Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
141/13.4GCALQ.L1-9
Relator: CALHEIROS DA GAMA
Descritores: ACÓRDÃO DE FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
INJUNÇÃO
SUSPENSÃO PROVISÓRIA DO PROCESSO
COMPETENCIA DO JIC
VOTO DE DESEMPATE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/14/2017
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: I - Tendo sido acordada a suspensão provisoria do processo, nos termos do art. 281º do Código de Processo Penal, com a injunção da proibição da condução de veículo automóvel, prevista no nº 3 do preceito, caso aquela suspensão termine, prosseguindo o processo, ao abrigo do nº 4, do art. 282º, do mesmo Código, o tempo em que o arguido esteve privado da carta de condução não deve ser descontado, no tempo da pena acessória de inibição da faculdade de conduzir, aplicada na sentença condenatória que venha a ter lugar -

II - devem ser descontados nas penas aplicadas ao arguido as injunções já anteriormente cumpridas, em sede de suspensão provisória do processo – voto de vencido

III - É que a injunção que foi fixada, aquando da suspensão provisória do processo, tem uma natureza completamente diferente da pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor a que alude o art. 69.º do CP - – voto de vencido

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, na 9a Secção (Criminal) do Tribunal da Relação de Lisboa:

I – Relatório

1. No âmbito do processo comum n.º 141/13.4GCALQ, do Juízo Local Criminal de Alenquer do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte, foi submetido a julgamento, com intervenção de Tribunal Singular, o arguido A..., (…) , acusado da prática dos factos descritos no libelo acusatório de fls. 88-89, ex vi de fls. 112, suscetíveis de integrar, em autoria material e na forma consumada, um crime de condução em estado de embriaguez, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 292º, n.º 1 e 69º, n.º 1, alínea a), ambos do Código Penal.

Viria o arguido a ser condenado, por sentença proferida e depositada em 2 de março de 2017, pela prática do crime pelo qual estava acusado na pena de 40 (quarenta) dias de multa, à taxa diária de € 6 (seis euros), perfazendo o montante global de € 240 (duzentos e quarenta euros). Logo sendo, determinado, nos termos do artigo 80º, n.º 2 do Código Penal, o desconto da detenção sofrida pelo arguido à ordem dos presentes autos na correspondente pena aplicada, devendo A... cumprir 39 (trinta e nove) dias de multa, à taxa diária € 6 (seis euros), perfazendo o montante global de € 234 (duzentos e trinta e quatro euros). Mais foi o arguido condenado na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 3 (três) meses, nos termos do artigo 69º, n.º 1, alínea a) do Código Penal.

2. O arguido, inconformado com a mencionada decisão, interpôs recurso extraindo da sua motivação as seguintes conclusões:
“1º
A pena acessória de proibição de conduzir veículos por três meses deve ser extinta por o recorrente já ter cumprido essa pena na suspensão provisória do processo.

Destarte não existir norma a prever o desconto, o legislador não quis criar uma situação de injustiça, obrigando o agente a repetir a sanção acessória anteriormente cumprida.

Pelo exposto o tribunal recorrido violou o art. 29 nº 5 CRP na medida em que duplicou a mesma punição.

Mais: o tribunal recorrido também violou o art. 281 nº 3 CPP na medida em que não considerou a inibição de conduzir imposta na suspensão provisória uma verdadeira pena.

Por fim, o tribunal recorrido violou o princípio da confiança na medida em que o arguido ao cumprir os três meses de inibição de conduzir na suspensão provisória acreditou que a mesma iria valer como cumprimento efectivo da sanção.

TERMOS EM QUE E NOS DEMAIS DE DIREITO, DEVE SER DADO PROVIMENTO AO RECURSO, E EM CONSEQUÊNCIA SER EXTINTA A PENA ACESSÓRIA DE PROIBIÇÃO DE CONDUZIR VEÍCULOS POR TRÊS MESES.

FAZENDO-SE, ASSIM, A HABITUAL E NECESSÁRIA JUSTIÇA!
(fim de transcrição).

3. Foi proferido despacho judicial admitindo o recurso, como se alcança de fls. 269.

4. Respondeu o Ministério Público extraindo da sua motivação as seguintes conclusões:
1. Recorreu o arguido por entender que o período de inibição de condução de veículos a motor fixada, a título de injunção, no âmbito da suspensão provisória do processo, e que cumpriu, deve ser descontado na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados imposta na sentença condenatória e, em consequência, considerar-se extinta esta pena, pelo cumprimento.
2. Tal questão foi já vastamente analisada pela jurisprudência das Relações, perfilando-se duas correntes: uma no sentido de que deve ser negado o desconto considerando que são perfeitamente distintos a natureza, os pressupostos de aplicação, os fins visados e o regime de cumprimento próprios da injunção, por um lado, e da pena acessória, por outro; e uma segunda no sentido de que deve ser permitido o desconto por elementares razões de justiça material e de equidade.



3. Tal divergência jurisprudencial virá a culminar com o acórdão uniformizador prolatado em 27 de Abril de 2017, no Processo nº 821/12.1PFCSC.L1-A.S1, relatado pelo Exmo. Senhor Conselheiro Souto de Moura, (ainda não transitado e publicado), que fixou a seguinte jurisprudência: “tendo sido acordada a suspensão provisória do processo, nos termos do art. 281º do Código de Processo Penal, com a injunção da proibição da condução de veículo automóvel, prevista no nº 3 do preceito, caso aquela suspensão termine, prosseguindo o processo, ao abrigo do nº 4, do art. 282º, do mesmo Código, o tempo em que o arguido esteve privado da carta de condução não deve ser descontado, no tempo da pena acessória de inibição da faculdade de conduzir, aplicada na sentença condenatória que venha a ter lugar.”

Assim, se conclui no sentido de ser negado provimento ao recurso e, consequentemente, ser mantida a sentença recorrida.

Porém, Vossas Excelências farão, como sempre, o que melhor for de JUSTIÇA!" (fim de transcrição).

5. Subidos os autos, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto nesta Relação apôs apenas o seu “Visto”, pelo que não careceu de ser dado cumprimento ao disposto no art. 417.°, n.° 2, do Código de Processo Penal (doravante CPP) (cfr. fls. 285).

