Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2201/15.8T8CTB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ANTÓNIO MAGALHÃES
Descritores: DOAÇÃO ENTRE CÔNJUGES
CADUCIDADE
DIVÓRCIO
Data do Acordão: 02/21/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE CASTELO BRANCO - C.BRANCO - JC CÍVEL - JUIZ 2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ART. 1776 Nº 1, AL. C) DO CC
Sumário: 1. A norma do art. 1776 nº 1, al. c) do CC deve ser interpretada no sentido de que a doação entre casados caduca sempre em caso de divórcio.

2. Com o trânsito em julgado da sentença que decretou o divórcio, os bens doados à ré reverteram automaticamente ao património do autor doador, sem necessidade de qualquer acto de revogação da doação, não existindo, por conseguinte, qualquer circunstância que possa impedir a restituição dos imóveis ao autor.

3. Porém, o autor terá de promover a anulação do averbamento do cancelamento da doação, feito com fundamento na revogação da doação (que é nula) e efectuar um novo registo de aquisição que tenha por causa a caducidade da doação.

Decisão Texto Integral:  

         Acordam, em conferência, na Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:


*

A... intentou acção contra B... pedindo que: a) seja declarado legítimo e exclusivo proprietário dos imóveis identificados em 3.º e dos bens móveis relacionados em 15.º; b) seja a R. condenada a restituir os citados imóveis e móveis e a reconhecer e respeitar o direito de propriedade do A., abstendo-se da prática de qualquer acto que colida ou afecte esse direito; c) seja a R. condenada a pagar ao A. uma indemnização por danos patrimoniais correspondente ao valor mensal de € 180,00 correspondente à renda que o A. tem de pagar por habitar noutra casa, desde a data da interpelação para a entrega pelo A. até à data da restituição (a liquidar); d) seja a R. condenada a pagar a prestação bancária correspondente ao empréstimo-habitação da fracção identificada pela letra “R” correspondente ao segundo andar esquerdo do prédio urbano sito na Quinta x... ou Av. y... em Alcains, descrito…, até que restitua definitivamente o imóvel ao A.; e) ser a R. condenada a pagar ao A. uma indemnização por danos não patrimoniais nunca inferior a € 1.000,00.

Para tanto, alegou, em síntese, que: A. e R. contraíram casamento civil no dia 27/10/2010; por sentença transitada em julgado no dia 11/10/2011 veio a ser declarada a separação de pessoas e bens do casal e, posteriormente, por sentença transitada em 21/08/2013 a separação veio a ser convertida em divórcio; na constância do matrimónio, o A. doou à R., por contrato celebrado através de documento particular autenticado de 17 de Abril de 2013, uma Fracção autónoma e uma Garagem, doação que foi registada na Conservatória do Registo Predial de Castelo Branco, em 23 de Abril de 2013; a fracção autónoma constituiu casa de morada de família até Agosto de 2013; apesar de já se encontrarem divorciados e de já não fazerem a sua vida em comum, A. e R. acordaram em viver na mesma casa, fazendo vidas independentes, o que sucedeu durante um ano; até ao mês de Agosto de 2014, sempre foi o A. que pagou todas as prestações referentes ao empréstimo bancário contraído para aquisição da habitação, junto do banco K...., e ainda as despesas referentes ao imóvel como água, luz, gás, quotas de condomínio e IMI; após a doação, a R. veio a assumir a dívida contraída junto do Banco K.... como mutuária; sendo que, o A. depositava em numerário, todos os meses, a quantia referente à prestação, na conta da R., para que esta a pudesse pagar; no mês de Agosto de 2014, a R. mudou a fechadura de casa, impedindo o acesso do A., deixando-o sem ter onde dormir e com todos os seus pertencentes lá dentro; sem ter onde dormir, o A. chegou a pernoitar duas noites dentro do carro e outras duas em casa de um amigo, situação que motivou que o A. apresentasse queixa-crime contra a R., pelo que face à conduta por parte da R., o A. decidiu revogar a doação anteriormente feita; o que concretizou mediante outorga de escritura pública de revogação de doação no dia 25 de Setembro de 2015, tendo sido concretizado o registo de aquisição a seu favor (novamente) pela AP. 1502 de 1 de Outubro de 2015, pelo que, a R. mantém a posse indevida da fracção onde habita e da respectiva garagem sem título que a legitime, e o A. tem vindo a ser impedido ilegitimamente de usar e fruir aquilo que lhe pertence; o A. encontra-se impedido, pela R., desde Agosto de 2014, de aceder aos imóveis e todos os seus bens no interior da casa porquanto aquela mudou as fechaduras e não lhe permite o acesso aos mesmos; considerando que os imóveis referidos no art.º 3.º são novamente da sua propriedade, o A. pretende voltar a habitar na casa que lhe pertence, recuperando igualmente todos os seus bens móveis aí constantes e retomar o pagamento das prestações do empréstimo bancário; não possuindo a R. qualquer título que a legitime a continuar a habitar a casa nem tendo a autorização do A. para tal.

