Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2161/19.6T8PTM.E1
Relator: MATA RIBEIRO
Descritores: SUSPENSÃO DE PRAZO
ESTADO DE EMERGÊNCIA
DECISÃO FINAL
Data do Acordão: 05/13/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
O fim visado pelo legislador ao editar a norma contida na al. d) do n.º 5 do art.º 6-B) foi o de impedir que operasse a suspensão nos prazos de recurso, quando se esteja perante decisão final proferida no processo, independentemente do momento em que se dê a prolação da sentença.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM OS JUÍZES DA 1ª SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA
A… instaurou ação declarativa, com processo comum, contra seu marido J…, a qual corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Faro (Juízo Central Cível de Portimão – Juiz 3) peticionando alteração do regime matrimonial de bens, com a inerente convolação de comunhão de adquiridos para o regime de separação de bens, alegando dissipação do património e má administração dos bens do casal.
Citado, o réu não contestou, tendo, em 21/12/2020, sido proferido saneador sentença que julgou improcedente a ação e absolveu o réu do pedido, decisão que foi notificada ao patrono da autora em 29/12/2020, passando a correr desde 04/01/2021 o prazo de 30 dias para eventual interposição de recurso.
Em 12/02/2021 a secção de processos respondendo a um pedido de informação do Juízo de Execução de Silves referente ao processo 1482/18.0T8SLV, remeteu cópia do saneador sentença que havia sido proferido informando que “os presentes autos transitaram em julgado em 03/02/2021”.
Tendo conhecimento desta informação, a autora, em 15/02/2021, invocando encontrar-se o prazo de recurso suspenso desde 21/01/2021, por força do disposto no n.º 1 do artº 6º- B da Lei 4-B/2021 de 01/02, veio requerer que fosse feita a correção da informação transmitida, pela secção, ao processo executivo no sentido de consignar que ainda não havia trânsito em julgado do saneador sentença.
Por despacho de 22/02/2021 foi apreciado o requerimento da autora, sendo reconhecido o trânsito em julgado nos termos em que a secção havia referido, concluindo-se que “nada havia a apontar à conduta da secretaria no que respeita à certificação do trânsito em julgado”
*
Irresignada, veio a autora interpor recurso deste despacho e apresentar as respetivas alegações, formulando as seguintes conclusões que se transcrevem:
“I - O presente recurso tem como objeto toda a matéria de direito do despacho com a refª., 119233524.
II - O tribunal a quo considerou que o prazo para interpor recurso caducou a 02-02-2021.
III - Tal convicção assentou na interpretação que fez do artigo 6.º-B, nº 5/d da lei 1-A/2020 de 13 de março, com as posteriores alterações, em especial a feita pela lei nº 4-B/2021 de 1 de fevereiro.
IV - Acontece que, da leitura do normativo 6.º-B, nº 5/d da lei 1-A/2020 de 13 de março resulta que os prazos de interposição de recurso não se suspendem somente nas decisões proferidas após a produção de efeitos desta lei (art.4.º da Lei nº 4-B/2021 de 1 de fevereiro), não abrangendo as decisões proferidas antes do dia 22-01-2021.
V - Assim, o preceito legal previsto no art.6.º-B, nº 1 e 5/d da lei nº 1-A/2020 foi incorretamente interpretado pelo douto tribunal.
VI - O tribunal a quo ao fazer uma interpretação errada do normativo legal violou o princípio da segurança jurídica e proteção da confiança, constitucionalmente previsto, cuja finalidade é proteger prioritariamente as espectativas legitimas que nascem no cidadão que confiou na postura e no vinculo criado através das normas prescritas no ordenamento jurídico, previsto no art.2.º da CRP.
VII O douto tribunal violou o art.6.º-B, nº 1 e 5/d da lei nº 4-B/2021 de 1 de fevereiro.
VIII O douto tribunal violou o art.12.º do Código Civil.
IX O douto tribunal violou o art.9.º do Código Civil.
X O douto tribunal violou o art.8.º, nº 2 do Código Civil.
XI- O douto tribunal violou o art.637.º do Código de Processo Civil.
XII E violou em consequência das violações anteriores o art.20.º da CRP.
