Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP000 | ||
Relator: | JORGE MARTINS RIBEIRO | ||
Descritores: | DOAÇÃO DOAÇÃO PARA CASAMENTO DOAÇÃO A FAVOR DOS CÔNJUGES CASAMENTO DIVÓRCIO | ||
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Nº do Documento: | RP202310092216/21.7T8PRD.P1 | ||
Data do Acordão: | 10/09/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | REVOGADA | ||
Indicações Eventuais: | 5ª SECÇÃO | ||
Área Temática: | . | ||
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Sumário: | I – Não se pode confundir uma doação para casamento, necessariamente anterior a este e cuja única forma legal é fazê-la constar da convenção antenupcial, com uma doação a favor dos cônjuges, por ocorrida durante o casamento. II – O casamento não pode ser visto, hoje em dia, como uma fonte de enriquecimento, pelo que o divórcio implica a perda de todos os benefícios recebidos em função dele, da consideração do estado de casado. III – Nos termos do disposto no art.º 1791.º do Código Civil, os efeitos jurídicos de uma doação efetuada por terceiro (pais de um dos ex-cônjuges) aos cônjuges durante o casamento, em consideração, portanto, do estado de casado, caducam em caso de divórcio, pois uma doação integra o conceito de benefícios recebidos durante o casamento. | ||
Reclamações: | |||
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Decisão Texto Integral: | APELAÇÃO N.º 2216/21.7T8PRD. P1 SUMÁRIO (art.º 663.º, n.º 7, do C.P.C.): ……………………………… ……………………………… ……………………………… - Acordam os Juízes na 3.ª Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto, sendoRelator: Jorge Martins Ribeiro; 1.º Adjunto: Teresa Fonseca e 2.º Adjunto: Miguel Baldaia de Morais. ACÓRDÃO I – RELATÓRIO Nos presentes autos de ação de inventário especial para separação de meações decorrente de divórcio é requerente e cabeça de casal AA, divorciado, carteiro, portador do cartão de cidadão n.º ... e de contribuinte n.º ..., residente na Rua .., n.º ..., ... ..., Penafiel, e requerida BB, divorciada, portadora do cartão de cidadão n.º ... e de contribuinte n.º ..., residente na Rua ..., n.º ..., ... Lousada. Procedemos agora a uma síntese[1] do processado destinada a facilitar a compreensão do objeto do presente recurso: - Aos 20/10/2021 o recorrente e cabeça de casal apresentou a relação de bens, sendo que na então verba n.º 32 indicou o bem benfeitorias, a edificação de uma casa, pelo extinto casal, numa parcela de terreno que havia sido doada pelos pais dele. - No dia 03/12/2021 a requerida reclamou, dizendo, entre o mais, que não existe uma benfeitoria, mas sim um bem imóvel, ou seja, terreno e casa nele construída.- Aos 07/02/2022 foi proferida a seguinte decisão (na parte que para aqui releva), objeto deste recurso:“ii Reclamação quanto ao bem imóvel identificado nos autos e objeto de doação formalizada por escritura de 24.04.2015, no qual foi identificada a casa de morada de família do casal. O cabeça de casal sustenta que é bem próprio porque a doação foi efetuada, pelos seus pais ao casal e enquanto subsistisse o casamento, vindo ainda arguir a caducidade da doação. A interessada reivindica a comunhão deste bem por ter sido donatária na referida escritura. Decidindo: As doações para casamento cuja noção consta do artigo 1753º nº1 do cc são as feitas “a um dos esposados ou a ambos em vista do seu casamento” Conforme dispõe o artigo 1756º nº 1 estas doações só podem ser feitas na convenção antenupcial” e decorre do nº 2 desta norma, quanto às doações em vida a inaplicabilidade do regime espacial aplicável às doações para casamento. Daqui se retira a conclusão que o regime da caducidade das doações impresso no artigo 1760º bem assim como todas as demais regras especiais previstas naquela secção do código civil, não são convocáveis aos casos em que a doação a ambos os cônjuges, se formalizou após o casamento. Por outro lado como decorre da leitura da escritura de doação junta ao processo a mesma não está sujeita a qualquer ónus, limitação, encargo ou condição. Daí que, a mesma é valida e relevante