Contestou a R, alegando, em síntese, que: como resulta da documentação junta a doação foi efectuada na vigência, entre os cônjuges, da separação de pessoas e bens; e se é verdade que a separação não dissolve o vínculo conjugal, também é verdade que a separação coloca termo às circunstâncias especiais que justificam a suspeição lançada sobre a liberdade do acto do doador e que justificam o regime especial de livre revogabilidade; mais, no que respeita aos bens, o art.º 1795- A do CC estabelece, na sua parte final que, a separação produz os efeitos que produziria a dissolução do casamento; nesta conformidade, tendo a doação sido efectuada em momento em que os cônjuges já se encontravam separados de pessoas e bens, encontrando-se os efeitos patrimoniais do casamento cessados, não pode o Autor lançar mão da livre revogabilidade; pelo que, a doação efectuada terá de recair sob a alçada do regime geral das doações e, consequentemente é a mesma irrevogável.

Em reconvenção pediu o seguinte: a) a presente acção ser julgada improcedente por não provada e consequentemente ser a ré absolvida do pedido; b) ser julgado o pedido reconvencional provado e, em consequência, ser reconhecido o direito de propriedade da ré; c) ser declarada a nulidade da revogação da doação; d) e ser ordenado o cancelamento registral e matricial da inscrição das fracções em nome do autor.

O autor ainda replicou, alegando que; o facto de a doação ter sido realizada aquando os cônjuges já se encontravam separados judicialmente de pessoas e bens. não dissolve o vínculo conjugal patente, ou seja, o estado de casado; e, portanto, sempre será de considerar que a doação realizada pelo A. à R. tem necessariamente de se subsumir a uma doação entre casados e ao regime legal que lhes é aplicável; até porque, a R. bem sabe que a doação realizada se deveu a problemas económicos por parte do A., e foi aconselhada pelo anterior mandatário da R., com o intuito de salvaguardar, temporariamente, o património pessoal que ele detinha, nessa altura; trata-se, assim, de uma doação entre casados que é livremente revogável a qualquer momento e com efeitos retroactivo; todavia, a não entender-se assim, deverá entender-se que a doação caducou com a decretação do divórcio em 21.8.2013, nos termos do art. 1766, al. c) do CC.

Foi proferido despacho saneador e fixados os objecto do litígio e os temas da prova.

Em sede de julgamento, foi efectuada a seguinte transacção:

“1ª. Autor e ré acordam, no que respeita aos bens móveis, que as verbas a que se alude no art.º 6º da contestação são propriedade da ré.

2ª No que respeita aos pedidos efectuados pelo autor nas alíneas c), d) e e) as partes acordam o seguinte:

a) Estabelecem como valor indemnizatório global (a título de indemnização por danos patrimoniais, não patrimoniais, prestações bancárias e rendas) €5.000,00 (cinco mil euros).

b) Este valor apenas será devido pela ré ao autor caso a ré venha a ter vencimento de causa no que respeita à propriedade dos imóveis a que se alude no art.º 3º da P:I., consequentemente e caso seja o autor a ter vencimento de causa não haverá lugar ao pagamento de qualquer indemnização.

3ª  A ré obriga-se, no prazo máximo de 48 (quarenta e oito) horas, a entregar ao autor a chave dos móveis.

