Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2042/17.8T8OER.L1-6
Relator: CRISTINA NEVES
Descritores: COMPRA E VENDA
VEÍCULO AUTOMÓVEL
DEFEITOS
DIREITOS DO COMPRADOR
ORDEM DE EXERCICIO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/26/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I - O consumidor adquirente de coisa defeituosa, para além da protecção conferida pelo regime legal do contrato de compra e venda constante do Código Civil (artºs e 913 e segs), beneficia ainda da proteção conferida pela Lei de Defesa do Consumidor (aprovada pelo Dec. Lei n.º 24/96, de 31/7 e alterada pelo D.L. 67/2003 de 08/04) bem como, se aplicável, do regime de compra e venda celebrado entre profissionais e consumidores, instituído pelo Dec. Lei n.º 67/2003, de 8 de abril, alterado e republicado pelo Dec. Lei n.º 84/2008, de 21 de maio, podendo exigir, em caso de falta de conformidade do bem com o contrato, a sua reposição sem encargos, por meio de reparação ou de substituição, a redução adequada do preço ou a resolução do contrato – art.ºs 3 e 4/1.º do Dec. Lei n.º 67/2003 de 8 de abril.
II - O Dec. Lei 67/2003, no seu artº 5, não impõe qualquer hierarquização dos diversos direitos que assistem ao consumidor, não se impondo ao adquirente consumidor que, em primeiro lugar, peticione a reparação/substituição e, só na ausência dessa reparação ou substituição do bem, a resolução/anulação do contrato.
III - Em relação ao produtor do bem, o Dec. Lei 67/2003, prevê no seu artº 6, a obrigação deste de proceder à reparação ou substituição do bem, mas não prevê que possa ser peticionado do produtor, a resolução ou anulação do contrato.
 IV - No entanto, o exercício dos direitos conferidos ao adquirente de coisa defeituosa que seja consumidor, ainda que não hierarquizados, deve sempre obedecer aos ditames da boa fé, não podendo constituir um exercício abusivo do direito, conforme dispõe o artº 4 nº7 do D.L. 67/2003.
IV - Tendo o autor, adquirente do bem, optado pelo exercício do direito à reparação do veículo automóvel, sendo este reparado e aceite essa reparação, em conformidade com o disposto no artº 4 nº1 do D.L. 67/2003, extinguiu-se o direito deste de invocar, posteriormente, tais defeitos ou a falta de conformidade do bem, como fundamento para exigir a resolução do contrato e restituição do preço pago, por violador dos princípios da boa fé.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na 6ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

RELATÓRIO
A [  Jorge ….] intentou acção declarativa com processo comum, contra B [ …. Portugal S.A.”] e C [ ….. – Comércio e Reparação de Veículos Lda”] , peticionando que:
a) Sejam condenados os Réus, solidariamente, a pagar ao Autor o montante de € 33.229,00, a saber:
-€ 24.229,00, correspondente à aquisição da viatura e entrega da sua anterior para abate, recebendo os Réus a viatura objecto do contrato que agora se pretende anulado por incumprimento;
- € 6.000,00 correspondente ao prejuízo tido em € 1.500,00 por cada ano decorrido, e correspondente à não possibilidade de tratamento dos terrenos sua propriedade e recolha pela dos frutos e produtos agrícolas que lhe estariam disponíveis regularmente se lhe fosse possível deslocar-se regularmente como era o objectivo, com a viatura adquirida;
- € 3.000,00 correspondente aos danos que o Autor teve que enfrentar com a enfermidade de sua esposa e dano psicológico causado por tal enfermidade a ele, para além da esposa;
Sendo que assim não entendido, o que não se consegue vislumbrar, então invoca o Autor, desde logo, como pedido alternativo, a aplicação do instituto do enriquecimento sem causa, em que deverão os Réus, solidariamente, pagar ao Autor os valores indicados no pedido principal, tendo em conta as causas mencionadas, e assim os valores com se locupletaram, ou provocaram prejuízo, e empobrecimento ao Autor.
Em qualquer dos pedidos, principal ou subsidiário, só pode estar inerente, a entrega aos Réus da viatura que não preencheu os objectivos pretendidos pelo Autor, não tendo o uso pleno e pretendido para que foi adquirida, objectivos que afinal, erradamente, tinham sido oferecidos pelos Réus na sua proposta apresentada ao Autor.
Para fundamentar estes pedidos alegou que adquiriu um veículo automóvel ao 2º R., em 4 de Setembro de 2012, pelo valor de € 23.379,02, incluindo a entrega, em retoma, de outra viatura do A. avaliada em € 850,00, destinando-a às suas deslocações, nelas se incluindo viagens frequentes à zona de Castelo Branco, tendo a viatura, pouco depois da sua aquisição, sofrido sucessivas avarias reparadas pelas RR., que impediram a sua plena utilização para viagens fora da zona de Lisboa.
Conclui que, por este motivo, sofreu prejuízos por não poder dedicar-se ao cultivo de terrenos que tem em Castelo Branco e no agravamento da enfermidade de sua esposa, que peticiona, considerando ainda que as sucessivas avarias da viatura, apesar de reparadas, lhe conferem o direito à resolução do contrato e restituição do valor entregue para aquisição da mesma.
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Citados os RR., veio o 1º R. a deduzir contestação alegando que todas as avarias sofridas pelo veículo, estão e foram reparadas, nunca tendo impedido a sua normal utilização, não existindo quaisquer dos prejuízos mencionados pelo A.
Por sua vez, o 2º R. deduziu contestação, alegando a excepção de caducidade, por os defeitos terem sido denunciados em 2013 e a acção interposta em Maio de 2017 e por impugnação, alegando que o veículo nunca apresentou o mesmo defeito e que os apresentados foram reparados, não existindo qualquer nexo de causalidade entre as avarias do veículo e os danos alegados pelo A.
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Em sede de resposta à excepção de caducidade, veio o A. pugnar pelo seu indeferimento, alegando a ocorrência de sucessivas avarias, todas objecto de denúncia, a última das quais em 2016, pelo que os prazos de caducidade ainda não decorreram.
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Dispensada audiência prévia, veio a ser proferido despacho saneador, no qual se relegou para sentença a excepção de caducidade invocada e se fixou o objecto do litígio e os temas de prova.
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Após, realizada prova pericial e a demais que foi requerida, foi afinal proferida sentença, na qual, se absolveram as RR. do pedido.
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Não conformado com esta decisão, impetrou o A. recurso da mesma, formulando, no final das suas alegações, as seguintes conclusões, que se reproduzem:
1) O Recorrente não se pode conformar com a douta sentença, nem quanto aos seus fundamentos, nem quanto à análise da prova produzida em audiência de julgamento.
2) Na presente acção o Recorrente apresentou um pedido em que pretendia que as Recorridas fossem condenados a pagar a quantia de € 33.229,00, a saber € 24.229,00 correspondente ao valor de aquisição da viatura Renault Mégane 96-..-03, e bem assim à entrega a sua anterior viatura para abate; € 6.000,00 valor mínimo correspondente ao prejuízo tido de € 1.500,00 por cada ano entre 2013 e 2016 (€125,00 / mês), correspondente à não possibilidade de tratamento dos terrenos e horta sua propriedade, recolhendo frutos em tempo e outros produtos agrícolas para consumo interno seu e da família, e assim sendo obrigado a pagar a terceiros para adquirir; no valor mínimo de € 3.000,00 correspondente aos danos calculados que o Autor teve com o seu estado psicológico e o suporte da enfermidade agravada de sua esposa, tudo derivado da situação criada pelas avarias da identificada viatura.
3) O Recorrente veio apresentar pedido alternativo, sendo que quanto a este entende que o enriquecimento sem causa, tendo claramente uma função subsidiária, e só à cautela foi incluído tal pedido, mas não deixa de ser interessante que o Tribunal a quo conclua sem mais (nem considerado em sede de matéria de facto) de que não houve qualquer enriquecimento ou empobrecimento do Autor, se não tomarmos em conta a utilização das suas poupanças para aquisição de uma viatura cuja utilização foi e é residual, face às avarias regulares, e à insegurança que provoca ao Recorrente.
4) Todavia sendo pedido alternativo subsidiário não será o objectivo primário do presente recurso, antes o Recorrente limita-se à matéria de facto considerada, ou a que deveria ser, e assim no que diz respeito ao pedido principal e sua causa de pedir.
5) O Recorrente, nas presentes Alegações, vem justificar o requerido pedido de alteração da resposta à matéria de facto no que diz respeito aos pontos 15 e 16, os quais foram dados como não provados.
6) No ponto 15 considera o Tribunal a quo como não provado de que por causa dos problemas da viatura o Autor, aqui Recorrente, despendeu pelo menos € 3.000,00 em tratamentos com a enfermidade de sua esposa, e com a sua estabilidade psicológica.
7) Desde logo, entende o Recorrente de que é manifesta a contradição entre o ponto 5 dos factos dados como provados, e do conteúdo do ponto 15 dado como não provado, bem como as Recorridas nunca conseguiram afastar a alegação do Recorrente a este propósito, mesmo arrolando o médico assistente da esposa do Recorrente, e conforme depoimento deste, transcrito nas presentes Alegações.
