Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
4888/2006-2
Relator: MARIA JOSÉ MOURO
Descritores: COMPRA E VENDA
RESERVA DE PROPRIEDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/29/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: RECURSO IMPROCEDENTE
Sumário: I - Se entre a A. e os RR. não foi celebrado qualquer contrato de alienação, não sendo a A. vendedora do veículo automóvel que os RR. adquiriram, mas tão só, a entidade financiadora do crédito para aquisição daquele veículo automóvel a outrem, não pode a A. reservar para si o direito de propriedade desse veículo uma vez que tal direito não existe na sua esfera jurídica.
II - A cláusula em que o financiador reserva para si a propriedade de uma coisa alienada pelo vendedor é nula.
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Cível (2ª Secção) do Tribunal da Relação de Lisboa:
*
I - «S…, SA» intentou a presente acção declarativa com processo ordinário contra J… e contra A… .
Alegou a A., em resumo:
A A. dedica-se á actividade de locação financeira e financiamento de aquisições a crédito. No âmbito dessa actividade celebrou com os RR. um contrato de financiamento para aquisição de um veículo automóvel sendo que, como garantia do seu bom cumprimento, foi clausulada a constituição de reserva de propriedade a favor da A. sobre o mencionado veículo. O veículo foi vendido com o encargo de reserva de propriedade, o qual se encontra devidamente registado na Conservatória do Registo Automóvel. Os RR. obrigaram-se a pagar á A. a prestação mensal de € 463,55 pelo período de 72 meses; contudo, deixaram de pagar aquelas prestações. Através de carta registada com aviso de recepção a A. concedeu ao 1° R. um prazo de 10 dias para pôr termo à mora, findos os quais a mora se convertia em incumprimento definitivo, carta essa que foi recebida pelo R.. O R. não liquidou as prestações em dívida nem restituiu o veículo; a A. tem direito à entrega do veículo considerando a reserva de propriedade.
Pediu a A:
a) que seja declarada a resolução do contrato de crédito celebrado entre a A. e os RR. em 16.11.04.;
b) consequentemente, que sejam os RR. condenados a restituir à A. o veículo automóvel da marca Mercedes Benz, modelo C 220 CDI Sport, matrícula - - ;
c) que seja reconhecido o direito ao cancelamento do registo averbado em nome do R..
Citados, os RR. não contestaram.
Foi proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente – declarando, embora, válida a resolução do contrato celebrado entre a A. e os RR., absolveu estes dos pedidos de restituição do veículo e de cancelamento do registo.
Da sentença apelou a A., concluindo pela seguinte forma a respectiva alegação de recurso:
…….
Não houve contra alegações.
*
II - O Tribunal de 1ª instância julgou provados os seguintes factos:
1. A 16.11.04. a A. e os RR. subscreveram o instrumento junto por fotocópia a fls. 24-25 destes autos, denominado "Contrato de Financiamento para Aquisição a Crédito — Contrato n.° 521 377".
2. Nesse instrumento e sob "Condições Particulares" consignou-se:
- Fornecedor do bem: F J Cardoso, Lda.
- Descrição do bem: Marca Mercedes Benz, matrícula 19-36-VQ;
Valor do bem: € 22 000,00; - Entrada inicial: € 1 500,00;
- Crédito concedido: € 20 500,00;
- (…)
Valor de cada prestação: € 463,55;
Total financiamento e encargos: € 33 618,00;
- N.° de prestações mensais e postecipadas: 72;
- Data de vencimento da 1ª prestação: 23.12.04.;
- Garantias: reserva de propriedade.
- (…)
3. Nesse instrumento e sob "Condições Gerais" ficou consignado:
- Cláusula 1ª -
a) A S… concede ao cliente um empréstimo, destinado a financiar a aquisição de bens e serviços, no montante e condições fixadas neste contrato.
b) (…)
- Cláusula 2ª -
a) O cliente desde já autoriza a S... a entregar o montante mutuado ao fornecedor do bem ou serviço indicado nas condições particulares, nas condições acordadas entre a S... e o vendedor do bem e/ prestador do serviço;
b) (...)
- Cláusula 3ª
a) A quantia mutuada será reembolsada em prestações sucessivas, cujo número, periodicidade, valor e data estão fixadas nas Condições particulares deste contrato;