juridicamente produzindo os seus efeitos mesmo após o divórcio, tudo como determina o artigo 940º e seguintes e nomeadamente o artigo 954º alinea a) do código civil Procede consequentemente este segmento da reclamação de bens. Determina-se pois ao cabeça de casal que proceda ao aditamento do referido bem imóvel com a consequente eliminação do relacionamento da benfeitoria. Fica assim prejudicada toda a controvérsia entre os interessados quanto ao valor das benfeitorias”. - Inconformado com tal decisão, aos 23/02/20222 o requerente e cabeça de casal interpôs o presente recurso, constando das alegações as seguintes conclusões:“1. A douta decisão do incidente de reclamação à relação de bens, viola os princípios da confiança e da segurança jurídica. 2. Foram interpretadas e aplicadas normas, que no entender do recorrente foram erradamente aplicadas e interpretadas, devendo-se impor outra para a boa decisão da causa, e, por conseguinte, diversa da proferida. 3. A casa que compõe o prédio relacionado sob a verba 32, da primeira relação de bens, foi construída a expensas comuns do casal numa parcela de terreno urbano, com a área 896 m2; 4. Esta parcela de terreno urbano foi doada pelos pais do recorrente ao mesmo e à recorrida, na constância do matrimónio, por escritura pública de doação de 24/04/2015; 5. Contrariamente à pretensão da recorrida, o aqui recorrente, defende pela sua não inclusão na relação de bens, e que conste como benfeitorias levadas a cabo na parcela de terreno. 6. Esta parcela de terreno foi doada aos ex-cônjuges pelos pais do recorrente, em vista do estado de casados dos mesmos, e, por isso, caducou (ipso iure) relativamente à recorrida, por força do divórcio decretado, nos termos dos art.º 944º n.º 1 e art.º 1791 n.º 1 do Cód. Civil. 7. No entanto, o tribunal a quo, vem impor que o bem imóvel deverá ser aditado à relação de bens, e, por concomitantemente, ser eliminado o relacionamento como benfeitoria. 8. Na doação da parcela de terreno referida, celebrada pela escritura de 24-04-2015, junta aos autos, os donatários são identificados pelos seus nomes próprios e pela condição de filho e nora dos doadores. 9. “A doação efetuada a um dos cônjuges após a celebração do casamento, para integrar a comunhão conjugal da donatária, recai no âmbito das liberalidades previstas no art.º 1791 do CC. 10. Tal doação caduca por força da dissolução do casamento, por força do art.º 1791º, revertendo automaticamente ao património do doador”. 11. O art.1791º, nº 1 do CC, na redação da Lei nº 61/2008, de 21/10, aplica-se aos casamentos celebrados anteriores à data da sua entrada em vigor. 12. A perda de benefício em virtude do divórcio opera ipso iure, independentemente de qualquer revogação por parte do autor da liberalidade.” 13. “A doação feita ao réu e mulher, pelo pai desta, ora autor, em consideração do estado de casados um com o outro, (os quais se vieram posteriormente a divorciar), está abrangida pela sanção prevista no n.º 1 do art.º 1791º do Código Civil.” 14. No regime atual a estipulação da Lei, art.º 1791º n.º 1, é clara e impõe que cada cônjuge perde todos os benefícios que haja a receber do outro cônjuge ou de terceiro, em vista do casamento ou em consideração do estado de casado, quer a estipulação seja anterior, quer posterior à celebração do casamento. 15. E a posição da doutrina e da jurisprudência vai no sentido de que a doação entre esposados ou entre casados, ou a doação de terceiros aos esposados, ou outra liberalidade feita em consideração do estado de casado do beneficiário, como será o caso de uma doação feita a ambos os cônjuges por familiares de um deles, caduca ipso iure com o divórcio. 16. A doação foi realizada pelos progenitores do recorrente, no estado de casados, como expressamente se diz na escritura de doação na identificação dos outorgantes e da qualidade em que intervêm – V. “seu filho e nora”. 17. É declarado expressamente a condição de parentesco que une doadores e donatários, pressuposto da doação realizada, i.