8) Não se pode aceitar o que nunca foi alegado, de que o Tribunal a quo ter ficado sem saber em que se funda a afirmação de que a mulher daquele padece de «uma certa fobia de entrar no automóvel».
9) O depoimento do médico assistente e Psiquiatra explicou cabalmente, e aliás o Tribunal a quo no ponto 5 dado como provado explica a fobia em causa, eventualmente sem se aperceber, dando azo à já mencionada contradição.
10) O Tribunal a quo, quando diz que a esposa do Recorrente passou a desenvolver ansiedade e falta de confiança na realização das viagens para a zona da Sertã, e como se extrai dos depoimentos transcritos, muitas vezes nem ia, ou ia de transportes, tal é a fobia que cuja explicação o Tribunal a quo tanto procurou.
11) A verdade é que o que o Tribunal a quo conclui quanto ao ponto 15 como não provado, mas o alegado a este respeito não corresponde exactamente, bastando para tal verificar o artigo 24 da PI.
12) Ora daí se extrai de que o valor nunca inferior a € 3.000,00, resulta dos prejuízos tidos pelo Recorrente com o agravamento da enfermidade da esposa, conforme prova testemunhal transcrita nas presentes Alegações, e também a afectação da sua própria estabilidade psicológica, face à situação de nunca ter tido a possibilidade de uso pleno da viatura, e a falta de confiança nessa utilização face às avarias reconhecidas.
13) A verdade é que o Autor e Recorrente nunca indicou valor exacto, já que o problema se manteve, e a insegurança e seus efeitos sobre a saúde se mantém, basta ver a transcrições dos depoimentos aqui invocados.
14) O já identificado médico, em consulta de 2016, informou que a estabilidade da esposa do Recorrente estava afectada, pois não conseguia entrar na viatura, tendo em conta as frequentes avarias (nexo causal), e tudo isso também se estendia ao Recorrente, para além da sua ansiedade e nervosismo, como descrito em audiência de julgamento.
15) Os depoimentos transcritos, e aliás nunca colocados em crise como não sendo credíveis, atestaram a afectação psicológica do Recorrente, quer pelo que lhe acontece, quer ainda por ter que se preocupar pelo que isso representava para a sua esposa, e como o afectava, quer em termos físicos, quer em termos de tratamento e cuidados dele com a esposa, tendo a mesma causa, a viatura adquirida com as suas poupanças e que se vêm privados de utilizar face às frequentes avarias, algumas depois de poucos kms, outras quando eventualmente já se tentava esquecer.
16) Assim o valor indicativo mínimo de € 3.000,00 prende-se com o que o Recorrente entende por ser o valor natural indemnizatório, tendo em conta a sua afectação psicológica, directamente, ou por preocupação e tratamento da sua esposa.
17) A razão ficou clara, o nexo causal por demais evidente, logo não se entende a conclusão do Tribunal a quo a este respeito.
18) Assim só pode ver-se alterado o ponto 15 da resposta dada à matéria de facto, alterando de não provado para provado, com fundamento no que verdadeiramente foi alegado no artigo 24 da PI, bem como a devida prova produzida em audiência de julgamento., sendo que cabia ao Tribunal fundamentar devidamente a razão de ser da sua douta conclusão, aplicando o direito devidamente, podendo, porque lhe estava disponível o instituto da equidade.
19) O mesmo se aplica ao ponto 16 dado como não provado, pois existe o mesmo nexo causal, relacionado com a viatura identificada e as respectivas avarias regulares, que impediam o Recorrente de ir algumas vezes às suas terras, sitas na Sertã.
20) Através de prova em audiência de julgamento foi concluído que o Recorrente nunca abandonou os terrenos, sendo que algumas vezes até solicitava boleia, mas por exemplo a horta deixou de tratar devidamente e em tempo (ver depoimentos transcritos nas presentes Alegações).
21) Aliás é o Tribunal a quo que na sua douta fundamentação, reconhece que as testemunhas Vítor ….., Firmino ….., Manuel …., confirmaram a existência de problemas do Autor nas suas deslocações ‘à terra’, e a sua actividade agrícola não comercial.
22) Tal confirma o que o Recorrente havia alegado no seu artigo 25º da PI.
23) O valor indicativo mínimo de € 1.500,00 por cada ano entre 2013 e 2016 (€ 125,00 por mês) corresponde claramente às vantagens que o Recorrente deixou de usufruir, e que por isso teve de adquirir os bens não obtidos, pagando a terceiros, e que se quantifica no mínimo nessas quantias, existindo nexo causal, como o demonstram os depoimentos das testemunhas mencionadas reconhecidos em sede de fundamentação pelo Tribunal a quo, bem como alguns dos depoimentos aqui transcritos.
24) Dos depoimentos, incluindo o da testemunha Susana …., se extrai que devido a alguma irregularidade de deslocação perante as avarias da viatura e falta de confiança na sua utilização plena, a horta foi abandonada, sendo apenas retomada quando o Autor passou a estar a maior parte do tempo na zona da Sertã.
25) Ora foi essa avaliação de € 1.500,00 por cada ano, de que resulta €125,00 por mês, cuja perda a família do Recorrente sentiu como prejuízo, tendo de adquirir produtos que antes colhia e beneficiava, e que a não utilização plena da viatura e a incerteza quanto a essa utilização sem problemas deixou de permitir o benefício, em especial da horta, algo que o Tribunal a quo, erradamente, não toma em conta, não justificando do porquê, mas até contradizendo o que menciona referente a alguns depoimentos, já citados, em sede de fundamentação, sendo que também aqui nada impedia o Tribunal a quo de recorrer ao instituto de equidade, se por alguma razão, na medida do homem normal colocado na situação, entende-se que a quantia pecaria por de mais ou de menos.
26) O Recorrente entende que deve ser alterada a resposta dada ao ponto 16 da matéria de facto, de não provado para provado, pois existe nexo de causalidade, e o Recorrente demonstrou pelos depoimentos transcritos de que teve prejuízo quer por não estar no terrenos sempre que necessário, ainda que não abandonados, quer pela horta que teve de deixar de existir até estar lá regularmente (aliás o Tribunal a quo reconhece pelos depoimentos mencionados na sua fundamentação).
27) O Recorrente entende de que para além da alteração dos pontos 15 e 16 de não provados para provados, também seria exigível por pertinente à obtenção da verdade material que o Tribunal a quo tivesse admitido considerar a resposta se era normal em viaturas semelhantes, as avarias registadas na adquirida pelo Recorrente com as suas poupanças de uma vida, em especial no que diz respeito, até ao momento da troca de três injectores em quatro.
28) Quer no Relatório Pericial, quer na explicação dada pelo senhor Perito em audiência de julgamento, quer mesmo dos depoimentos das testemunhas arroladas pelas Rés, técnicos responsáveis pela mecânica, consideraram não ser uma situação normal (ver transcrições de depoimentos nas presentes Alegações), sendo expoente máximo desta matéria a afirmação do senhor Perito, que afirmou que seria do senso comum, enquanto consumidores, que não é uma situação normal.
29) Todos os depoimentos são unânimes em considerar de que número de avarias e a troca dos injectores com pouco quilometragem não é normal, e assim sendo o Recorrente entende que do ponto de vista do consumidor, e a bem da verdade material, só pode ser acrescentado aos pontos dos factos dados como provados o seguinte:
• Não é normal que com a quilometragem indicada, na marca Renault, referente à viatura adquirida pelo Autor, tenha o número de avarias indicado no número 14, incluindo a substituição dos injectores do 1º, 3º e 4º cilindros.
30) O Tribunal a quo fez tábua rasa da prova produzida, e mais do que isso reflecte-a negativamente na douta decisão de que se recorre.
31) Em sede de fundamentação vem o Tribunal a quo mencionar de que a testemunha Alzira …., entre outras duas indicadas, pouco ou nada puderam esclarecer.
32) Ora o Recorrente não pode estar mais em desacordo, como conclusão, pois aqui nas presentes Alegações se encontram transcritos alguns desses depoimentos, sendo que um deles, a da testemunha Alzira …. ajuda a esclarecer de que nas cartas enviadas pelo Recorrente às Rés, aquele afirmava de que não tinha confiança no carro e tinha medo que as situações evoluíssem. 33) Perguntada se ele dizia que tinham de lhe reparar aquilo, porque não está a funcionar bem, foi a testemunha clara de que não pedia tal, pelo que cai por terra a argumentação do Tribunal a quo, ainda que mesmo assim não lhe assistia razão, de que como pedia a reparação então não podia pedir a indemnização com a revogação ou anulação do contrato de compra e venda por incumprimento por parte das Rés, em que conforme a Lei de Defesa do Consumidor, serão solidárias na responsabilidade.
34) Claro ficou de que o Autor e Recorrente não pediu reparações, apesar de efectuadas, não ficou satisfeito e muito menos conformado, pois sempre reclamou, conforme as cartas mencionadas nos factos dados como provados, e existentes nos autos.