III) A referida transacção foi homologada por sentença; “

Após julgamento, foi proferida sentença que concluiu assim:

“ Pelo exposto, decide-se:

 a) julgar totalmente improcedente a presente acção, e, em consequência, absolver a Ré dos pedidos;

b) julgar totalmente procedente a reconvenção e, por consequência, declarando a nulidade do contrato de revogação da doação celebrado em 25.09.2015, declaro, consequentemente, a A, B... , a legítima proprietária dos imóveis descritos na CRP de Castelo Branco sob o n.º (...) 7.

Custas a cargo do A (cfr. art. 527.º, n.º 1 e 2 do Código de Processo Civil).

Registe e notifique.”

Desta sentença interpôs o autor recurso formulando, a final da alegação, as seguintes conclusões:

“I) Na acção proposta pela ora Recorrente o mesmo peticionava contra a Ré, ora Recorrida, o seguinte (…);

II) Em sede de audiência de julgamento, realizada em 13 de Junho de 2016, as partes transigiram parcialmente sobre o objecto do litígio, acordando o seguinte (…);

IV) A causa prosseguiu para apreciação dos restantes pedidos (alíneas a) e b) do petitório da acção e pedido reconvencional), tendo sido, nesta parte, proferida sentença, da qual ora se recorre, datada de 14 de Julho de 2016;

V) Em sede de fundamentação de Direito a Mma. Juiz refere na douta sentença:

” Isto posto, e sem embargo da apreciação da bondade do legislador em tal solução, dúvidas não há que, ao nível patrimonial, na separação judicial de pessoas e bens deixa de existir regime de bens do casamento, tudo se passando como estivessem divorciados. Donde, à doação em causa nos autos é aplicável o regime geral (art.ºs 940.º a 970.º do CC) e não o contemplado para as doações entre casados e previsto nos art.ºs 1761.º a 1766.º do CC. 

Note-se que, o art.º 1794.º do CC manda aplicar à separação judicial de pessoas e bens o disposto no divórcio e não na separação judicial de bens onde prevê como efeitos a imposição do regime matrimonial da separação de bens (art.º 1770.º do CC). E, como já dissemos, no divórcio, os efeitos são os previstos nos art.ºs 1788.º e ss. do CC.

Ora, sendo assim, como nos parece ser, não poderia o A lançar mão, como fez, da revogabilidade da doação, a qual vem prevista no art.º 1765.º do Código Civil, nos termos do qual “1. As doações entre casados podem a todo o tempo ser revogadas pelo doador, sem que lhe seja lícito renunciar a este direito. 2. A faculdade de revogação não se transmite aos herdeiros do doador.” (nosso sublinhado) 

VI) Com base nesta fundamentação, a Mma. Juiz decidiu: “Deste modo, e na conjugação dos art.ºs 280.º e 294.º do CC, o contrato de revogação de doação é nulo por ser contrário à lei, o que se declara. Consequentemente, tal nulidade tem efeitos retroactivos nos termos do art.º 289.º do CC, que, no caso concreto, determina o cancelamento do registo de aquisição da propriedade levado a cabo pelo A através da Ap. 1502 de 01.10.2015 (art.º 13.º do CRP). O que faz com que seja repristinada a inscrição Ap. 423 de 23.04.2013 a favor da aqui Ré.

E, assim sendo, dada a presunção do registo e a prioridade de que a Ré goza e não tendo o A alegado qualquer facto consubstanciador da aquisição dos imóveis por outra via, concluímos que é a Ré a legítima proprietária dos mesmos.” 

VII) É verdade que a doação foi realizada aquando os cônjuges já se encontravam separados judicialmente de pessoas e bens;

VIII) Mas esta circunstância não dissolve o vínculo conjugal patente, ou seja, o estado de casado.

IX) E, portanto, em nosso entender, sempre será de considerar que a doação realizada pelo A., aqui Recorrente, à R. tem necessariamente de se subsumir a uma doação entre casados e ao regime legal que lhes é aplicável.

X) Sendo certo que A. e R. viveram ainda conjugalmente, e no estado de casados, até à decretação do divórcio em Agosto de 2013.