b) Estas prestações englobarão a amortização, o pagamento de juros, encargos e impostos legalmente obrigatórios.
- Cláusula 9ª -
a) Em garantia do bom pagamento do capital emprestado, respectivos juros e demais obrigações decorrentes do presente contrato, o cliente presta as garantias que venham referidas nas condições particulares do mesmo.
b) (…)
c) (…)
d) (…)
e) Até ao integral cumprimento deste contrato, a S... poderá constituir, no seu interesse, reserva de propriedade sobre o bem objecto deste contrato, salvo se a S... dela prescindir.
4. A propriedade do veículo supra identificado está registada na CRA de Lisboa a favor do 1° Réu.
5. Sobre o referido veículo e registada na CRA incide uma reserva de propriedade tendo como sujeito activo a S...
6. O Réu não pagou a 1ª prestação, vencida a 23.12.04 e seguintes.
7. Com a data de 25.02.05, a Autora enviou ao 1° Réu, para a morada do contrato, a carta junta por fotocópia a fls. 27 e á Ré, para a morada que consta do contrato, a carta de fls. 30, mediante registo e com aviso de recepção, nos termos das quais dá conta das prestações em dívida, concede um prazo suplementar de 10 dias para pagamento das referidas prestações, com a cominação de, não sendo efectuado o pagamento, considerar o contrato automaticamente resolvido.
8. As referidas cartas foram devolvidas ao remetente com a menção de não reclamadas.
9. Os RR. no prazo que lhes foi concedido não pagaram as prestações em dívida nem restituíram o veículo.
*
III – 1 - Das conclusões da apelação interposta – e são essas conclusões que definem o objecto da mesma, consoante resulta dos arts. 684, nº 3 e 690, nº 1 do CPC – decorre que, fundamentalmente, a questão que se coloca no presente recurso é a de se, tendo sido celebrado um contrato de mútuo com vista ao pagamento do preço num contrato de compra e venda, o mutuário pode ficar como titular da reserva de propriedade sobre o bem comprado pelo mutuante.
*
III – 2 – A cláusula de reserva de propriedade reporta-se, inevitavelmente, aos contratos de alienação.
Em regra, a transferência de direitos reais sobre coisas determinadas dá-se por mero efeito do contrato – art. 408 do CC.
Contudo, nos termos do art. 409, nº 1, do CC nos contratos de alienação é lícito ao alienante reservar para si a propriedade da coisa até ao cumprimento total ou parcial das obrigações ou até à verificação de qualquer outro evento. Acrescenta o nº 2 do mesmo artigo que «tratando-se de coisa imóvel ou de coisa móvel sujeita a registo, só a cláusula constante do registo é oponível a terceiros».
Por seu turno, consoante o art. 5, nº 1-b) do dl 54/75, de 12-2, está sujeita a registo a reserva de propriedade estipulada em contratos de alienação de veículos.
Com a reserva de propriedade o vendedor visa precaver-se de uma eventual inexecução do contrato ou insolvência por parte do comprador, podendo obter a restituição da coisa e fazer valer os seus direitos quer face ao comprador, quer face a terceiros, credores daquele; em simultâneo é proporcionado o gozo da coisa ao adquirente antes de realizado o preço. Implica que, por acordo entre devedor e comprador, a transmissão da propriedade seja diferida para o momento do pagamento integral do preço (ou para o momento em que se verifique aquele evento a que a cláusula se reporta).
Refere Menezes Leitão (1) que «a cláusula de reserva de propriedade tem que ser estipulada no âmbito de um contrato de compra e venda, do qual não pode ser cindida. Assim, se a venda já foi celebrada, não poderá posteriormente ser nela inserida uma cláusula de reserva de propriedade, dado que a propriedade, nesse caso, já foi transferida para o comprador» (sublinhado nosso).
*
III – 3 - Tem sido discutida a natureza do pacto de reserva de propriedade.
Pires de Lima e Antunes Varela (2) entendem que neste caso o negócio será realizado sob condição suspensiva, quanto à transferência de propriedade; esta é a posição clássica sobre a questão – a transmissão da propriedade ficaria sujeita a um facto futuro e incerto (designadamente o pagamento do preço).