é., os pais do recorrente doam o imóvel ao seu filho e nora, e a este último apenas pela condição familiar que assume. 18. A recorrida não pode, por isso, beneficiar da parte do imóvel que lhe foi doada na pendência do seu casamento pelos sogros, devendo a parte que lhe corresponde (metade – art.º 944º n.º 1 do CC) retornar à esfera jurídica dos doadores. 19. As benfeitorias levadas a cabo pelos ex-cônjuges na referida parcela de terreno, estão hoje incorporadas em bem que apenas em parte é bem próprio do recorrente, metade, posto que na outra parte, a metade restante, é bem dos pais do recorrente integrando o património destes. 20. Não pode a recorrida, com o divórcio, enriquecer para além da justa partilha daquilo que se adquiriu com o esforço conjunto durante o casamento. 21. Daí que o que deve ser levado à partilha dos bens comuns do casal é não o bem imóvel (prédio urbano), composto pela parcela de terreno e pela casa nela edificada, mas apenas esta, como benfeitoria. 22. O Recorrente pugna pela alteração da decisão por outra, que reflita a verdade, quer jurídica, quer material, considera que a decisão violou os as referidas normas e princípios, devendo-se impor outras de aplicação obrigatória para a boa decisão da causa, e, por conseguinte, diversa da proferida”. - No dia 16/03/2022 a requerida apresentou as suas contra-alegações, dizendo, entre o mais (omitindo-se também os considerandos sobre a factualidade subjacente aos acórdãos invocados pelo recorrente), o seguinte:“Caso os donatários não quisessem que a doação beneficiasse definitivamente a donatária/recorrida, sempre poderiam ter feito a doação apenas ao filho, situação que acautelaria a eventualidade de um futuro divórcio e permitiria que a parcela de terreno em causa fosse um bem próprio deste. Contrariamente, ao que pretende, agora, o recorrente, a vontade tanto de doadores, como de donatários foi, pura e simplesmente que a doação fosse feita a ambos, tanto assim é que por conta de tal decisão, a donatária/recorrida liquidou uma avultada quantia (2.400,00€), para liquidação do Imposto do Selo, ao contrário do donatário/recorrente, que se encontrava isento mercê da sua condição de descendente dos donatários. Da escritura de doação não consta que a mesma é feita à donatária apenas pela condição de familiar que assume, como alega o recorrente, sendo igualmente falsa a alegação de que “a doação foi feita na pendência do casamento dos ex-cônjuges e tendo em vista a condição de filho e nora dos doadores de cada um deles e logo em consideração do estado de casados de ambos”, Tratando-se, sim de uma doação normal, feita à luz dos contratos em geral previstos nos artigos 940º e seguintes do código Civil, e não uma doação para casamento, como pretende fazer crer o recorrente, jamais podendo ser retirada a conclusão pretendida, de que da escritura em causa resulta que a doação foi feita em vista do estado de casados dos donatários. Para suportar a sua pretensão o recorrente socorre-se do vertido no douto Acordão do TRC de 12 Julho de 2017, Acordão que versa com factualidade distinta da doação em causa nos presentes [autos]. Mas, ainda que assim se entendesse, ou seja, que a doação da parcela de terreno foi feita para casamento, a aplicação do artigo 1791º do C.C, nunca conduziria à caducidade da doação, como pretende o recorrente, mas sim à perda do benefício recebido pela recorrida/donatária, ou seja, à perda do valor que na escritura de doação foi atribuido pelos doadores à parcela de terreno doada. Tanto mais que a parcela de terreno objeto da doação já não existe, por ter sido absorvida pela construção da casa de habitação, de um andar, composta de sala, 3 quartos, 3 casas de banho, cozinha, hall, corredor e garagem, sita no lugar ..., Rua ..., freguesia ..., concelho de Penafiel. Efetivamente, o prédio objeto da doação tratava-se de uma parcela de terreno, com aptidão construtiva, ora, para o direito civil os prédios ou são rústicos ou urbanos e nos termos do artigo 204º, n.