Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
476/18.0T9ENT-A.E1
Relator: JOÃO LUÍS NUNES
Descritores: RECLAMAÇÃO CONTRA DESPACHO QUE NÃO ADMITIR OU RETIVER RECURSO
SUSPENSÃO DE PRAZO
Data do Acordão: 05/03/2021
Votação: DECISÃO DA PRESIDÊNCIA
Texto Integral: S
Sumário: A previsão da alínea d) do n.º 5 do artigo 6.º-B da Lei n.º 4-B/2021, de 01 de Fevereiro, ao aludir "a que seja proferida decisão final", só pode reportar-se a situações em que foi proferida decisão final após a sua entrada em vigor.
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 476/18.0T9ENT-A.E1

Reclamação: artigo 405.º do Código de Processo Penal
Reclamante: (…)

I - Relatório
(…), arguido no Proc. n.º 476/18.0T9ENT, veio, nos termos do disposto no artigo 405.º do Código de Processo Penal, reclamar do despacho de 08-04-2021 da exma. juíza do Juízo de Competência Genérica do Entroncamento – Juiz 2, do Tribunal Judicial da Comarca de Santarém, que, fundamento em extemporaneidade, não admitiu o recurso por si interposto em 06-04-2021.
Para tanto, na motivação da reclamação sustentou, no essencial, o seguinte:
(i) em 06-04-2021, (o reclamante) interpôs recurso da decisão final condenatória proferida em 10-12-2020, que foi depositada na secretaria no mesmo dia;
(ii) dispunha do prazo de interposição de recurso de 30 dias, que terminaria em 22-01-2021 e ao qual acresceriam 3 dias úteis mediante o pagamento da multa processual;
(iii) porém, por publicação da Lei n.º 4-B/2021, de 1 de fevereiro, foi estabelecido um regime de suspensão de prazos processuais e procedimentos decorrentes de medidas adotadas no âmbito da pandemia da doença Covid-19;
(iv) nos termos do artigo 6.º-B, n.º 1, da lei foram suspensos todos os prazos para a prática de atos processuais a praticar no âmbito dos processos que corram termos nos tribunais judiciais, situação que se manteve até à publicação da Lei n.º 13-B/2021, de 5 de abril, que revogou tal disposição legal, e que entrou em vigor no dia 6 de fevereiro 2021;
(v) por conseguinte, o recurso por si interposto nesta data mostra-se tempestivo, sendo certo que ao caso não é aplicável o disposto no n.º 5, alínea d) do referido artigo 6.º-B.
Concluiu que deve a reclamação ser julgada procedente, “com as cominações legais”.