Apreciando e decidindo

O objeto do recurso encontra-se delimitado pelas conclusões das respetivas alegações, sem prejuízo das questões cujo conhecimento é oficioso (artºs. 635º n.º 4, 639º n.º 1 e 608º n.º 2 ex vi do art.º 663º n.º 2 todos do CPC).
Assim, tendo em atenção as conclusões apresentadas pela apelante, a questão nuclear em apreciação consiste em saber se o prazo de interposição de recurso que se encontrava a correr foi, ou não, suspenso por força da aplicação da Lei n.º 1-A/2020 na redação que foi introduzida pela Lei n.º 4-B/2021 de 01/02, em especial com o aditamento do artº 6º B.
Para apreciação da questão a factualidade a ter em conta é a que já foi referida no relatório, pelo que nos dispensamos, de novo, de a reproduzir.

Conhecendo da questão
A apelante defende que no tribunal recorrido se fez uma má interpretação do artº 6º- B n.º 1 e n.º 5 al. d) da Lei 1-A/2020, disposição que foi aditada pela Lei 4-B/2021 de 01/02, ao considerar que, no caso, o prazo de recurso não foi suspenso, o que originou que concluísse pelo operar, em 03/02/2021, do trânsito em julgado da sentença.
No preceito legal em causa (artº 6º-B, epigrafado de Prazos e diligências) dispõe-se:
1 - São suspensas todas as diligências e todos os prazos processuais, procedimentais e administrativos que devam ser praticados no âmbito dos processos e procedimentos que corram termos nos tribunais judiciais, tribunais administrativos e fiscais, Tribunal Constitucional e entidades que junto dele funcionem, Tribunal de Contas e demais órgãos jurisdicionais, tribunais arbitrais, Ministério Público, julgados de paz, entidades de resolução alternativa de litígios e órgãos de execução fiscal, sem prejuízo do disposto nos números seguintes.
(…)
5 - O disposto no n.º 1 não obsta:
a) À tramitação nos tribunais superiores de processos não urgentes, sem prejuízo do cumprimento do disposto na alínea c) quando estiver em causa a realização de atos presenciais;
b) À tramitação de processos não urgentes, nomeadamente pelas secretarias judiciais;
c) À prática de atos e à realização de diligências não urgentes quando todas as partes o aceitem e declarem expressamente ter condições para assegurar a sua prática através das plataformas informáticas que possibilitam a sua realização por via eletrónica ou através de meios de comunicação à distância adequados, designadamente teleconferência, videochamada ou outro equivalente;
d) A que seja proferida decisão final nos processos e procedimentos em relação aos quais o tribunal e demais entidades referidas no n.º 1 entendam não ser necessária a realização de novas diligências, caso em que não se suspendem os prazos para interposição de recurso, arguição de nulidades ou requerimento da retificação ou reforma da decisão.
(…)
Este preceito legal teve origem na Proposta de Lei n.º 70/XIV que em face do agravamento da situação pandémica provocada pela Covid-19 em Portugal, surgiu como medida excecional de caráter urgente no âmbito do desenvolvimento da atividade judicial e administrativa, e à semelhança do sucedido no primeiro semestre de 2020, suspendeu a generalidade dos prazos processuais e procedimentais, mas mitigando tal suspensão, tal como se diz na exposição dos motivos de modo a garantir, mesmo no que respeita aos processos não urgentes “a tramitação daqueles que se apresentem como indispensáveis estabelecendo-se uma série de exceções que permitem mitigar os efeitos genéricos da suspensão”, assegurando a realização de todos os atos que razoavelmente possam ter lugar, sendo de notar que a segunda parte da al. d) do n.º 5 do aludido artº 6º - B foi transposta na sua redação da proposta de alteração à proposta de Lei n.º 70/XIV, alteração que foi apresentada pelo Grupo Parlamentar do Partido Socialista.
Este Grupo Parlamentar, pela palavra do deputado Pedro Delgado Alves, salientava a “necessidade imperiosa de tentar provocar o mínimo de dano ao funcionamento da justiça, procurando acautelar o funcionamento tão normal quanto possível do sistema judiciário e garantir os princípios fundamentais que o norteiam, tendo em conta, naturalmente, as muitas condicionantes a que todos estamos vinculados” reconhecendo ser necessário ter em conta um conjunto de exceções à suspensão dos prazos e diligências “para se poderem praticar aqueles atos que são indispensáveis: os tribunais superiores poderem continuar a tramitar por via eletrónica; a prática de atos por via remota quando há condições e acordo das partes para que se assegure que, nas circunstâncias em que todos estão de acordo, ela pode prosseguir; assegurar que as decisões finais podem ser proferidas”.