º 1, al. a) do Código Civil, são prédios rústicos uma parte delimitada do solo e as construções nele existentes que não tenham autonomia económica e são prédio urbanos qualquer edifício incorporado no solo, com os terrenos que lhe sirvam de logradouro. Sendo certo, que para efeitos fiscais os prédios deixam de ser classificados como rústicos e tributados como urbanos quando passam a ser classificados como terrenos para construção, como é o caso do terreno doado, onde foi edificada uma moradia. Assim, ainda que se considerasse que a doação da parcela de terreno tenha sido feita tendo em conta esse estado de casado e por causa do mesmo, o que não se aceita, desde logo por falta de qualquer prova nesse sentido, o terreno doado, que para efeitos cíveis era um prédio rústico já não existe, transformou-se, devido à edificação de uma moradia, num prédio urbano, o que originou a que o prédio doado tenha perdido a sua autonomia, pelo que não poderá ser ordenada a favor dos doadores a reversão do bem doado, como também defende e pretende o recorrente. Ora, ainda que a doação efetuada à recorrente tivesse caducado, como pretende o recorrente, o que face aos motivos supra expostos não se aceita, jamais poderia a partilha ser feita nos moldes pretendidos pelo recorrente, pois a partir do momento em que foi doada uma parcela de terreno na qual foi construída uma habitação, o prédio doado (parcela de terreno) perdeu a sua autonomia, não sendo possível ordenar a reversão do bem doado, mas apenas o pagamento da quantia monetária de valor equivalente. Assim, salvo o devido respeito, não assiste qualquer razão ao Recorrente porquanto, não resulta dos aos qualquer prova da qual se retire que a doação da parcela de terreno feita ao recorrente e à recorrida tenha caducado, por ter sido feita tendo em vista o estado de casados dos mesmos, recaindo no âmbito das liberalidades previstas no artigo 1791º, n.º 1 do C.C, com a consequente perda dos benefícios recebidos, em vista do casamento. Mas, ainda que assim se entendesse, jamais as consequências jurídicas poderiam ser as defendidas pelo recorrente, concretamente: A não inclusão do prédio urbano constante do ponto III da reclamação apresentada pela recorrida; A inclusão na relação de bens da edificação como uma benfeitoria; O retorno à esfera jurídica dos doadores da parte do imóvel que foi doado à recorrida”. - No dia 24/03/2022 foi proferido o despacho a admitir o recurso fixando-lhe a natureza, modo de subida e efeito, tendo posteriormente sido proferido outro a determinar a subida dos autos a este Tribunal da Relação.- O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente, nos termos dos artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1 e n.º 2, do C.P.C., não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso (como expresso nos artigos 608.º, n.º 2, in fine, aplicável ex vi do art.º 663, n.º 2, in fine, do C.P.C.).Também está vedado a este Tribunal conhecer de questões novas (que não tenham sido objeto de apreciação na decisão recorrida), uma vez que os recursos são meros meios de impugnação de questões prévias judiciais, destinando-se, por natureza, à sua reapreciação e consequente confirmação, revogação ou anulação. - II – FUNDAMENTAÇÃOOs factos provados relevantes para a decisão (não obstante estar em causa apenas matéria de Direito, e do disposto no art.º 663.º, n.º 6, do C.P.C., por facilidade de exposição serão agora enumerados): 1 – No dia 26/05/2007 o requerente e a requerida celebraram casamento católico entre si, sem convenção antenupcial, tendo assim casado no regime de bens supletivo comunhão de adquiridos. 2 – No dia 24/04/2015 foi efetuado contrato de doação, por documento particular autenticado, em que intervieram como doadores os pais do recorrente, CC e esposa, DD, e como donatários o recorrente AA e então esposa, a aqui requerida BB, todos mais bem identificados no documento junto aos autos com o requerimento inicial sob o n.º 3. 