A tese hoje maioritária na doutrina configura a venda com reserva de propriedade como uma venda em que o efeito translativo da propriedade é diferido ao momento do pagamento do preço (ou do evento estabelecido), obtendo, no entanto, o comprador logo com a celebração do contrato uma posição jurídica específica, distinta da propriedade, normalmente qualificada como uma expectativa real de aquisição (3).
Luís Lima Pinheiro (4) refere que se trata de «uma convenção de garantia acessória do contrato de compra e venda, convenção esta que reserva a faculdade de resolver o contrato, mas que se socorre instrumentalmente de uma condição suspensiva do efeito translativo, para alcançar o seu efeito característico: a oponibilidade erga omnes da resolução … A condição suspensiva subordina a transferência do direito de propriedade, não obsta porém à transmissão da posse, que se opera com a tradição da coisa. Enquanto o adquirente detém o conjunto de poderes de gozo e disposição que correspondem ao conteúdo do direito de propriedade, a propriedade reservada do alienante consiste apenas na titularidade “abstracta” do direito de propriedade.
O “direito de expectativa” do comprador revela-se, assim, não só um direito real de aquisição da propriedade, mas também um direito de gozo nos termos do direito de propriedade».
Ana Maria Peralta (5) defende que a compra e venda com reserva de propriedade é um tipo especial de compra e venda em que a transferência de propriedade é diferida – por razões que se prendem com a garantia de uma das partes contra o risco de incumprimento da outra, as partes desligam temporalmente a transmissão da propriedade com respeito à celebração do contrato, sendo o comprador titular de uma expectativa jurídica real (que aquela autora reconduz a um direito real de aquisição automática).
*
III – 4 - De qualquer modo, como vimos, embora normalmente o evento que determina a transferência da propriedade seja o pagamento do preço, as partes poderão colocar aquela transferência dependente da verificação de qualquer outro evento, inclusivamente o pagamento de uma dívida a terceiro – o que é uma situação comum nos casos em que o financiamento para a aquisição do bem não é fornecido pelo vendedor mas por terceiro.
Como assinala Menezes Leitão (6) mais complexa é a questão de saber se o financiador pode ficar como titular da reserva de propriedade.
*
III – 5 - No caso que nos ocupa, entre a A. e os RR. foi celebrado um contrato de mútuo – a A. financiou a aquisição pelos RR. de um veículo automóvel e estes obrigaram-se a restituir à A. a quantia mutuada e os juros no condicionalismo acordado.
Entre a A. e os RR. não foi celebrado qualquer contrato de alienação - a A. não é alienante do veículo automóvel mas, tão só, mutuante no âmbito do contrato de financiamento que permitiu aos RR. obterem a quantia que possibilitou a satisfação do preço no contrato de compra e venda que os RR. celebraram com outrem.
Estamos perante dois contratos autónomos, ainda que económica e funcionalmente interligados – os dois contratos como que se unem em vista da prossecução de uma finalidade económica comum, mantendo, contudo, formal e estruturalmente a sua autonomia (7).
Como garantia do pagamento do crédito concedido aos RR. foi reservada a favor da A. a propriedade do veículo que fora vendido por terceiro – reserva de algo que a A. nunca deteve.
Se a A. nada alienou – o veículo foi vendido aos RR. por terceiro – limitando-se a conceder o crédito, não estamos no circunstancialismo previsto no texto do art. 409 do CC.
Face àquele preceito, só o vendedor, o titular do direito de propriedade sobre o veículo poderia manter na sua esfera jurídica a propriedade daquilo que vendera (para efeito de poder resolver o contrato e obter a restituição do veículo, nos termos do art. 934 do CC).
