Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1808/13.2TBMTS-A.P1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: PIRES DA ROSA
Descritores: EFEITOS DO DIVÓRCIO
DOAÇÃO PARA CASAMENTO
APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO
CÔNJUGE PRINCIPAL CULPADO
PRINCÍPIO DA IGUALDADE
CADUCIDADE
CASAMENTO
DIVÓRCIO
CULPA
Data do Acordão: 03/03/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - LEIS, SUA INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO - DIREITO DA FAMÍLIA / CASAMENTO / DOAÇÕES ENTRE CASADOS / DIVÓRCIO / EFEITOS DO DIVÓRCIO.
Doutrina:
- Eliana Gersão, in Estudos em Homenagem ao Professor Figueiredo Dias, Coimbra Editora, volume IV, pp. 344, 347.
- Rita Lobo Xavier, in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor José Lebre de Freitas, Coimbra Editora, vol. I, p. 528; Recentes Alterações Ao Regime Jurídico do Divórcio E Das Responsabilidades Parentais, Almedina, p. 36.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 12.º, 1760.º, N.º 1, AL. B), E 1766.º, N.º 1, AL. C), 1790.º, 1791.º, N.º1 (NA REDACÇÃO ANTERIOR À LEI N.º 61/2008, DE 31-10).
Sumário :
I - O art. 1791.º, n.º 1, do CC (na redacção anterior à Lei n.º 61/2008, de 31-10) dispunha, quanto aos efeitos do divórcio, que o cônjuge declarado único e principal culpado perdia todos os benefícios recebidos ou que houvesse de receber do outro cônjuge ou de terceiro, em vista do casamento ou em consideração do estado de casado, quer a estipulação fosse anterior quer posterior à celebração do casamento – o que não poderia dizer com a nova lei uma vez que o novo regime jurídico do divórcio elimina a ideia do divórcio litigioso, fundado na culpa de um dos cônjuges, para centrar o divórcio não consentido apenas na ruptura da sociedade conjugal e daí que o citado normativo preveja agora que cada cônjuge perde todos os mencionados benefícios.

II - A Lei n.º 61/2008, de 31-10 contém uma norma transitória que dispõe que o regime nela previsto não se aplica aos processos pendentes em tribunal; ou seja – a contrario – este regime vai aplicar-se aos processos que vierem a pender. O futuro é o futuro – o que vier a pender; o passado é o passado, o que inteiramente já passou ou o que está a passar, o que está pendente.

III - Podendo os dois regimes coabitar – o presente e o passado – a aplicação no tempo do novo regime jurídico do divórcio terá de encontrar-se no que se dispõe no art. 12.º do CC, sendo que a nova lei, dispondo directamente sobre a situação de casado, abstraindo do casamento que fez nascer esse estado, abrange as relações já constituídas que subsistam à data da sua entrada em vigor (art. 12.º, n.º 2, 2.ª parte, do CC).

IV - O casamento e o divórcio têm hoje (depois da Lei n.º 61/2008) uma nova luz e é essa nova luz que se deve derramar sobre todos os casados que ponham fim ao seu casamento pelo divórcio depois dela – sobre todos os casados e não apenas sobre os que casaram depois da entrada em vigor da mencionada Lei.

V - Não há nesta solução qualquer violação do princípio constitucional da igualdade já que respeitá-lo é tratar por igual todos aqueles que hoje estejam casados e hoje ou amanhã vejam o seu casamento extinto pelo divórcio – o divórcio há-de ter os efeitos patrimoniais que hoje a lei acha eticamente sustentáveis (e legalizou) e daí que os benefícios recebidos ou a receber em vista do casamento ou em consideração do estado de casado tenham de ser tratados como a lei os trata agora e não como eram pensados no tempo em que foram concedidos.

VI - Em consequência, a uma doação feita em vista do casamento - consumado em 02-09-2006 (antes, portanto, da Lei n.º 61/2008), mas dissolvido por divórcio em 13-12-2012 (já depois dessa mesma lei) - é aplicável o regime decorrente da lei nova já que o que a lei quer agora é que o cônjuge não beneficie de um casamento que afinal se gorou.