O despacho reclamado é do seguinte teor:
«Veio o Arguido (…) em 06/04/2021, apresentar Recuso da decisão final condenatória proferida em 10/12/2020.
Assim, nos termos do disposto no artigo 411.º do C.P.P, dispunha o Arguido de 30 dias para interpor recurso da aludida decisão, isto é, deveria ter sido interposto recurso da decisão final, até ao dia 22 de Janeiro de 2021, ao que acresceriam 3 dias úteis, mediante o pagamento de multa processual.
Ora, decorre do disposto no n.º 1 do artigo n.º 6.º-B da Lei n.º 4-B/2021 [a qual estabelece um regime de suspensão de prazos processuais e procedimentais decorrente das medidas adotadas no âmbito da pandemia da doença COVID-19], alterando a Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março que “São suspensas todas as diligências e todos os prazos para a prática de atos processuais, procedimentais e administrativos que devam ser praticados no âmbito dos processos e procedimentos que corram termos nos tribunais judiciais, tribunais administrativos e fiscais, Tribunal Constitucional e entidades que junto dele funcionem, Tribunal de Contas e demais órgãos jurisdicionais, tribunais arbitrais, Ministério Público, julgados de paz, entidades de resolução alternativa de litígios e órgãos de execução fiscal, sem prejuízo do disposto nos números seguintes.”
Temos assim que, a regra geral é o da suspensão de todos os prazos processuais, que devam ser praticados no âmbito dos processos que correm termos nos tribunais judiciais (cfr. art.º 6.º-B, n.º 1), contudo, tal regra geral da suspensão, só se aplica aos prazos processuais (e aos processos) que não sejam excecionados nos termos dos números seguintes, sendo que, uma dessas exceções é precisamente, a não suspensão, em determinados casos, como o prazo para a interposição de recurso – cfr. Artigo 6.º-B, n.º 5, als. a) a d).
Daí que, se tenha plasmado no 5 al. d) do artigo 6.º-B, que “O disposto no n.º 1 não obsta: d) “A que seja proferida decisão final nos processos e procedimentos em relação aos quais o tribunal e demais entidades referidas no n.º 1 entendam não ser necessária a realização de novas diligências, caso em que não se suspendem os prazos para interposição de recurso, arguição de nulidades ou requerimento da retificação ou reforma da decisão.”
Ademais, prevê do artigo 4.º da Lei n.º 4-B/2021, de 01-02 que “O disposto nos artigos 6.º-B a 6.º-D da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, produz efeitos a 22 de janeiro de 2021, sem prejuízo das diligências judiciais e atos processuais entretanto realizados e praticados.”
Com efeito, consideramos que, o segmento final do art. 4º da cit. Lei 4-B/2021 [(…) sem prejuízo das diligências judiciais e atos processuais entretanto realizados e praticados.] não tem como âmbito temporal o intervalo entre os dias 22.01.2021 (data retroativa da produção dos efeitos jurídicos da norma) e 02.02.2021 (data da entrada em vigor do diploma – cfr. respetivo artigo 5.º).
Outrossim, cremos que, da interpretação do artigo 4.º da Lei n.º 4-B/2021, de 01-02, com o disposto no artigo 6.º-B, n.º 5, al. d), resulta claramente (interpretação teleológica da norma) que foi intenção do legislador fomentar, como forma de “mitigar os efeitos genéricos da suspensão”, a tramitação nos tribunais superiores dos processos (cfr. 6.º-B, n.º 5, als. a), d), n.º 7, da Lei n.º 1-A/2020, de 19-03, na redação dada pela Lei n.º 4-B/2021, de 01-02), atento que, em ambas as situações os referidos actos (recursos) podem ser praticados e tramitados através de plataformas informáticas, sem que tal implique maior “mobilidade” ou aumento do número de “contactos sociais” nos tribunais – (cfr. Exposição de Motivos na Proposta de Lei nº 70/XIX).
Por outro lado, do teor literal da norma, (interpretação literal) também não resulta uma declaração expressa do legislador, nem no sentido de apenas haver suspensão (contada desde 22.01.2021) dos prazos que ainda estavam em curso à data (2.02.2021) da entrada em vigor da lei nova, nem no sentido de a suspensão abranger também os prazos que findaram entre 22.01.2021 e 2.02.2021.
Pelo exposto, entendemos que, não se mostram suspensos os prazos para interposição de recurso, em relação às decisões finais, quer sejam proferidas antes, ou após, o dia 22/01/2021.
***** Vejamos:
Em 06 de Abril de 2021, mediante requerimento, veio o arguido interpor recurso da sentença proferida nestes autos.
Em 10 de Dezembro de 2020, procedeu-se à leitura da sentença, sendo a mesma depositada na secretaria no mesmo dia.
Dispõe o artigo 411.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Penal que: “O prazo para interposição do recurso é de 30 dias e conta-se: (…) b) Tratando-se de sentença, do respectivo depósito na secretaria”,
Conforme resulta do compulso integral dos autos, a sentença proferida foi depositada em 10/12/2020, sendo, pois, a partir de tal data que se conta o prazo legalmente concedido aos sujeitos processuais para interposição de recurso.
Nestes termos, conclui-se, pois, que o recurso apresentando pelo arguido desrespeitou o prazo legalmente concedido para o efeito, sendo intempestivo.
Pelo exposto, ao abrigo do disposto no artigo 414.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, decide-se não admitir o recurso interposto pelo arguido”.

II - Cumpre apreciar e decidir
A matéria de facto a atender é a que resulta do relato supra, sendo de relevar a seguinte:
(i) em 10-12-2020, procedeu-se à leitura da sentença, na presença do arguido, aqui reclamante, e respetivo mandatário, tendo na mesma data (a sentença) sido depositada na secretaria do tribunal;
(ii) em 06-04-2021, o arguido, aqui reclamante interpôs recurso da sentença, que, com fundamento em extemporaneidade, não foi admitido.