3 – No contrato referido em 2, os doadores doaram o seguinte bem aos donatários: “pelos primeiros outorgantes foi dito que doam aos segundos outorgantes, respetivamente seu filho e nora, por conta da quota disponível com dispensa de colação, a parcela de terreno para construção sita na Rua ..., freguesia ..., e anteriormente na extinta freguesia ..., do concelho de Penafiel, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o número ..., barra ..., com inscrição de aquisição a favor dos doadores em AP... 1980/11/04, inscrito na matriz sob o artigo provisório 93 (ou ...), a que atribuem o valor de vinte e quatro mil quatrocentos e oitenta euros. Os donatários declararam no próprio ato aceitarem a doação. 4 – Por sentença de 14/09/2020 foram homologados os acordos para divórcio por mútuo consentimento entre o recorrente e a requerida. 5 – O bem referido em 3 corresponde à verba n.º 53 da nova relação de bens. 6 – No dia 08/12/2022 as partes chegaram a acordo de partilha quanto às demais verbas do ativo, tal como alteraram e aprovaram as do passivo e decidiram quem ficaria responsável pelo seu pagamento. Não há factos não provados relevantes para esta decisão. Fundamentação da matéria de facto provada: Os factos estão provados em conformidade ao que ambas as partes, respetivamente, alegaram e na medida em que estão assentes em documentos juntos aos autos e não impugnados (bem como nos termos dos próprios autos). O Direito aplicável aos factos: A matéria do recurso é apenas de Direito. Doação é “o contrato pelo qual uma pessoa, por espírito de liberalidade e à custa do seu património, dispõe gratuitamente de uma coisa ou de um direito, ou assume uma obrigação, em benefício do outro contraente”, como definido no art.º 940.º, n.º 1, do Código Civil, C.C. Como resulta do disposto no art.º 944.º, n.º 1, do C.C., a “doação feita a várias pessoas conjuntamente considera-se feita por partes iguais, sem que haja direito de acrescer entre os donatários, salvo se o doador houver declarado o contrário. Quanto à validade da doação, segundo o art.º 945.º, n.º 1, do C.C., a “proposta de doação caduca, se não for aceita em vida do doador”, dispondo o art.º 947.º,n.º 1, do mesmo Código que “[s]em prejuízo do disposto em lei especial, a doação de coisas imóveis só é válida se for celebrada por escritura pública ou por documento particular autenticado”. Revertendo aos factos, temos então que no caso os pais do recorrente doaram-lhe e à esposa, ou seja, os dois intervieram como donatários, a parcela de terreno onde viriam a construir uma casa, sendo que a doação foi feita em partes iguais por facto diferente não ter sido declarado, foi devidamente aceita no ato e este obedeceu à forma legal. A doação foi feita sem qualquer cláusula de reversão (por referência ao disposto no art.º 960.º do C.C.) e sem qualquer cláusula modal (possibilidade prevista no art.º 963.º, n.º 1, do C.C.) Ora, posto isto, como um dos efeitos essenciais da doação é, de acordo com o disposto no art.º 954.º, al. a), do C.C., “[a] transmissão da propriedade da coisa ou da titularidade do direito”, temos que os donatários adquiriram a parcela em partes iguais. Como é evidente, os doadores poderiam ter doado o bem apenas ao filho, ainda que, na identificação deste, constasse que era casado com a requerida. Mas não foi isso que os pais do recorrente declararam, pois as declarações de vontade deles, como consta do documento, foi doarem ao filho e à então nora, doação que estes aceitaram (nesses precisos termos). Se assim não tivesse sido (se tivessem doado apenas ao filho), a questão nem se colocaria: a parcela em disputa seria inequivocamente um bem próprio do recorrente, nos termos do disposto no art.º 1722.º, n.º 1, al. b), do C.C., e, como tal, impassível de ser disputado em sede de partilha. Perante o decurso do tempo, tendo em conta que os donatários se divorciaram, é natural que o donatário, filho e recorrente (e doadores…), se sintam arrependidos, vendo-se agora a discutir judicialmente, e já em sede recursiva, qual a solução jurídica para a presente situação... O recorrente invoca o instituto das doações para casamento mas, como é evidente, tal não é, sequer, invocável, pois que estas são as que ocorrem antes do casamento, não durante este, sendo a forma legal de tal tipo de doação a de constar da convenção antenupcial, como resulta do disposto no artigos 1753.