VII - Independentemente de não ter sido alterada a redação da parte final dos arts. 1760.º, n.º 1, al. b), e 1766.º, n.º 1, al. c), do CC, o certo é que, sendo a doação um benefício, não pode deixar de se lhe aplicar o que a nova lei – a nova luz – impôs no art. 1791.º do CC, assistindo, portanto, aos autores da doação o direito de pedir o reconhecimento da caducidade desta.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:




AA e mulher BB

instauraram acção declarativa de condenação, no regime processual experimental, acção que recebeu na 2ª secção cível – J6, da Instância Central da Póvoa do Varzim, da comarca do Porto, o nº1808/13.2TBMTS, contra

CC

pedindo a condenação deste a pagar-lhe a quantia de 51 600,00 euros, nos termos constantes da petição inicial, certificada aqui a fls. 21 verso e segs.

Assim, em resumo:

o réu foi casado com a única filha dos autores, casamento que terminou pelo divórcio em 13 de Dezembro de 2012;

o relacionamento entre ambos durou cerca de seis anos e oito meses, entre Agosto de 2005, em que decidiram casar, até Abril de 2012, data em que se separaram de facto;

e em vista do casamento e durante o casamento, com obrigação de restituição, os autores entregaram aos réus a quantia total de 103 200,00 euros;

reclamam por isso, e dada a dissolução do casamento pelo divórcio, reclamam do réu, seu ex-genro, metade dessa quantia, ou seja, 51 600,00 euros.

O réu contestou nos termos de fls. 38 e segs.

E os autores, invocando o disposto no art. 38º do CPCivil em vigor antes da Lei nº41/2013, de 26 de Junho, vieram dizer ( fls.43 verso) que «aceitam taxativa e efectivamente os factos alegados pelo réu nos seus nºs12º, 25º e 37º da contestação, de forma a que tais factos não mais possam ser rectificados ou alterados, valendo como confissão judicial e tidos como incluídos na sua causa de pedir, a qual é ampliada».

Em despacho (certificado a fls. 19 verso), datado de 20 de Maio de 2014, decidiu-se:

«Atento o disposto no art. 1791º, nº1 do CCivil (de acordo com a redacção introduzida pela Lei nº61/2008, de 31 de Outubro), a alegação contida nos arts.12º, 25º e 37º da contestação constitui confissão judicial (arts.352º e 355º, nº 2, CCivil e 38º do CPCivil e 46º do CPCivil).

Atento exposto, admito a ampliação da causa de pedir, em conformidade com o art. 265º, nº1 do CPCivil ».

E em audiência prévia de 18 de Novembro de 2014 (aqui a fls.128) «foram os mandatários das partes confrontados com a intenção do tribunal em conhecer de imediato do pedido, no que diz respeito às quantias de 75 500,00 euros e de 17 000,00 euros, prosseguindo os autos apenas para apreciação do pedido restante».

E, de seguida, na mesma data, foi proferido despacho saneador-sentença (aqui de fls. 129 a 135), da mesma data (18 de Novembro de 2014) que, começando por afirmar «poder conhecer de imediato de parte do pedido formulado, no que diz respeito a metade das quantias de 75 500,00 euros e de 17 000,00 euros»,

concluiu por julgar desde já parcialmente procedente a acção, condenando-se o réu CC a restituir aos autores AA e mulher BB a quantia de 37 750,00 euros, acrescida de juros de mora a contabilizar desde a citação, à taxa de juro civil de 4% até integral pagamento, aplicando-se qualquer alteração que venha a ser introduzida à taxa de juro civil enquanto aquele se não verificar, e improcedente quanto ao pedido de condenação do réu no pagamento da quantia de ½ de 17 000,00 euros, absolvendo nessa parte o réu do pedido formulado. E determinando que «os autos prosseguem apenas para apreciação dos pedidos relativamente a metade das quantias de 7 700,00 euros e 3 000,00 euros».

Os autos prosseguiram e nesta parte, a parte sobrante, a acção veio a ser julgada improcedente por sentença aqui certificada de fls. 114 a 116, datada de 26 de Maio de 2015, já transitada (ver fls. 113).

Entretanto, inconformado com o despacho saneador-sentença na parte em que o condenou a restituir aos autores a quantia de  37 750,00 euros e juros, o autor interpôs recurso de apelação (ver aqui fls. 2 verso), admitido para subir de imediato e em separado (fls. 47).

O Tribunal da Relação do Porto, em acórdão aqui de fls. 59 a 77, datado de 9 de Junho de 2015, julgou a apelação procedente, revogando-se a decisão recorrida e absolvendo-se o réu do pedido.