Sendo de salientar que, como defende Fernando de Gravato Morais (8) reportando-se à argumentação que assenta sobre o espírito do nº 1 do art. 409 do CC a «finalidade do legislador, ainda que interpretada actualisticamente, não terá sido a de permitir a quem não aliena um bem, mas tão só o financia, a constituição em seu favor de uma reserva de domínio sobre esse objecto – que não produziu nem forneceu – apenas em razão do fraccionamento das prestações».
Conclui-se, pois, que a entidade financiadora do crédito para aquisição de um veículo automóvel não pode reservar para si o direito de propriedade desse veículo – desde logo por esse direito não existir na sua esfera jurídica.
É certo que no art. 6, nº 3-f) do dl 359/91 (referente aos contratos de aquisição a crédito) se prevê que fique a constar do contrato de financiamento o acordo sobre a reserva de propriedade. Mas tal disposição reporta-se, apenas, a situações em que o vendedor, proprietário do bem, mantém essa qualidade por efeito da reserva, ao mesmo tempo que financia a aquisição através de alguma das formas previstas no art. 2 (diferimento do pagamento, mútuo, utilização de cartões de crédito ou outro acordo de financiamento semelhante), não podendo aquela norma ter aplicação a situações previstas no art. 12 do mesmo diploma, em que o crédito é concedido por terceiro para financiar o pagamento de bem adquirido ao vendedor (9).
Alude a apelante nas suas conclusões de recurso à sub-rogação, mencionando estar sub-rogada nos direitos que caberiam ao vendedor do veículo; contudo, consoante resulta do nº 2 do art. 591 do CC, no que concerne à sub-rogação em consequência de empréstimo feito ao devedor, a sub-rogação não necessita do consentimento do credor, mas só se verifica quando haja declaração expressa, no documento do empréstimo, de que a coisa se destina ao cumprimento da obrigação e de que o mutuante fica sub-rogado nos direitos do credor. Ora, tal declaração expressa de sub-rogação não se verifica no documento de empréstimo junto aos autos a fls. 24-25.
Citando Fernando de Gravato Morais (10) diremos, para terminar: «Deste modo, a cláusula em que o financiador reserva para si a propriedade de uma coisa alienada pelo vendedor, porque contrária a uma disposição de natureza imperativa, é assim nula, nos termos do art. 294 do CC».
No caso dos autos é, pois, de aplicar a regra geral constante do art. 408: a transferência do direito real sobre aquele veículo determinado deu-se por mero efeito do contrato, do vendedor para os RR..
O mutuante, enquanto o legislador não entender alargar os mecanismos de que ele pode dispor para defesa dos seus interesses, sempre poderá lançar mão de outros meios – por exemplo, clausulando-se a constituição de uma hipoteca em seu benefício.
Não podemos, porém, pretender substituirmo-nos ao legislador extraindo das normas em vigor soluções que nem a sua letra nem o seu espírito comportam.
Assim, é de manter a decisão recorrida.
*
IV – Face ao exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando a sentença recorrida.
Custas da acção consoante decidido em 1ª instância e custas da apelação pela apelante.
*
Lisboa, 29 de Junho de 2006

-----------------------
Maria José Mouro
------------------------
Neto Neves
------------------------
Manuel Capelo



____________________________
(1).-«Direito das Obrigações», 3ª edição, vol. III, pag. 53.

(2).-Código Civil Anotado, vol. I, pag. 357.

(3).-Ver Menezes Leitão, obra citada, pags. 58-65.

(4).-A Cláusula de Reserva de Propriedade, Almedina, 1988, pags. 115-116.

(5).-«A Posição Jurídica do Comprador na Compra e Venda com Reserva de Propriedade», Almedina, 1990, pag. 152-153.

(6).-Obra citada, pag. 53, nota 92.

(7).-Ver, a propósito, o acórdão da Relação do Porto de 1-6-2004, ao qual se pode aceder em http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/, proc. 0422028.

(8).-«Cadernos de Direito Privado», nº 6, Abril/Junho de 2004, pag. 52, em artigo denominado «Reserva de Propriedade a Favor do Financiador», comentando o Acórdão da Relação de Lisboa de 21-2-2002, pag. 43 e segs.

(9).-Neste sentido o acórdão desta Relação de 14-12-2004, ao qual se pode aceder em http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/, proc. 9857/2004-7.

(10).-Local citado.