XI) É nosso entendimento, portanto, que, o simples facto de os cônjuges, se encontrarem, à data da doação, separados judicialmente de pessoas e bens, não influi na aplicação ou não do regime previsto no art.º 1765.º do CC pois que, aquilo que foi pretendido pelos intervenientes foi realizar a doação não obstante essa circunstância e mantendo-se no estado de casados, vínculo que poderiam ter desde logo dissolvido e não fizeram;

XII) A Ré, ora Recorrida, e o tribunal a quo, porém, entendem que o facto de os cônjuges já se encontrarem separados judicialmente de pessoas e bens torna a doação irrevogável, uma vez que, no seu entender, e por aplicação do art.º 1795.º-A do Código Civil, aquela produz, quanto aos efeitos patrimoniais, os mesmos que a dissolução do casamento;

XIII) Então se assim é, e porque não podemos negar que a doação foi entre duas pessoas casadas, em que o vínculo conjugal se mantinha, forçosamente teremos de aplicar o disposto no art.º 1766.º alínea c) do Código Civil, isto é, além da livre revogabilidade de que o doador dispõe, sempre será de considerar que com a ocorrência da separação judicial de pessoas e bens ou divórcio dos cônjuges a doação entre casados caduca.

XIV) A letra e espírito do art.º 1766.º, na sua alínea c), do Código Civil não se alterou (erradamente) com a entrada em vigor da Lei n.º 61/2008 de 31 de Outubro que eliminou a ponderação da culpa conjugal no contexto e na decretação do divórcio.

XV) Ora isto faz com que tenhamos de fazer uma leitura restritiva e actualista de tal preceito: 

XVI) Eliminando-se da sua alínea c) a parte final “se este for considerado único ou principal culpado.” – condição avaliada e decretada pelo Tribunal nos termos do art.º 1787.º do CC, revogado expressamente com a entrada em vigor da Lei n.º 61/2008 de 31 de Outubro. 

XVII) Isto porque, a declaração do cônjuge culpado foi, assim, apagada do conteúdo da decisão judicial do divórcio, por revogação expressa do art. 1787.º do CC, retirando-se do plano dos efeitos patrimoniais do divórcio o cunho sancionatório alicerçado na culpa, que impunha a perda dos benefícios recebidos ou a receber, em vista do casamento ou em consideração do estado do casado, em face da conduta e da culpabilidade exclusiva ou principal do beneficiado;

XVIII) O que significa que, tendo sido a doação realizada quando os cônjuges ainda se encontravam casados, a mesma CADUCOU com a decretação do divórcio, isto é, em 21/8/2013;

XIX) Não assiste, pois, razão à Recorrida quando invoca o regime geral de irrevogabilidade das doações previsto no art.º 974.º do Código Civil, porquanto a doação efectuada pelo Recorrente para a Recorrida não se subsume a uma doação entre um doador e qualquer outra pessoa mas sim o seu cônjuge, pelo que sempre será de considerar aplicável o regime da doação entre casados em que estas são revogáveis a qualquer momento e caducam com a decretação do divórcio;

XX) Pelo que, não resta outra solução a não ser a de a revogação da doação realizada pelo Recorrente ser considerada válida e o mesmo considerado legítimo proprietário da fracção em causa.”

Pede, a final, que a sentença seja alterada no sentido de considerar a revogação da doação realizada pelo recorrente válida, declarando-se este como único e exclusivo proprietário do imóvel. 

Respondeu a apelada sustentando a improcedência do recurso.

Cumpre decidir.

A matéria de facto dada como provada, e que se aceita, é a seguinte:

“1. A. e R. contraíram casamento civil no dia 27/10/2010 (art.º 1.º da p.i.).

2. Por decisão transitada em julgado no dia 11/10/2011 veio a ser declarada a separação de pessoas e bens do casal e, posteriormente, por decisão transitada em 21/08/2013 a separação veio a ser convertida em divórcio (art.º 2.º da p.i.).