Também o grupo parlamentar do PSD, pela palavra da deputada Mónica Quintela, defendeu que não obstante a situação epidemiológica não poderia haver uma paralisação da tramitação processual considerando “fundamental para a realização da justiça, designadamente para a recuperação de pendências, na vertente económica, que determinados atos que não careçam da presença dos intervenientes possam ser praticados. Podem ser proferidas sentenças e interpostos os competentes recursos e os tribunais superiores podem continuar a trabalhar, minimizando os prejuízos causados pela pandemia. O que norteou a proposta do PSD foi o compromisso entre a salvaguarda da saúde dos cidadãos e dos demais intervenientes processuais, por um lado, e a possibilidade da prática de atos que permitam o funcionamento possível do sistema judicial, mitigando os graves efeitos que a paralisação, necessariamente, acarreta”.
Por sua vez, na sua intervenção final no debate, o Secretário de Estado da Justiça salientou que eram de acolher as contribuições resultantes das diversas propostas de alteração apresentados pelas diversas bancadas parlamentares (o que, efetivamente, pelo teor das respetivas votações se constata que em grande maioria veio a acontecer) e na impossibilidade de referir todas referiu expressamente que “a proposta para que não se suspendam os prazos de interposição de recurso, de arguição de nulidades ou de requerimento de retificação nos casos em que seja preferida a decisão final nos tribunais.”
Da análise que fazemos do regime inicial da suspensão dos prazos no âmbito da pandemia, que vigorou no primeiro semestre de 2020, com o regime que foi instituído pela Lei n.º 4-B/2021, resulta que no âmbito deste último regime, sem pôr em causa a regras da segurança das pessoas, pretendeu-se, na mediada do possível, que a máquina do judiciário, continuasse a tramitar e julgar os processos, constituindo, assim, uma das diferenças concretas entre os dois regimes o facto de proferida sentença em processos não urgentes pelos tribunais de 1.ª instância, os prazos para a prática dos atos subsequentes não se suspenderem, devendo os recursos ser interpostos nos prazos legalmente fixados (de 15 ou 30 dias consoante os casos).
Resulta que existiu preocupação do legislador em não parar totalmente a tramitação dos processos e procedimentos não urgentes, aceitando que possa avançar quando não implique contactos presenciais com sujeitos ou participantes processuais, o que é o caso da interposição de recursos que é efetuada por via eletrónica.
Da simples leitura do disposto na al. d) do n.º 5 do artº 6º B parece resultar que das decisões finais a proferir não se suspendem os prazos de interposição do recurso. Mas na interpretação da lei não devemos ater-nos apenas ao elemento literal tal como resulta do art. 9º, nº 1 do CC Civil devendo antes ser efetuada de modo a partir dos textos reconstituir o pensamento legislativo, tendo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.
Porém, o facto de o artigo afirmar que a reconstituição do pensamento legislativo deve fazer-se a partir dos textos não significa, de modo nenhum, que o intérprete não possa ou não deva socorrer-se de outros elementos para esse efeito, nomeadamente do espírito da lei – a “mens legis”, sendo de ter em conta, mesmo no caso de estarmos perante normas excecionais estas apesar de não comportarem aplicação analógica, admitem sempre interpretação extensiva (cfr. artº 11º do CC).
Embora o texto da norma pareça apontar para futuro, a ratio legis a ter em consideração visa limitar ao essencial a presença física nas diligências e permitir que, desde que haja decisão final, o processo possa prosseguir os seus termos até tal decisão se tornar definitiva, sendo que nos recursos, quer as decisões tenham sido proferidas antes ou depois da entrada em vigor da norma, a sua interposição que é efetuada via eletrónica, não implica presença física de qualquer pessoa ou interveniente processual no tribunal, pelo que nessa medida, não há justificação para distinção entre decisões anteriores ou posteriores à entrada em vigor da lei.