6. Colhidos os vistos legais, cumpre agora apreciar e decidir.

II – Fundamentação

1. Conforme entendimento pacífico dos Tribunais Superiores, são as conclusões extraídas pelo recorrente, a partir da respetiva motivação, que operam a fixação e delimitação do objeto dos recursos que àqueles são submetidos, sem prejuízo da tomada de posição sobre todas e quaisquer questões que, face à lei, sejam de conhecimento oficioso e de que ainda seja possível conhecer (cfr., entre outros, os Acs. do STJ de 16.11.95, de 31.01.96 e de 24.03.99, respetivamente, nos BMJ 451.° - pág. 279 e 453.° - pág. 338, e na Col (Acs. do STJ), Ano VII, Tomo 1, pág. 247, e cfr. ainda, arts. 403.° e 412.°, n.° 1, do CPP).

A questão suscitada pelo recorrente, que deverá ser apreciada por este Tribunal Superior, é, em síntese e nas suas palavras a de que “a pena acessória de proibição de conduzir veículos deve ser extinta por o recorrente já ter cumprido essa pena na suspensão provisória do processo” ou, dito de outro modo, tendo sido acordada a suspensão provisória do processo, nos termos do art. 281.º do CPP, com a injunção da proibição da condução de veículo automóvel, prevista no n.º 3 do preceito, e tendo aquela suspensão terminado e prosseguido o processo, ao abrigo do n.º 4, do art. 282.º, do mesmo Código, o tempo em que o arguido esteve privado da carta de condução deve ser descontado, no tempo da pena acessória de inibição da faculdade de conduzir, aplicada na sentença condenatória que veio a ter lugar

2. Passemos, pois, ao conhecimento da alegada questão. Para tanto, vejamos, antes de mais, o conteúdo da decisão recorrida, no que concerne a matéria de facto:

   

a) O Tribunal a quo declarou provados os seguintes factos (transcrição):

"

A) No dia 04.08.2013, pelas 01:32 horas, o arguido conduzia o veículo ligeiro de mercadorias, com a matrícula xx-xx-xx, numa localidade de Casais de Fonte Pipa, na Merceana, após ter ingerido bebidas alcoólicas.

B) Submetido, no circunstancialismo de tempo e lugar referido em A), a exame de pesquisa de álcool expirado, o arguido acusou uma Taxa de Alcoolemia Sanguínea (TAS) de 1,49g/l.

C) O exame referido em B) foi efectuado através do aparelho analisador quantitativo “Drager” modelo 7110 MKIII P, com o nº ARZN-0039, aprovado, em primeira verificação, para efeitos de utilização na fiscalização pela Autoridade Nacional da Segurança Rodoviária em 13.03.2013.

D) O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que antes de iniciar a condução daquele veículo havia ingerido bebidas alcoólicas em quantidade superior ao legalmente permitido, não se tendo abstido, mesmo assim, de o conduzir.

E) Sabia igualmente que a condução de veículos na via pública, nas condições em que o fez, é proibida e punida por lei.

Mais se provou que:

F) O arguido não foi interveniente em qualquer acidente de viação.

G) Encontrava-se acompanhado da namorada, pretendendo efectuar um percurso de cerca de 7 a 8 quilómetros.

H) O arguido trabalha como auxiliar de acção directa, na Santa Casa da Misericórdia (…), desde Agosto de 2016, auferindo € 600 mensais.

I) Vive com a namorada (aufere € 800 mensais) e o filho comum, com 3 meses.

J) Tem um outro filho com 9 anos, que reside com a progenitora.

K) O seu agregado familiar suporta as seguintes despesas médias mensais: € 420 com a prestação do empréstimo contraído para aquisição de habitação; € 150 com a pensão de alimentos devida ao seu filho, a que acrescem as normais despesas correntes.

L) O arguido não tem antecedentes criminais registados." (fim de transcrição).


b) Factos declarados não provados:

"Inexistem factos por provar com relevância para a boa decisão da causa." (fim de transcrição).

c) Em sede de motivação da decisão de facto, escreveu-se na sentença recorrida:

"A convicção do Tribunal relativamente à matéria de facto resultou da avaliação englobante do contexto probatório dos autos, designadamente, os documentos que deles constam e a prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento. Concretizando.

No que concerne aos factos imputados ao arguido, bem como as circunstâncias em que estes ocorreram, foi relevante a sua confissão integral e sem reservas, tendo demonstrado, perante o Tribunal uma postura séria. Ademais, a prova da concreta TAS apresentada pelo arguido decorre do teor do talão junto a fls. 9, sendo que os elementos referidos na alínea C) dos factos provados decorrem do referido talão, em conjugação com o auto de notícia de fls. 2 e o certificado de verificação de fls. 186.

Quanto às condições pessoais, familiares e profissionais do arguido, foram ponderadas as declarações por si prestadas em sede de audiência de discussão e julgamento, as quais se mostraram sérias e não foram contrariadas por qualquer outro meio de prova, antes sendo corroboradas quanto às condições económicas pelo teor da informação prestada pelo Instituto de Segurança Social constante a fls. 159-163.

Relativamente à ausência de antecedentes criminais do arguido, atendeu-se ao teor do Certificado de Registo Criminal junto a fls. 158." (fim de transcrição).

d) Finalmente, quanto ao enquadramento jurídico-penal dos factos e à escolha e medida da pena principal e da sanção acessória, expendeu-se na decisão revidenda:

"ENQUADRAMENTO JURÍDICO-PENAL.

Estatui o artigo 292º, n.º 1 do C. Penal que quem, pelo menos por negligência, conduzir veículo, com ou sem motor, em via pública ou equiparada, com uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1,2 g/l, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias, se pena mais grave não lhe couber por força de outra disposição legal.

Trata-se de um crime de mera actividade e de perigo abstracto, em que o perigo não é elemento do tipo. Como refere Eduardo Correia, nos crimes de perigo abstracto a lei não exige a verificação concreta do perigo de lesão resultante de certos factos (Direito Criminal I, Almedina, 1993, página 287), sendo, contudo, necessário, que o comportamento seja objectivamente perigoso em si mesmo, sem o que, não havendo perigo de lesão de bens jurídicos, a incriminação carece de sentido, de legitimidade (cfr. Germano Marques da Silva, Crimes Rodoviários – Pena Acessória e Medidas de Segurança, Universidade Católica Editora, 1996, página 15).

Assim, o bem jurídico directamente protegido é a segurança da circulação rodoviária, se bem que indirectamente se protejam outros bens jurídicos como a vida e a integridade física dos intervenientes no tráfego rodoviário. Tutela-se, por conseguinte, um interesse público, consubstanciado na segurança dos utentes da via pública, acautelando que os principais agentes do tráfego rodoviário – os condutores, dirijam as suas viaturas em condições psíquico-motoras normais que permitam uma condução segura.