35) O Tribunal a quo, com a sua douta decisão sem a devida fundamentação, salvo o devido respeito, não deu cumprimento à legislação vigente quanto à matéria de defesa do consumidor.
36) E assim em sede de fundamentação de direito, aliás muito escassa, e, salvo o devido respeito, erradamente aplicada, pois não se manifesta conforme a norma legal substantiva, quer no que diz respeito à Directiva n.º 1999/44/CE, transposta para o ordenamento jurídico interno pelo Decreto-Lei n.º 67/2003 de 8 de Abril e actualizada pelo decreto-Lei n.º 84/2008 de 21 de Maio, quer também quanto ao conteúdo dos artigos 913º e ss do CC.
37) A conclusão do Tribunal a quo de que o consumidor (Recorrente) pediu reparações que foram realizadas, e por isso não lhe é lícito acrescentar ao pedido de reparação o pedido de indemnização e de resolução, e assim deve ser esse pedido julgado improcedente.
38) Já se viu pelo depoimento da testemunha arrolada pelas Rés (Alzira …..) de que assim não aconteceu, nos precisos termos descritos pelo Tribunal a quo, mas mesmo que tivesse acontecido, como demonstra a vasta doutrina e jurisprudência sobre o assunto, trazida à colação pelo Recorrente nas presentes Alegações, tal não seria relevante, tendo em conta as avarias contínuas, e a já avaria de três dos quatro injectores, até à data da interposição da acção, não é impeditivo de pedido de indemnização com a anulação do contrato, ou a sua resolução, mesmo usando a terminologia do Tribunal a quo.
39) Assim não tem presente o Tribunal a quo, salvo o devido respeito, a protecção que a norma substantiva dá obrigatoriamente ao consumidor, e também como os sábios Tribunais Superiores têm interpretado essa questão, sem a existência de dúvida (ver acórdãos e citações nas presentes Alegações).
40) Assim a vasta doutrina e jurisprudência apresentadas nestas Alegações, revelam que existirem reparações de defeitos que afinal se manifestaram continuados até à interposição da presente acção, e que no futuro não se conhece o que se passará, nem se continuarão a existir, tais reparações não relevam em nada, quanto ao consumidor, nem são impedimento para o pedido de indemnização, ou resolução do contrato celebrado.
41) Pelo que não assiste razão ao Tribunal a quo quando conclui como o faz, e nem se vislumbra onde fundamenta essa sua opinião jurídica, descorando completamente os artigos 2º e 4º, n.º 5 do Decreto-Lei 67/2003 de 8 de Abril, alterado pelo Decreto-Lei 84/2208 de 21 de Maio (Lei de Defesa do Consumidor), que têm cariz obrigatório, bem como o conteúdo dos artigos 913º e ss do CC (ver citação João Calvão da Silva).
42) Quanto aos pedidos de indemnização dos valores mínimos indicados por danos não patrimoniais, referentes ao estado físico e psicológico do Recorrente, e ao efeito sobre este do agravamento da doença de sua esposa, ao ponto de se negar a entrar na viatura, e aquele apenas reduzir a sua utilização a pequenas voltas na zona de Lisboa, criando ansiedade, medo e nervosismo, e bem assim o pedido de indemnização referente ao prejuízo quantificado de não poder beneficiar dos bens que obteria nos seus terrenos, em especial na horta para consumo interno de sua família, e que obviamente passaram a ter que ser adquiridos com a despesa inerente, e salvo melhor opinião, vem o Tribunal a quo a fazer uma errada aplicação do direito em ambos os caos em análise.
43) A doutrina e Jurisprudência mencionadas nas presentes Alegações são reveladores de que a aplicação do direito, no caso concreto desses pedidos expressos de indemnização, remetem para os artigos 562º e ss do CC, pelo que o Tribunal a quo erra, salvo o devido respeito, quando não aplicando a norma apropriada aos factos, vem em três ou quatro linhas, afastar o pedido quanto aos invocados danos, fazendo-o também improceder.
44) Perante o conteúdo das presentes Alegações, e tendo em conta as suas conclusões, entende o Recorrente que só pode proceder o recurso, revogando a douta sentença nos seus precisos termos, e substituindo-a por decisão que acolhendo o pedido, condene a Rés solidariamente, em função do entendimento da Lei de Defesa do Consumidor, nesse pedido, conforme PI nos autos.
Termos em que, com o douto suprimento de V. Exas., deverá proceder o presente Recurso de Apelação, mandando-se corrigir as respostas dados aos factos, nas respostas dadas pelo Tribunal a quo à matéria de factos como não provados (15 e 16), passando a factos provados, bem como acrescentar como provado o facto de que não é normal que com a quilometragem indicada, na marca Renault, referente à viatura adquirida pelo Autor, tenha o número de avarias indicado no número 14 dos factos provados, incluindo a substituição dos injectores do 1º, 3º e 4º cilindros, bem como revogando a sentença, corrigindo e concluindo como no pedido principal expresso na PI nos presentes autos, condenando as Rés e Recorridas, solidariamente, nesses precisos termos; tudo com as inerentes consequências legais;
Assim se fazendo a boa e sã Justiça.
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A 1ª R. interpôs contra-alegações, das quais constam as seguintes conclusões:
“i) O Apelante entende existir contradição entre o ponto 5 dos factos provados e o ponto 15 dos factos dados como não provados mas, os factos que não resultem como provados num processo não podem ser utilizados nesse processo para nenhuma finalidade, sendo havidos como se não existissem;
ii) De qualquer modo, nenhuma contradição poderia existir, pois, a prova de que a mulher do Apelante sofre de problemas psíquicos e de que esta desenvolveu ansiedade e falta de confiança na realização de viagens para a Sertã (facto provado 5), não leva necessariamente que devesse ser dada como provada a matéria que consta do facto provado 15, ou seja, que o Apelante despenderá pelo menos € 3.000,00 com a enfermidade da sua mulher e com a sua estabilidade psicológica;
iii) Entende o Apelante que o ponto 15 dos factos não provados deveria, ao invés, ter sido dado como provado;
iv) O ónus da prova de tal matéria incumbia-lhe a ele e não às Apeladas, sendo que a "ansiedade e falta de confiança" que são referidas no ponto 5 dos factos provados e que correspondem a estados de alma, não demonstram o nexo de causalidade entre um agravamento da doença do foro psíquico da mulher do Autor e a situação de veículo, nem esse nexo resultou do depoimento de nenhuma das testemunhas ouvidas;
v) A testemunha Firmino ….. (sessão de 25.01.2019 de 10:44:11 a 11:03.06) referiu que a mulher do Apelante sofre, desde pelo menos os anos oitenta, de problemas do foro psíquico (como pode ver-se pelo excerto do seu depoimento transcrito no corpo desta alegação);
vi) E a filha do Apelante, Susana …. (sessão de 25.01.2019 de 11:21:27 a 11:47.16) admitiu também que, à sua mãe e mulher do Apelante, foi diagnosticada desde os anos oitenta esquizofrenia (como pode ver-se pelo excerto do seu depoimento transcrito no corpo desta alegação);
vii) O cabal esclarecimento desta questão foi dado pelo médico psiquiatra que desde 1979 segue a mulher do Apelante, testemunha Carlos …. (sessão de 25.01.2019 de 14:31:31 a 11:35.06), e que referiu que esta sofre de perturbação esquizoafectiva, doença com sintomas de esquizofrenia e de bipolaridade (como pode ver-se pelo excerto do seu depoimento transcrito no corpo desta alegação);
viii) A testemunha disse ainda que tinha feito constar no seu relatório a referência ao veículo porque a mulher lho tinha referido em consulta em 2016, não tendo voltado em 2017 a fazer qualquer referência a esse respeito;
ix) Mas disse ainda que a mulher do Apelante não foi internada nem alterou a sua mediação por força da situação relatada (como pode ver-se pelo excerto do seu depoimento transcrito no corpo desta alegação);
x) Nenhuma outra prova documental ou testemunhal sobre esta questão foi feita pelo Apelante, pelo que, como é evidente este não logrou demonstrar o nexo de causalidade entre a situação do veículo e o agravamento da enfermidade de que padece a sua mulher;
xi) Ao contrário do que afirma o Apelante, de acordo com o psiquiatra ouvido, em 2017 a sua mulher nenhuma referência fez já à situação relacionada com o veículo e a referência que havia feito em 2016 a ansiedade causada pelo veículo não demonstra qualquer agravamento da doença em causa, sendo antes uma consequência dessa doença;
xii) A mulher do Apelante não modificou sequer a medicação que tomava, nem se vê que outros custos possam ter sido originados pela situação verificada com veículo;
xiii) Em relação aos alegados efeitos no próprio Apelante, não resultou provado também o nexo de causalidade referido, ficando apenas demonstrado que a situação do veículo o desanimava e entristecia, sendo, de resto, essa situação que resulta dos depoimentos transcritos pelo Apelante, que não evidenciam mais do que preocupação e desânimo;