º a 1756.º do C.C.; ora, assim sendo, fica precludida a aplicabilidade da invocada caducidade de uma doação para casamento, nos casos previstos no art.º 1760.º do C.C. Igualmente invoca o recorrente o instituto jurídico da doação entre casados (artigos 1761.º a 1766.º do C.C.), mas novamente sem razão, pois que, quer ele, quer a requerida, intervieram no contrato (negócio jurídico bilateral) de doação na mesma qualidade, de donatários, sendo os doadores terceiros, os pais do donatário, pelo que falecem os argumentos tecidos em torno do disposto no art.º 1766.º do C.C., que prevê os casos de caducidade das doações entre casados. Já assim não será no tocante às conclusões de recurso respeitantes ao disposto no art.º 1791.º do C.C. – inserido na subsecção IV, atinente aos efeitos do divórcio; vejamos então. A norma contempla duas hipóteses. A primeira, como dissemos já, não está em causa, referente à perda de um benefício conferido em vista do casamento – estipulação anterior ao casamento. Resta assim a análise da segunda hipótese, ou seja, interpolando a norma temos então que “[c]ada cônjuge perde todos os benefícios [recebidos] de [terceiro] em consideração do estado de [casado]”; posto de outra maneira, saber se por força do divórcio ocorrido entre os donatários a requerida donatária perde o benefício, a liberalidade, da (com)propriedade sobre a parcela de terreno que foi doada ao então casal pelos pais do marido. Adiantando já a decisão, decretado o divórcio perde todos os benefícios recebidos em consideração do estado de casada. Esta questão tem sido frequentemente tratada na Doutrina e na Jurisprudência, estando, a título exemplificativo, Aquela devidamente enunciada nos arestos que citaremos de seguida, dando-A por reproduzida. Assim, no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra n.º 2884/16.1T8CBR.C1, de 12/07/2017 (entre outros, citado nas alegações de recurso) relatado por Maria João Areias, podemos ler que “[f]alando em benefícios, a lei quer referir-se às liberalidades. O artigo 1791º abrange pois as doações entre esposados, entre vivos ou por morte, feitas em vista do futuro casamento, e as doações feitas por terceiro em vista do casamento; as doações entre cônjuges, as doações feitas a ambos os cônjuges por familiar de um deles em consideração do estado de casado do beneficiário[2] e as deixas testamentárias, em forma de instituição de herdeiro ou de legado, com que um cônjuge tenha beneficiado o outro cônjuge. Como afirmam Francisco Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, comentando o artigo 1791º, a Lei nº 61/2008 optou pela caducidade dos benefícios atribuídos a ambos os cônjuges, que parte da ideia de que o casamento não deve ser um meio de adquirir património e que acolhe o princípio geral de que a cessação da causa dos efeitos jurídicos deve fazer cessar esses efeitos”[3]. Noutro acórdão do mesmo Tribunal, cinco meses anterior, com o n.º 2201/15.8T8CTB.C1, datado de 21/02/2017, relatado por António Magalhães (ainda que reportando-se a uma situação diferente, de doação entre cônjuges), foi decidido o seguinte: “[c]remos que a resposta radica no art. 1791, nº 1 do CC, na redacção que lhe foi introduzida pela Lei nº 61/2008: «[c]ada cônjuge perde todos os benefícios recebidos ou que haja de receber do outro cônjuge ou de terceiros, em vista do casamento ou em consideração do estado de casado, quer a estipulação seja anterior quer posterior à celebração do casamento». E perde todos os benefícios apenas com a mera ocorrência do divórcio (não carecendo agora o cônjuge de ser declarado, como antes, único e principal culpado)”[4]. No mesmo sentido, para o que aqui releva (doação de um imóvel a ambos os cônjuges na pendência de um casamento que, entretanto, foi dissolvido por divórcio), veja-se ainda o acórdão deste Tribunal da Relação, mais recente que os dois antes citados, n.