Ou seja, a prática do crime ou a aferição da respectiva ilicitude ou gravidade não pressupõem a demonstração da existência de um perigo concreto para os bens protegidos, nem, ainda menos, a ocorrência do dano. Isso significa que o perigo real não faz parte dos elementos típicos, existindo apenas a presunção por parte do legislador, as mais das vezes fundada numa observação empírica, de que a situação é perigosa em si mesma (neste sentido, Paula Ribeiro de Faria, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo II, Coimbra Editora, 1999, página 1093 e Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, Processo n.º 4/10.5GAPTL.G1, de 28.06.2010, relatado pelo Juiz Desembargador Fernando Monterroso, disponível em www.dgsi.pt).

O elemento objectivo do tipo consiste: (i) na condução (exige uma efectiva circulação do veículo, não se bastando, por isso, com a mera ligação do motor); (ii) de veículo, com ou sem motor; (iii) na via pública ou equiparada (cfr. artigo 2º do Código da Estrada, o qual apenas se aplica ao trânsito nas vias do domínio público do Estado, das Regiões Autónomas e das autarquias locais); e, (iv) acusando o condutor uma taxa de álcool no sangue superior a 1,2 g/l.

O elemento subjectivo do tipo preenche-se com o dolo, numa das modalidades do artigo 14º do Código Penal e também com a negligência. No caso concreto, o arguido bem sabia que lhe era vedada a condução de veículos automóveis naquelas condições, não se coibindo de o fazer e, quando foi submetido a exame concluiu-se ser detentor de uma taxa de álcool superior a 1,2 g/l de sangue.

No que concerne à TAS a considerar há a ponderar a alteração ao artigo 170º, n.º 1, alínea b) do Código da Estrada, operada pela Lei n.º 72/2013, de 3 de Setembro, que veio tomar posição na querela jurisprudencial que existia relativamente ao desconto do erro máximo admissível para o grau de alcoolemia indicado no alcoolímetro, e assim concluir que ao resultado apurado deve ser deduzido aquele erro.

A aferição do valor a deduzir em cada caso resulta da tabela anexa à Portaria n.º 1556/2007, de 10 de Dezembro, que veio consagrar o Regulamento do Controlo Metrológico dos Alcoolímetros.

Com efeito, nos termos do artigo 8º da citada portaria, os erros máximos admissíveis — EMA, variáveis em função do teor de álcool no ar expirado — TAE, são o constante do quadro que figura no quadro anexo a esse diploma e que dele faz parte integrante.

De acordo com aquele quadro o erro máximo admissível depende não só do teor de álcool no ar expirado detectado no teste, mas também do tipo de verificação a que foi sujeito o alcoolímetro no qual é realizado o aludido teste (aprovação de modelo/primeira verificação/verificação periódica/verificação extraordinária), sendo que, no caso vertente, é o mesmo de 5%, uma vez que o instrumento havia sido submetido a primeira verificação.

Deste modo, há que deduzir ao valor registado no talão supra referido o valor de erro máximo admissível, o que significa que o arguido conduzia com, pelo menos, 1,4155 g/l.

Para além disso, ao ter ficado provado que o arguido agiu, nos termos descritos, livre, deliberada e conscientemente, sabendo que praticava actos criminalmente puníveis, revelou uma personalidade desconforme com o direito e, por isso, ético-juridicamente censurável.

Destarte, não se verificando qualquer causa de exclusão da ilicitude ou da culpa, conclui-se pelo cometimento pelo arguido do crime por que vem acusado.

ESCOLHA E DETERMINAÇÃO DA MEDIDA DA PENA.

Feito o enquadramento jurídico-criminal da conduta do arguido, importa agora determinar a natureza e medida das sanções a aplicar. O crime de condução em estado de embriaguez é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias, se pena mais grave não lhe couber por força de outra disposição legal (artigo 292º do Código Penal), bem como com pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, por um período fixado entre três meses e três anos, nos termos dispostos no artigo 69º, n.º 1, alínea a), do Código Penal.

A) Da pena principal.

O tipo legal em análise estatui uma pena principal alternativa pelo que cumpre escolher a natureza da pena a aplicar.

Nesta sede estipula o artigo 70º, do Código Penal, que, quando forem aplicáveis, em alternativa, pena de prisão e de multa, deverá dar-se preferência à segunda, sempre que esta responder de forma suficiente às finalidades de prevenção, isto é as definidas no artigo 40º, n.º 1 do mesmo diploma – a protecção de bens jurídicos (prevenção geral positiva) e a reintegração do agente na sociedade (prevenção especial positiva).

Por conseguinte, a preferência pela pena não privativa da liberdade é imposta e justificada por finalidades exclusivamente preventivas. Havendo um juízo favorável de prognose social (em atenção a considerações de prevenção especial de socialização), só deve negar-se a aplicação da medida não detentiva quando a execução da pena de prisão se revele necessária ou mais conveniente do ponto de vista da defesa do ordenamento jurídico, ou seja, da tutela dos bens jurídicos e a estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias na validade da norma violada - prevenção geral de integração.

No que concerne à determinação da pena concreta estipula o artigo 71º, n.º 1 do Código Penal que a medida da pena é estabelecida em função da culpa do agente e das exigências de prevenção (geral e especial), não podendo, em caso algum, ultrapassar a medida da culpa do agente (cfr. artigo 40º n.º 2 do Código Penal).

A prevenção geral visa dissuadir a prática de crimes pelos outros cidadãos, incentivar a convicção de que as normas penais são válidas e eficazes e aprofundar a consciência dos valores jurídicos por parte dos cidadãos, enquanto que a prevenção especial tem em vista a quebra da inserção social do agente e servir a sua reintegração na sociedade.

Além disso, nos termos do referido artigo 40º do Código Penal, a culpa funcionará como uma incondicionável proibição de excesso, comprimindo de forma inultrapassável quaisquer considerações preventivas, e fornecendo, por essa via, o limite máximo que a punição pode concretamente alcançar sem pôr em causa a dignidade fundamental da pessoa do arguido.

Tendo, pois, em conta o princípio geral formulado e o procedimento que a partir dele pode ser extraído, dever-se-á, na determinação da medida da pena, atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele (elencadas a título exemplificativo no n.º 2 desta norma).