xiv) Cabe salientar, ainda assim, que um dos depoimentos em o Apelante funda a sua impugnação é o da sua filha, testemunha parcial e que depôs de modo pouco objectivo, tirando sobretudo conclusões e fazendo juízos de valor com o escopo de defender a posição da parte que a indicara;
xv) Ainda assim essa testemunha admitiu que a situação em questão nunca levou a que o Apelante precisasse sequer de consultar um médico (como pode ver-se pelo excerto do seu depoimento transcrito no corpo desta alegação);
xvi) A matéria do ponto 15 dos factos dados como não provados não poderia ter sido demonstrada e está, por isso, correcta a decisão de facto tomada sobre esse ponto;
xvii) De qualquer forma, a existirem danos na situação psicológica da mulher do Apelante, estes sempre se teriam repercutido na sua esfera jurídica e ela nenhum pedido fez na presente acção;
xviii) O Apelante entende que deveria ter sido dada como provada a matéria alegada e que deu origem ao ponto 16 dos factos não provados, mas cabendo-lhe a ele o ónus da prova a respeito de tal matéria, não logrou demonstrá-la;
xix) A testemunha Firmino ….. referiu no seu depoimento que o Apelante, nos terrenos que detém na zona da Sertã, terá algumas oliveiras, algumas vinhas, alguns pinheiros e talvez sobreiros e disse também que os produtos que dessa exploração provêm são para consumo próprio, sendo o Apelante sozinho que dela trata (como pode ver-se pelo excerto do seu depoimento transcrito no corpo desta alegação);
xx) A filha do Apelante admitiu que só desde há muito pouco tempo é que o Apelante explora uma horta e que, só a tem porque se reformou e praticamente vive na zona da Sertã e que nem nunca deixou de cuidar dessa horta, nem das outras explorações que nessa zona detém (como pode ver-se pelo excerto do seu depoimento transcrito no corpo desta alegação);
xxi) Deste modo, nunca tendo havido danos na exploração agrícola, para auto consumo, do Apelante, a qual, nem sequer carecia de ser tratada com regularidade, nunca poderia ter sido dada como provada a matéria alegada por este;
xxii) Pretende o Apelante que se deve dar como provado "não ser normal a avaria de três dos quatro injectores" da viatura que adquiriu., mas na petição inicial nada alegou a respeito dessa falta de normalidade e a prova e a decisão de facto apenas poderão incidir sobre os factos que sejam alegados pelas partes;
xxiii) Aliás, o conceito de "normalidade" é conclusão que apenas poderia resultar de factos objectivos que a permitissem;
xiv) De qualquer modo, o Senhor Perito ouvido (sessão de 25.01.2019 de 10:18:09 a 10:25.36) afirmou não ser possível saber qual a causa que havia levado os injectores a avariar(como pode ver-se pelo excerto do seu depoimento transcrito no corpo desta alegação);
xxv) E a testemunha Tatiana ….. (sessão de 25.01.2019 de 10:13:26 a 14:21.14) a respeito dessa questão afirmou que, não obstante não ter analisado os injectores em causa, a pouca utilização do veículo poderá ter sido a causa de tais avarias (como pode ver-se pelo excerto do seu depoimento transcrito no corpo desta alegação);
xxvi) O que foi ainda confirmado pela testemunha Tiago ….. (sessão de 25.01.2019 de 10:36:20 a 11:48.22) (como pode ver-se pelo excerto do seu depoimento transcrito no corpo desta alegação);
xxvii) Tendo a testemunha Diogo ….. (sessão de 25.01.2019 de 10:49:27 a 14:59.56) confirmado esse facto e dito ainda que o problema poderia resultar do tipo de combustível usado (como pode ver-se pelo excerto do seu depoimento transcrito no corpo desta alegação);
xxviii) E, na verdade, o veículo que havia sido adquirido em 2012 em 26 de Outubro de 2017 havia apena feito 20.235 kms como decorre do Documento n.° 7 junto com a petição inicial, o que dá uma média de cerca de 4.000 kms por ano;
xxix) Curiosamente, aquando da perícia realizada, em 11 de Maio de 2018, já tinha 29.278 kms, pelo que, entre Outubro de 2017 e Maio de 2018 fez quase 10.000 kms, não havendo notícia de que presentemente tenha apresentado quaisquer outros problemas;
xxx) A matéria de conclusão referida pelo Apelante não poderia ser dada como provada, sendo, de resto, irrelevante para a decisão da causa, pois, ainda que algum defeito existisse nos injectores, esse defeito estaria reparado;
xxxi) A douta sentença não merece qualquer censura, pois, ainda que a viatura tivesse algum defeito este encontra-se reparado, e tendo o Apelante, ao apresentar o seu veículo para reparação veio a exercer esse direito de forma inequívoca;
xxxii) E não pode, agora, depois de reparado o veículo vir, num verdadeiro abuso de direito, exigir a sua substituição;
xxxiii) Acresce que, embora não haja uma hierarquia entre eles, os direitos ou faculdades conferidos ao comprador não podem ser exercidos de modo arbitrário à escolha deste, podendo o comprador pode exercer qualquer dos direitos referidos salvo se tal se manifestar impossível ou constituir abuso de direito, pois a escolha deverá ser efectuada de acordo com os ditames da boa fé;
xxxiv) E como se diz no Acórdão deste aeritímo. Tribunal da Relação de Lisboa, de 18.06.2009 "embora podendo o comprador/consumidor, optar por um dos direitos possíveis (p. ex. denúncia de falta de conformidade), a sua escolha deverá obedecer aos ditames da boa fé e com respeito pela conservação e perfeição do negócio jurídico (pacta sunt servanda) (dgsi.pt — p.° 11157/2008-6);
xxxv) A reparação efectuada, sendo como o era na situação em causa nos autos, possível, era a forma mais adequada de manter o contrato de compra e venda celebrado;
xxxvi) De nada vale ao Apelante vir agora remeter para o depoimento da testemunha Alzira ….. (sessão de 25.01.2019 de 14:22:28 a 14:29.53), para procurar demonstrar que havia pedido a substituição do veículo, pois, não alega na petição que tenha pedido essa substituição, ou, a resolução do contrato, extra judicialmente;
xxxvii) Nunca poderia, pois, tal matéria ser dada como provada, a qual de resto não resulta do depoimento da testemunha em causa, que apenas referiu que o Apelante reclamava com medo que a situação ocorresse de novo e que tivesse de pagar ele a reparação (como pode ver-se pelo excerto do seu depoimento transcrito no corpo desta alegação);
xxxviii) O Apelante não logrou demonstrar quaisquer danos nem o nexo de causalidade entre esses alegados danos e a situação ocorrida com a viatura, pelo que o pedido indemnizatório que faz terá que ser julgado improcedente.
Termos em que, deverá o presente recurso ser julgado improcedente, mantendo-se a douta sentença nos seus precisos termos, com o que se fará JUSTIÇA!”
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A 2ª R. interpôs contra-alegações, das quais não resultam, conclusões, impetrando o indeferimento do recurso.
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QUESTÕES A DECIDIR
Nos termos do disposto nos Artigos 635º, nº4 e 639º, nº1, do Código de Processo Civil, as conclusões delimitam a esfera de atuação do tribunal ad quem, exercendo uma função semelhante à do pedido na petição inicial.[1] Esta limitação objetiva da atuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cf. Artigo 5º, nº3, do Código de Processo Civil). Também não pode este Tribunal conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas.[2]
Nestes termos, as questões a decidir que delimitam o objecto deste recurso, consistem em apurar
a) Se se verificam os pressupostos para alteração da matéria fáctica adquirida pelo tribunal recorrido.
b) Se o veículo adquirido pelo A. apresenta vícios que impedem a sua utilização e se estes conferem ao A. direito à resolução do contrato;
c) Se destes vícios decorreram danos para o A. susceptíveis de reparação.
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Corridos que se mostram os vistos aos Srs. Juízes adjuntos, cumpre decidir.
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FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
O tribunal recorrido considerou os seguintes factos:
1 - O A. é funcionário da ‘EPAL’, e desloca-se frequentemente à zona da Sertã, onde tem terrenos agrícolas de que cuida – pelo que, atento o protocolo existente entre a “EPAL” e a “Renault”, decidiu adquirir uma viatura.
2 - Em 9-X-12 o A. adquiriu à 2ª R. a viatura “Renault Mégane” de matrícula 96-..-03, pelo preço de 23.379,00€ (fls 18) - tendo entregue uma sua viatura, avaliada em 850,00€.
3 - Na primeira viagem que fez para a Sertã, a viatura parou ao km 200 do conta-kms – tendo sido rebocada para a oficina, onde a R. procedeu à reparação.
4 - Numa outra viagem para a Sertã, a viatura parou ao km 645 do conta-kms, com a indicação ‘gripagem do motor’ – tendo sido rebocada para a oficina, onde a R. procedeu à reparação.
5 - Face aos problemas supra, o A. passou a limitar-se a utilizar a viatura apenas na zona da Grande Lisboa – e sua esposa, que sofre de problemas psíquicos (fls 18v), passou a desenvolver ansiedade e falta de confiança na realização das viagens para a zona da Sertã.
