que se encontravam a decorrer não estavam suspensos. Foi a nova lei que suscitou a questão de saber se eles foram suspensos ou não pela lei. Portanto, quando se interpreta a nova lei no sentido de que a suspensão da contagem de prazos nela prevista não se aplica a qualquer prazo de interposição de recurso (isto é, aos prazos para a prática desse acto já iniciados ou iniciados depois) está-se a excluir esse prazo da aplicação da nova lei, precisamente por efeito da interpretação desta, ou seja, da definição do âmbito de aplicação que a própria lei estabeleceu para o regime nela consagrado. É pois perfeitamente coerente invocar as disposições da nova lei para concluir que a suspensão de prazos não se aplica aos prazos de interposição de recurso, ainda que de decisões já proferidas e mesmo que o prazo de interposição de recurso dessas decisões já se tivesse iniciado.
Concluindo, este Colectivo revê-se na argumentação da decisão sumária e decide confirmá-la.

Dispositivo:
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação, em conferência, em confirmar a decisão sumária do Relator e rejeitar o recurso por extemporaneidade.
Custas do recurso pela recorrente.
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Porto, 7 de Outubro de 2021.
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Os Juízes Desembargadores
Aristides Rodrigues de Almeida (R.to 641)
Francisca Mota Vieira
Paulo Dias da Silva

[a presente peça processual foi produzida pelo Relator com o uso de meios informáticos e tem assinatura electrónica qualificada]