Ademais, optando-se pela pena de multa, nos termos do n.º 2 do artigo 47º, do Código Penal, a fixação do quantitativo diário da pena de multa deve ser feita em função da situação económica e financeira do condenado e dos seus encargos pessoais, tendo como único limite inultrapassável, em nome da preservação da dignidade da pessoa humana, a garantia de que o condenado tem a possibilidade de, sem dano injusto, fazer face aos gastos absolutamente indispensáveis. Mas por outro lado, ter-se-á em conta que a pena de multa não pode consistir numa forma disfarçada de dispensa da pena ou mesmo de absolvição, mas, antes, tem que constituir um verdadeiro e real sacrifício para o condenado.

Nestes termos, atendendo aos critérios fixados, deve atender-se:

À intensidade da culpa demonstrada pelo arguido, que surge moldada sobre o dolo e que, por isso, corresponde com o nível mais elevado de intencionalidade criminosa; com efeito, o arguido demonstrou uma atitude incauta e socialmente reprovável ao menosprezar o facto de ter ingerido bebidas alcoólicas quando se propôs à condução do veículo.

A T.A.S. apresentada pelo arguido de 1,4155 g/l. Ora, a simples existência de álcool no sangue num condutor aumenta o risco estatístico de acidente. E de acordo com a TAS apresentada, esse risco entre duas a oitenta vezes mais, sendo que uma TAS = 0,5 g/l corresponde um risco 2 vezes maior, TAS = 0,8 g/l, 5 vezes, TAS = 1,2 g/l, 20 vezes e TAS = 2,0 g/l, 80 vezes maior [neste sentido, Rangel, R. (2003). Noções gerais sobre outras ciências forenses (2003/2004), Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, citado por Nádia Vanessa Basílio Marques da Costa, no estudo Prevalência do Consumo de Drogas de Abuso nos Casos Mortais Autopsiados (…), 2009/2010, pág. 76, disponível em https://estudogeral.sib.uc.pt].

Assim, atenta a T.A.S. apresentada verifica-se que as probabilidades de ocorrência de um acidente eram muito consideráveis (potenciadas pelo menos em 20 vezes mais, de acordo com o estudo referido) tendo sido criadas por um comportamento voluntário do arguido e que no caso acabou, felizmente, por não se concretizar, pelo que não há a apontar quanto ao desvalor do resultado (mas que não necessário naturalmente ao preenchimento do tipo, pois que estamos perante um crime de perigo abstracto). Além disso, e sendo certo que as manifestações da intoxicação dependem das quantidades de bebida ingerida e da tolerância de cada indivíduo, as etapas da intoxicação aguda pela ingestão de álcool podem ser classificadas em três fases:

(i) fase de excitação psicomotora (Alcoolémia entre 0,5 e 1,5 g/L de sangue), causadora de desinibição, euforia superficial alternada com período de tristeza e agressividade, necessidade irresistível de falar e familiaridade excessiva, alterações da memória, do discernimento e da atenção;

(ii) fase de descoordenação (Alcoolémia superior de 1,5 a 3,0 g/L de sangue), causadora de desordem de pensamento que leva à confusão total, sonolência progressiva até ao torpor, descoordenação motora, diplopia (visão dupla), vertigens, náuseas, vómitos, taquicardia; e,

(iii) fase comatosa (Alcoolémia superior a 3,0 g/L de sangue), causadora de coma profundo (na maior parte dos casos sai do coma ao fim de algumas horas), hipotermia (descida de 5 a 6 graus da temperatura), hipotensão arterial com risco de colapso cardiovascular, amnésias lacunares (black-outs). [neste sentido, James e col., 2005, citado por Nádia Costa, ob cit, pág 81].

Mais refere a mesma autora que o álcool é considerado um depressor do sistema nervoso central, pois à sensação inicial de euforia e de desinibição, segue-se um estado de sonolência, turvação da visão, descoordenação muscular, diminuição da capacidade de atenção e compreensão, fadiga muscular, diminuição da capacidade de atenção, etc (ob. cit, pág. 81).

A taxa a que o arguido conduzia é aquela que se considera ser causadora, desde logo, de desinibição, impondo necessariamente, em termos de potencialidade, uma condução perigosa para o próprio e terceiros. Ora quem, como o arguido, se coloca voluntariamente numa situação destas, pondo em perigo não só a sua vida mas também a daqueles que com ele se cruzam na estrada, não só o desabona em termos de personalidade como torna ainda mais censurável a sua conduta, pois revela o desrespeito que lhe merecem todos aqueles que circulam ou andam na via pública.

Há a considerar, igualmente, as elevadíssimas exigências de reprovação e prevenção geral que os crimes que atentam contra a circulação e segurança rodoviária reclamam, atenta a elevada sinistralidade denotada (com desastrosas consequências a nível de mortalidade e morbilidade) nos tempos hodiernos em Portugal, em virtude do consumo excessivo de bebidas alcoólicas, o que, aliás, tem motivado sucessivas intervenções de carácter repressivo por parte do legislador neste domínio.

No parecer elaborado pelo Professor Rui Tato Marinho, actualizado em 2002, acerca da redução do limite legal da taxa de álcool no sangue para 0,2 mg/ml, disponível em www.esb.ucp.pt/twt/lasvin/MyFiles/MyDocuments/Taxa0,2mg.doc, os acidentes de viação, em termos morbilidade, mortalidade e impacto sócio-económico, têm uma amplitude muito superior a algumas doenças oncológicas. Devem ser entendidos como uma verdadeira “doença grave”, felizmente susceptível de prevenção. Os acidentes matam mais do que algumas doenças mais “mediáticas”: 1995 mortes no ano de 1999, (fonte - Direcção-Geral de Viação, com o factor de correcção de 14%) número significativamente mais elevado do que as causadas por outras entidades (Direcção-Geral da Saúde) como o cancro da mama (1498), cancro da próstata (1700), leucemias/linfomas (1564), SIDA (361 – Comissão Nacional de Luta Contra a Sida), tuberculose (289) e melanoma (160).

O número de mortos na estrada em 2015[1] foi de 478, havendo a registar igualmente 2.206 feridos graves, 37.958 feridos ligeiros e um total de 122.800 acidentes.