6 - Numa outra viagem para a Sertã, em 1-VII-15, a viatura parou ao km 12.364 do conta-kms – tendo sido rebocada para a oficina (fls 31v-32), onde a R. referiu que se tratava de um problema de injecção, e procedeu à reparação (fls 71).
7 - Numa outra viagem para a Sertã, a viatura parou ao km 13.692 do conta-kms – tendo sido rebocada para a oficina, onde a R. referiu que se tratava de um problema dos injectores, e procedeu à reparação, em 24-IX-15 (fls 33 e 71v).
8 - Em 1-X-15 e 12-V-16 o A. enviou à 1ª R. as cartas juntas a fls 19 e 22v-23 (cujos teores se dão aqui por reproduzidos).
9 - Em 20-X-15 e 2-VII-16 a 1ª R. enviou ao A. as cartas juntas a fls 29v e 30 (cujos teores se dão aqui por reproduzidos).
10 - Numa outra viagem para a Sertã, a viatura parou ao km 16.059 do conta-kms – tendo sido rebocada para a oficina (fls 35v), onde a R. procedeu à reparação, em 3-V-16 (fls 34 e 73v).
11 - Numa outra viagem para a Sertã, a viatura parou ao km 16.299 ou 16.305 do conta-kms, junto a Sardoal – tendo sido rebocada para a oficina, onde a R. procedeu à reparação, em 30-V-16 (fls 34v e 72).
12 - Em 8-VIII-16 o Advogado do A. enviou à 1ª R. a carta junta a fls 25-26 (cujo teor se dá aqui por reproduzido) – tendo a 1ª R. respondido através da carta junta a fls 30v (cujo teor se dá aqui por reproduzido)
13 - Numa outra viagem para a Sertã, em 5-II-17, a viatura parou na zona de Santarém, ao km 20.325 do conta-kms – tendo sido rebocada para a oficina da 2ª R. (fls 36v), onde foi reparada, com a substituição do injector do 3º cilindro (fls 36 e 73).
14 - Entre 10-I-13 e 6-II-17 a viatura teve seis intervenções por avaria – tendo sido substituídos os injectores do 1º, 3º e 4º cilindros.
Factos não provados
15 - Por causa dos problemas da viatura, o A. despendeu e despenderá pelo menos 3.000,00€ em tratamentos – com a enfermidade de sua esposa, e com a sua própria estabilidade psicológica.
16 - Nos últimos quatro anos, o A. pagou a terceiros, ou deixou de retirar vantagens dos produtos agrícolas e árvores de fruto, em valor não inferior a 1.500,00€ anuais.
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DA REAPRECIAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
Insurge-se igualmente o recorrente contra a decisão proferida sobre a matéria de facto, mormente no que respeita aos factos considerados como não provados nos pontos 15 e 16, mais requerendo o aditamento de um novo facto com a seguinte redacção “Não é normal que com a quilometragem indicada, na marca Renault, referente à viatura adquirida pelo Autor, tenha o número de avarias indicado no número 14, incluindo a substituição dos injectores do 1º, 3º e 4º cilindros”, indicando como fundamentos de discordância da decisão sobre a matéria de facto no que se reporta ao ponto 15, o depoimento do médico assistente da sua esposa, Carlos …., Victor ….., que foi colega de trabalho do A., Susana ……, filha do A. e, no que se reporta ao ponto 16, os depoimentos das testemunhas Firmino ….., seu cunhado e Manuel ……., seu amigo e vizinho, invocando ainda a existência de contradição entre o facto nº 5 dado como assente e o facto nº 15, que o tribunal recorrido considerou não provado.
Mais alega que do depoimento do perito decorreu o facto que ora pretende seja aditado.
Cumpre-nos pois decidir em primeiro lugar
a) Se se verificam os requisitos para reapreciação da matéria de facto apurada no tribunal recorrido e se esta deve ser alterada nos termos propugnados pelo recorrente;
Pretendendo o recorrente, a reapreciação da matéria de facto apreciada pelo tribunal recorrido, exige o artº 640º, nº 1, do Código de Processo Civil, a especificação pelo recorrente, sob pena de rejeição, dos concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados (al.a), os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida (al.b) e a decisão que deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas (al. c).
Mais impõe que, em caso de gravação dos meios probatórios indicados pelo recorrente, deve este, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes” (Artigo 640º, nº 2, al. a) do Código de Processo Civil).
No que se reporta à verificação destes requisitos, o nosso Supremo Tribunal de Justiça tem vindo a pronunciar-se no sentido de que «(…) enquanto a especificação dos concretos pontos de facto deve constar das conclusões recursórias, já não se afigura que a especificação dos meios de prova nem, muito menos, a indicação das passagens das gravações devam constar da síntese conclusiva, bastando que figurem no corpo das alegações, posto que estas não têm por função delimitar o objeto do recurso nessa parte, constituindo antes elementos de apoio à argumentação probatória.» [3]
Assim, “O que verdadeiramente importa ao exercício do ónus de impugnação em sede de matéria de facto é que as alegações, na sua globalidade, e as conclusões, contenham todos os requisitos que constam do art. 640º do Novo CPC.
A saber:
- A concretização dos pontos de facto incorrectamente julgados;
- A especificação dos meios probatórios que no entender do Recorrente imponham uma solução diversa;
- E a decisão alternativa que é pretendida.[4]
Passando à apreciação concreta deste recurso, verifica-se que se encontra cumprido pelo recorrente o ónus previsto nos artºs 639 e 640 do C.P.C., nada obstando à apreciação do recurso nesta parte.
Posto isto, no que toca à possibilidade e limites da reapreciação da matéria de facto, não obstante se garantir um duplo grau de jurisdição[5], tem este de ser enquadrado com o princípio da livre apreciação da prova pelo julgador, previsto no artº 607 nº 5 do C. P. Civil, sendo certo que decorrendo a produção de prova perante o juiz de 1ª instância, este beneficia dos princípios da oralidade e da mediação, a que o tribunal de recurso não pode já recorrer.
De acordo com Miguel Teixeira de Sousa, in “Estudos Sobre o Novo Processo Civil”, pág. 347, “Algumas das provas que permitem o julgamento da matéria de facto controvertida e a generalidade daquelas que são produzidas na audiência final (…) estão sujeitas à livre apreciação do Tribunal (…) Esta apreciação baseia-se na prudente convicção do Tribunal sobre a prova produzida (art.º 655.º, n.º1), ou seja, as regras da ciência e do raciocínio e em máximas da experiência”.
Assim, para que a decisão da 1ª instância seja alterada haverá que averiguar se algo de “anormal” se passou na formação dessa apontada “convicção”, ou seja, ter-se-á que demonstrar que na formação da convicção do julgador de 1ª instância, retratada nas respostas que se deram aos factos, foram violadas regras que lhe deviam ter estado subjacentes, nomeadamente face às regras da experiência, da ciência e da lógica, da sua conformidade com os meios probatórios produzidos, ou com outros factos que deu como assentes.
Tendo presente o acima referido, com vista à reapreciação pretendida da matéria de facto, examinou este tribunal o relatório pericial, e ouviu o depoimento do perito e das testemunhas arroladas.
Ora, no que respeita ao ponto 15 da matéria de facto dada como não provada, e sua eventual contradição com o facto dado como assente sob o ponto 5, decorre este ponto nº 15 do alegado pelo A. no artº 24 da p.i. (tal como este refere em sede de alegações), no qual alegava o A. que “O Autor tem tido sérios prejuízos com a enfermidade da sua esposa e os efeitos sobre a sua própria estabilidade psicológica, perante a situação resultante da viatura que lhe foi vendida, e afinal nunca com possibilidades de uso pleno, sendo que avalia os tratamentos que teve e que tem de custear, e bem assim a sua própria efectação, em valores nunca inferiores a € 3.000,00 (três mil euros).”
Considerou o tribunal como não provado que “Por causa dos problemas da viatura, o A. despendeu e despenderá pelo menos 3.000,00€ em tratamentos – com a enfermidade de sua esposa, e com a sua própria estabilidade psicológica”, o que corresponde no fundo ao alegado, expurgadas considerações genéricas, não estando, no entanto, este facto que se deu como não provado (ou seja que o A. suportou ou tem de suportar tratamentos quer com a sua esposa, quer consigo, decorrentes das avarias da viatura, independentemente do seu valor), em contradição com o facto de se ter dado como assente que a esposa do A. “passou a desenvolver ansiedade e falta de confiança na realização das viagens para a zona da Sertã”.
Que a esposa da A. desenvolvesse ansiedade e falta de confiança na realização das viagens para a zona da Sertã, não implica a realização de tratamentos específicos para essa ansiedade e falta de confiança (tratamentos negados pelo seu médico Dr. Carlos ….), nem implica, de per si, agravamento do estado de saúde da esposa do A. (sendo que do depoimento do referido médico também não resultou qualquer agravamento deste estado de saúde). Aliás do depoimento do seu médico assistente resultou que não terá sequer existido mudança de medicação (sendo a situação psíquica pré-existente), que este estado de ansiedade é actualmente inexistente e, quanto ao A., nenhuma prova foi feita de qualquer afectação psíquica, muito menos localizada no tempo e por causa desta situação (não constituindo doença psíquica, os meros incómodos e aborrecimentos pelas avarias do veículo relatadas pelas testemunhas Victor …., Firmino …. e Manuel …), nem a necessidade, seja ela passada, actual ou futura, de qualquer tratamento.