É agora a vez de se não conformarem os autores/apelados, que interpõem (fls. 82) recurso de revista, onde em síntese CONCLUEM:

a – ilegal e ilegitimamente o acórdão recorrido conclui que “é de aplicar o art.1791º do CCivil ( na redacção anterior à que lhe foi dada pela Lei nº61/2008, de 31 de Outubro) ao dever de restituição de benefícios concedidos aos cônjuges por terceiros, em caso de divórcio, quando a entrega desses benefícios e o casamento em vista dos mesmos tenha ocorrido na vigência daquela lei“;

b – o regime legal do divórcio e seus efeitos, aprovado pela Lei nº61/2008, de 31 de Outubro, a qual nada dispõe sobre o âmbito temporal de duração das situações consubstanciadoras do divórcio, deve ser aplicado imediatamente a todas as situações ou direitos existentes, constituídos ou a constituir, que se mantenham no futuro;

c – não colhe minimamente a salvaguarda dos interesses da parte (no caso, o réu) que tinha a protecção de outra lei, na altura em que lhe foram concedidos pelos autores os benefícios que agora lhe querem retirar;

d – a Lei nº61/2008 disciplinou de forma diversa o conteúdo do regime do divórcio e seus efeitos, abstraindo do respectivo facto gerador, com isso visando o legislador, em conformidade com o estipulado no art.12º, nº2, do CCivil, que tal novo regime abranja as próprias relações já constituídas, que subsistam à data da sua entrada em vigor;

e – o que propositadamente é feito, concretamente no que toca ao art.1791º do CCivil, para acabar com os “golpes de baú”, fazendo com que ambos os cônjuges (e não somente o cônjuge único ou principal culpado) percam os benefícios que haviam recebido de terceiros com vista ao casamento, uma vez cessado este, de modo a igualizar os seus interesses e direitos;

f – é juridicamente impertinente, e até deslocada da realidade jurídica estabelecida pela Lei nº61/2008, a insistência no acórdão em crise de que a tese dos autores só seria possível se tivessem recorrido ao divórcio litigioso, com uma declaração de culpa do réu;

g – desde 2008 que  inexiste sustentação legal para um tribunal poder declarar a culpa de um dos cônjuges seja em processos de divórcio seja em processos de responsabilidade civil entre cônjuges, estando mesmo os tribunais legalmente impedidos de o fazer, tudo na senda do acórdão proferido no proc. nº 819/09.7TMPRT.P1.S1, de 9 de Fevereiro de 2012.

Contra – alegando a fls. 92 defende o réu/apelante o bem fundado do acórdão da Relação.

Cumpridos os vistos, há que decidir.

FACTOS:

1 – os autores são pais de DD, que casou com o réu em 2 de Setembro de 2006;

Este casamento foi dissolvido por divórcio por mútuo consentimento em 13 de Dezembro de 2012;

3 – para aquisição de um imóvel T3+1 e com vista ao casamento do réu com a filha dos autores estes dispuseram, à custa do seu património, e gratuitamente a favor do réu e da filha, a quantia de 75 500,00 euros;

4 – em 16 de Novembro de 2007, os autores doaram e entregaram à filha e ao réu o veículo Peugeot HDI 307, de matrícula …-…-UR.


~~


Neste, como em qualquer recurso, são as conclusões da respectiva alegação que fixam o respectivo âmbito e objecto.

O que nos ocupa é então um problema de aplicação da lei no tempo.

Na verdade, o art.1791º, nº1 do CCivil, na redacção anterior à Lei nº61/2008, de 31 de 31 de Outubro, em vigor desde 30 de Novembro desse mesmo ano, dispunha – quanto aos efeitos do divórcio – que o cônjuge declarado único ou principal culpado perde todos os benefícios recebidos ou que haja de receber do outro cônjuge ou de terceiro, em vista do casamento ou em consideração do estado de casado, quer a estipulação seja anterior quer posterior à celebração do casamento. Coisa que não poderia, evidentemente, dizer com a nova lei uma vez que o novo regime jurídico do divórcio elimina a ideia do divórcio litigioso, fundado na culpa de um dos cônjuges, para centrar o divórcio não consentido apenas na ruptura da sociedade conjugal.

E por isso dispõe agora o mesmo nº1 do art.1791º - cada cônjuge perde todos os benefícios recebidos ou que haja de receber do outro cônjuge ou de terceiro, em vista do casamento ou em consideração do estado de casado, quer a estipulação seja anterior quer posterior à celebração do casamento.

Os sublinhados são nossos, já se vê.

Ora bem:

os autores/recorrentes AA e BB, para aquisição de um imóvel T3+1 e com vista ao casamento do réu com a filha DD dispuseram, à custa do seu património, e gratuitamente a favor do réu e da filha, a quantia de 75 500,00 euros.