Ou seja, não obstante todas as medidas adoptadas ao longo dos anos, continuam a verificar-se uma mortalidade e morbilidade acentuadíssimas, não sendo demais, nem despiciendo reproduzir uma passagem do Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, proferido no processo n.º 4/10.5GAPTL.G1 supra citado, onde se menciona que vivemos uma época em que é geral o sentimento da necessidade de serem eficazmente combatidos os comportamentos que fazem do nosso país um recordista em índices de sinistralidade rodoviária. Para ilustrar esse sentimento, citar-se-ão duas frases de um artigo de opinião publicado na nossa imprensa diária: "os acidentes na estrada, tal como o número de mortos e estropiados, não cessam de aumentar, a ponto de termos os recordes europeus. (...) Sabemos que os condutores portugueses são especialmente mortíferos, guiam mal, ultrapassam como loucos, andam a velocidades estonteantes e conduzem completamente bêbados" — António Barreto, Jornal Público de 18-3-2001.

Por oposição, as necessidades de prevenção especial não se apresentam especialmente acentuadas, atenta a ausência de antecedentes criminais do arguido, a sua inserção familiar, profissional e social, o que sempre se constituem como factores securizantes, e o reconhecimento integral dos factos efectuado, o qual tem uma relevância relativa em situações como a vertente, atenta a circunstância de o delito em causa haver sido directamente constatado pela autoridade policial e, por conseguinte, em situação de flagrante delito. Ainda assim, uma vez que reconheceu que tinha agido mal tal inculca que interiorizou o carácter eticamente reprovável da sua conduta. Por outro lado, sempre importará atentar no tempo já decorrido desde a prática dos factos, sendo que quer antes dos mesmos, quer após, inexiste notícia de que o arguido tenha praticado qualquer outro ilícito, o que demonstra que a situação vertente foi meramente episódica e não configura a tónica dominante da sua vida.

No que concerne às suas condições económicas são as mesmas medianas, face aos rendimentos e do seu agregado familiar, sendo de presumir, pelo menos no momento presente, com um filho de tenra idade a existência de múltiplas despesas.

Assim, tudo ponderado, conclui-se ser adequada uma pena de 40 (quarenta) dias de multa, à taxa diária de € 6 (seis euros), perfazendo o montante global de € 240 (duzentos e quarenta euros).

 *

Do desconto da pena.

Resulta do teor do auto de notícia de fls. 2 e do auto de detenção / libertação de fls. 11 que o arguido esteve detido à ordem dos presentes autos, na sequência da prática dos factos que conformam o objecto do mesmo. Assim, nos termos do artigo 80º, n.º 2, do Código Penal, determino o desconto de um dia no cumprimento da pena ora aplicada.

***

B) Da pena acessória de proibição de conduzir.

A pena acessória de proibição de conduzir assenta no pressuposto formal de uma condenação do agente numa pena principal nos termos elencados nas diversas alíneas do n.º 1 do artigo 69º, do Código Penal, e no pressuposto material de, consideradas as circunstâncias do facto e a personalidade do agente, o exercício da condução se revelar especialmente censurável, assim desempenhando um efeito de prevenção geral de intimidação e um efeito de prevenção especial para emenda cívica do condutor.

Na determinação do período concreto da proibição de conduzir atende-se aos mesmos elementos que presidiram à escolha da medida concreta da pena principal, sem abstrair da importância que a utilização do veículo automóvel poderá ter na vida pessoal e profissional do arguido, e, como já referido, do carácter punitivo, que também a pena acessória deve ter.

De facto, quer a pena principal, quer a acessória, assentam num juízo de censura global pelo crime praticado e daí que para a determinação da medida concreta de uma e outra se imponha o recurso aos critérios estabelecidos no art.71.º do Código Penal. Assim, na graduação da sanção acessória deve o Tribunal atender à culpa do agente e ás exigências de prevenção, bem como a todas as circunstâncias que depuserem a favor ou contra este (Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 01.10.2008, processo nº 46/07.8PANZR.C1, disponível em www.dgsi.pt).

Neste âmbito, e considerando todas as circunstâncias supra ponderadas para a determinação da medida concreta da pena principal, aqui igualmente valoradas, destacando a necessidade de fazer o arguido interiorizar a censurabilidade da sua conduta e de prevenir a sua incursão futura na prática de tais crimes ou de outros relacionados com a condução automóvel, aliados ao facto da proibição de conduzir representar um sacrifício assinalável para quem o sofre, mas não olvidando que o mesmo, no âmbito da suspensão provisória do processo, entregou a sua carta de condução durante 3 (três) meses, entendo que a sua fixação em 3 (três) meses se apresenta como adequada.

Neste ensejo, importa apenas esclarecer que não obstante requerido pela defesa, em sede de alegações, que seja atendido o período em que cumprir a injunção de entrega da sua carta de condução no âmbito da suspensão provisoria do processo.

Resulta dos elementos juntos aos autos que o arguido cumpriu a injunção de abstenção de conduzir pelo período de três meses aplicada no âmbito da suspensão provisória do processo. Tendo tal presente importa aferir se a pretensão do arguido no sentido de que o período de inibição de conduzir que cumpriu a título de injunção seja descontado na pena acessória em que foi condenado nos presentes autos tem fundamento legal bastante.

Trata-se de questão que não tem obtido tratamento uniforme na jurisprudência, distinguindo-se essencialmente duas correntes: uma que entende que esse desconto, não obstante sem previsão legal expressa, se impõe por razões de justiça material, e outra que considera que a distinta natureza dos institutos e o regime legal instituído afastam liminarmente a possibilidade de tal desconto.

Ponderando os argumentos avançados em defesa de cada uma das posições, consideramos que, em conformidade com o regime legal instituído, não há lugar há realização de tal desconto, o qual não só não tem apoio legal nos artigos 80º a 82º do Código Penal e 282º, n.º 4 do Código de Processo Penal, como, sem prejuízo da bondade dos argumentos de sentido contrário, não se considera responder de forma adequada a imperativos de justiça e igualdade. É que, se é certo que o arguido que cumpriu a injunção de inibição de conduzir e vê revogada a suspensão por outros motivos, não beneficiando do desconto, se vê constrangido a, em termos práticos, cumprir duas vezes sanções que em termos práticos em muito se assemelham, a verdade é que o nível de constrangimento associado ao cumprimento de uma injunção daquela natureza é totalmente distinto do nível de constrangimento associado ao cumprimento de uma pena, desde logo porque o incumprimento desta concreta pena é susceptível de conformar a prática de um novo crime, o que não sucede com a injunção equivalente, que mesmo que venha a ser conhecida no processo apenas determina o normal prosseguimento dos autos.