3. O A. doou à R., por contrato celebrado através de documento particular autenticado de 17 de Abril de 2013, os seguintes imóveis, de que era proprietário: - Fracção autónoma identificada pela letra “R” correspondente ao segundo andar esquerdo do prédio urbano sito na Quinta x... ou Av. y... em Alcains, descrito na Conservatória do Registo Predial de Castelo sob o número (...) 7 e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo matricial (...) 11, com o valor patrimonial tributário de € 60.967,65; - Garagem n.º 9 identificada pela letra “I”, pertencente ao prédio sito na Quinta x... ou Av. y... , em Alcains, descrito na Conservatória do Registo Predial de Castelo sob o número (...) 7 e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo matricial (...) 11, com o valor patrimonial tributário de € 2.852,48 (art.º 3.º da p.i.).

4. A referida doação veio a ser registada na Conservatória do Registo Predial de Castelo Branco, sob a AP. 423 de 23 de Abril de 2013 (art.º 4.º da p.i).

5. A fracção autónoma identificada pela letra “R” constituiu casa de morada de família até Agosto de 2013 (art.º 5.º da p.i.).

6. Após a doação, a R. veio a assumir a dívida contraída junto do Banco K.... como mutuária (art.º 8.º da p.i.).

7. O A. decidiu revogar a doação anteriormente feita mediante outorga de escritura pública de revogação de doação no Cartório da Dra. C... , sito em Castelo Branco, no dia 25 de Setembro de 2015 (arts. 15.º e 16.º da p.i.).

8. Tendo sido concretizado o registo de aquisição a seu favor (novamente) pela AP. 1502 de 1 de Outubro de 2015 (art.º 18.º do pi.).

9. Por acordo homologado por sentença, na audiência final de 13.06.2016, a Ré obrigou-se a entregar ao A as chaves dos imóveis.”

O Direito.

Tem a primeira questão a ver com a validade da revogação da doação feita pelo autor à ré na pendência do casamento, mas depois de separados judicialmente de pessoas e bens: se a doação for considerada como doação entre casados, a revogação será, em princípio, válida, em face do disposto no art. 1765, nº 1 do CC, que estipula: “ as doações entre casados podem a todo o tempo ser revogadas pelo doador, sem que lhe seja lícito renunciar a este direito”; se não o for, então a revogação da doação, que é irrevogável nos termos gerais, será nula e a doação subsistirá.

É certo que o 1795º-A, nº 1 do CC dispõe que “ a separação não dissolve o vínculo conjugal….”, o que significa que, à data da doação, autor e ré eram ainda casados.

Sucede, no entanto, que subjacente ao art. 1765, nº 1 do CC está a razão que também inspirou a regra da imutabilidade das convenções antenupciais consagrada no art. 1714, nº 1 do CC: a “de impedir que alguns dos cônjuges aproveitando o ascendente físico, intelectual ou moral adquirido sobre o outro possa extorquir deste modificações de convenção, ou do regime de bens estabelecido, favoráveis aos seus interesses” (Pires de Lima e Antunes Varela, CC anotado, volume IV, 2ª edição, pág 493). Com efeito, “este perigo de extorsão pesa também gravemente sobre as doações entre casados. Admitindo-se, porém, a livre revogação destas, sem necessidade de o revogante invocar qualquer justificação para o acto (a revogabilidade ad nutum) a lei granate ao doador a faculdade de a todo o tempo destruir a doação se esta tiver sido realmente fruto da pressão do donatário, de que aquele se tenha conseguido libertar (loc. cit.).

Ora, mercê da separação judicial de pessoas e bens, autor e ré já não estavam vinculados ao dever de coabitação, sendo que relativamente aos bens, a separação já tinha produzido os efeitos que produziria a dissolução do casamento (cfr. art. 1795º-A do CC).

Ou seja: já não estavam presentes os riscos que justificavam a norma, designadamente, o risco de a ré/donatária se aproveitar para, através do convívio uxório, extorquir do marido a referida doação (v. ob. cit., pág. 397)