E o casamento consumou-se – o CC e a DD casaram em 2 de Setembro de 2006 (antes, portanto, da lei nº61/2008).

Mas, em 13 de Dezembro de 2012 (já depois dessa mesma lei) consumou-se o seu divórcio … por mútuo consentimento.

Que fazer, então?

A Lei nº 61/2008 contém uma norma transitória que dispõe – o presente regime não se aplica aos processos pendentes em tribunal. Ou seja – a contrario - este regime vai aplicar-se aos processos que vierem a pender. O futuro é o futuro - o que vier a pender; o passado é o passado, o que inteiramente já passou (necessariamente) ou o que está a passar, o que está pendente.

E os dois regimes podem coabitar, o presente e o passado podem coabitar, ainda que o passado seja ainda (também) o que está a passar, o que está pendente.

Assim se concilia a aplicação no tempo do novo regime jurídico do divórcio com o disposto no art. 12º, nº1 do CCivil – a lei só dispõe para o futuro, explicitamente até sem atribuição de qualquer eficácia retroactiva. E no futuro se localizou o divórcio, este divórcio, cujos efeitos cabe regular.

Claro que o divórcio só pode pensar-se para a situação de casado, mas à lei pouco importa o facto, o casamento, do qual nasceu a situação de casado.

Tenha casado quem tenha casado, e como tenha casado, não é já do casamento que a lei fala ou que a lei tem em vista, mas do estado de casado e do divórcio, como fenómeno exactamente extintivo desse estado.

Assim, nos termos da 2ª parte do nº2 do mesmo art.12º, a nova lei – a Lei nº 61/2008 – dispondo directamente sobre a situação de casado, abstraindo do casamento que fez nascer o estado de casado, abrange as relações já constituídas, que subsistam à data da sua entrada em vigor.

Nem o cônjuge que se divorcia – nem, aqui, o réu – pode sentir-se discriminado ou inseguro perante a solução preconizada pela nova lei sobre os efeitos do divórcio: ele está a ser tratado, afinal, em situação de perfeita igualdade com todos os outros que se divorciem depois da lei e sabe, perfeitamente, em que condições vai partir para o divórcio.

Que os que se divorciaram ou pediram o divórcio antes da lei nova, possam ser tratados de outra maneira, não significa qualquer violação do princípio constitucional da igualdade – pois que outra forma haveria de abordar o divórcio se não aquela que estava consagrada na lei ao tempo em que ele ocorreu, ou no tempo em que foi solicitado perante o poder judicial?!

O casamento e o divórcio têm hoje (depois da Lei nº61/2008) uma nova luz e é essa nova luz que se deve derramar sobre todos os casados que ponham fim ao seu casamento pelo divórcio depois dela.

Sobre todos os casados – e não apenas sobre os que casaram depois da entrada em vigor da Lei nº61/2008 - incidirá esta nova luz no caso de divórcio porque a lei assumiu explicitamente «a mudança de paradigma do divórcio – a passagem do “divórcio com base na culpa” para o “divórcio com base na ruptura objectiva “ do casamento - Eliana Gersão, Estudos em Homenagem ao Professor Figueiredo Dias, Coimbra Editora, volume IV, pág. 344.

Por isso Eliana Gersão, no mesmo local a págs. 347, debruçando-se sobre os efeitos patrimoniais do divórcio, sustenta que « subjaz à nova formulação dos artigos 1790º e 1791º do CCivil o reforço do movimento de “despatrimonialização” do casamento, ou seja, da ideia de que o casamento não é um meio eticamente legítimo de adquirir património … Hoje os casamentos tornaram-se contingentes, mesmo os de pessoas mais velhas, pelo que não faz sentido manter normas que podiam ter sentido outrora, mas hoje são vistas como fonte de locupletamento de um dos cônjuges à custa do outro ».

Como escreve por seu lado Rita Lobo Xavier, em Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor José Lebre de Freitas, Coimbra Editora, vol. I, pág. 528, a ideia hoje subjacente à imposição inscrita nos arts.1790º do CCivil - e pode, pensamos nós, dizer-se o mesmo para o art.1791º - « já não é a de sancionar o cônjuge culpado mas, como se pode ler, na “exposição de motivos” do projecto inicial, a de evitar que o divórcio “se torne um modo de adquirir bens, para além da justa partilha do que se adquiriu pelo esforço comum na constância do matrimónio”.