Assim, não merece provimento a alteração pretendida.       
A respeito do facto dado como não provado sob o ponto 16, nenhuma prova foi feita quanto a este ponto, nomeadamente que o A. “pagou a terceiros, ou deixou de retirar vantagens dos produtos agrícolas e árvores de fruto, em valor não inferior a 1.500,00€ anuais”. Não resultou do depoimento de nenhuma das testemunhas inquiridas, nem de nenhum facto dado como assente que o A. estivesse impossibilitado de deslocar-se com o veículo à Sertã ou de cuidar da sua horta.
Pelo contrário, todas as avarias ocorreram precisamente em viagens para a Sertã (a última das quais, relatada nos autos, em Fevereiro de 2017), sendo que após a última reparação (precisamente numa deslocação à Sertã), a viatura não sofreu qualquer outra avaria (cfr. relatório pericial).
Por outro lado, não indica o A. a que produtos agrícolas ou árvores de fruto se refere, nem os períodos em que alegadamente não pode trabalhar na sua horta, muito menos a que terceiros pagou e a razão para tais (supostos) pagamentos, pelo que nunca poderia este facto resultar como provado.
Relativamente ao facto que se pretende ver aditado, é este uma conclusão (normalidade) a retirar em sede jurídica de qualificação dos factos, ou seja, seria uma conclusão a retirar das avarias registadas e reparadas e suas causas, mas não constitui em si um facto que este tribunal tenha de considerar, nem resulta sequer este “suposto” facto do depoimento do perito, do qual resultou igualmente que a questão dos injectores “avariarem também não pode ser considerada uma anormalidade” neste tipo de veículos.
Improcede pois a pretensão do A.
No entanto, incumbe a este tribunal no uso dos poderes que lhe estão cometidos no artº 662 nº1 do C.P.C. , alterar a matéria de facto assente, por existir manifesta contradição entre o ponto 5, primeira parte e os pontos 3, 4, 6, 7, 10, 11 e 13.
Não pode, com efeito, o tribunal considerar assente que “Face aos problemas supra, o A. passou a limitar-se a utilizar a viatura apenas na zona da Grande Lisboa…” (ponto 5) e considerar toda uma série de avarias, com a mesmíssima viatura, ocorridas precisamente e apenas em viagens para a zona da Sertã, a última das quais em Fevereiro de 2017, o que indica que ao contrário do que consta deste facto, o A. não passou a utilizar a viatura apenas na zona da grande Lisboa (não o fez até à data da última avaria, nem posteriormente, conforme depoimento das suas testemunhas, do qual resultou que passa agora mais tempo na zona da Sertã), nem decorreu de nenhum meio de prova que tenha deixado de utilizar esta viatura, ou que a tenha utilizado apenas na zona de Lisboa.
Aliás, nas suas próprias conclusões, alega o recorrente que estas avarias “impediam o Recorrente de ir algumas vezes às suas terras, sitas na Sertã.” (conclusão 19), mas não invoca que apenas utilizasse o carro na zona de Lisboa, nem alega sequer que deixou de ir à Sertã ou a outros sítios, por medo de avarias no veículo, ou em caso de diminuição das referidas viagens à Sertã, os períodos de tempo em que tal teria ocorrido.
Assim sendo, porque alegara o A. que passou a utilizar este veículo apenas na zona da grande Lisboa, não resultando da prova produzida nem dos factos assentes, a veracidade desta alegação, nem podendo este tribunal considerar uma diminuição da utilização nomeadamente nas viagens que pretendia fazer, há que eliminar esta parte do ponto 5, considerando-a não provada.
Assim sendo, elimina-se a primeira parte deste ponto 5, deste passando a constar a seguinte redacção:
5-“Face aos problemas supra, a sua esposa, que sofre de problemas psíquicos (fls 18v), passou a desenvolver ansiedade e falta de confiança na realização das viagens para a zona da Sertã.
Adita-se aos factos não provados um ponto 17 com a seguinte redacção:
17-“ Face aos problemas supra, o A. passou a limitar-se a utilizar a viatura apenas na zona da Grande Lisboa”
No demais manter a matéria de facto adquirida pelo tribunal recorrido.
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Fixada a matéria de facto relevante para decisão da causa, cumpre-nos apreciar os demais fundamentos do recurso.
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FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
Insurge-se o recorrente contra a decisão que absolveu as recorridas dos pedidos formulados, alegando que esta decisão não é conforme a norma legal substantiva, quer no que diz respeito à Directiva n.º 1999/44/CE, transposta para o ordenamento jurídico interno pelo Decreto-Lei n.º 67/2003 de 8 de Abril e actualizada pelo decreto-Lei n.º 84/2008 de 21 de Maio, quer também quanto ao conteúdo dos artigos 913º e ss do CC.
Passemos pois a apreciar as questões elencadas pelo recorrente, nomeadamente apurando:
b) Se o veículo adquirido pelo A. apresenta vícios que impedem a sua utilização e se estes conferem ao A. direito à resolução do contrato;
Decidindo:
Defende o recorrente que, existindo defeitos do veículo adquirido à 2ª R., sendo a 1ª R. a representante da marca em Portugal, consistindo estes defeitos em sucessivas avarias que, apesar das sucessivas reparações (por si não pedidas) não impedem nem excluem o direito a uma indemnização ou à resolução do contrato, o tribunal de primeira instância incorreu em erro de facto e de direito, ao absolver ambas as RR. do pedido.
Invoca a este respeito o regime constante dos artºs 913 e segs, bem como o disposto na Lei de Defesa do Consumidor e no D.L. 67/2003.
Efectivamente resulta da conjugação do disposto nos art.ºs 913 nº1 a 915 do C. Civil, que o comprador de coisa defeituosa goza do direito de exigir do vendedor:
- a reparação da coisa ou a sua substituição se esta tiver natureza fungível;
- a redução do preço;
-a indemnização do interesse contratual negativo;
-a anulação do contrato;
Por outro lado e muito embora a obrigação de conformidade com o contrato derive já dos princípios gerais e do regime legal do contrato de compra e venda no Código Civil (arts. 406º, 763º, 879º e 882º), o consumidor adquirente de coisa defeituosa beneficia ainda da proteção conferida pela Lei de Defesa do Consumidor (aprovada pelo Dec. Lei n.º 24/96, de 31/7 e alterada pelo D.L. 67/2003 de 08/04)[6] bem como, se aplicável, do regime de compra e venda celebrado entre profissionais e consumidores, instituído pelo Dec. Lei n.º 67/2003, de 8 de abril, alterado e republicado pelo Dec. Lei n.º 84/2008, de 21 de maio[7], podendo exigir a satisfação dos prejuízos sofridos e resultantes do fornecimento do bem defeituoso (artº 4.º, n.º 1, do DL n.º 67/2003), conforme aliás dispõe o artº 12 da LDC, uma vez que o vendedor assume “o dever de entregar ao consumidor bens que sejam conformes com o contrato de compra e venda” (artº 2 nº1 do D.L. 67/2003)[8], sendo que, em caso de falta de conformidade do bem com o contrato, o consumidor tem direito a que esta seja reposta sem encargos, por meio de reparação ou de substituição, podendo ainda obter a redução adequada do preço ou a resolução do contrato – art.ºs 3 e 4/1.º do Dec. Lei n.º 67/2003 de 8 de abril.
Ainda a respeito desta conformidade com o contrato de compra e venda, elenca o nº 2 do art. 2º do DL 67/2003 determinados “factos-índices” demonstrativos de não conformidade, de tal forma que se comprovados presume-se a desconformidade (presunção juris tantum), tais como a desconformidade com a descrição que deles é feita pelo vendedor; não possuírem as qualidades do bem que o vendedor tenha apresentado ao consumidor como amostra ou modelo; não serem adequados ao uso específico para o qual o consumidor os destine e do qual tenha informado o vendedor quando celebrou o contrato e que o mesmo tenha aceitado; não serem adequados às utilizações habitualmente dadas aos bens do mesmo tipo;
não apresentarem as qualidades e o desempenho habituais nos bens do mesmo tipo e que o consumidor pode razoavelmente esperar, atendendo à natureza do bem e, eventualmente, às declarações públicas sobre as suas características concretas feitas pelo vendedor, pelo produtor ou pelo seu representante, nomeadamente na publicidade ou na rotulagem.

Assim, a coisa é defeituosa quando esteja afectada por vícios materiais ou vícios físicos, ou seja por defeitos intrínsecos da coisa, inerentes ao seu estado material, em desconformidade com o contratado, uma vez que não corresponde às características acordadas, ou legitimamente esperadas pelo vendedor.
Conforme refere Calvão da Silva in “Compra e Venda de Coisas Defeituosas” a págs. 41, “a lei (...) privilegia a idoneidade do bem para a função a que se destina, ciente de que o importante é a aptidão da coisa, a utilidade que o adquirente dela espera.