Ora, tendo-se no dia 10-12-2021 procedido à leitura da sentença, na presença do arguido e respetivo defensor, tendo também nessa data sido depositada a sentença, por força do estatuído no n.º 1 do artigo 411.º do Código de Processo Penal, o prazo de 30 dias de interposição de recurso conta-se a partir de tal data, o que significa que se iniciou no dia 11-12-2020 [atento o que estatui a alínea b) do artigo 279.º do Código Civil] e tinha o seu termo em 22-01-2021 (considerando que de acordo com o artigo 138.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, ex vi do artigo 104.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, e artigo 28.º da Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto – LOSJ –, entre os dia 22 de dezembro de 2020 e 3 de janeiro de 2021, por serem férias judiciais, o prazo processual esteve suspenso).
Esta conclusão não é objeto de discordância, tendo em conta a reclamação em apreço.
Porém, com vista à resolução da questão haverá que atender ao regime legal aplicável decorrente da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, no aditamento introduzido pela Lei n.º 4-B/2021, de 1 de fevereiro.
Como é consabido, esta última lei – com entrada em vigor em 2 de fevereiro de 2021, mas com produção de efeitos ao anterior dia 22 de janeiro do mesmo ano, quanto aos artigos 6.º-B a 6.º-D, sem prejuízo das diligências judiciais e atos processuais entretanto praticados (artigo 4.º) – veio estabelecer um regime de suspensão de prazos processuais e procedimentais decorrentes das medidas adotadas no âmbito da pandemia da doença COVID-19, alterando aquela lei.
Para o caso importa convocar os artigos 6.º-B da lei.
Sob a epígrafe “Prazos e diligências”, estabelece o artigo 6.º-B, na parte que ora releva:
1 – São suspensas todas as diligências e todos os prazos para a prática de atos processuais, procedimentais e administrativos que devam ser praticados no âmbito dos processos e procedimentos que corram termos nos tribunais judiciais, tribunais administrativos e fiscais, Tribunal Constitucional e entidades que junto dele funcionem, Tribunal de Contas e demais órgãos jurisdicionais, tribunais arbitrais, Ministério Público, julgados de paz, entidades de resolução alternativa de litígios e órgãos de execução fiscal, sem prejuízo do disposto nos números seguintes.
(…)
5 – O disposto no n.º 1 não obsta:
(…)
d) A que seja proferida decisão final nos processos e procedimentos em relação aos quais o tribunal e demais entidades referidas no n.º 1 entendam não ser necessária a realização de novas diligências, caso em que não se suspendem os prazos para interposição de recurso, arguição de nulidades ou requerimento da retificação ou reforma da decisão”.
Assim, decorre do citado n.º 1, como regra geral, a suspensão dos prazos para a prática de atos processuais, procedimentais e administrativos, “que devam ser praticados no âmbito dos processos e procedimentos que corram termos nos tribunais judiciais”.
Porém, nos restantes números do artigo consagram-se vários desvios/exceções a tal regra, sendo uma delas a já citada alínea d) do n.º 5.
Argumenta o reclamante que a referida alínea ao afirmar que [a] suspensão não obsta a que seja proferida decisão final nos processos”, pressupõe que ainda não tenham sido proferidas anteriormente [], e que relativamente aos prazos de recursos a interpor de decisões proferidas antes da vigência da lei, estas caem no âmbito de aplicação do artigo 6.º-B, n.º 1”.
Diferente foi o entendimento da 1.ª instância, que concluiu, ao fim e ao resto e tendo por base uma interpretação teleológica, que o âmbito de aplicação da citada alínea d) abarca as situações em que foi proferida a decisão final no processo nos termos aí previstos, quer tal decisão tenha sido proferida depois da entrada em vigor da lei, quer o tenha sido antes da entrada em vigor da lei.
Vejamos.