O que importa é que olhemos para o divórcio, hoje, com os olhos de hoje, e esse olhar é o que foi fixado na Lei nº 61/2008. E então respeitar o princípio constitucional da igualdade é tratar por igual todos aqueles que hoje estejam casados e hoje ou a amanhã vejam o seu casamento extinto pelo divórcio. E o divórcio há-de ter os efeitos patrimoniais que hoje a lei acha eticamente sustentáveis (e legalizou).

Daí que os benefícios recebidos ou a receber em vista do casamento ou em consideração do estado de casado tenham de ser tratados com a lei os trata agora e não como eram pensados no tempo em que foram concedidos. Porque há uma dimensão no divórcio, eticamente assumida pela nova lei, que faz sair o benefício da sua natureza intrínseca para impor que ele deva ser tratado à nova luz com a qual se olha o casamento e que faz com tudo o que em vista dele e em consideração dele aconteça ou tenha acontecido cobre uma específica valoração.

A esta luz é inteiramente justificado que, terminado o casamento em vista do qual alguém – o outro cônjuge ou terceiro – beneficiou ou iria beneficiar o outro cônjuge, este perca esse benefício que só o seu casamento determinou.

A fisionomia deste especial benefício (ainda que doação) tem a valoração que lhe é dada pelo fim em vista do qual foi concedido o fim, destruída fica a razão do benefício.

O que a lei quer agora é que o cônjuge não beneficie de um casamento que afinal se gorou. Por mútuo ou sem mútuo consentimento, de qualquer modo por ruptura objectiva da sociedade conjugal.

In casu, os autores deram, dispuseram à custa do seu património,ao “casamento” ( ao casal ) de sua filha DD, para aquisição de um imóvel T3+1, 75 500,00 euros.

E deram-no, à DD e ao réu, porque estes iam casar um com o outro.

Não o teriam, seguramente ao réu, se não fosse esse ansiado casamento; desfeito este – ainda que por mútuo consentimento – a lei quer que o réu não fique com aquilo que, só por causa do casamento, recebeu dos autores.

Dir-se-á que o que houve aqui foi uma doação e que – art. 1760, nº1 do CCivil as doações para casamento caducam ( b ) se ocorrer divórcio ou separação judicial de pessoas e bens por culpa do donatário, se este for considerado único e principal culpado.

É assim. É ainda hoje este o texto do art. 1760º, nº 1, al. b) que a Lei nº 61/2008 não alterou. Como não alterou o disposto no art.1766º, nº1 – a doação entre casados caduca ( c ) ocorrendo divórcio ou separação judicial de pessoas e bens por culpa do donatário, se este for considerado único ou principal culpado.

Mas a doação é um benefício, e não pode deixa de aplicar-se a qualquer benefício o que a nova lei, a nova luz, impôs no art.1791º do CCivil.

De modo que ou se considera que os artigos 1760, nº 1, al. b) e 1766º, nº1, al. c ) dizem menos do que o que podiam dizer - e assim caducam as doações onde se descobrir a culpa ou principal de um dos cônjuges  e também as doações onde essa culpa se não vislumbra, porque são benefícios; ou se considera, como considera Rira Lobo Xavier, em Recentes Alterações Ao Regime Jurídico do Divórcio E Das Responsabilidades Parentais, Almedina, pág. 36, que «por lapso não foi alterada a redacção da parte final destas disposições, que se referia à declaração de culpa do cônjuge no divórcio ou na separação de pessoas e bens, que deve considerar-se revogada».

Os autores podem têm assim o direito de, na invocação do art.1791º, nº1 do CCivil, virem pedir o reconhecimento da caducidade da doação que fizeram ao réu, naturalmente na medida – metade do montante global – em que este foi beneficiado.

O recurso procede, porque a acção procede na parte em que o réu foi condenado em 1ª instância e viu essa decisão ser revogada pelo acórdão recorrido.


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D   E   C   I   S   à  O



Na procedência do recurso, concede-se a revista e revogando-se o acórdão recorrido, repristina-se a sentença de 1ª Instância, condenando-se o réu CC a restituir aos autores AA e mulher BB a quantia de 37 750,00 euros, acrescida de juros de mora a contabilizar desde a citação, à taxa de juro civil de 4% até integral pagamento, aplicando-se qualquer alteração que venha a ser introduzida à taxa de juro civil enquanto aquele se não verificar.

Custas a cargo dos recorridos.

LISBOA, 3 de Março de 2016


Pires da Rosa (Relator)

Maria dos Prazeres Beleza

Salazar Casanova