Daí a noção funcional: vício que desvaloriza a coisa ou impeça a realização do fim a que se destina; falta das qualidades asseguradas pelo vendedor ou necessárias para a realização do fim a que a coisa se destina.”
Ainda a este respeito,, refere Pedro Romano Martinez in “Contratos em Especial” pág. 125, “A coisa é defeituosa se tiver um vício ou se for desconforme àquilo que foi acordado. O vício corresponde a imperfeições relativamente à qualidade normal das coisas daquele tipo, enquanto que a desconformidade representa uma discordância com respeito ao fim acordado.” acrescentando o mesmo autor que “Quando não houver acordo específico das partes acerca do fim a que a coisa se destina atende-se à função normal de coisas da mesma categoria (art. 913º, nº 2 CC). Há um padrão normal relativamente à função de cada coisa, e é com base nesse padrão que se aprecia da existência do vício.”
Por sua vez, para Armando Braga in “Contrato de Compra e Venda” a págs. 111, “Há venda de coisa defeituosa quando no contrato de compra e venda, tendo por objecto a transmissão de propriedade de uma coisa, a coisa vendida:
a) Sofrer de vício que a desvalorize, ou que a impeça da realização do fim a que é destinada;
b) Não tiver as qualidades asseguradas pelo vendedor, ou necessárias para a realização do fim a que é destinada.”
Para Luís Menezes Leitão, Direito das Obrigações, Vol. III, Contratos em Especial, Almedina, 4.ª edição., pág. 120, “A aplicação do regime da venda de coisas defeituosas assenta em dois pressupostos de natureza diferente, sendo o primeiro a ocorrência de um defeito e o segundo a existência de determinadas repercussões desse defeito no âmbito do programa contratual. Quanto ao primeiro pressuposto, a lei faz incluir assim no âmbito da venda de coisas defeituosas, quer os vícios da coisa, quer a falta de qualidades asseguradas ou necessárias. Apesar de a distinção entre vícios e falta de qualidades não se apresentar tarefa fácil, parece que se poderá sustentar que a expressão "vícios", tendo um conteúdo pejorativo, abrangerá as características da coisa que levam a que esta seja valorada negativamente, enquanto que "a falta de qualidades", embora não implicando a valoração negativa da coisa, a coloca em desconformidade com o contrato. Em relação ao segundo pressuposto, para que os defeitos da coisa possam desencadear a aplicação do regime da venda de coisas defeituosas toma-se necessário que eles se repercutam no programa contratual, originando uma de três situações: a desvalorização da coisa; a não correspondência com o que foi assegurado pelo vendedor e a sua inaptidão para o fim a que é destinada. A primeira situação refere-se aos vícios e a segunda à falta de qualidades, enquanto que a terceira abrange estas duas situações.”
O ónus da prova de que existe um defeito da coisa vendida em regra cabe ao comprador (artº 342 do C.C.), sendo que provado o defeito da coisa, então e só então, estabelece o artº 799 do C.C., a presunção de culpa do vendedor se a coisa entregue padecer de defeito, cabendo por sua vez a este a prova de que o defeito não provém de culpa sua.
Ocorrendo estes defeitos, a lei assegura em termos gerais ao comprador, conforme acima referimos, o direito à reparação, à substituição, à redução do preço, à resolução e à indemnização (arts. 913 nº1 e 905 e segs. do C.C.)
Não sendo cumprida a obrigação, por parte do vendedor de reparação ou substituição da coisa imposta expressamente pelo artº 914 e 921 do C.C., “não há qualquer razão séria que impeça o comprador de invocar o disposto no artº 808º, mostrando que perdeu objectivamente o interesse na prestação ou lançando mão da interpelação admonitória, para converter o incumprimento imperfeito e a mora na sua rectificação em incumprimento definitivo (total ou parcial). Assim poderá resolver o contrato, segundo as regras gerais (arts. 801º e 802º, art. 793º), por facto posterior à sua conclusão – violação contratual suficientemente grave e inadimplemento definitivo, desde que esteja em condições de restituir a coisa em contrapartida do reembolso do preço ou prove que a impossibilidade de restituição se imputa ao vendedor;” (Calvão da Silva in obra citada, págs. 68).
Se assim é relativamente ao regime civilístico que regula a venda de coisa defeituosa, O Dec. Lei 67/2003, no seu artº 5, não impõe qualquer hierarquização dos diversos direitos que assistem ao consumidor (assumindo um nível de protecção mínima, tendo em conta o teor da Directiva 1999/44/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de Maio), de onde resulta que, no caso de negócio de bem de consumo, não se impõe ao comprador que, em primeiro lugar, peticione a reparação/substituição e, só na ausência dessa reparação ou substituição do bem, possa vir peticionar a resolução/anulação do contrato.[9]
No entanto, o exercício destes direitos, ainda que não hierarquizados, deve sempre obedecer aos ditames da boa fé, não podendo constituir um exercício abusivo do direito, cfr. dispõe o artº 4 nº7 do D.L. 67/2003, ou seja não é admissível que o comprador, por um qualquer defeito da coisa, de pequena importância face ao bem, peticione a resolução do contrato. 
Denote-se que em relação ao produtor do bem, prevê o artº 6 nº1 deste diploma legal que “Sem prejuízo dos direitos que lhe assistem perante o vendedor, o consumidor que tenha adquirido coisa defeituosa pode optar por exigir do produtor a sua reparação ou substituição, salvo se tal se manifestar impossível ou desproporcionado tendo em conta o valor que o bem teria se não existisse falta de conformidade, a importância desta e a possibilidade de a solução alternativa ser concretizada sem grave inconveniente para o consumidor.”[10], pretendendo-se assim com este preceito e com a extensão das garantias previstas no artº 9, “estender ao domínio da qualidade a responsabilidade do produtor pelos defeitos de segurança, já hoje prevista no DL nº383/89 de 6 de Novembro
Conforme se refere em Ac. (já citado) do TRC 01/03/16, o regime previsto no artº 6 da Lei 63/2007 “através da “acção directa” (…) pretende estender a responsabilidade contratual do produtor perante terceiros, configurando, segundo determinado entendimento, na esteira do direito francês, uma cessão da garantia por vícios emergentes do contrato firmado entre o produtor e o primeiro adquirente, aos adquirentes sucessivos da coisa defeituosa.
Daí que, no quadro legislativo vigente, a responsabilidade civil do produtor perante terceiros assuma uma dupla natureza, conforme os respectivos pressupostos: por um lado, a natureza de responsabilidade delitual objectiva, por outro, a natureza de responsabilidade contratual (acção directa).”
Quer isto dizer que o produtor está obrigado à reparação ou substituição do bem, independentemente da causa da avaria ou da culpa, mas não está obrigado à resolução ou anulação do contrato (pelo que se não vê, em qualquer caso, fundamento legal para o peticionado relativamente à 1ª R.).
Por outro lado, o Decreto-Lei nº 67/2003, no seu art. 5.º, n.º1 e 2, estabelece prazos para o exercício dos direitos do consumidor, fixando-os em 2 dois anos a contar da entrega do bem, se se tratar de coisa móvel, mais dispondo no seu art. 5.º-A que estes caducam no termo do prazo acima referido e na ausência de denúncia da desconformidade pelo consumidor (nº1), devendo este, para poder exercer esses direitos, denunciar ao vendedor a falta de conformidade num prazo de dois meses, caso se trate de bem móvel, a contar da data em que tenha detectado o vício/defeito da coisa (n.º2), por forma aliás, a permitir ao vendedor a possibilidade de repor, sem encargos para aquele, a conformidade do bem, de acordo com o contrato firmado e as características da coisa.
Por último, a aplicação destes diplomas legais e a tutela do consumidor, “sempre depende da existência de “vícios da coisa ou coisa defeituosa”, vendida ou adquirida, ou “desconformidade face ao contrato de compra e venda”, ou seja, perspetivando-se que o bem sofra de vício que a desvalorize ou que impeça a realização da finalidade a que a mesma se destina ou careça das qualidades necessárias e asseguradas pelo vendedor para a realização desse fim.”[11]
Expostos estes considerandos e analisado o regime legal aplicável, da matéria de facto assente, mormente da descrita nos pontos 3, 4, 6, 7, 10, 11 e 13, resultou que entre 10-I-13 (data da primeira avaria tendo o veículo adquirido pelo A. 200 Km) e 6-II-17 a viatura teve seis intervenções por avaria. Acresce que não se sabe, porque não alegada, a causa da 1ª avaria ocorrida em 2013, nem sequer da avaria seguinte, aparecendo a indicação electrónica (luz de aviso) de “gripagem do motor” (mas sem que tenha efectivamente ocorrido a gripagem do referido motor), sabendo-se apenas de concreto que, em dois momentos do ano de 2015 e em fevereiro de 2017 (pontos 6, 7 e 13), ocorreram problemas com o sistema de injecção do veículo, tendo sido substituídos os injectores do 1º, 3º e 4º cilindros.