Neste sentido se pronuncia, aliás, Antunes Varela, CC anotado, vol. VI, a pág. 487 “ O artigo 1761º omitiu, em boa parte, por desnecessária, a definição de doação entre casados, com que rompia o Anteprojecto de Pessoa Jorge (art. 1º, nº 1). A única dúvida séria que pode levantar-se a tal respeito consiste em saber se o regime excepcional das doações entre casados abrange ou não as doações feitas por um dos cônjuges ao outro, depois de separados de pessoas e bens”. A dúvida compreende-se, pois que a separação não dissolve o vínculo conjugal e a doação feita entre separados se pode dizer efectuada constante matrimonio enquanto, por ouro lado, a separação põe termo às circunstâncias especiais que justificam a suspeição lançada sobre a liberdade a espontaneidade do acto do doador (Pereira Coelho, ob.cit. I, pág. 340, nota 2; Pessoa Jorge, op.cit., pág. 47). O problema encontrava, no entanto, uma resposta indirecta, mas inequívoca, no nº 3 do artigo 1774º (primitiva redacção): “Relativamente aos bens, diz esse preceito, a separação produz os efeitos que produziria a dissolução do casamento…”.

Argumenta o apelante que ele e a ré viveram ainda conjugalmente, e no estado de casados, até à decretação do divórcio em Agosto de 2013. Mas se viveram ainda conjugalmente, não estavam obrigados a isso, uma vez que tinham cessado, com a separação, os deveres de coabitação e de assistência.

Como assim, justifica-se a interpretação restritiva do art. 1765, nº 1 do CC no sentido de que aí estão previstas apenas as doações entre casados não separados judicialmente de pessoas e bens.

Donde, a revogação da doação teria de ser declarada nula, nos termos conjugados dos art. 280 e 294 do CC, por não se verificar qualquer causa de revogação prevista nos art. 970 e 974 do mesmo diploma.

Todavia, argumenta, ainda, o apelante que, com a separação judicial de pessoas e bens ou o divórcio, a doação caducou, nos termos do art. 1766, nº 1, al. c) do CC.

Com efeito, dispõe este artigo e alínea que “ a doação entre casados caduca: c) ocorrendo divórcio ou separação judicial e pessoas e bens por culpa do donatário, se este for considerado único ou principal culpado.”.

É certo que o apelante não invocou na petição a caducidade da doação, mas apenas na réplica e agora no recurso.

Todavia, a caducidade opera automaticamente, ipso jure, sendo, por isso, de conhecimento oficioso (Ac STJ de 12.11.2009, Santos Bernardino, em www.dgsi.pt).

Observa-se na sentença que, tendo ocorrido, à data da doação, a separação judicial de pessoas e bens não tem sentido a hipótese de “ ocorrer a caducidade da doação com o divórcio, pois tanto este estado como aquele de separação constituem, em pé de igualdade, causas de caducidade da doação entre casados.”

Trata-se, no entanto, de uma interpretação que, salvo o devido respeito, não tem apoio na letra da lei. As causas são alternativas: se uma não puder funcionar (como é o caso da separação, que é anterior à doação), é suposto que possa funcionar a outra. Não será, pois, pela aventada razão, que a caducidade por efeito do divórcio ficará excluída.

A dificuldade é outra: é que se, por um lado, a norma do art. 1766, nº 1, al. c) do CC faz depender o funcionamento da caducidade da circunstância de o divórcio ter sido decretado por culpa do donatário, se este for considerado único ou principal culpado, por outro, por outro, verifica-se que a declaração do cônjuge culpado foi suprimida, por revogação expressa do art. 1787 do CC pela Lei nº 61/2008 de 31.10, que eliminou a ideia do divórcio litigioso, fundado na culpa de um dos cônjuges, para centrar o divórcio não consentido apenas na ruptura da sociedade conjugal (cfr. Ac. STJ de 3.3.2016, Pires da Rosa, em www.dgsi.pt). O que coloca a questão de saber se, atendendo a que o divórcio já não pode ocorrer por culpa do donatário e este já não pode ser considerado único ou principal culpado, a caducidade deve ou não operar em caso de divórcio.

Cremos que a resposta radica no art. 1791, nº 1 do CC, na redacção que lhe foi introduzida pela Lei nº 61/2008: “Cada cônjuge perde todos os benefícios recebidos ou que haja de receber do outro cônjuge ou de terceiros, em vista do casamento ou em consideração do estado de casado, quer a estipulação seja anterior quer posterior à celebração do casamento.” E perde todos os benefícios apenas com a mera ocorrência do divórcio (não carecendo agora o cônjuge de ser declarado, como antes, único e principal culpado). E um dos benefícios que pode perder é, precisamente, o da doação que se verifique entre casados, perda que opera ipso jure (v. o citado CC anotado, vol. IV, pág. 563; v, ainda, o Ac STJ de 12.11.2009, Santos Bernardino, em www.dgsi.pt e os aí citados Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, em Curso de Direito da Família, volume I, 3ª edição, pág. 735 e 736).