Como é consabido, em matéria de interpretação das leis, o artigo 9.º do Código Civil consagra os princípios a que deve obedecer o intérprete ao empreender essa tarefa: assim, haverá que atender ao enunciado linguístico da norma, por representar o ponto de partida da atividade interpretativa, na medida em que esta deve procurar reconstituir, a partir dele, o pensamento legislativo (n.º 1) – tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada –, sendo que o texto da norma exerce também a função de um limite, porquanto não pode ser considerado entre os seus possíveis sentidos aquele pensamento que não tenha na sua letra um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso (n.º 2 do mesmo artigo).
Para a correta fixação do sentido e alcance da norma, há-de, igualmente, presumir-se que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (n.º 3 do artigo 9.º).
No ensinamento de Baptista Machado (Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, 16.ª Reimpressão, Almedina, 2007, pág. 189), o texto da norma «exerce uma terceira função: a de dar um mais forte apoio àquela das interpretações possíveis que melhor condiga com o significado natural e correcto das expressões utilizadas»; por isso, «só quando razões ponderosas, baseadas noutros subsídios interpretativos, conduzem à conclusão de que não é o sentido mais natural e directo da letra que deve ser acolhido, deve o intérprete preteri-lo».
Visando a aplicação prática do direito, «a interpretação jurídica é de sua natureza essencialmente teleológica», por isso que o jurista «há-de ter sempre diante dos olhos o fim da lei, o resultado que quer alcançar na sua actuação prática; a lei é um ordenamento de protecção que entende satisfazer certas necessidades, e deve interpretar-se no sentido que melhor corresponda a estas necessidades, e portanto em toda a plenitude que assegure tal tutela» (Francisco Ferrara, Interpretação e Aplicação das Leis, traduzido por Manuel de Andrade e publicado com o Ensaio Sobre a Teoria da Interpretação das Leis, do último autor, 3.ª Edição, Colecção Stvdivm, Arménio Amado – Editor, Sucessor, pág. 130).
Ora, reconhece-se que, como de modo assertivo se escreveu no despacho que não admitiu o recurso, (…) da interpretação do artigo 4.º da Lei n.º 4-B/2021, de 01-02, com o disposto no artigo 6.º-B, n.º 5, al. d), resulta claramente (interpretação teleológica da norma) que foi intenção do legislador fomentar, como forma de “mitigar os efeitos genéricos da suspensão”, a tramitação nos tribunais superiores dos processos (cfr. 6.º-B, n.º 5, als. a), d), n.º 7, da Lei n.º 1-A/2020, de 19-03, na redação dada pela Lei n.º 4-B/2021, de 01-02), atento que, em ambas as situações os referidos actos (recursos) podem ser praticados e tramitados através de plataformas informáticas, sem que tal implique maior “mobilidade” ou aumento do número de “contactos sociais” nos tribunais – (cfr. Exposição de Motivos na Proposta de Lei nº 70/XIX)”.
Contudo, pergunta-se: a previsão da citada alínea d) do n.º 5 do artigo 6.º-B, abrange as situações em que foi proferida decisão final nos processos, independentemente da data, ou seja, quer tenha sido antes ou após a entrada em vigor da lei?
Embora numa solução não isenta de dúvidas, a nossa resposta é negativa.
Com efeito, a lei é bem expressiva ao aludir [a] que seja proferida decisão final”, o que nos remete para a prolação das decisões após a vigência da lei: se o legislador pretendesse abarcar todas as decisões proferidas, quer antes quer após a entrada em vigor da lei, afigura-se que teria utilizado um diferente enunciado linguístico.
Por isso, sendo de presumir que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil), a alínea d) ao aludir [a] que seja proferida decisão final”, só pode reportar-se a decisão final proferida após a entrada em vigor da lei.
Por consequência, tendo a sentença sido proferida em 10-12-2020, portanto, antes da entrada em vigor da lei, não lhe pode ser aplicável o regime previsto na alínea em referência.
E não se detetando que lhe seja aplicável qualquer outra exceção prevista no artigo 6.º-B, a situação só pode subsumir-se à regra geral prevista no n.º 1 do mesmo artigo, ou seja, suspensão do prazo para a prática de atos processuais que devam ser praticados no âmbito de processos que correm termos nos tribunais judiciais.
Nesta conformidade, considerando (i) que o prazo de interposição de recurso terminava em 22-01-2021, (ii) que por força do que dispõe o artigo 4.º da Lei n.º 4-B/2021, de 1 de fevereiro, o artigo 6.º-B produz efeitos a 22 de janeiro, (iii) e que de acordo com o disposto no artigo 6.º da Lei n.º 13-B/2021, de 5 de abril – que entrou em vigor no dia seguinte –, foi revogado o artigo 6.º-B, o que significa que cessou o regime de suspensão do prazo processual em 06-04-2021, mostra-se tempestivo o recurso interposto nesta data.

Deve, pois, deve dar-se provimento à reclamação e ordenar-se o recebimento do recurso, sendo certo, todavia, que esta decisão não vincula o tribunal de recurso (n.º 4 do artigo 405.º do Código de Processo Penal).

III. Decisão
Face ao exposto, defere-se a reclamação apresentada pelo arguido (…) e, em consequência, ordena-se o recebimento do recurso por ele interposto em 06-04-2021.
Sem tributação.
Notifique.

3 de maio de 2021
João Luís Nunes
(Presidente do Tribunal da Relação de Évora)