Neste particular, revemo-nos integralmente na posição sufragada pelo Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 13.04.2016, proferido no processo n.º 471/13.5GBFLG.P1, disponível em www.dgsi.pt, que ponderou a questão nos seguintes termos, que pela clareza de exposição aqui nos permitimos transcrever:

O pensamento, intenção e opção do legislador em relação a esta matéria podem ser reconhecidos no texto do número 4 do artigo 282º do Código de Processo Penal: cessando a suspensão do processo e prosseguindo este – como foi o caso dos autos – "as prestações feitas não podem ser repetidas".

A "repetição do indevido" – própria do direito civil, inserindo-se no quadro do enriquecimento sem causa - não é aplicável às injunções cumpridas pelo arguido no âmbito da suspensão provisória do processo, uma vez que a sua razão de ser não reside, diretamente, na prática do facto típico, ilícito, culposo e punível subjacente ao processo, mas resulta dum acordo jurídico-processual que visou a obtenção do benefício legal de não submissão do autor do facto a julgamento e possível aplicação de sanção penal. A finalidade do cumprimento da injunção não se inseriu, assim, num contexto sancionatório: no caso em apreço, o arguido B… aceitou não conduzir no período temporal acordado, apenas e tão-só, para não ser submetido a julgamento e sujeito a possível condenação penal. Tendo cessado tal suspensão provisória do processo, por culpa do arguido, este não terá direito a qualquer compensação pelo que prestou a fim de beneficiar da suspensão provisoria do processo, uma vez que a razão de ser e finalidade dessa "prestação" (positiva ou negativa) se esgotou com o termo do benefício processual almejado, sendo independente, inclusivamente, de apreciações de direito penal substantivo.

Este entendimento está na base da ratio legis do artigo 282º, nº 4, do Código de Processo Penal.

As injunções cumpridas no âmbito de suspensão de processo penal integram prestações (positivas ou negativas) que não são repetidas, ou seja, não há lugar a compensação pelo seu cumprimento, em caso de prosseguimento do processo, nos termos do disposto no artigo 282º, nº 4, do Código de Processo Penal.

O sinalagma subjacente ao cumprimento da injunção em causa nos autos tinha como correspondência a suspensão provisória do processo, que o arguido acabou por não poder beneficiar em toda a sua extensão, pelo seu incumprimento culposo, não podendo, por isso, obter qualquer benefício adicional, além da suspensão do processo que cessou com o prosseguimento do processo e subsequente julgamento.

Além do exposto, um arguido que esteja sujeito a injunção de não condução como condição de suspensão provisória do processo, caso a infrinja, não incorre na prática de um crime, contrariamente ao que sucede àquele que viole uma sanção acessória de inibição de condução, não sendo, por isso, as duas realidades funcionalmente comparáveis à luz do ordenamento jurídico, não permitindo, também por isso, o desconto realizado pela decisão recorrida.”.

Por assim ser, como é também o nosso entendimento, nos termos já acima explanados, entende-se não ser de proceder ao desconto na pena acessória de proibição de conduzir aplicada em sede de sentença do período de inibição já cumprido em sede de suspensão provisória do processo, apenas sendo considerada na fixação da pena acessória como o foi." (fim de transcrição, com sublinhados nossos).

3. Vejamos se assiste razão ao recorrente.

O acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 4 de Maio de 2017, que se encontra publicado na base de dados da DGSI do MJ em http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/78f7df3f3278a27d80258116004f54f7?OpenDocument e para cuja douta fundamentação se remete, fixou a seguinte jurisprudência:

“Tendo sido acordada a suspensão provisoria do processo, nos termos do art. 281º do Código de Processo Penal, com a injunção da proibição da condução de veículo automóvel, prevista no nº 3 do preceito, caso aquela suspensão termine, prosseguindo o processo, ao abrigo do nº 4, do art. 282º, do mesmo Código, o tempo em que o arguido esteve privado da carta de condução não deve ser descontado, no tempo da pena acessória de inibição da faculdade de conduzir, aplicada na sentença condenatória que venha a ter lugar.” (fim de transcrição).

É esta, precisamente, a situação ocorrida no caso ora em apreço e que a sentença revidenda bem teve em consideração, nela, nomeadamente e a este respeito, se consignado, que “Resulta dos elementos juntos aos autos que o arguido cumpriu a injunção de abstenção de conduzir pelo período de três meses aplicada no âmbito da suspensão provisória do processo.” O que aliás também se alcança, entre outras, de fls. 46 e vº, 51, 58 e vº, 62 a 64 e 87 dos autos.

Aliás, a posição expressa este ano pelo Supremo Tribunal de Justiça era já a do ora relator como se pode ver no acórdão desta 9ª Secção por si subscrito, datado de 6 de junho de 2013, lavrado, no processo 105/10.0SCLSB, pela Exmª Desembargador Maria Guilhermina Freitas e consultável na JusNet, onde, a dado passo, expendemos:

“É que a injunção que foi fixada, aquando da suspensão provisória do processo, tem uma natureza completamente diferente da pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor a que alude o art. 69.º do CP.

Conforme se refere no Ac. desta Relação de 6/3/2012, proferido no âmbito do Proc. 282/09.2SILSB.L1-5, disponível in www.dgsi. pt, "A pena acessória de proibição de conduzir assenta no pressuposto formal de uma condenação do agente numa pena principal (nos termos elencados nas diversas alíneas do nº 1 do art. 69º, do Cód. Penal) e no pressuposto material de (em face das circunstâncias do facto e da personalidade do agente), o exercício da condução se revelar especialmente censurável, censurabilidade esta que, dentro do limite da culpa, responde às necessidades de prevenção geral de intimidação e de prevenção especial para emenda cívica do condutor imprudente ou leviano. De facto, é o conteúdo do facto de natureza ilícita que justifica a censura adicional dirigida ao arguido em função de razões de prevenção geral e especial e que constituem a razão de ser de aplicação da pena acessória."

Enquanto que a injunção a que o arguido se obrigou não lhe foi imposta, nem assumiu o carácter de pena ou sequer de sanção acessória.

Quando o arguido fez a entrega da carta fê-lo de forma voluntária, no âmbito do cumprimento de um injunção com que concordou, tendo como finalidade a suspensão provisória do processo, nos termos do disposto no art. 281.º do CPP.

E, de acordo com o preceituado no n.º 4 do art. 282.º do CPP, em caso de incumprimento das injunções e regras de conduta as prestações feitas não podem ser repetidas, como acontece nos termos do art. 56.º, n.º 2, do CP.

Neste sentido veja-se Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 2ª edição actualizada, 2008, em anotação ao art. 282.º.

O princípio ne bis in idem está consagrado no art. 29.º, n.º 5, da CRP..