E, por isso, devia ter sido alterada a redação do art. 1766, n.º 1, al. c) do CC, adequando-a à nova redacção do art. 1791 do CC (que eliminou a referência ao cônjuge “ declarado único ou principal culpado”).

Não o tendo sido (decerto por lapso), deve, assim, o art. 1766, nº 1, al, c), na parte em que faz depender a caducidade da exigência de que o divórcio ocorra por culpa do donatário se este for considerado único ou principal culpado, ser revogado (tacitamente) nessa parte (neste sentido, Rita Lobo Xavier, em Recentes Alterações Ao Regime Jurídico do Divórcio E Das Responsabilidades Parentais, Almedina, pág. 36, citado pelo Ac. STJ de 3.3.2016) e, fazendo-se uso de uma interpretação revogatória ou ab-rogante, interpretar-se a norma do art. 1776 nº 1, al. c) do CC no sentido de que a doação entre casados caduca sempre em caso de divórcio.

Verifica-se, assim, no caso vertente, que, com o trânsito em julgado da sentença que decretou o divórcio, em 21.8.2013, os bens doados à ré reverteram automaticamente ao património do autor doador, sem necessidade de qualquer acto de revogação da doação, não existindo, por conseguinte, qualquer circunstância que possa impedir a restituição dos imóveis ao autor (cfr. Pereira Coelho e Guilherme Oliveira, loc. cit.). Terá, no entanto, o autor, assim se nos afigura, de promover a anulação do averbamento do cancelamento da doação de 1.10.2015, feito com fundamento na revogação da doação (que é nula) e efectuar um novo registo de aquisição que tenha por causa a caducidade da doação (ver, neste sentido, o parecer do Instituto dos Registos e do Notariado de 18.8.2014, disponível em http://www.irn.mj.pt/sections/irn/doutrina/pareceres/predial/2014/44-cc-2014-c-p-17-2014/downloadFile/file/44_CP_17-2014_STJ-C.pdf?nocache=1411401232.94).

Quanto à reconvenção, não pode o pedido de reconhecimento do direito de propriedade da ré deixar de improceder.

Pedia, ainda, a ré a nulidade da revogação da doação e o cancelamento registral e matricial da inscrição das fracções em nome do autor.

Todavia, o pedido de nulidade da revogação da doação funcionava apenas, verdadeiramente, como requisito da procedência do pedido de reconhecimento do direito de propriedade da ré (pedido que soçobrou), pelo que não se vê necessidade de declarar seja o que for em sede reconvencional (Alberto dos Reis, Comentário ao CPC, vol. III, pág. 148; Abrantes Geraldes, Temas da Reforma..., I vol. 2ª ed., pág. 135).

Por outro lado, improcedendo o pedido de reconhecimento do direito de propriedade da ré, improcede, também, o pedido decorrente do cancelamento registral e matricial da inscrição das fracções em nome do autor.

É, assim, total a improcedência da reconvenção.

Pelo exposto, acorda-se em julgar a apelação procedente, e, consequentemente:

a) revogar a sentença; 

b) julgar a acção procedente, declarar o autor legítimo e exclusivo proprietário dos imóveis identificados e condenar a ré a restituí-los, tal como a reconhecer e respeitar o direito de propriedade do autor, abstendo-se da prática de qualquer acto que colida ou afecte esse direito;

c) julgar a reconvenção improcedente e absolver o autor/reconvindo do pedido reconvencional.

As custas da acção e da reconvenção são suportadas pela ré/reconvinte.

As custas desta apelação ficam, igualmente, pela apelante/ré/reconvinte.


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Coimbra, 21 de Fevereiro de 2017

Relator:

António Magalhães

Adjuntos:

1º - Ferreira Lopes

2º - Freitas Neto