Destes factos não se pode extrair a conclusão (nem tal foi alegado) que estas intervenções, incluindo a primeira, se reportam à mesma avaria, que esta não tenha sido reparada (com eficácia, repetindo-se no tempo), ou que as ocorridas (incluindo as ocorridas fora do período de garantia do veículo (artº 921 do C.P.C. e 5 do Lei 63/2007[12]) e do prazo para denúncia destes defeitos), constituam um vício intrínseco da coisa vendida.
Mas, independentemente da aferição da natureza destas avarias no referido veículo, foram todas objecto de reparação, sendo certo que à data em que foi interposta a acção, todas se encontravam reparadas, reparação aliás aceite pelo A. que recepcionou o veículo e com ele continuou a circular, não enfermando a viatura nem à data, nem actualmente de que tenha sido dado notícia nos autos, de qualquer vício ou desconformidade.
Ora, o direito concedido ao comprador/consumidor de peticionar a resolução do contrato, em caso de coisa defeituosa, depende de a coisa adquirida enfermar de efectivos vícios, que tornem inexigível a manutenção do contrato, atenta a natureza do vício e de acordo com ditames de boa-fé e depende de previamente não ter este optado pelo direito à reparação, extinguindo-se assim o seu direito, não por caducidade, mas antes pelo cumprimento das sucessivas exigências de reparação do bem, sem encargos, que foram sendo feitas pelo A. e aceites pelas RR.
A este respeito é indiferente a alegação, em sede de recurso, de que o A. não pediu a reparação, sendo que conforme se refere em Acórdão do STJ de 17/12/2015 (Maria Graça Trigo, proc. nº 1174/12.3TVLSB.L1.S1, disponível in site da dgsi) “A colocação de um veículo na oficina ou oficinas autorizadas da rede da marca do automóvel constitui um facto concludente que permite deduzir a vontade de exigir a reparação dos defeitos “sem encargos”, faculdade que é atribuída pelo art. 4.º, n.º 1, do DL n.º 67/2003, em alternativa à possibilidade de exigir a substituição do bem, ou a redução do preço, ou a resolução do contrato. Tendo a autora optado pelo direito à reparação do veículo automóvel, não goza mais do direito a invocar tais defeitos ou a falta de conformidade do bem como fundamento para exigir a substituição do automóvel, qualquer que seja o momento que se considere”, muito menos pode peticionar a resolução do contrato e restituição do preço pago.
Reparada efectivamente a coisa e aceite essa reparação (sendo que mesmo após o envio da carta de maio de 2016 à 1ª R. veio o A. aceitar nova reparação), não enfermando esta actualmente de qualquer vício (cfr. auto de perícia), não assiste ao adquirente o direito de resolução do contrato (que em todo o caso não assistiria relativamente à 1ª R.), nem é esta atitude conforme à boa fé e constituiria sempre um verdadeiro abuso de direito, tendo em conta as reparações feitas, os anos que a viatura já tem (o que implica acentuada desvalorização) e a sua efectiva utilização pelo comprador.
Por último, no que se reporta aos danos peticionados, podendo sempre o A. peticionar o ressarcimento de prejuízos que lhe tivessem sido causados, decorrentes de privação de uso do veículo na pendência das reparações ocasionadas por vícios da coisa (ou diminuição do seu uso), de despesas que tivesse suportado ou de ganhos que tivesse deixado de obter por causa destas avarias, imputáveis a defeito da coisa, o certo é que não resultaram provados (nem em bom rigor foram alegados), quaisquer danos decorrentes das mesmas e da necessidade da sua reparação.
Podendo as deslocações às oficinas da 2º R. para reparação, constituir incómodos e arrelias para o A., não assumem estas gravidade suficiente para merecerem a tutela do direito, nos termos previstos no artº 496 do C.C.  
Nega-se assim provimento à apelação, improcedendo o recurso interposto.
                                               *
DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes desta relação em:
-alterar a matéria de facto adquirida pelo tribunal recorrido;
- negar provimento à apelação, mantendo a decisão recorrida.
Custas pelo apelante (artº 527 do C.P.C.).
Lisboa 26/09/19
Cristina Neves
Manuel Rodrigues
Ana Paula A.A. Carvalho

[1] Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, pp. 84-85.
[2] Abrantes Geraldes, Op. Cit., p. 87.
Conforme se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7.7.2016, Gonçalves Rocha, 156/12, «Efetivamente, e como é entendimento pacífico e consolidado na doutrina e na Jurisprudência, não é lícito invocar nos recursos questões que não tenham sido objeto de apreciação da decisão recorrida, pois os recursos são meros meios de impugnação das decisões judiciais pelos quais se visa a sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação». No mesmo sentido, cf. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 4.10.2007, Simas Santos, 07P2433, de 9.4.2015, Silva Miguel, 353/13.
[3] Ac. STJ de 01.10.2015, proc. 824/11.3TTLRS.L1.S1, Ana Luísa Geraldes; Ac. STJ de 14.01.2016, proc. n.º 326/14.6TTCBR.C1.S1, Mário Belo Morgado; Ac. STJ de 11.02.2016, proc. n.º 157/12.8TUGMR.G1.S1, Mário Belo Morgado; Ac. STJ, datado de 19/2/2015, proc. nº 299/05, Tomé Gomes; Ac. STJ de 22.09.2015, proc. 29/12.6TBFAF.G1.S1, 6ª Secção, Pinto de Almeida; Ac. STJ, datado de 29/09/2015,proc. nº 233/09, Lopes do Rego; Acórdão de 31.5.2016, Garcia Calejo, proc. nº 1572/12; Acórdão de 11.4.2016, Ana Luísa Geraldes, proc. nº 449/410; Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27.1.2015, Clara Sottomayor, proc. nº 1060/07.
[4] Ac. STJ. de 03.03.2016, Ana Luísa Geraldes, proc. nº 861/13.3TTVIS.C1.S
[5] Cfr. o Acórdão da Relação de Guimarães de 04.02.2016, no Proc. 283/08.8TBCHV-A.G1, disponível em www.dgsi.pt, com o seguinte sumário: «Para que a decisão da 1.ª instância seja alterada, haverá que averiguar se algo de “anormal” se passou na formação dessa apontada “prudente convicção”, ou seja, ter-se-á que demonstrar que na formação da convicção, retratada na resposta que se deu à factualidade controvertida, foram violadas regras que lhe deviam ter estado subjacentes, nomeadamente aferir da razoabilidade da convicção formulada pelo juiz da 1.ª instância, face às regras da experiência, da ciência e da lógica, da sua conformidade com os meios probatórios produzidos, sem prejuízo do poder conferido à Relação de formular, nesse julgamento, com inteira autonomia, uma nova convicção, com renovação do princípio da livre apreciação da prova.»
De igual modo, cfr. o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 31.05.2016, no Proc.1572/12.2TBABT.E1.S1, disponível na mesma base de dados, decidindo que «O Tribunal da Relação deve exercer um verdadeiro e efectivo 2.º grau de jurisdição da matéria de facto e não um simples controlo sobre a forma como a 1.ª instância respondeu à matéria factual, limitando-se a intervir nos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova e a decisão, pois que só assim se assegurará o duplo grau de jurisdição, em matéria de facto, que a reforma processual de 1995 (DL n.º 329-A/95, de 12-12) visou assegurar e que o actual Código confirmou e reforçou.»
[6] Dispõe o artº 2 nº1 que “Considera-se consumidor todo aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com caráter profissional uma atividade económica que vise a obtenção de benefícios”
[7] Nos termos do artº 1-B deste diploma considera-se consumidor “aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma actividade económica que vise a obtenção de benefícios, nos termos do nº 1 do artigo 2º da Lei 24/96, de 31 de Julho.”
[8] Em conformidade com o disposto na nossa CRP, resultando do artº 60 que “Os consumidores têm direito à qualidade dos bens e serviços consumidos, à formação e à informação, à protecção da saúde, da segurança e dos seus interesses económicos, bem como à reparação de danos.”
[9] Neste sentido veja-se Ac STJ de 5/5/2015, proc. nº 1725/12; Ac. do TRC de 01/03/2016, relator Jorge Arcanjo, proc. nº 1684/08.7TBCBR.C1, disponível em www dgsi.pt; em sentido contrário, vidé Calvão da Silva, Venda de Bens de Consumo, 3ª ed., págs. 82 e 86
[10] Refira-se que, por cartas remetidas em Maio de 2016 e Agosto de 2016 (esta por intermédio do seu Ilustre mandatário) e recebidas pela 1ª R., o A. solicitou a substituição do veículo, por entender não serem as reparações adequadas á resolução do problema apresentado pelo veículo.
[11] Ac. do TRP de 10/02/16, relator Tomé Ramião, proc. nº 4990/14.8TBVNG.P1, disponível para consulta in www.dgsi.pt
[12] Prevê este preceito que “O consumidor pode exercer os direitos previstos no artigo anterior quando a falta de conformidade se manifestar dentro de um prazo de dois ou de cinco anos a contar da entrega do bem, consoante se trate, respectivamente, de coisa móvel ou imóvel.”