Segundo este normativo ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime.

No presente caso o arguido não foi julgado duas vezes, mas apenas uma. Aquela que culminou com a sentença objecto do presente recurso. ´

É que, conforme se refere no Acórdão desta Relação, supra citado, a suspensão provisória do processo não envolve qualquer julgamento sobre o objecto do processo. Trata-se de um despacho proferido numa fase inicial do inquérito e necessita, além do mais, da concordância do arguido.

Acresce que é uma decisão provisória, que não põe fim ao processo. O fim do processo só ocorrerá no final do decurso do prazo da suspensão, caso o arguido cumpra as injunções ou regras de conduta fixadas. Caso contrário, o processo prossegue - art. 282.º, nºs 3 e 4 do CPP.

Não constitui, pois, a condenação, em julgamento, em pena acessória de proibição de conduzir veículos a motor, depois de ter sido cumprida injunção de abstenção de conduzir, em suspensão provisória do processo, qualquer violação do princípio ne bis in idem consagrado no art. 29.º, n.º 5, da CRP.”. (fim de transcrição).

Assim sendo, perante este quadro fáctico-processual e o citado aresto uniformizador de jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça –

 cuja interpretação não foi julgada, até este momento, inconstitucional por parte do Tribunal Constitucional – e sem necessidade de mais quaisquer outros considerandos, não nos merece qualquer reparo a decisão recorrida, que importa ser mantida, não podendo, consequentemente, o recurso lograr procedência.

III – Decisão

Pelo exposto, acordam os Juízes na 9ª Secção Criminal da Relação de Lisboa, em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido A..., confirmando-se integralmente a decisão recorrida.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça no mínimo.

Notifique nos termos legais.

(o presente acórdão, integrado por dezasseis páginas, foi processado em computador pelo relator, seu primeiro signatário, e integralmente revisto por si e pelo Exmº Juiz Desembargador Adjunto – art. 94.º, n.º 2 do CPP)

Lisboa, 14 de setembro de 2017

Trigo Mesquita - Presidente

Calheiros da Gama - Relator

Antero Luís - Adjunto, com voto de vencido que segue anexo)

Voto de vencido Proc. 141/13.4GCALQ.L1

O Supremo Tribunal de Justiça através do seu acórdão de fixação de Jurisprudência 4/2017, de 4 de Maio de 2017, publicado no DR Série I de 16 de Junho de 2017, fixou jurisprudência obrigatória, nos termos citados e constantes do acórdão dos presentes autos.

Contudo, entendemos que, apesar de tal jurisprudência, tal como já tínhamos decidido no processo nº 1729/12.6SILSB.L1, da 9ª Secção, em que fomos relator, existirem argumentos, não considerados no referido aresto do Supremo Tribunal de Justiça, que nos levam a manter a posição defendida no referido processo nº 1729/12, nos termos do disposto no artigo 445º, nº 3, do Código de Processo Penal.

 Vejamos, antes de mais, a questão da natureza penal ou não penal das injunções e regras de conduta, aplicadas na suspensão provisória do processo.

A suspensão provisória do processo e a aplicação das injunções e regras de condutada, implica a “concordância do juiz de instrução” (artigo 281º, nº 1 do Código de Processo Penal), o que confere às mesmas uma natureza jurisdicional.

Na verdade, esta natureza jurisdicional resulta, desde logo, da interpretação histórica da norma.

O projecto original do Código de Processo Penal de 1987, não previa a intervenção do juiz de instrução na suspensão provisória do processo, sendo tal competência exclusiva do Ministério Público.

No acórdão de fiscalização preventiva da constitucionalidade do Código de Processo Penal[2], o Tribunal Constitucional, considerou tal solução inconstitucional ao considerar que, “(…) Já se não aceita, porém, a atribuição ao Ministério Público da competência para a suspensão do processo e imposição das injunções e regras de conduta previstas na lei, sem a intervenção de um juiz, natural­mente o juiz de instrução, e dai a inconstitucionalidade, nessa medida, dos nºs1 e 2 do artigo 281°, por violação dos artigos 206°. e 32°., nº4, da Constituição.[3]

A intervenção do juiz de instrução e a sua concordância vieram, em obediência a tal acórdão, a ser consagradas no Código de Processo Penal aprovado e, nessa medida, não podem deixar de ter consequências na natureza das injunções.

Na verdade, não faz sentido considerar que as injunções mantêm a mesma natureza com ou sem a intervenção do juiz de instrução, quando a solução sem a sua intervenção era inconstitucional.

Em nossa opinião a intervenção do juiz de instrução, com a sua concordância na suspensão provisória do processo, exigida pelo Tribunal Constitucional e assumida pelo legislador, confere às injunções uma natureza que as aproxima das sanções penais e como tal devem ser consideradas.[4]

A voluntariedade na aceitação das injunções é, em nossa modesta opinião, irrelevante para a se aferir da natureza das mesmas.

Basta atentar nas várias penas de substituição que exigem a anuência do arguido (regime de permanência em habitação; regime de semidetenção; trabalho a favor da comunidade; substituição da multa por trabalho), as quais, ninguém duvida ou põe em causa a sua natureza penal, para se concluir que a anuência do arguido é irrelevante para aferir da sua natureza. Não é, pois, a voluntariedade que determina a natureza da sanção, mas, antes, o facto de, na mesma, intervir ou não um juiz.

Esta mesma ideia é reforçada quando o legislador veio exigir, no nº 3 do artigo 281º, do Código de Processo Penal, a obrigatoriedade da injunção de proibição de conduzir veículos com motor.

Aqui a voluntariedade já não existe, existindo, pelo contrário, uma espécie de contrato de adesão com o qual o arguido concorda ou não concorda e, nem por isso, a ideia subjacente ao mecanismo de suspensão provisória do processo, que é a voluntariedade, fica abalada.

Podemos, pois, concluir que a voluntariedade é irrelevante para aferir da natureza da injunção.

O grande argumento que se pode invocar para o não desconto é, na verdade, o artigo 282º, nº 4 do Código de Processo Penal, quando estabelece que em caso de incumprimento e de o processo prosseguir, “as prestações feitas não podem ser repetidas”, tal como acontece no artigo 56º, nº 2 do Código Penal, em relação à revogação da suspensão da execução da pena de prisão.

Mas o que entender com tal expressão? Todas as prestações feitas? Só algumas?

Vejamos alguns exemplos para poder responder a tal questão.