º 3067/19.4T8PRD.P1, de 12/10/2021, relatado por Anabela Miranda. Também no Supremo Tribunal de Justiça no acórdão n.º 1808/13.2TBMTS-A.P1.S1, de 03/03/2016, relatado por Pires da Rosa, foi entendido que “por isso Eliana Gersão [Eliana Gersão, Estudos em Homenagem ao Professor Figueiredo Dias, Coimbra, Coimbra Editora, vol. IV, p. 344][5], debruçando-se sobre os efeitos patrimoniais do divórcio, sustenta que « subjaz à nova formulação dos artigos 1790º e 1791º do CCivil o reforço do movimento de «despatrimonialização» do casamento, ou seja, da ideia de que o casamento não é um meio eticamente legítimo de adquirir património… Hoje os casamentos tornaram-se contingentes, mesmo os de pessoas mais velhas, pelo que não faz sentido manter normas que podiam ter sentido outrora, mas hoje são vistas como fonte de locupletamento de um dos cônjuges à custa do outro». Como escreve por seu lado Rita Lobo Xavier, em Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor José Lebre de Freitas, Coimbra Editora, vol. I, pág. 528, a ideia hoje subjacente à imposição inscrita nos arts.1790º do CCivil – e pode, pensamos nós, dizer-se o mesmo para o art.1791º – «já não é a de sancionar o cônjuge culpado mas, como se pode ler, na «exposição de motivos» do projecto inicial, a de evitar que o divórcio «se torne um modo de adquirir bens, para além da justa partilha do que se adquiriu pelo esforço comum na constância do matrimónio». [Daí] que os benefícios recebidos ou a receber em vista do casamento ou em consideração do estado de casado tenham de ser tratados com a lei os trata agora. [A] esta luz é inteiramente justificado que, terminado o casamento em vista do qual alguém – o outro cônjuge ou terceiro – beneficiou ou iria beneficiar o outro cônjuge, este perca esse benefício que só o seu casamento determinou. A fisionomia deste especial benefício (ainda que doação) tem a valoração que lhe é dada pelo fim em vista do qual foi concedido o fim, destruída fica a razão do benefício. O que a lei quer agora é que o cônjuge não beneficie de um casamento que afinal se gorou. [Mas] a doação é um benefício, e não pode deixa de aplicar-se a qualquer benefício o que a nova lei, a nova luz, impôs no art.1791º do CCivil”[6]. Ou seja, e em suma, a doação também à donatária aqui recorrida foi feita pela única razão de ser casada com o filho dos doadores, pelo que os efeitos da mesma caducam com o divórcio, perdendo o benefício de que a mesma consiste, o qual foi concedido em consideração do estado de casada; como consta do art.º 1791.º do C.C., “[c]ada cônjuge perde todos os benefícios [recebidos] de [terceiro] em consideração do estado de [casado]”. Pelo exposto, procedem as conclusões do recorrente (as atinentes ao âmbito do disposto no art.º 1791.º do C.C., improcedendo as demais), revogando-se a decisão recorrida e, como tal, devem ser oportunamente relacionadas as benfeitorias feitas na parcela de terreno, não o imóvel. III – DECISÃO Pelos motivos expostos, e nos termos das normas invocadas, acordam os juízes destes autos no Tribunal da Relação do Porto em julgar procedente o recurso de apelação interposto pelo recorrente cabeça de casal, e consequentemente, em revogar a decisão recorrida. Custas da apelação pela requerida. Porto, 09/10/2023. - Jorge Martins RibeiroEste acórdão é assinado eletronicamente pelos respetivos: Teresa Fonseca Miguel Baldaia de Morais ______________ [1] Mais detalhada do que, tendo em conta o objeto do recurso, seria indispensável… [2] Itálico nosso. [3] Doutrina citada no original. O acórdão está acessível em http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/5d6f2a891a262315802581ad0048d22d?OpenDocument [25/09/2023]. [4] Aspas no original. O acórdão está acessível em http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/8fe0e606d8f56b22802576c0005637dc/0a3a3b3df14bac51802580dd004f999f?OpenDocument [26/09/2023] [5] Interpolação nossa. [6] Interpolação e itálico nosso; aspas no original. O acórdão está acessível em http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/5d4349130baacd3180257f6c0035518f?OpenDocument [26/09/2023] |