Acresce que, se na vigência da legislação mais restritiva em que a generalidade dos prazos estão suspensos, das decisões que no âmbito da mesma vierem a ser proferidas, quanto a elas, não se suspendem os prazos de interposição de recurso, não faz sentido, até por maioria de razão, que das decisões já proferidas nos processos em que a legislação até era menos restritiva se faça operar a suspensão do prazo para interposição do recurso, que se encontrava em curso, por tal conduzir a situações de manifesta desigualdade ao deixar paralisadas de produção de efeitos as decisões mais antigas, permitindo-se que decisões mais recentes consigam alcançar tal desiderato em virtude da inexistência de barreiras à contagem de prazos à tramitação e julgamento dos recursos.
Entendemos assim, que o fim visado pelo legislador ao editar a norma contida na al. d) do n.º 5 do artº 6-B) foi o de impedir que operasse a suspensão nos prazos de recurso, quando se esteja perante decisão final proferida no processo, independentemente do momento em que se desse a prolação da mesma, por ser essa a interpretação que se deve dar ao texto por ser mais consentânea e correspondente quer ao pensamento legislativo quer à razão e espírito da lei.
Por isso, em nossa opinião, também, não há que censurar a apreciação que o Jugador a quo fez da al. d) do n.º 5 do artº 6º - B da Lei 1-A/2020 aditado pela Lei 4-B/2021, nos termos que passamos a reproduzir:
«Este preceito pode, para uma maior clareza de leitura, ser dividido em duas partes: a que se refere à não suspensão dos prazos para que o Tribunal profira decisão final nos autos - ao contrário do que acontecia em Março, em que até os prazos para prolação de sentenças/decisões finais ficaram, por determinação legal, suspensos - a significar que os prazos para prolação de decisão final não se encontram suspensos - quer, relativamente a prazos já em curso à data da entrada em vigor da Lei e à retroação de efeitos, quer relativamente a processos cuja conclusão para prolação de decisão final seja apresentada posteriormente; a segunda respeitante aos atos a praticar pelas partes, neste caso e para o que nos interessa, o ato de recorrer. O prazo para interposição de recurso não se suspende, quer em relação a sentenças já proferidas e notificadas às partes, quer em relação a sentenças já proferidas e ainda não notificadas às partes, quer em relação a sentenças proferidas após a entrada em vigor do preceito em análise.
Não se olvide que o que se pretende evitar com a suspensão dos prazos é a deslocação de pessoas, a aglomeração de pessoas em espaços fechados. Mais, pretendeu-se (como resulta das palavras do Sr. Secretário de Estado Adjunto da Justiça) salvaguardar, dentro do possível, o funcionamento da justiça, desde que não seja posta em causa a saúde pública e a segurança. E estas últimas - entendeu-se - não são afastadas quando está em causa o ato de recorrer. Este não apresenta um maior risco para a saúde pública se for praticado em relação a sentença já proferida em comparação com a prática do ato em sentenças a proferir em data posterior à entrada em vigor da Lei (e, neste caso, à retroação de efeitos).
Outra solução não parece poder resultar da norma inscrita no artigo 9.º do Código Civil: “1. A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstruir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo me conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada”. Significa, pois, que o intérprete não deve bastar-se com o elemento gramatical, mas procurar, igualmente, os elementos sistemático, histórico e atualista.
Na verdade, são situações iguais que teriam, face à interpretação restritiva que é levada a efeito pela parte requerente, um tratamento diferente, não julgando que tenha sido esse o sentido e o alcance que o legislador pretendeu consagrar».
Do que se deixou dito temos de concluir que irrelevam, assim, as conclusões da recorrente, não se mostrando violadas as normas cuja violação foi invocada, sendo de julgar improcedente o recurso e de confirmar a decisão recorrida.
DECISÂO
Pelo exposto, decide-se julgar improcedente a apelação e, consequentemente, confirmar a decisão recorrida.
Não são devidas custas nesta instância recursiva (a apelante goza de proteção jurídica na modalidade de dispensa de pagamento de taxa de justiça e encargos - cfr. artºs 10º n.º 1, 13º n.º 1 a 3 e 16º n.º 1 al. a) da Lei 34/2004 de 29/07).
Évora, 13 de maio de 2021
_________________________________________ Mata Ribeiro
Maria da Graça Araújo
José António Penetra Lúcio
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