Desde logo se estivermos em presença do pagamento de uma indemnização como pressuposto da suspensão, é indiscutível que a mesma se teria de considerar definitivamente paga, sob pena de estarmos em presença de um enriquecimento ilícito e sem justa causa.

De igual modo, se estivermos em presença de uma acção desculpadora perante o lesado ou terceiro, a mesma também teria que se considerar como definitivamente cumprida, já que se esgota no acto de execução.

Mas se, por exemplo, estivermos em face do pagamento em prestações de uma indemnização, as prestações pagas não são abatidas numa futura condenação? A resposta só pode ser afirmativa, pois caso contrário também aqui estaríamos perante um enriquecimento ilícito e sem justa causa.

Como doutamente se refere no acórdão do Tribunal da relação do Porto de 19/11/2014, a “(…) expressão prestações não se refere à proibição de conduzir veículos com motor, ainda que «prestação» numa acepção civilista seja a “actividade ou acção, positiva ou negativa com vista à satisfação do interesse do credor, prestação de facto positivo ou negativo”[5], pois o conceito de não repetição das prestações, só pode ser entendido como referindo-se às prestação que pela sua natureza possam ser repetidas, o que não acontece com o cumprimento da proibição de conduzir, como bem faz notar o referido acórdão da Relação de Évora.[6] Trata-se pois de um conceito que se aproxima da «repetição do indevido» utilizado em sede do instituto do enriquecimento sem causa, e como tal com um nítido cariz de natureza patrimonial, entendido como “o direito de reaver aquilo que foi satisfeito”[7] e como se escreve naquele acórdão da relação de Évora, com “o mesmo sentido e alcance da impossibilidade de “restituição de prestações” efectuadas, em caso de revogação da suspensão da execução da pena de prisão, constante do nº2 do artº 56º do Cód. Penal.”, ou seja as prestações previstas nas alíneas a) e b) do nº1 do artº 51º do CP.[8]

Nestas situações, meramente exemplificativas, como se pode ver as soluções são uniformes por força dos princípios que regem determinadas realidades jurídicas, seja ao nível civil seja penal.

O mesmo acontece, quando estão em causa injunções inerentes ao poder punitivo do Estado, cumpridas parcialmente pelo arguido.

Nestas, o princípio que está em causa é a proibição de non bis in idem.

Defendendo nós que as injunções, por força da intervenção do juiz na sua aplicação, com a sua concordância obrigatória, revestem natureza que as aproxima das sanções penais, não podem às mesmas deixar de se aplicar as regras previstas para essas mesmas sanções penais.

Nestas, se é verdade que o desconto da prisão preventiva está previsto na lei (artigo 80º do Código Penal), o que não acontece com o desconto das injunções parcialmente cumpridas, também é verdade que o legislador no artigo 69º, nº 6 do Código Penal, não incluiu como não contando para efeitos de proibição, o tempo já cumprido em sede de suspensão provisória de processo.

Se atentarmos no inciso o mesmo é bastante completo e rigoroso, já que o campo de aplicação é bastante preciso “medida de coacção processual, pena ou medida de segurança”. Este rigor leva-nos a concluir que foi intenção do legislador não incluir na “conta para o prazo da proibição”, as injunções parcialmente cumpridas. Não se trata, pois, de uma omissão ou lacuna a preencher, mas, antes, de uma opção legislativa.

O legislador não quis, expressa e intencionalmente, incluir na norma as injunções parcialmente cumpridas, como não contando, para efeitos da contagem do prazo de proibição de sanção acessória.

Mas, voltemos à proibição de non bis in idem e às suas consequências.

O artigo 29º, nº 5 da Constituição da República Portuguesa consagra o mesmo ao nível do julgamento, nos seguintes termos “Ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime”.

Em anotação a este artigo, os Profs. Vital Moreira e Gomes Canotilho, consideram que a Constituição, “(…) proíbe rigorosamente o duplo julgamento e não a dupla penalização, mas é óbvio que a proibição do duplo julgamento pretende evitar tanto a condenação de alguém que já tenha sido definitivamente absolvido pela prática da infracção, como a aplicação renovada de sanções jurídico-penais pela prática do «mesmo crime».[9]

Como se pode ver deste entendimento, a protecção constitucional abrange o duplo julgamento, mas também a “aplicação renovada de sanções jurídico-penais pela prática do «mesmo crime»”, que seria exactamente o que aconteceria com o não desconto das injunções já compridas pelo arguido, seja ao nível da proibição de condução, seja ao nível dos dias de trabalho correspondentes a dias de multa parcialmente cumpridos.

Na verdade, revestindo as injunções natureza próxima das sanções penais, por força da intervenção do juiz de instrução, não poderemos deixar de considerar como uma “renovada sanção jurídico-penal”, o não desconto das injunções já cumpridas sob pena de uma clara violação do princípio non bis in idem ínsito no texto constitucional.

Em resumo, pese embora a jurisprudência obrigatória do Supremo Tribunal de Justiça e pelos argumentos anteriormente referidos, entendemos que devem ser descontados nas penas aplicadas ao arguido as injunções já anteriormente cumpridas, em sede de suspensão provisória do processo, procedendo, nessa medida e em nossa opinião, o recurso.

Lisboa 14 de Setembro de 2017

(Antero Luís)

______________________________________________________


[1] Dados disponibilizados no relatório anual relativo à sinistralidade rodoviária, da ANSR e no disponível no site deste organismo.
[2] Acórdão do Tribunal Constitucional nº 7/87, de 9 de Janeiro de 1987.
[3]In http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/19870007.html.
[4] Aparentemente em sentido parcialmente concordante, Prof. Costa Andrade, consenso e oportunidade, Jornadas de Direito Processual Penal, o Novo Código de Processo Penal, pág.353.
[5] Cfr. João de Mãos Antunes Varela, Das Obrigações em Geral 2ª edição, Almedina 1973, pág.65 e Mário Júlio Almeida e Costa, Direito das Obrigações, Almedina, 1979, pág.116.
[6] Ac. da Relação de Évora de 11/7/2013 proferido no proc. 108/11.7PTSTB.E1 (relator Sénio Alves), in www.dgsi.pt
[7] Prof. Galvão Teles, Obrigações, 3ª ed., 139, citado no referido ac. da rel. de Évora de 11/7/2013
[8] Proc. 24/13.8GTBGC.P1, (Relatora Desembargadora Lígia Figueiredo) in www.dgsi.pt.
 
[9] In Constituição da República Portuguesa anotada Vol. I, pág, 497.